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A SEGURANGA PUBLICA NA CONSTITUICAO DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO Procurador-Chefe da Procuradoria Administrativa, da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, Resumo: O artigo aborda a questo da seguranea publica e da seguranca politica, caracterizando cada uma delas, e conceituando, dentro do contexto, a ordem politica e a ar- dem publica. Apresenta as questées sob o prisma da Consti- tuicéo Federal de 1988, detendo-se na posicdo das Policias Militares no que diz respeito 4 preservacao e restabelecimen- to da ordem publica. Apresenta o entendimento de “Poli: cia Ostensiva” e conclui mastrando como se deve pautar a atuagao das Policias Militares nas suas funcdes. 1 INTRODUGAO E CONCEITOS 1.1. Seguranea Publica e Politica Duas das conseqiiéncias indesejaveis da sociedade industrial fo- ram 0 aumento descontrolado da populacdo e sua desordenada concen- tracdo urbana. Somem-se a isso a ponderdvel marginalizacdo desses grandes con- tingentes, a provoca¢aéo ao consumo pelos meios eletronicos de comuni- cacao e a exploracdo politica da miséria, e ai temos, em poucas pincela- das, 0 quadro propicio a violéncia que tanto nos preocupa. Mas ao mencionarmos a exploracao politica da miséria, no qui- semos negar o fato de que tratamos principalmente com fendmenos poli- ticos. Concentrarmo-nos nos fatores econdmicos ou psicossociais seria, ao contrario, fechar os olhas 4 concausa de maior expresséo, que é, pre- cisamente, a politica: a decisio dos governos. Hoje, nao tenho duvidas de que o Estado brasileiro ¢ 0 grande responsavel pelo sério problema de seguranga publica que defrontamos em todos os quadrantes do Pais. 0 Alferes, Belo Horizonte 9128) 11-23, jan/mar/1991 " A Seguranga Publica na Constituigso Digo-o porque, desde o inicio do nosso processo de industrializa- cao, pelos anos trinta, os sucessivos governos foram indiferentes ao pro- blema demografico e as suas consequéncias sociais. Indiretamente, che- garam ate a incentivar a natalidade irresponsavel, com politicas tributarias e assistenciais equivocadas, ao mesmo tempo que ignoraram, durante ses: senta anos, suas correlatas responsabilidades em termos de infraestrutura sanitaria e educacional, para mencionarmos as mais tragicas omissdes. Embora o Estado brasileiro sempre tivesse tido oportunidade e meios para solucionar o problema, sendo que por duas vezes dispondo de formidavel poder arbitrério, preferiu concentrar seus esforcos no econé- mico, multiplicando obsessivamente sua presenca concorrencial e mono- polista em busca de outras metas e de outros valores. Tornou-se, assim, um rico empresdrio num pobre pais. E esperando solucionar problemas que lhe pareciam ser de seguranca nacional, terminou por criar e agravar imensos problemas de seguranga publica. Assim, ironicamente, o Estado por nds constituido, que tanto descurou da seguranea social, tem agora conosco, a sociedade brasileira, um grande débito de seguranga publica. Esta claro, portanto, que a seguranga publica, enquanto dever do Estado, nesses termos reconhecido no artigo 144 da Constituicado, nao resulta apenas da preservacdo contingencial da ordem publica contra ma- nifestagdes de desordem, mas, além e principalmente, da preservacdo per- manente das condigées atitudinais da populagdo diante dos valores da ordem — como condigao existencial da sociedade e de seu desenvolvi- mento. Esté claro, por fim, que essas atitudes positivas e construtivas em face dos valores da ordem tém como pressuposto minimo a dignidade da pessoa humana. Um valor que o Estado nao esta respeitando, quando dei- xa de ser prestador essencial de educa¢do, salide, seguranca e justica, para ser industrial, comerciante, transportador, banqueiro, financista, segura- dor, minerador, e, ao fim e ao cabo, sustentaculo de ociosos, padrinho de parasitas e cabide de empregos eleitoreiros. N&o posso, nem