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UMA IDEIA DE PESQUISA EDUCACIONAL — José Mario Pies Azanha op t * : jusp i ord FAPESP Copyright © 1992 by José Mirio Pires Azanha ‘ Dados Internacionais de Catalogacio na Publicacio (CIP) (Cimsea Beatles do Livro, SP, Besail) ‘Azanha, José Mario Pires, 1931- ‘Uma Idtia de Pesquisa Educacional Jone Micio Pires Azanba. - Séo Paulo : Editora da Universidade de Sio Paulo, 1992. - (Campi 6) ISBN: 85-314-0065-1 1. Giéncia - Metodologia 2. Educagto - Métodos experimentais 3. Pesquisa educacional_ 1 Thulo. Il. Tiewlo, 92-1103 CDD-370.78 Indices para catblogo sstembtco: 1. Peagiea cducacional 37078 ireitos reservados a Edusp - Editora da Universidade de Sio Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, Travessa J, 374 6° andar - Ed. da Antiga Reitoria \de Universitaria 05580 - Sao Paulo-SP—Brasil Fax (011) 211-6988 ‘Tel. (011) 813-8837 /813-3222 1. 2633, 2643 Printed in Brazil 1992 1. AINVESTIGACAO EM BUSCA DE UMA TECNOLOGIA EDUCACIONAL Ciéncia e poder do homem coincidem. Bacon A QUALIDADE DA PESQUISA EDUCACIONAL Nos tempos que correm, € tao difundida ¢ assentada a convicgao de que o progresso tecnol6gico € conseqiiéncia direta e natural do Progresso cientffico, que 0 reconhecimento do escasso valor pratico da pesquisa educacional conduz quase naturalmente a idéia de que essa situagdo explica-se pela m4 qualidade cientifica de grande parte das investigagées educacionais. Por enquanto, deixemos de lado a pressuposicao, segundo a qual o conhecimento cientifico da realidade tem como decorréncia natural o estabelecimento da capacidade de in- tervir nessa mesma realidade. Detenhamo-nos, neste momento, na conjectura sobre a mA qualidade cientifica da pesquisa educacional para examind-la em alguns dos seus aspectos. De inicio, é preciso atentar para o fato de que a admissao dessa idéia provoca quest6es tao importantes que nao seria razodvel des- carté-las de plano. Nessas condig6es, a suposicao da ma qualidade cientifica da pesquisa educacional é, seguramente, um ponto de parti- da ¢ no de chegada. Isto fica 6bvio quando examinamos um pouco mais detidamente o significado da expressdo “m4 qualidade cientifi- ca”. Antes de mais nada, é preciso assinalar a ambigiiidade da ex- Pressdo, que poderia ser explicitada pela seguinte questao: no que consiste ou como se reconhece a md qualidade cientifica de uma inves- tigagdo? Aparentemente, um caminho possfvel para diminuir a ambigiii- dade da expressdo estaria no seu entendimento como indicativa da presenga de falhas metodologicas na pesquisa de que se trata. Por exemplo, a ma qualidade se evidenciaria por falhas como as seguintes: inadequado registro de observagées, nao fidedignidade ou nao valida- de dos instrumentos de coleta de dados, ambigiiidade ou impreciséo conceitual de termos relevantes, nao representatividade dos casos es- tudados, inadequacdo das técnicas de andlise (estatisticas ou outras), incoeréncia na argumentagdo etc. E, de fato, até mesmo sem muito esforgo € possfvel assinalar a presenga de uma ou mais dessas falhas em pesquisas realizadas em qualquer rea, inclusive na educacional. Contudo, esse caminho ndo € tao limpo de dificuldades como pode parecer. Na verdade, o entendimento de “ma qualidade cientifi- ca” de uma pesquisa como significando a presenca de falhas meto- dolégicas, apenas representa a substituigao de uma dificuldade vaga- mente formulada por outras mais especfficas. Examinemos algumas destas. Ao identificar a m4 qualidade cientifica de uma pesquisa com a presenga nela de falhas metodolégicas, precisamos nos acautelar de, apressadamente, concluir que, quando estas tltimas ocorrem numa investigagdo, anulam por isso mesmo o seu valor para a ciéncia. Sem esta cautela, corremos 0 risco de cometer um erro légico! e histérico. HA inumeraveis exemplos, na hist6ria da ciéncia, de investigagées fa- Thas que, nao obstante, impulsionaram o conhecimento cientifico”. E 1. O erro lbgico ocorreria se toméssemos a presenca de falhas metodologicas como evidéncia empirica de mé qualidade cientifica, apés definir m4 qualidade como existéncia de fathas meto- dolbgicas. Esse procedimento envolve um vicio légico e deixa intocado o problema que esté em discussio e que é 0 da adequacdo da definigio. 