Você está na página 1de 51
Magda Soares Toda crianca pode aprender a ler e a escrever wh Yi editoracontexto a we ALFABETIZACAO E LETRAMENTO ‘ALFABETIZAGAO LETRAMENTO Processo de apropriacio da Capacidades de uso da escrita “tecnologia da escrita’, isto para inserir-se nas praticas socials 6, do conjunto de técnicas ~ e pessoais que envolvem a lingua procecimentos, habilidades escrita, o que implica habilidades ~necessérias paraa pratica da varias, tais como: capacidade de ler leitura e da escrita: dominio ‘ouescrever para atingir diferentes do sistema de representacéo objetivos ~ para informar ou informar- que é a escrita alfabética se, para interagir com outros, para € das normas ortograficas; imergir no imaginsrio, no estético, habilidades motoras de uso de para ampliar conhecimentos, para instrumentos de escrita (lapis, seduzir ou induzir, para divertir-se, caneta, borracha...); aquisicso para orientar-se, para dar apoio de modos de escrever e de meméria etc.; habilidades de ‘modos de ler ~ aprendizagem interpretar e produzir diferentes de uma certa postura corporal tipos e géneros de textos; habilidade adequada para escrever ou para de orientar-se pelas convencies ler; habilidades de escrever ou de leitura que marcam o texto ou ler, seguindo convengdes da de langar méo dessas convengdes, escrita, tals como: a diregio ‘a0 escrever; atitudes de inser¢o correta da escrita na pagina (de efetiva no mundo da escrita, tendo cima para baixo, da esquerda interesse e prazer em ler e escrever, para a direita); a organizacdo sabendo utilizar a escrita para espacial do texto na pagina; encontrar ou fornecer informacdes a manipulago correta e ‘econhecimentos, escrevendo ou adequada dos suportes em que lendo de forma diferenciada segundo se escreve e nos quais se |é~ as circunstancias, os objetivos, 0 livro, revista, jornal, papel etc. interlocutor. ‘AlfabetizacSo e letramento so processos cognitivos e linguisticos distintos, portanto, a aprendizagem e o ensino de um e de outro é de natureza essencialmente diferente; entretanto, as ciéncias em que se baseiam esses processos e a pedagogia por elas sugeridas evidenciam que so processos simulténeos e interdependentes. A alfabetizagdo ~ a aquisigao da tecnologia da escrita ~ndo precede nem ¢ pré-requisito para o letramento, ao contrirlo, a crianca aprende a ler e escrever envolvendo-se em atividades de letramento, isto é, de leitura e producao de textos reais, de praticas sociais de leitura e de escrita. 27 Leitura, compreensao e interpretacgdo de textos: letramento no ciclo de alfabetizagao Buscando uma sintese antes de prosseguirmos, pode-se con- siderar que os capitulos anteriores, e também a unidade anterior, trataram do que se poderia denominar os “alicerces” das habilidades de leitura e escrita em uma escrita alfabética: a compreensao de que aescrita representa os sons da fala e, paralelamente, a aprendizagem do sistema em que os sons da fala, reduzidos a sua menor unidade, os fonemas, sao representados por grafemas: o sistema de escrita alfabética. $6 quando a crianga se apropria dos processos de repre- sentar fonemas por grafemas e identificar fonemas em grafemas é que se pode considerar que adquiriu habilidades de leitura ¢ escrita de palavras e frases, necessarias, ainda que nao suficientes, para que desenvolva habilidades de leitura e produgao de textos. Essas habilidades foram ja introduzidas em atividades descritas nos capi- tulos anteriores, mas ao ciclo de alfabetizagao e letramento nao cabe apenas construir esses “alicerces”, cabe ainda comegar a desenvolver sistematicamente “edificio” que se erga sobre esses “alicerces”: as habilidades de ler e interpretar textos e de produzir textos, paraalém das habilidades de codificar e decodificar palavras e frases. Ao seapropriarem da escrita alfabética, as criangas adquirem capa- cidades de uso da escrita para inserir-se nas praticas sociais, culturais € pessoais que envolvem a lingua escrita — a alfabetizacdo se acrescenta © letramento: reveja os conceitos de alfabetizacao e letramento e a relacao entre esses dois processos na unidade 2 do primeiro capitulo. O dominio do sistema de escrita alfabética abre novas possibi- lidades de interagdo para a crianga: recepcdo de mensagens ao ler, 203 ALFALETRAR » MAGOA SOARES produgao de mensagens