quero negar, portanto, a existéncia do problema politico. S6 que prefiro coloca-lo nesses termos. E se esse diagnostico es- tiver certo, o remédio nao pode ser outro senéo a democracia, devolven- do ao povo o direito de escolher se prefere mais uma estatal ou mais um hospital; mais um professor, ou mais um burocrata; mais um policial ou mais uma vitima. Nesse sentido, podemos entender, também, que a seguranga pU- J blica, além de ser um “dever do Estado”, como se prescreve no Art. 144 ) da Constituigdo, 6 também uma “responsabilidade de todos”, pois de ( todos, numa democracia, é, enfim, a responsabilidade de o Estado sero que é. 12 Alferes, Belo Horizonte 9(28) 11-23, jan/mar/1991 Diogo de Figueiredo Moreira Neto Entendi oportuna essa visio panoramica, antes de fixar os concei- ‘tos que devemos manejar a seguir, para que todos percebam sua inescapa- vel inser¢éo num continuum sécio-politico, no seu sentido mais amplo, dentro do qual fazemos as distincdes categoriais da ordem politica e da seguranga publica, tal como as retiramos da nova Carta e, assim, chegar- mos em cheio ao tema da exposicdo. 1.2 Ordem e Seguranca Parte-se de dois conceitos fundamentais: 0 de ordem e 0 de se- guran¢a. A ordem é uma idéia estatica. E uma situacao. Ela existe gragas a uma disposi¢do interna, de um sistema qual- quer que viabiliza sua organizacdo. Toda organizacdo pressupée uma ordem minima, sem a qual nao subsiste. O comprometimento da ordem é, pois, o comprometimento da prdpria organizacdo. A segunda referéncia conceptual é a seguranga. A seguranga é uma idéia dinamica. E uma atividade. Ela existe como fungao de garantia da ordem. Toda organizacéo pressupde, portanto, uma ordem minima e uma seguranca minima que a preserve. A seguranga existe para evitar 0 comprometimento da ordem. Em varios trabalhos procuramos mostrar o sentido desses dois termos, algumas vezes na honrosa companhia dos mais preeminentes pu- blicistas, como na coletanea Direito Administrativo da Ordem Publica’, aberta com 0 trabalho extraordindrio, erudito e bem travejado de ALVA- RO LAZZARINI, e outras vezes em artigos isolados, como o que fiz pu- blicar em 1988, sob o titulo “Revisio Doutrinéria dos Conceitos de Or- dem Pdblica e de Seguranca Publica”, na Revista de Informacao Legislati- va do Senado Federal ? . Nesse segundo trabalho mencionado, diante da perplexidade que nos havia causado a “heterogeneidade dos modos de ver e de situar a ma- téria”, como bem observara SEABRA FAGUNDES em seu prefacio a re- ferida coletanea, dispus-me a precisar os conceitos qualificados de ordem ede seguranca, de modo a definir, afinal, a ordem e a seguranca publi- cas. Certo de que, a semelhanca do que ocorre com os grandes linea- mentos do Direito Administrativo, é possivel encontrar uma sistematica coerente, lancei-me a pesquisa de que resultou o segundo dos trabalhos referidos. Uma provocagdo tedrica, sem divida largamente recompensa- da pelas conseqiiéncias praticas advindas, mormente nessa quadra da vida O Alferes, Belo Horizonte 9(28) 11-23, jan/mar/1991 13 A Sequranga Pablica na Constituicao nacional, de alta demanda de definicdes politicas e juridicas, na esteira e em complementagdo de uma Constitui¢aéo que dedica, entre dispositi- vos esparsos, todo um capitulo a Seguranga Publica. Cheguei, assim, as qualificacdes desejadas, em intima sintonia com a Constituicéo: a politica e a publica. Quando a ordem se refere a toda a organizacdo politica de uma sociedade, temos a ordem politica. E, portanto, a disposicdo interna da organizacao politica que via- biliza a existéncia do Estado e do Direito. Em conseqiiéncia, quando a seguranga se refere 4 garantia de toda ordem politica de uma sociedade, temos a seguranga politica. Toda organizacdo politica pressupde, portanto, uma ordem pol/- tica minima e uma seguranca politica minima que a preserve. Descendo do referencial politico, que é geral, e passando ao refe- rencial