2. Evidentemente, seria um anacronismo querer apontar essas falhas a partir de critérios atuais, Referimo-nos, pois, a investigagSes que mesmo avaliadas em termos de padrées cientificos vi- gentes na época de sua realizacio exibiram defeitos graves. Por exemplo, a descoberta de Gali- Jew das luas de JGpiter foi rejeitada pelos astrénomos convidados a olhar pelo telesc6pio, um instrumento cujos fundamentos cientificos s6 puderam ser esclarecidos pela Orica de Newton, Publicada muito tempo depois, Feyerabend acha que Galileu conhecia pouco até mesmo a Ori- 16 JOSE MARIO PIRES AZANHA claro que esses exemplos hist6ricos nao podem ser interpretados co- mo justificativa para a displicéncia metodolégica, mas é claro também que a partir desses exemplos fica evidenciado que nao se pode inter- pretar falhas metodolégicas como indicagao segura de auséncia de va- lor cientifico. Somente uma perspectiva histérica permitiré ajuizar em situagdes concretas se eventuais falhas metodolégicas afetaram ou nao 0 valor cientifico da investigagao, porque, embora as falhas ante- riormente indicadas e outras sejam abstratamente abominaveis para qualquer comunidade cientifica, a simples identificagéo dessas falhas em situagdes especificas daria margem a complicadas e intermindveis disputas sobre a adequagdo dos critérios a serem utilizados para essa identificagéo. A nogdo de falha metodolégica vincula-se a idéia de vio- lagdo de regras, de transgressao de normas. Nesses termos, ou se pos- tula que as regras € normas transgredidas numa particular situacao pertencem a um cédigo metodolégico universalmente aceito ou se ins- tala uma intermindvel discussdo sobre se a violagdo ocorrida constitui ou nao uma falha metodolgica. E neste ponto que s¢ localiza a quase impossibilidade de passar de consideragGes abstratas sobre a qualida- de cientifica de pesquisas para avaliagdes numa particular situagdo concreta. Por mais amplo que possa ser 0 consenso em torno de de- terminada regra, abstratamente considerada, nao hd critérios gerais para decidir inequivocamente, em qualquer caso concreto, se a regra foi mesmo violada ou até que ponto a violagdo é toleravel sem com- prometimento de um padrao cientifico desejavel de investigagao. Nem mesmo naqueles casos que constituem exemplos de vio- lagdo de regras da légica, relativamente mais simples quanto a iden- tificago de sua ocorréncia, desaparece a dificil questao pratica de avaliar os limites tolerdveis de sua transgressdo. Strawson nos mostra claramente “que nao se pode explicar cabalmente 0 que seja uma contradigéo somente recorrendo a agrupamentos verbais” *, 0 que ca de Kepler, publicada em 1604, portanto, antes da utilizaco do tclescépio por Galileu. Nes- sas condig6es, ele nao foi capaz de convencer seus interlocutores, porque ele proprio nao ti- nha os conhecimentos teéricos para isso. 3. “Podemos dizer que uma das possiveis maneiras de enunciar uma inconsisténcia € a de aplicar predicados incompativeis a uma mesma pessoa ou coisa numa mesma ocasiio.” Nessas con- digées, no ha possibilidade de decidir, numa situagéo concreta (no formal), se dois enuncia- dos so ou nao contradit6rios sem um exame do contexto em que eles foram explicitados. Cf. P. UMA IDEIA DE PESQUISA EDUCACIONAL 17 em outras palavras significa a inevitabilidade de consideragdes contex- tuais até mesmo para determinar inequivocamente se um certo texto contém ou no afirmagées incoerentes. No caso, o autor citado esta tdo-somente examinando questées referentes a avaliagdo de aspectos légicos da linguagem em geral. Quando passamos, porém, para o exame da linguagem presente em teorias ou relatérios cientificos, h4 posigGes como a de Feyerabend que, fundado em episédios da hist6- tia da ciéncia, nao apenas repele a condicdo de coeréncia como de- sejavel, como mostra que a sua estrita observancia pode ter um efeito paralisante sobre a descoberta cientifica ao descartar “fatos” que con- tradigam teorias ja aceitas*. Neste ponto, j4 dispomos de raz6es para concluir que a inter- pretacéo de m4 qualidade cientifica de uma investigaca0, como signi- ficando a presenga de falhas metodolégicas, nos remete a questécs cada vez mais complicadas. E, de fato, nao poderia ser de outro mo- do, porque, na verdade, a nog§o de falha metodolégica nao goza de nenhuma autonomia que permita o seu exame isoladamente. Como j4 vimos, essa nogdo nao € separavel da admissio, tacita ou ostensiva, de um cédigo metodolégico a partir do qual as eventuais falhas sejam consideradas transgressdes mais ou menos graves. Contudo, a propria nogéo de cédigo metodolégico € insepardvel de uma particular con- cepgao de ciéncia. E € esse comprometimento mais fundamental que torna a disputa em torno de falhas metodolégicas apenas admissivel entre os adeptos de uma mesma confraria intelectual porque, a nao ser assim, é sempre possfvel, numa disputa desse tipo, a invocagao de uma concepgao de ciéncia alternativa Aquela a partir da qual even- tuais falhas metodolégicas foram reconhecidas. Pense-se, por exem- plo, no provavel desdém com que um psicanalista ortodoxo tomaria conhecimento das severas criticas de Eysenck a andlise freudiana do Pequeno Hans*. F. Strawson, Introduccién a una Teoria de la Légica, trad. de V. J. Ameller, Buenos Aires, Edi- torial Nova, 1969, p. 5. 