ao escrever, ¢ assim se ampliz tempo que se alfabetiza, sua inser¢ao no contexto social e cultural, O texto ¢ 0 lugar dessa interagao - inter-acéo - agao entre quem produz o texto e quem 1é 0 texto. Como se infere do paragrafo anterior, estamos nos referindo a ao mesmo textos escritos, mas textos nao sao sé escritos, so também orai: a interacao entre as criangas e entre criancas e adultos ocorre co- tidianamente por meio de textos orais — falar e ouvir. Embora no ciclo de alfabetizacao e letramento seja fundamental que também se desenvolvam habilidades de construir textos orais — expressar- se na fala com clareza, fluéncia, vocabuldrio adequado, e receber mensagens orais (ouvir) com atengdo e compreensiao -, neste livro, cujo tema é a alfabetizagao e o letramento, colocamos 0 foco em textos escritos — verbais, verbo-visuais, multimodais, que caracte- rizaremos adiante. Nesta unidade, vamos refletir sobre a crianca leitora de textos; na préxima unidade, sobre a crianga produtora de textos, sempre dentro dos limites do ciclo de alfabetizagao e letramento: na educa- ¢4o infantil e nos dois ou trés anos iniciais do ensino fundamental. Antes mesmo de saber ler, a crianga ja convive com textos e comega a construir 0 conceito de texto, como vimos em capitulos anteriores. Voltemos ao episddio apresentado na unidade 2 do capi- tulo “Alfabetizacao e letramento”: ao ouvir a leitura pela professora do livro infantil A caixa maluca, a crianga, antes mesmo de saber ler, compreende que livros contém contos, j4 aprende convengdes do texto - como linearidade, diregio da esquerda para a direita, de cima para baixo, ja diferencia e relaciona escrita e ilustracao, jatem oportunidades de ampliar seu vocabuldrio, Relembre as estratégias de letramento que a professora usou ao ler para as criangas 0 livro A caixa maluca e que voce identificou em sua resposta do box “Pare e pense” da unidade 2 daquele capitulo. Assim, durante 0 processo de alfabetizagao, as criangas vao construindo 0 conceito de texto que, alias, algumas costumam ja trazer de casa ao entrarem na educagao infantil ou mesmo direta- 204 LEITURA E ESCRITA NO PROCESSO DE ALFABETIZAGAO E LETRAMENTO mente no ensino fundamental, caso tenham tido oportunidades, no contexto familiar, de contato com livros infantis e de ouvir hist6rias lidas por adultos. Cabe, porém, a escola planejar de forma sistematica a leitura e compreensao de textos, tanto para criangas que ainda nao saibam ler como para criangas ja alfabetizadas. E o que vamos discutir nesta unidade, Para uma visio dos componentes que devem orientar uma atuagdo consciente e sistematica da/o professora/or no desenvolvi- mento de leitura e interpretagao de textos no ciclo de alfabetizagio ¢ letramento, vamos nos orientar pela figura seguinte: Leitura, compreenstio e interpretacéio: componentes preparacio. nivel de MEDIADA textualidade LEITURA INDEPENDENTE COMPREENSAO VOCABULARIO. sao apenas dois quadrinhos, eo primeiro sé ganha sentido em relagdo com o segundo. A crianga vé e lé os balées no primeiro quadrinho, entende que Cascio estd pedindo a alguém que esta atras dele - quem? ~ que conte mais uma mentira — para qué? ~ e nao identifica onde ele esta ajoelhado; > no segundo quadrinho, a referéncia a outro texto ¢ outro per- sonagem (intertextualidade) é condigao para que as criangas compreendam a relagao entre os dois quadrinhos; para isso, elas tém de ter conhecimentos prévios: + conhecera histéria de Pindquio e saber que seu nariz cresce a cada vez que ele fala uma mentira; + lembrar que Cascio tem pavor de agua, quer atravessar um rio sem se molhar; * estd usando o nariz de Pindquio como uma ponte, o que entio esclarece que, no primeiro quadrinho, Cascao esté ajoelhado sobre a ponta do nariz de Pinéquio; * para alcangar 0 outro lado, o nariz de Pindquio tem de crescer mais, Para isso, ele precisa falar mais uma menti A professora relatou que as criangas fizeram muitas perguntas, tiveram muitas diividas; varias nado sabiam a historia de Pindquio ou nao se lembravam de que mentiras faziam crescer seu nariz, 0 que exigiu que ela contasse ou relembrasse a historia; e precisou explicitar as inferéncias exigidas para a compreensio da tirinha: para Cascio chegar ao outro lado do rio, o nariz de Pindquio teria que crescer até chegar & outra