ptiblico, que é especial, ficam assim as qualificagGes. Quando a ordem se refere a toda a organizacdo da convivéncia publica de uma sociedade, temos a ordem piblica. E, portanto, a disposi¢ao interna da organizagdo social das intera- c6es interindividuais publicas, permanentes ou ocasionais, que viabiliza a convivéncia publica. Em consegiiéncia, quando a seguranga se refere a garantia de toda a ordem publica de uma sociedade, temos a seguranca publica. Toda organizacao social pressupée, portanto, uma ordem ptiblica minima e uma seguranca publica minima que a preserve. Sinteticamente e em conclusdo: a seguranga politica é a garantia da ordem politica, tanto como a seguranca publica é a garantia da ordem publica. Entre ambas hd, respectivamente, uma relagdo do geral para o particular. A ordem politica 6 um pilus com relacdo a ordem publica. Um grave comprometimento da ordem publica pode tornar-se um comprome: timento da ordem politica, determinando que 4 atividade de seguran¢a publica, que 6 ordindria, se suceda a atividade de seguranca politica, que é extraordinéria. Como se contém, a especial na geral, ordem politica exige a or- dem publica, e ndo a recfproca. Do mesmo modo, a seguranga poli- tica ndo prescinde de seguran¢a publica, e nao a reciproca. Se ndo estivermos atentos a essas categorizacées, distinguindo a ordem e a seguranga, de um lado, e o politico e o publico, de outro, bem como suas correspectivas interagoes, perderemos © seu sentido sistémico, gracas ao qual, como se expord a seguir, torna-se evidente a sua expres- sdo sistemdtica inserida na Constituigado de 1988. 14 0 Alferes, Belo Horizonte 9(28) 11-23, ian/mar/1991 A Seguranga Pablica na Constituigso preservacdo da ordem publica pela acdo dissuasoria da presenga do agente policial fardado. A mencdo especifica 4 policia ostensiva tem, a meu ver, o inte- resse de fixar sua exclusividade constitucional, uma vez que a preser- vacao, termo genérico, esta no proprio caput do Art. 144, referida a to- das as modalidades de acdo policial e, em conseqiiéncia, de competéncia de todos os seus orados. Surge entao, aqui, uma divida: por que o legislador constitucional se referiu apenas 4 “preservacéo'’, no Art. 144, caput, e seu § 59, e omitiu o “restabelecimento”, que mencionara no Art. 136, caput? N3o vejo nisso uma omissio mas, novamente, uma énfase. A pri servagao é suficientemente eldstica para conter a atividade repre: desde que imediata. - Com efeito, néo obstante o sentido marcadamente preventivo da palavra preservacdo, enquanto o problema se contiver em nivel policial, a repressdo deve caber aos mesmos Orgaos encarregados da preservacdo e sob sua inteira responsabilidade. Para maior clareza, tem-se preferido, por isso, sintetizar as duas idéias na palavra manutengao, dai a alguns autores parecer até mais ade- quada a expresso “po//cia de manutengao da ordem publica”. Essa atuacdo, por fim, obedece rigorosamente a partilha federati va entre as polfcias militares estaduais, do Distrito Federal e dos Territo- rios (estas, corporacdes federais) 6 POLICIA OSTENSIVA A policia ostensiva, afirmei, 6 uma expresso nova, ndo sO no texto constitucional como na nomenclatura da especialidade. Foi adotada por dois motivos: 0 primeiro, a que ja se aludiu, de estabelecer a exclusivida- de constitucional e, 0 segundo, para marcar a expanséo da competéncia policial dos policiais militares, além do “policiamento” ostensivo, Para bem entender esse segundo aspecto, é mister ter presente que o policiamento é apenas uma fase da atividade de policia. A atuacdo do Estado, no exercicio de seu poder de policia, se desenvolve em quatro fases: a ordem de policia, o consentimento de po- Iicia, a fiscalizagdo de pol/cia e a sangao de policia. A ordem de policia se contém num preceito que, necessariamen- te, nasce da lei, pois se trata de uma reserva legal (Art. 59, II), e pode ser enriquecido discricionariamente, consoante as