4. P. Feyerabend, Conira 0 Método, trad. de O. S. da Mota e L. Hegenberg, Sao Paulo, Livraria Francisco Alves S. A., 1977, caps. IL e III, pp. 37-64. 5. A anilise do Pequeno Hans foi a tinica que Freud fez de uma crianga, dai sua importincia para © pensamento psicanalitico. Eysenck, veemente critico da psicanélise, examinou 0 relato do ca- so apontando passo a passo as falhas cientificas do trabalho. Cf. H. Eysenck, “O Pequeno Hans ‘ou 0 Pequeno Albert?”, em Fato e Ficcdo na Psicologia, trad. de V. Mendonca, Séo Paulo, Trasa, 1968. 18 JOSE MARIO PIRES AZANHA A permanente possibilidade de apelo a concepgées alternativas de ciéncia, em face de divergéncias metodolégicas, parece condenar a um malogro inevit4vel a utilizacdo eficiente ¢ generalizada da nogdo de qualidade cientifica como significando presenga de falhas meto- dolégicas. Alids, 0 reconhecimento desse fato, muitas vezes, pode ser- vir de sustentacao a posigGes refratérias 4 discussdo e que, por isso mesmo, se encastelam numa auto-suficiéncia quase incompreensivel. Exemplo clarissimo e impressionante desse modo de evitar a dis- cusséo das préprias posigées temos na argumentagaéo de Freud a propésito da anilise, feita por ele, de um suposto caso de possessao demonjiaca: simplesmente direi saber muito bem que nenhum leitor que j4 ndo acredite na justifi- cabilidade do modo de pensamento psicanalitico adquirir4 essa crenga com 0 caso do pintor do século xvu Christoph Haizmann. Tampouco ¢ minha intengdo usar esse caso como prova da validade da psicandlise. Pelo contrério, pressuponho a sua validade ¢ estou empregando-a para lancar luz sobre a moléstia demonfaca do pintor®. Estas palavras, aparentemente cinicas e evidenciadoras de uma posigéo dogmatica, podem, contudo, ser interpretadas de modo me- nos severo e niais realista. De fato, elas revelam, de mancira talvez chocante mas licida, a consciéncia do autor de que nao ha teorias cientificas descomprometidas com uma particular concepgao de cién- cia, e que qualquer critica que nao leve em conta esse fato basico deve por isso mesmo ser desconsiderada. O que h4 de chocante nesta idéia € que o peso da tradicao positivista, nos aspectos cientificos da edu- cagéo geral e na educag4o propriamente cientifica, nos familiarizou com uma viséo unitaria ¢ abstrata do saber cientifico. Nem poderia deixar de ser assim porque a pr6pria hist6ria da ciéncia somente nas Uiltimas décadas libertou-se dessa visdo simplificada da ciéncia e do seu desenvolvimento histérico como simples acrescentamentos cumu- lativos. Neste ponto, retomando a questéo da qualidade cientffica da pesquisa, temos de reconhecer que o seu exame precisa levar em con- ta a teoria da ciéncia subjacente aos esforgos de investigagao. Sem es- sa cautela qualquer discussao seria inatil. 6. S. Freud, “Uma Neurose Demoniaca do Século XVII”, em Obras Psicoldgicas Completas de Sigmund Freud, vol. XIX da Edicéo Standard Brasileira, trad. sob direcéo geral de Jayme Sa- Jomo, Rio de Janeiro, Imago, 1969, p. 108. UMA IDEIA DE PESQUISA EDUCACIONAL 19 Deixemos, porém, essa questdo para consideragées posteriores e nos detenhamos agora num outro ponto. Trata-se da exacerbada preocupacao da grande parte da pesquisa educacional com a obtengaéo de resultados praticos. Veremos como 0 exame desse assunto nos conduz ao ponto ao qual a questao da qualidade da pesquisa nos re- meteu. O “PRATICISMO” NA PESQUISA EDUCACIONAL O simples exame de titulos de trabalhos publicados e de indices de revistas especializadas é suficiente para mostrar que uma ampla categoria de pesquisas educacionais é fruto de uma linha de investi- gac4o voltada para quest6es que se acreditam relevantes num sentido pratico. Aparentemente, as raz6es do empenho nessa diregdo pare- cem claras, pois a simples extensdo da escolaridade em todos os niveis tornou cada vez mais urgente e importante a tomada de decisées pra- ticas. Nessas condigées, € compreensivel que se pretenda assegurar a eficiéncia ¢ a racionalidade dessas decis6es fundamentando-as em pesquisas. E para justificar a naturalidade desse raciocinio é freqiiente a invocacdo de outros setores da agéo humana onde o desenvolvimen- to da tecnologia teria sido conseqiiéncia direta de investigagées cienti- ficas. Embora sumarissimo, esse quadro € suficiente para fixar 0 que nos interessa: a obsessdo pela investigacgao pratica repousa numa visao segundo a qual haveria uma relacdo linear entre o desenvolvimento da investiga¢do cientifica ¢ o progresso da tecnologia. O exame dos fun- damentos dessa visdo € 0 que pretendemos fazer em seguida. Antes, porém, queremos assinalar uma conseqiléncia desse modo de ver a pesquisa educacional que, no fundo, j4 constitui uma possfvel evidén- cia dos enganos subjacentes a essa posigao. Qualquer