margem; para que o nariz de Pindquio crescesse, ele teria de falar mais mentiras ~ inferéncias externas a tirinha, porque dependem de conhecimentos sobre a historia de Pindquio e sobre Cascio. Para um leitor jd em fase mais avangada em habilidades de inter- pretagdo de textos, a tirinha seria provavelmente compreendida, as relagées entre os quadrinhos seriam logo estabelecidas, os conheci- mentos prévios necessdrios seriam ativados para a compreensao da 223 ALFALETRAR © MAGDA SOARES narrativa, E 0 que deve ter acontecido com vocé quando leua tirinha, mas nao foi o caso de criangas do 1° ano, com 6 anos em média, A conclusao nao é que voce sé deve escolher textos que as criangas serdo capazes de ler e compreender facilmente; ao contrario, textos podem e devem propor desafios para as criangas, oportunidades para que desenvolvam habilidades de compreensio e interpretagio, ampliem seus conhecimentos e experiéncias. Mas os desafios devem estar den- tro das possibilidades das criangas a quem a leitura vai ser proposta, e adequados aos objetivos de desenvolyimento de habilidades de leiturae interpretagao. A proposta de leitura einterpretagao da tirinha com Cas- cio e Pindquio parece ter ultrapassado as possibilidades de criangas do 1° ano, tantas foram as dificuldades de compreensao e de interpretagao. Segundo a professora, a tirinha, depois de compreendida, deixou as criangas insatisfeitas porque o problema apresentado nao foi resol- vido, a solugao ficou em suspenso; perguntavam: sera que Pindquio fez 0 que Cascio pediu? Cascdo vaialcangar a outra margem do rio? (impressionaram-se com a expressao aflita de Cascdo no segundo quadrinho); Pindquio vai ou nao atender ao pedido de Ca: ‘ou nao vai contar mais uma mentira? (tiveram duvidas, porque a expressio de Pindquio era de “ma vontade”). O que explica a insatisfagio das criangas é que a narrativa - a tirinha, um dos géneros narrativos ~ foi interrompida antes que o problema de Casco fosse solucionado, 0 que rompe com a expec- tativa de criangas em relagio a textos narrativos que, sobretudo na literatura infantil, obedecem a estrutura convencional das narrativas, explicitada neste quadro: ‘Jo, vai ESTRUTURA DA NARRATIVA Situagao inicial O-cenério, os personagens, 0 espaco, o tempo, Conflito (problema) | Um problema surge, exigindo ages dos personagens, Busca de solugio | que os personagens fazem para tentar solucionar 0 conflito. Climax A narrativa chega ao ponto maximo do conflite Desfecho Oconflito é resolvido, 224 LEITURA E ESCRITA NO PROCESSO DE ALFABETIZAGAO E LETRAMENTO Na tirinha de Cascao e Pindquio, a situagao inicial é apresen- tada no primeiro quadrinho de forma incompleta: infere-se que ha dois personagens, mas apenas um ¢ apresentado, Cascao, 0 outro € alguém com quem Cascio esta falando, mas nao se sabe quem é, O espacgo é um mistério: onde esté Cascdo, onde estd 0 outro personagem? © segundo quadrinho revela 0 outro personagem, mostra 0 conflito — a dificuldade de Cascao para chegar 4 outra margem do rio ~ e esclarece a busca de solugio ~ 0 pedido de Casco a Pindquio de que faga seu nariz crescer contando mais uma mentira. E a solugao, pela qual ansiavam as criangas? A tiri- nha termina sem que se saiba se Casea & outra margem, se Pindquio atendeu ao pedido de Cascio e con- tou mais uma mentira, se seu nariz cresceu o suficiente para levar Cascio até a outra margem. A professora resolveu a ansiedade das criangas sugerindo que inventassem a solugao, provocando, assim, a imaginagao e desenyolvendo a habilidade de fazer previs6es. A anilise que fizemos anteriormente considerou apenas 0 nivel de complexidade da tirinha para criangas do 1° ano do ensino fun- damental, no inicio de sua formagao leitora. Para outros leitores mais avangados em habilidades de interpretagao, a analise mostra que seria uma tirinha criativa, de leitura estimulante para desenvolver habilidades de fazer inferéncias, de compreender intertextualidade, leitores para quem a falta de solugao para o conflito poderia ser um estimulo 4 imaginagao. Detivemo-nos na andlise da tirinha nao sé para evidenciar que é um equivoco considerar que tirinhas sao textos sempre faceis, apropriados para criangas em inicio de sua formagio como leitoras, mas sobretudo para evidenciar a importancia de, ao escolher textos, levar em conta a adequagéo do nivel de complexidade as criangas a que 0 texto se destina, Ao mesmo tempo, ja introduzimos a im- portancia do desenvolvimento de habilidades de interpretagao de textos, tema a que voltaremos adiante. Antes, porém, analise vocé também uma tirinha. 