circunstancias, pela Administragao. Tanto pode ser um preceito negativo absoluto quanto um. preceito negativo relativo. Nesta segunda hipétese, o legislador admitira, satisfeitas certas condigdes, que se outorgue um consentimento adminis- trative 20 0 Alfores, Belo Horizonte 9(28)11-23, jan/mar/1991 Diogo de Figueiredo Moreira Neto publica como a paz social que, ndo obstante a atuacdo desenvolvida no estado de defesa, continuam ameacadas ou violadas. Essa atuacdo, no estado de sitio, pode estender-se a varias dreas, definidas em decreto, e ser também excepcionadora da ordem juridica ordindria, alcancando um grande numero de direitos e garantias indivi- duais (Art. 138, caput, e 139, incisos | a VII). 4 PRESERVACAO E RESTABELECIMENTO POLICIAL DA ORDEM PUBLICA Aqui ha hipétese Gnica: a atuacdo policial 6 a forma normal e or- dinaria de preservacdo e restabelecimento da ordem publica. Em outros termos, sempre que a ordem publica nao estiver sendo tratada dentro do conceito da ordem politica, sua preservacdo e resta- belecimento se fazem pela atuacao dos érgaos policiais do Estado. A competéncia para a atuacao policial se reparte entre a Unido (Art. 144, 88 19 e 20) e os Estados, inclusive 0 Distrito Federal (Art. 144, 88 49 e509 ), dentro dos respectivos territérios e contida na ordem jurfdica ordindria. 5 PRESERVACAO E RESTABELECIMENTO POLICIAL-MILITAR DA ORDEM PUBLICA Essa terceira e especial modalidade, a policial-militar, se define por remanéncia: cabera sempre que n&o for o caso da preservacao e res. tabelecimento policial da ordem publica de competéncia especifica e expressa dos demais Orgaos policiais do Estado. Em outros termos, sempre que se tratar de atuacdo policial de preservacdo e restabelecimento da ordem pUblica e no for o caso previs- to na competéncia constitucional da Polfcia Federal (Art. 144, |), da Policia Radoviaria Federal (Art. 144, II), da Policia Ferrovidria Federal (Art. 144, III) nem, ainda, 0 caso em que lei especifica venha a definir uma atuac&o conexa a defesa civil para o Corpo de Bombeiros Militar (Art. 144, § 59), a competéncia é policial-militar. Observe-se que a atuacdo da policia civil nao é, direta e imediata- mente, de prevencdo e€ restabelecimento da ordem publica e, por isso, nao se confunde com a competéncia constitucional de atuacdo da Poli- cia Militar. Com efeito, a Constituicao menciona como missdes policiais mili- tares a policia ostensiva e a preservacao da ordem publica (Art. 144, § 59). Os termos néo se referem a atuagGes distintas sendo que contidas uma na outra, pois a policia ostensiva destina-se, fundamentalmente, 4 0 Alferes, Belo Horizonte 9(28) 11-23, janimar/1991 19 A Seguranga Publica na Constituiglo preserva-la é que se torna necessdrio que o Estado desenvolva outras fun- Gées, de carater extraordindrio, para o exercicio das quais 0 Poder Exe- cutivo vale-se da colaboracdo politica do Congresso Nacional (Arts. 136, §5 49, 50, 69 e 79, e 137, caput, e 138) Os dois niveis — 0 policial e o politico — estado definidos, portan- to, na propria Constituicéo. O Capitulo III, do Titulo V, esta dedicado especifica mas nao exclusivamente a ordem publica. Os demais Capi- tulos | e II, do mesmo Titulo V, a absorvem dentro do conceito de ordem politica. Com efeito, ao tratar do estado de defesa (ordem politica) a mengdo a ordem publica, nela incluida, é explicita (Art. 136, caput); ao tratar do estado de sitio, é implicita (Art. 137, 1); e, por fim, ao tratar da missdo das Forcas Armadas, a menc&o a ordem publica tam- bém vem incluida no género “ordem” (Art. 142), no caso, obviamente- te referida a todo o “Estado e suas instituicdes” e, em conseqiiéncia, a toda organizac4o juspolitica. Esse tratamento da ordem publica em dois niveis constitucionais tem um sentido prdatico-operativo e permite adequar o emprego do po- der coercitivo do Estado conforme a intensidade da ameaga de violacéo ou da violacaéo a que a ordem publica esteja sujeita, com ou sem reper- cussdo na competéncia federativa ou com ou sem alteragdo na ordem juridica ordinaria. Passemos, portanto, sucessivamente, ao exame da preservacdo e do restabelecimento politico, policial e policial-militar da ordem pu- blica. 