individuo que trabalhe no campo da educagao, quer seja na pratica efetiva ou na 4rea da andlise e da investigag4o, sabe, por forca da propria experién- cia, que hé uma imensa discrepancia entre o volume do esforgo da pesquisa educacional e as suas minguadas repercuss6es prdticas. Mui- tas tentativas de compreensdo do que se passa tém sido feitas. Aqui, vamos referir apenas duas, que, pela expressdo de seus autores, séo muito significativas’. Ambos coincidem na opiniao de que a mais dire- 7. Trata-se de duas alocugées feitas por Kerlinger e Suppes na qualidade, em ambos os casos, de 20 JOSE MARIO PIRES AZANHA ta e 6bvia conseqiiéncia da énfase da pesquisa educacional na diregéo daquilo que se sup6e sejam “problemas prdticos” acabou por ser a ra- tefagdo de significativos esforgos teéricos, que efetivamente possam tornar interessante a investigacéo educacional empfrica. Paradoxal- mente, parece que 0 efcito do “praticismo” € a peniria de resultados praticos. Na opinido de Kerlinger, um dos autores referidos, 0 efeito da obsess4o pratica sobre a teorizagdo é tao devastador e calamitoso que melhor seria se os pesquisadores abandonassem as fontes gover- namentais de financiamento, pois elas tendem geralmente, por uma vocagao natural, a dar prioridade aos estudos prdticos na esperanga de um aproveitamento imediato de suas conclusdes. Nao ha nessa opiniao mero exagero retérico, pois a verdade € que a exacerbacao da preocupagao pratica acaba por esterilizar a especulagdo criativa que é, segundo a feliz expressdo de Lukasiewicz, a matriz ¢ finica fonte per- manente do “poema da ciéncia”. Ora, a auséncia reiterada de esfor- gos teéricos na andlise da educagdo e, até mesmo um ostensivo desin- teresse por eles, reduz extraordinariamente o alcance da investigacéo educacional, pois sem teorias a pesquisa empirica opera de modo de- sordenado, incidindo sobre fragmentos do processo educativo. Para ilustrar essa desorientagéo da pesquisa empirica desassistida de teo- rias, é suficiente examinar a tematica usual das investigagdes educa- cionais brasileiras nos tltimos tempos: os problemas da “educac4o de adultos”, “pré-escola”, “educagao na periferia”, do “cotidiano esco- lar” etc. - pois esses “problemas” de pesquisa ndo sao de fato pro- blemas, mas apenas uma vaga delimitagéo de assuntos. Qual é 0 “problema da pré-escola”? ¢ o da “educagdo de adultos”? Expressées como essas € outras semelhantes sao referencialmente vazias do pon- to de vista da investigagéo educacional, como seria, por exemplo, também vazia a expresséo o “problema do cancer” para a investi- gagéo médica. Nada indicam que possa orientar um processo de in- vestigacao cientifica. Diante disso, na auséncia de auténticos problemas de investi- ga¢do, 0 Gnico caminho que resta ao pesquisador refratario 4 preocu- pacdo teérica é o levantamento de dados a propésito daqueles assun- presidentes da American Educational Research Association. O trabalho de F. Kerlinger {oi publicado no livro Metodologia da Pesquisa em Ciéncias Sociais, trad. de Mendes Rotundo, E,P.U-Edusp, 1980, pp. 317-348; o trabalho de P. Suppes, “The Place of Theory in Education Research”, em Educational Researcher, vol. 3, n. 6, jun. 1974, pp. 3-9. UMA IDEIA DE PESQUISA EDUCACIONAL 21 tos que o debate politico ou o modismo pedagogico fez aflorar como relevantes. Os levantamentos fornecem a matéria-prima para as codi- ficag6es, tabulagdes e computagées que, no final de contas, apenas conseguem estabelecer conclusdes tao triviais que sao irrelevantes de qualquer ponto de vista e até mesmo do ponto de vista pratico*. Nao se trata de discutir aqui a importancia de levantamentos de dados empiricos para certos aspectos da investiga¢ao cientifica. O que € dis- cutivel - como teremos oportunidade de mostrar — é que, a pretexto de promover a pesquisa com preocupagées praticas, acabe-se por aderir, como se ndo houvesse alternativa, a uma concepgdo de investi- gacdo cientffica em que esta é reduzida a coleta e classificagdo do que se chama de “fatos” e a busca de correlagées entre eles. Essa con- cepgao est4 historicamente conjugada com a idéia de que “as in- vengées sao frutos pendurados na 4rvore da ciéncia”, isto é, tecnolo- gia € apenas ciéncia aplicada e, mais ainda, a produgdo de tecnologia é a meta da ciéncia. Como ja assinalamos, a aceitagao acritica dessa crenca tem sido a grande impulsionadora de uma ampla categoria de pesquisas e de politicas de financiamento da investigagaéo em edu- cagao, Dai o interesse que tem para nés um exame mais detido do as- sunto. AS RELAGOES ENTRE CIENCIA E TECNOLOGIA De que modo interagem ciéncia e tecnologia? Embora esta seja uma questo muito complicada e que nao comporta respostas simples e diretas, o cienticismo se fixou numa férmula simplista ao exibir