10 conseguiu ou nao chegar 225 ALFALETRAR © MAGDA SOARES PARE E PENSE IH oc Mirena cee M CMe rte (3 ee Identifique a estrutura da narrativa, orientando-se pelo quadro COC mantel eRe MeN CM iret ons Ten ea tice a Co Runs SUI e rhe Ect acacia onesie eae cue ECM ner Ory * Que problema surge? Para qual dos personagens? Como ficamos sabendo? Peete nse un sees eel curs * Que solucdo 0 personagem buscou para resolver o problema? Pee Ree sl rs Cre Ae men en Oe Meme CE MEE Umm ed Pomoc tel ci eye ec en nue een en ere Mr cg men mc aS Fea Ae Rene Ree aur ke ee ena g ne oo en aed Cee u reece RUM Cnet tec Beene tk noo Chetan e Sey act CNet ue Ca eae eo Ceara nom Canc nani ered ele Lee eRe Lemna eee t Ue rest no capitulo “Respostas e comentiirios ds questées” no final deste livro. LEITURA E ESCRITA NO PROCESSO DE ALFABETIZAGAO E LETRAMENTO Relembre a figura apresentada anteriormente representando os componentes que devem orientar uma atua¢ao consciente e sistematica da/o professora/or no desenvolvimento de leitura e interpretagio de textos, Observe que, até aqui, focalizamos sobretudo a escolha do texto: os géneros textuais ¢ a andlise do nivel de complexidade de textos no ciclo de alfabetizagao e letramento, Outros elementos do grafico, porém, também estiveram presentes na discussio, Abaixo segue novamente a reprodugao do grafico para retornarmos a totalidade do processo de leitura e interpretacao de textos e esclarecermos os demais componentes: Leitura, compreensio e interpretagéo: componentes preparacao nivel de MEDIADA textualidade LEITURA, INDEPENDENTE COMPREENSAO VOCABULARIO Piers INTERPRETACAO ORAL ESCRITA ESTRATEGIAS antes depois durante: Exemplificamos, a partir do componente “escolha do texto’, al- guns géneros textuais, segundo 0 quadro “Géneros preferenciais para 227 ALFALETRAR © MAGDA SOARES a leitura no ciclo de alfabetiza ”: bilhete, cartaz, texto informativo, tirinhas, que analisamos com os critérios propostos no quadro “Nivel de complexidade de textos”. As anilises desses exemplos orientam a escolha entre os géneros textuais do quadro “Géneros pre- ferenciais para a leitura no ciclo de alfabetizagao e letramento’, e por isso nao é necessario tratar aqui separadamente de cada um, ¢ a anilise da complexidade dos textos ¢ orientada pelas perguntas propostas na terceira coluna do quadro “Nivel de complexidade de textos” Apenas um género textual tem de ser conside- Para despertar a crianga para a poesia que podemos descobrir nas pequenas coisas que nos rodeiam, leia, eleia para as criancas, Poesia na varanda, rado de forma diferencia- da em relagdo aos outros: poemas, ao contrario dos de Sonia Junqueira, editora Auténtica outros géneros do quadro, Para inserir a poesia em sua sala de nao so textos para serem aula: Poesia para criancas, coletanea organizada por Leo Cunha, editora Positivo, principalmente os capitulos 4 €5, eA poesia vai d escola, de Neusa lidos e estudados como os demais. Entre os textos da categoria de “poéticos’, Sorrenti, editora Auténtica. para criangas no ciclo de Leia mais sobre poesia infantil em: alfabetizacaoeletramento, | www.ceale.fae.urMe.br/glossarioceale, parlendas, cantigas, trava- Nepaete Poesia nfone linguas sao brincadeiras com as palavras, jogos com os sons de palavras e de frases, colocando 0 foco em um aspecto importante de géneros poéticos, que também apoiam a alfabetizacao. A leitura de poemas, porém, deve ter por obje- tivo, sobretudo, o desenvolvimento de uma relacao sensivel, mais que racional, com o que nos rodeia, j4 que incentivam uma percep¢ao do mundo estética, emotiva, criativa. Aprofundar o tratamento de poemas na escola ultrapassa os objetivos deste livro, mas vocé encontrar orien- tagao e sugestdes de atividades com poemas no ciclo de alfabetizacao ¢ letramento nas sugestées apresentadas no quadro acima. Ao analisarmos os textos, ja mencionamos outros componentes da figura, como vocabulario ¢ habilidades de interpretacao. Apre- sentamos, a seguir, consideragées sobre cada um dos componentes. 228

Você também pode gostar