3 PRESERVAGAO E RESTABELECIMENTO POLITICO DA ORDEM PUBLICA Ha duas hipoteses: a do estado de defesa e a do estado de sitio. Na hipotese do estado de defesa, a ordem publica ou a paz so- cial encontram-se ameagadas por grave e iminente instabilidade institu- cional ou atingidas por calamidades, de grandes proporgées, na nature- za (Art. 136, caput). A atuacdo do Estado, que é exclusiva da Unido, se destina a pre- servar € a prontamente restabelecer a ordem publica ou a paz social. Para tanto, essa atuacdo, em areas definidas e excepcionadora da ordem juridica ordinaria, podera restringir certos direitos individuais, in- clusive o de propriedade (Art. 136, § 19, |e II). . Na hipotese do estado de sitio, a ordem publica ou a paz social ainda continuam sob ameaga, apesar da atuacdo desenvolvida no estado de defesa (Art. 137, I). Essa atuacdo politica do Estado, exclusiva de altos érgaos fede rais, destina-se a preservar e a prontamente restabelecer tanto a ordem 18 0 Alteres, Belo Horizonte 928) 11-23, jan/mar/1991 Diogo de Figueiredo Moreira Neto Leis Organicas Municipais expandem as atribuicées das respectivas guar- das municipais, que a relacdo do Art. 144 é taxativa. 2.3. Niveis da Seguranca Publica O sistema da seguranga publica pode ser analisado em diversos ni. veis, conforme sua natureza juridica e seus drgdos de atuacdo. Distinguirei aqui o nfvel policial do nivel judicial e, depois, o ni- vel policial do nivel politico da seguranca publica. O nivel policial vale-se do poder de policia do Estado e se perfaz por orgdos da Administracao Publica: 1 — a policia administrativa da ordem publica é a que realiza a prevengdo e a represso imediata, atuando em nivel indivi dual ou coletivo; 2 —a policia judicidria é a que apura as infracdes pessoais e auxilia 0 Poder Judicidrio, realizando a repressdo mediata, atuando em nivel individual. O nivel judicial detém o monopolio do poder punitivo do Estado e se realiza pelos orgdos do Poder Judiciario, aplicando sangdes penais contra os infratores, na defesa mediata e individual da ordem publica Na atuagéo administrativa de seguranca publica, a preservacdo da ordem publica é o objetivo a ser imediatamente alcangado, nela inclui- do o seu restabelecimento, também imediato. Na atuacdo judiciaria e de polfcia judicidria de seguranga publica, a repressdo ao infrator da ordem publica é 0 objetivo a ser imediata- mente alcancado e, mediatamente, portanto, a sua preservacdo. A segunda distinc&o se dé entre os niveis policial e politico da seguranca ptiblica. Esses dois niveis tém a ver com o conceito de ordem que thes ser- ve de referencial. O nivel policial de seguranca publica se cinge 4 preservacdo da or dem publica, tal como em doutrina se conceitua, acrescentando, toda- via, o art. 144, caput, da Constituigao, a “incolumidade das pessoas e do patrim6nio”. Sao, portanto, extensdes coerentes do conceito e que até o reforgam, na medida em que assimilam as violaces a incolumidade pessoal e patrimonial na ruptura de convivéncia pacifica e harmoniosa. O nivel politico de seguranca publica vai além da ordem publica; seu objetivo jé é a ordem politica. Como se pode depreender da leitura do Art. 136, caput, a ordem publica la esta referida em relacdo a defesa do Estado e das instituigdes democraticas. Isso indica que o valor juridi- co tutelado ndo € apenas a ordem publica, pois para preserva-la bastam, em principio, as fungdes policiais (Art. 144), mas a ordem politica. Para 0 Alferes, Belo Horizonte 9(28) 11-23, jan/mar/1991 17 A Soguranga Pablica na Constituigéo Como se pode apreciar, o referencia! ordinatorio ndo é apenas a lei , tampouco, se satisfaz com os principios