co- mo um dos seus tracgos mais salientes a entusidstica valorizagéo da ciéncia como produtora de tecnologia. Esta idéia do papel essencial- mente instrumental da ciéncia vem exercendo seu fascinio pelo menos desde o século xvil, ndo apenas sobre o piiblico leigo letrado como também sobre a grande maioria dos cientistas. Neste século, embora no meio intelectual mais sofisticado 0 cienticismo seja uma visdo de- Com um pouco de maldade, mas sem exagerar 0 ponto a que pode chegar essa trivialidade, ¢ interessante referir 0 seguinte: em 1980, a publicagéo USP-Informagées 5 e 6 noticiou uma pes- quisa sobre pré-escolares que chegou & espantosa descoberta de que ‘“‘nutricéo e baixo nivel de aptidéo fisica esto correlacionados” ¢ também uma outra, na qual se descobriu que a “pré-cs- cola pode ser fator que condiciona favoravelmente 0 rendimento da crianga na escola de pri- meiro grau”. 22 JOSE MARIO PIRES AZANHA clinante da ciéncia e até mesmo fora de moda, permaneceu viva, em amplos cfirculos dessa mesma intelectualidade, a idéia de determi- nagdo direta e linear da tecnologia pela ciéncia. Levando em conta, como ja dissemos, as repercussdes dessa idéia sobre os rumos da in- vestigacao educacional, pretendemos fazer aflorar pelo menos alguns pontos indicativos da complexidade do assunto. O mais importante diz respeito A presumida invariancia hist6rica do relacionamento entre ciéncia ¢ tecnologia. Raros sao os individuos, até mesmo dentre os cientistas, que possam imaginar outra forma de relacionamento entre ciéncia e tec- nologia que nao seja a de determinagdo univoca desta por aquela num sentido simplificado de causa ¢ efeito, ou ainda, de ciéncia como base do dominio da natureza. Contudo, como veremos, falta fundamento hist6rico a esta idéia e, mais ainda, na universalidade com que € pro- posta representa um tipico anacronismo, uma abusiva projecdo para 0 conjunto da histéria de um tipo de relacionamento entre ciéncia tecnologia que apenas hipoteticamente traduziria 0 que ocorre entre esses dois elementos culturais na €poca contemporanea?. Para nds, € interessante investigar a origem desta idéia instru- mental da ciéncia porque acreditamos que esteja ai a chave para elu- cidar muitos dos equivocos a respeito da pesquisa cientifica de modo geral e da pesquisa educacional de um modo particular. Com relagao a origem da concepgdo instrumental da ciéncia, presumimos que se possa localiz4-la pontualmente no pensamento de F. Bacon, nao obs- tante a consciéncia que temos da precariedade historica de afirmagdes deste tipo". Na verdade, a nossa pretensdo neste trabalho vai mais longe ainda, pois insistiremos ao longo dele numa sobrevivéncia per- tinaz de muitos outros aspectos da concepgdo baconiana da ciéncia. > 9. Vide: D. J. Solla Price, “Science and Technology: Distinctions and Interrelationships”, em So- ciology of Science, B. Barnes (ed.), Inglaterra, Penguin Books, 1972, pp. 166-180. 10. £ claro que aqui o termo “instrumentalismo” é usado num sentido amplo para caracterizar a Preocupacio permanente de Bacon com a utilizacio da ciéncia para transformacio da reali- dade. Como disse V. Brochard [Philosophie Ancienne et Philosophie Modeme, Nowvelle édi- tion, Paris, L. P. J. Vrin, 1966, p. 311}: “Bacon nunca perde de vista que a ciéncia tem por ob- jeto agir sobre a natureza e transformé-la”. Neste sentido, o instrumentalismo baconiano dife- re, em parte, do seu significado epistemol6gico estrito que, desde o famoso preficio de Oslan- der ao livro de Copérnico e desde Berkeley até Duhem, em funcao do qual as teorias cientifi- cas devem ser concebidas como meros instrumentos de predigéo sem maior preocupagéo com © problema de sua veracidade. A propésito, vide: K. Popper, “Three Views of Human Kno- wledge”, em Conjectures and Refutations, 5* ed., Londres, RKP, 1974, pp. 97-119. UMA IDEIA DE PESQUISA EDUCACIONAL 23 Conforme veremos, muitas de suas idéias sobre método cientifico ou contrafagées delas continuam até hoje a repercutir sobre o estilo e os rumos de determinada variedade de investigagao cientifica, incluida af parcela consideravel da pesquisa educacional, A posicéo de Bacon na histéria do pensamento cientifico é sin- gular ¢ controvertida, pois ainda que nao tenha sido um cientista - suas hist6rias naturais de presenga, de auséncia e de graduacao, que, mesmo na sua €poca, nada mais representavam do que magantes co- leg6es de informagées esparsas de origem heterogénea e de valor du- vidoso —, ele foi considerado, por alguns, como um marco na reno- vaco cientifica do século XVI, enquanto outros a ele se referem até com menosprezo!'