democréticos: a ordem pu- blica 6 mais exigente, pois tem uma dimensdo moral diretamente referi- da as vigéncias sociais e, por isso, propria de cada grupo. A ordem publica deve ser, portanto, legal, legitima e moral. Essa dimensdo metajurfdica, a reconhecia ALVARO LAZZARI— NI, ao se referir a uma “situagao de legalida e moralidade normal’ apoia- do em autores como CALANDRELLI, SALVAT, DESPAGNET, FORTU- NATO LAZZARO e GUILHERMO CABANELLAS? . Por esses motivos, tenho conceituado a ordem publica como uma situacdo de convivéncia pacifica e harmoniosa da populagao, fundada nos principios éticos vigentes na sociedade. Esse me parece o conceito adequado ao entendimento das quatro mengées constitucionais 4 ordem publica: no Art. 136, caput, ao tratar do estado de cefesa, no Art. 137, |, implicitamente, ao tratar do estado de sitio nos casos em que o estado de defesa foi ineficaz; no Art. 144, caput, ao defini-la como objeto de seguranga publica; e no Art. 144, § 59, ao atribuir sua preservacdo genérica as policias militares. A seguranga publica, por sua vez, é a garantia da ordem publica. Sendo uma atividade-meio, ela se submete aos mesmos condicionamentos da ordem publica, que é sua finalidade: deve ser legal, legitima e moral. Para proporcionar essa garantia, o Estado exerce diversas ativida- des — as funcdes de seguranca publica — que, por sua vez, demandam a concentra¢ao de poderes estatais especificos em 6rgaos de seguranca publica. A prestacdo administrativa dessa atividade, como fun¢gdo do Es- tado, &, portanto, um poder-dever, tal como, enfaticamente,-o confirma a Constituicao no Art. 144, caput. ) A sociedade, embora transferindo ao Estado o monopdlio da ;oergdo, tem, ainda assim, o dever de colaborar ou, pelo menos, de néo estorvar aquela prestagdo estavel da seguranca publica. A Constituicao a torna “responsabilidade de todos’ (Art. 144, caput) mas, é claro, sempre nos termos da lei, pois “fazer ou deixar de fazer alguma coisa "' é liber- \ dade individual que se submete ao principio da reserva legal. Essas fungdes de seguranga publica estao todas referidas no Art. 144, § 19, incisos I, II, II|e IV, § 29, § 30, 8 49, § 59 e 89. Ja os Orgaos de seguranca publica sdo os instituidos, em nuémerus-clausus, nos cinco incisos do caput do Art. 144, a saber: policia federal, polfcia ro- dovidria federal, policia ferrovidria federal, policias civis, policias milita- res e corpos de bombeiras militares. Insista-se portanto, principalmente neste momento em que algu- mas Constituigdes Estaduais criam novas instituigdes policiais, como po- licia penitencidria, policia metroviaria, policia técnica etc., e em que até 16 0 Alferes, Belo Horizonte 9(28) 11-23, jan/mar/1991 Diogo de Figueiredo Moreira Neto 2 INSERCAO CONSTITUCIONAL 2.1 Ordem Politica e Seguranca Politica Procurarei ser breve, pois o politico nado é o tema central que aqui nos importa. Seu tratamento é, no entanto, necessdrio, uma vez que as relagSes de continéncia e de dependéncia apontadas exigem um bom conhecimento dos fundamentos constitucionais de cada um dos termos em estudo. A ordem politica, no Estado de Direito, 6 a disposicdo da organi- zagdo politica da sociedade que Ihe da a lei. Qualquer sociedade politicamente organizada tem uma ordem po: litica, mas s6 no Estado de Direito essa disposicao esta pré-definida em lei. Ao se organizar em Estado de Direito, a sociedade brasileira optou, portanto, por uma determinada ordem pol |tica, que é a que se de- fine no artigo 19 da Constituic&o da Republica e deflui de todo o seu texto. Mas, nesse mesmo artigo 19, podemos notar que a ordem pol/tica nao esta referenciada apenas ao Direito, mas, igualmente, a Democracia: a referéncia completa € a um “Estado Democrético de Direito”. A luz dessa expresso compésita, deve-se entender, entdo, que a ordem politica no é apenas a disposicao politica da sociedade que Ihe da a lei: exige-se que essa lei represente a vontade consensual da socieda- de, colhida segundo os processos democraticos. Trata-se, portanto, nao so de uma ordem legal como de uma ordem legitima. O Constituinte deu igual importancia as duas qualidades da or- dem politica nacional: ser legal e ser legitima. Em decorréncia, seguranga politica é a garantia da ordem politi- ca. Sendo uma atividade correlata, ela se submete ao mesmo duplo con- dicionamento: deve ser legal e legitima. A seguranga politica é tratada constitucionalmente em dois niveis: 0 individual e o coletivo. Em nivel individual, interessa fundamentalmen- te a pessoa que infringe a ordem politica (Art. 144, § 10, 1) e em nivel coletivo, interessam as situagées que caracterizam a ruptura da ordem po- litica (Arts. 136, 137, 138 e 139). Enquanto o problema individual continua a receber tratamento pessoal ordinario, o problema coletivo de seguranca politica leva aos tra- tamentos politicos extraordindrios, do estado de defesa e do estado de sitio, nos quais a prépria ordem politica, para se defender, é alterada. 2.2 Ordem Piblica e Seguranga Pablica A ordem publica é a disposigo pacifica e harmoniosa da convi- véencia publica, conforme os principios éticos vigentes na sociedade. 0 Alferes, Belo Horizonte 9(28) 11-23, jan/mar/1991 15 Diogo de Figueiredo Moreira Neto O consentimento de policia, quando couber, sera a auséncia vin culada ou discriciondria do Estado com a atividade submetida ao precei- to vedativo relativo, sempre que satisfeitos os condicionamentos exigi- dos. Se as exigéncias condicionais estao todas na lei, temos um consen- timento vinculado: a licenga, se esto parcialmente na lel e parcialmente no ato administrativo, temos um consentimen cricionario: a autori- zagao. A fiscalizagao de policia é uma forma ordinaria e inafastavel de atua- cdo administrativa, através da qual se verifica o cumprimento da ordem de policia ou a regularidade da atividade ja consentida por uma ficenca Ou_uma autorizagso, A Tiscalizacdo pode ser ex officio ou provocada. No caso especifico da atuacéo da policia de preservacdo da ordem pu- blica, 6 que toma o nome de policiamento. Finalmente, a sangao de policia é a atuacdo administrativa auto- executéria que se destina a repressdo da infracio. No caso da infragdo 4 ordem publica, a atividade administrativa, autoexecutéria, no exercicio do poder de policia, se esgota no constrangimento pessoal, direto e ime- diato, na justa medida para restabelecé-la. Como se observa, 0 policiamento corresponde apenas a atividade de fiscalizagao; por esse motivo, a expressdo utilizada, polfcia ostensiva, expande a atuacdo das policias militares 4 integralidade das fases do exer- cicio do poder de policia. O adjetivo “ostensivo” refere-se 4 aio piiblica de dissuas%o, caracteristica do policial fardado e armado, reforcada pelo aparato mili- tar utilizado, que evoca o poder de uma corporagao eficientemente uni- ficada pela hierarquia e disciplina A competéncia de policia ostensiva das policias militares sé admi- te exceddes constitucionais expressas: as referentes as policias rodovia- ria e ferrovidria federais (Art. 144, §§ 20e 30), que est&o autorizadas ao exercicio do patrulhamento ostensivo, respectivamente, das rodovias e das ferrovias federais. Por patrulhamento ostensivo néo se deve entender, conseqiéncia do j4 exposto, qualquer atividace além da_fiscalizagSo de polfcia; patrulhamento é sindnimo de policiamento, A outra excecdo esta implicita na atividade-fim de defesa civil dos Corpos de Bombeiros Militares. O Art. 114, § 59, se refere, indefini- damente, a atribuigdes legais, porém esses cometimentos, por imperativo de boa exegese, quando se trata de atividade de pol de seguranca pil- blica, est&o circunscritos e limitados as atividades-meio de preservacdo e de restabelecimento da ordem publica, indispensdveis 4 realizagao de sua atividade-fim, que é a defesa civil. O limite, portanto 6 casuistico, varia: vel, conforme exista ou nao a possibilidade de assumir, a Policia Militar, a sua propria atividade-fim em cada caso considerado. 