. O ponto principal de disc6rdia tem sido as diividas sobre o real valor da contribuigéo de Bacon para o desenvolvimento da moderna concepgao de ciéncia’?, Contudo, nem sempre tem mere- cido ateng4o nessa polémica que é preciso distinguir entre o discutivel valor epistemol6gico da contribuigéo baconiana e a indiscutfvel in- fluéncia histérica do seu pensamento sobre o assunto. Com relacao ao ponto que aqui nos interessa, sua influéncia foi extraordinariamente notdvel. Foi ele o primeiro a proclamar de uma maneira sistematica e reiterada ao longo de toda a sua obra que a meta suprema da ciéncia 11. A influéncia de Bacon foi marcante em muitos notéveis cientistas do mesmo perfodo e poste- riormeate na propria fundagio e orientago da Royal Society [A. C. Combrie, Histéria de Ja Ciéncia, vol. 2, p. 261] e estendeu-se muito além de sua época, alcancando os enciclopedistas franceses, para os quais ele era um her6i. Décadas mais tarde, Herschel [A Preliminary Dis- ‘cours on the Study of Natural Philosophy, apud: J. J. Kockmans, Philosophy of Sciences, p. 46], 0 descobridor de Urano, dizia dele: “E a Bacon, nosso imortal compatriota que devemos o de- senvolvimento da idéia de que a fisica consiste inteiramente de uma série de generalizacdes indutivas”. E ainda no século XIX, Whewell, cuja influéncia em Stuart Mill € notéria, retomou © proprio titulo da obra baconiana [Novum Organum Renovatum| e 0 seu estilo aforistico. Ainda hoje, embora Bachelard fale em “nefasta influéncia do baconismo” [La Formation de U'Esprit Scientifique, p. 12] € Koyré diga que “de fato, Bacon nunca entendeu nada de ciéncia” (Etudes Galiléennes, p. 12] um notavel historiador da ciéncia ¢ tecnologia chinesas antigas co- mo Needham confessa que é “baconiano em mais de cingiienta por cento” [La Grand Titula- ibn, p. $0] € um outro historiador da ciéncia, nio menos notivel, disse que “todos nés somos ‘mais ou menos baconianos” [B. Farrington, The Philosophy of Francis Bacon, p. 157). Sobre a influéncia de Bacon, principalmente com relacSo a temas, vale a pena consultar: P. Rossi [org.}, I! Pensiero de Francis Bacon, Turim, Loescher, 1974. 12. “Bacon, em seu Novum Organum, propunha-se explicitamente a substituir 0 Organum de Arist6teles; porém quando se 0 compara com as distintas concepgdes do método cientifico de- fendidas na 6poca antiga e principios da moderna, aparece claramente que o método de Ba- con tem muito mais em comum com o de Aristételes do que, por exemplo, com os métodos de postulados de Arquimedes ¢ Galileu.” Combrie, op. cit, p. 256. CI. também Hesse e Losee. 24 JOSE MARIO PIRES AZANHA € dar ao homem o dominio da natureza™. E claro que neste, como em outros aspectos do seu pensamento, pode ter havido predecessores", mas a novidade de suas idéias esté na énfase com que foram procla- madas e na forga hist6rica que tiveram. As transcrigdes que seguem ilustram a elogiiéncia e a atualidade da idéia baconiana de que a cién- cia €, sobretudo, poder: Giéncia e poder do homem coincidem, uma vez que, sendo a causa ignorada, frustra-se 0 efeito. Pois a natureza ndo se vence, se ndo quando se Ihe obedece. E 0 que A contemplacao apresenta-se como causa € a regra na pratica [No, livro |, i]. A verdadeira ¢ legitima meta das ciéncias € a de dotar a vida humana de novos inventos € recursos [NO, livro 1, vi]. Porque 0 conhecimento néo deve ser como uma cortesd apenas para prazer € vaidade, nem como uma escrava apenas para proveito de seu amo, mas como uma ¢s- posa para procriagéo ¢ ajuda [42, livro 1, cap. 1, V-11]'5, Poucos tém escapado a seducdo dessas idéias, e nao seria exage- ro afirmar que elas exprimem, ainda hoje, a compreens4o do objetivo da ciéncia do piblico leigo e de grande parte dos proprios cientistas, além de constituir a justificativa a que os pesquisadores e as insti- tuigdes de pesquisa recorrem nas suas exigéncias de apoio ¢ estimulo. Em face da popularidade dessa concepg¢ao instrumental da ciéncia é que ganha importancia 0 exame dos seus fundamentos. E, sem ne- nhuma tortuosidade de andlise, é possfvel mostrar que nas suas bases ha duas falhas incontornaveis, uma epistemol6gica ¢ outra hist6rica, que na verdade se entrelagam: 1. A €nfase no cardter instrumental da ciéncia 6 um superdi- mensionamento de um aspecto desse saber que € inteiramente contin- gente. A idéia de que conhecimento cientifico é poder, no fundo, signi- fica afirmar que a posse desse>conhecimento permite previséo e 13. “A originalidade de Bacon foi conceber & luz das descobertas ¢ das invengdes dos iiltimos sé- culos a possibilidade de outras invengdes destinadas a transformar as condigées priticas da vi- da humana, de querer dotar a humanidade por meio da ciéncia de um novo poder.” P. M. Schubl, Mécanisme et Philosophie, Franca, PUF, 1947, p. 37. 14, Segundo Combrie [op. cit., p. 254], a “‘idéia utilitéria” da ciéncia, Bacon a deve ao seu homé- nimo do século XII. Nao é essa, contudo, a opiniéo de Farrington [op. cit, p. 27], para quem a divida é para com Giordano Bruno antes do que com relagio a Grosseteste ou Roger Bacon. 15, Nas citagdes de Bacon, usaremos, no caso do Novum Organum, a tradugio de José Aluysio dos Reis Andrade, Abril, 2* ed., 1979; e, no caso de Advancement of Learning, a tradugio de M. L. Balseiro, Alianza Editorial, 1988. UMA IDEIA DE PESQUISA EDUCACIONAL 25 eventualmente interferéncia'®. Que isto seja verdadeiro com relagdo a uma ampla classe de conhecimentos seria ocioso discutir, mas preten- der a sua validade para todo o corpo da ciéncia constitui uma arbitra- riedade epistemolégica. Sob que alegagées se podem erigir os poderes de previsdo e de interferéncia em critérios para aferir a cientificidade de uma dada 4rea do saber? Como fazer isso sem uma devastadora mutilagaéo daquilo que ao longo da histéria tem sido classificado como conhecimento cientifico? Um dos objetivos basicos da ciéncia é 0 de formulagdo de explicagées, no sentido de conseguir referir a ocorrén- cia de certas categorias de fendmenos a leis gerais. Ora, 0 éxito na ob- tengao de explicagGes corretas nao estabelece por si s6 um poder de predigao. Mais ainda, nem mesmo 0 éxito de predig6es depende ne- cessariamente da posse de explicagées corretas. Para ficarmos apenas em dois exemplos muito significativos — porque com relacdo a eles 0 reconhecimento histérico da sua cientificidade é relativamente pacifi- co —, basta citar a astronomia ea teoria da evolugdo. No caso da as- tronomia, a sua histéria esta pontilhada de momentos, nos quais coe- xistiram explicag6es totalmente incorretas e, nado obstante, grande ca- pacidade de predigao, ao passo que, com relagdo a teoria da evolugao, nds temos um exemplo de grande forga explicativa de par com uma quase completa auséncia de poder de predigéo”. Avaliar a exceléncia cientifica de uma teoria pelo seu eventual poder de predicao significa a reducdo do esforco cientffico 4 mera descoberta de regularidades, com exclusao de toda tentativa de ir mais além, pois essa descoberta, em algumas ocasiées, é suficiente para assegurar o éxito de predigdes. 16, A amplitude de aceitacéo desta idéia é extraordinéria. Até mesmo um autor como Habermas ~ de quem nunca se poderia dizer que € um baconista ~ disse que “O saber empirico-a co é, pois, um saber preditivo. Na verdade, o significado de tais previsées, isto é, sua possivel utilizagéo técnica no € sendo o resultado das regras em fungéo das quais nés aplicamos as teorias & realidade”. J. Habermas, La Technique et la Science comme “Ideologie”, trad. de J.-R. Ladmiral, Gallimard, 1973, p. 147. No ponto em aprego, o que distingue este autor de Bacon é que sua concepsio de saber cientifico nao é unitéria, de modo que no trecho citado néo esta- riam inclufdas as ciéncias historico-hermenéuticas. 17. Como exemplos muito interessantes de sucesso de predigées na auséncia de explicagSes corre- tas, basta referir - no campo da astronomia — a previsio de marés, enchentes, eclipses etc., convivendo com explicagées fantasiosas ¢ falsas; ¢ no campo da biologia, o secular éxito de muitos povos na obtencéo de melhores espécimes animais e vegetais na completa ignorncia dos mecanismos genéticos desencadeados pelos cruzamentos. Cf. S. Toulmin, L’Explication ‘Scientifique, cap. 2, trad. de J.-J. Lecercle, Paris, Librairie Armand Colin, 1973; ¢ também C. Darwin, The Origin of Species, cap. 1, Encyclopaedia Britannica Inc., Great Books of Western World, vol. 49, 1952. 26 JOSE MARIO PIRES AZANHA E exatamente neste ponto que reside a arbitrariedade epistemolégica dessa concepgdo de ciéncia, pois pressupde uma fei¢do unitdria do sa- ber cientifico, nao s6 quanto aos procedimentos metodolégicos como também em termos dos objetivos desse saber que, ali4s, para Bacon era indissocidvel do método'*. 2. Com relagdo ao segundo ponto, isto é, a dificuldade de justifi- car historicamente a concepg¢do instrumental da ciéncia, € preciso an- tes de mais nada frisar que o préprio Bacon nunca pretendeu fundar a sua idéia de ciéncia como poder na hist6ria descritiva da ciéncia que 0 havia precedido ou que lhe era contemporanea, mesmo porque “o fim e a meta da ciéncia foram mal postos pelos homens”. Para Bacon, até entdo, a ciéncia nao fora sendo “aberragées”; nao cabia, pois, a sua reforma, mas a sua instauracdo: Seria algo de insensato, em si mesmo contradit6rio, estimar poder ser realizado © que até aqui ndo se conseguiu fazer, salvo se se fizer uso de procedimentos ainda nao tentados [No, 1, vi]. Vio seria esperar-se grande aumento nas ciéncias pela superposicao ou pelo enxerto do novo sobre o velho. E preciso que se faca uma restauracéo da empresa a partir do 4mago de suas fundagGes, se nao se quiser girar perpetuamente em circulos, com magro e quas¢ desprezivel