0 Alfores, Belo Horizonte 9(28) 11-23, jan/mar/1991 21 A Sequranca Publica na Constituigio 7 CONCLUSOES E inegavel que a Constituicdo de 1988 deu maior nitidez ao sistema nacional de seguranca plblica. Procurou-se definir mais precisamente as fung6es e os Orgaos policiais, bem como articuld-los entre si e, em nfvel politico, com as fungées e drgdos de atuacdo extraordindria, nos casos previstos de estado de defesa e de estado de sitio. Mas isso & pouco. € preciso ter em mente que a atividade de polf- cia é caracteristicamente discricionaria e, no caso da preservacdo e res- tabelecimento da ordem publica, ela deve ser empreendida de imediato, onde e quando houver ameaga ou violacdo, muitas vezes por um agente isolado. Isso exige dos agentes de seguranga publica, notadamente o poli- cial militar, um excepcional jufzo de adequabilidade, compatibilidade e proporcionalidade de sua atuagdo, em relagéo a ameaca ou violacdo en- frentadas, notadamente quando no emprego da forca, de modo a concili. ar a_ mais rigorosa observancia da lei com o maximo de eficiéncia funcio- nal. Como se pode observar, essas qualidades ndo sdo encontradas espontaneamente. E necessdrio desenvolvé-las e condicionar os agentes da seguranca publica a atuar segundo todos esses critérios. Tudo isso deman- da tempo e, sobretudo, uma doutrina. A Constituicdo referiu-se, amplamente, 4 necessidade de discipli- nar-se o funcionamento dos érgaos responsaveis pela seguranca publica (Art. 144, § 79). No caso das policias militares, alérm desse comando genérico, a doutrina de emprego da forga deve obedecer a um duplo comando especffico: a lei estadual, no que se refere & atuacdo policial- militar auténoma, e a lei federal, quando em hipotese de atuacao poli- cial-militar enquanto sob convocacado federal, na preservagdo e res- tabelecimento politico da ordem publica. Sem duvida, pelo amplo espectro de atuacdo que, na Constituicéo de 1988, se confiou as Policias Militares, inclusive com exclusividade, tornou-se imperativo 0 desenvolvimento de um novo conceito de ativida- de de preservagao e de restabelecimento policial da ordem ptblica, per- feitamente articulado, em nivel policial, com as demais organizagées poli- ciais e, em nivel politico, com as Forgas Armadas. E uma missdo que se deve cumprir nado nas ruas, mas dentro dos quartéis e dos estabelecimen- tos de estudos policiais-militares. E uma missdo que demanda o melhor do conhecimento e da experiéncia de nossas s. E uma missao ine- ludivelmente dificil. Mas é uma missdo indispensavel e inadiavel: a legalidade e a efi- ciéncia da atuacdo das policias militares, bem como o atendimento das expectativas da populagdo, o exigem. De minha parte, estou certo de que 22 0 Alferes, Belo Horizonte 9{28) 11-23, jan/mar/1991 Diogo de Figueiredo Moreira Neto © senso de dever eo patriotismo dessas corporacoes, ainda mais uma vez, nao faltaréo nessa missdo. NoTAS 1, Rio de Janeiro, Ed, Forense, em 2% edicdo, 1986/1987. 2. Brasilia, a.25, n® 97, jan./mar. 1988, ps; 133 a 154, 3. Policis de Manutenggo da Ordem Pablica e a Justica, in Diraito Administrative da Ordem Publica, op. cit., 9, 7,8.e 13, Abstract: Public Security in the Constitution. This paper considers the issues of public security and political secutiry, characterizing each one of them, and forming 4 concept of political order and public order within that context. It throws light on the question from the viewpoint of the Federal Constitution of 1988, mainly in what concerns the role of the Military Police in preserving and reestablishing public order, It provides the features of the so-called “police- man in uniform” and the outlines for the functions of the Military Police. Artigo recebido em 20/04/91 0 Alferes, Belo Horizonte 9(28) 11-23, jan/mer/1991 23

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