progresso [NO, 1, XXXI]. Embora essas passagens, e muitas outras que se lhe poderiam juntar, exibam a transparéncia do propésito baconiano de desvincular a sua concepgao da ciéncia das “trevas da tradigdo”, alguns obstinados baconistas poderiam alegar que, a despeito dos termos e do estilo da sua exposic¢do, a verdade é que Bacon captou — na sua idéia instru- mental da ciéncia — a real natureza das relacdes entre ciéncia e tecno- logia, isto é, a determinagdo desta por aquela. No entanto, o valor dessa alegagdo teria que fundar-se na propria histéria da ciéncia ¢ na historia da tecnologia, de tal modo que se evidenciasse ter sido esse, historicamente, 0 relacionamento constante, manifesto ou nao, entre o 18. “Ainda nos pode ser indagado, mais como divida do que como objecio, se intentamos com nosso método aperfeicoar tornar itil] apenas a filosofia natural ou também as demais cién- cias: a légica, ética e a politica. Ora, 0 que dissemos deve ser tomado como se estendendo a todas as ciéncias [...] Por isso, pretendemos constituir hist6ria e tabuas de descoberta para a ira, 0 medo, a vergonha e assuntos semelhantes; e também para exemplos das coisas civis e, nfo menos, para as operagées mentais, como a meméria, para a composigio e a divisio, para ‘0 juizo etc. E, ainda, para o calor, pars o frio, para a luz, vegetacfo e assuntos semelhantes.” [NO, livro 1, cx]. UMA IDEIA DE PESQUISA EDUCACIONAL 27 saber cientifico e a eficiéncia técnica. $6 assim poderiamos evitar a contundente afirmagdo de Koyré, segundo a qual, na verdade, Bacon nada entendia ‘de ciéncia. Mas este caminho nao é sem embaracos, porque nem na Antiguidade Classica nem na Idade Média a tecnolo- gia foi de modo invaridvel uma decorréncia do saber cientifico. A tecnologia dos antigos entre babilénios ¢ egipcios e também, até num certo momento, entre gregos e romanos era fundamental- mente empfrica, fruto do tirocinio de artifices antes do que de uma cultura cientifica; e se houve nesse perfodo algum relacionamento en- tre essas esferas da atividade humana, foi antes no sentido inverso de uma influéncia da tecnologia sobre a ciéncia do que desta sobre aque- la’, Quando essa situagdo se modificou pelo elevado desenvolvimento do saber cientifico na época classica, essas relagées se alteraram, mas, ainda assim, nao no sentido de uma repercussdo intensa e continuada da ciéncia sobre a técnica. Bacon, contudo, que tinha da ciéncia grega uma visdo fortemente marcada, pelo peso das discussées posteriores do aristotelismo, simplificou esse quadro para sé reter dele a idéia de que a ciéncia grega no influiu sobre a pratica porque era uma va dis- puta desligada da /egitima investigacdo da verdade®. Para avaliarmos a complexidade do assunto (insuspeitada por Bacon), é suficiente deter nossa atengdo, ainda que brevemente, sobre © que ocorreu no campo da medicina hipocratica. Esta escolha tem sua razdo de ser no fato de que a medicina é uma 4rea onde convivem a técnica e o saber teérico ¢ ainda porque, no caso particular da me- dicina hipocratica, ela foi “dentre todas as ciéncias cultivadas pelos gregos a mais préxima em contetido e espirito da ciéncia moderna”, No ambito da ciéncia grega, houve uma primeira fase que, como dissemos, foi de marcada influéncia da técnica sobre a ciéncia e que 19. “Em nosso tempo, a tecnologia tem vindo a ser quase sindnimo de ciéncia aplicada a fins pré- ticos. Para nés, parece que a ciéncia é a fonte, a mie da tecnologia. Mas, até cerca de 1500 ¢ talvez até muito mais tarde, seria mais exato dizer que a tecnologia é que foi a mée da cién- cia.” C. Singler, apud, C. Walker [ed.], em Modem Technology and Civilization, Estados Uni- dos, McGraw-Hill Company Inc., 1962, p. 17. 20. “As ciéncias que possuimos provieram na sua maior parte dos gregos |...) Contudo, a sabedo- ria dos gregos era professoral e prodiga em disputas — que é um género dos mais adversos a investigacSo da verdade” [NO, 1, LXXI]. 21. B. Farrington, “La Mano en el Arte de Curar”, em E/ Cerebro y la Mano en la Antigua Grécia, trad. de E. M. Vedia, Buenos Aires, Lautaro, 1949, p. 69. Num outro texto [The Philosophy of Francis Bacon}, 0 mesmo autor, um baconista insuspeito, diz que Bacon foi “‘cego” para com ‘um dos mais importantes textos da medicina hipocratica: A Medicina Antiga. 28 JOSE MARIO PIRES AZANHA se deve ao “fato de que todos os naturalistas e filésofos pré-socraticos inspiraram-se nos processos das varias técnicas para explicar os fen6- menos da natureza”*, Num dos mais famosos textos hipocraticos (A Medicina Antiga), ha passagens que revelam claramente o sentido dessa conexdo entre certos oficios manuais e a medicina. A arte de curar compreendia também a operagdo manual que no se limitava, entretanto, a cirurgia e a dissecagdo, mas que inclufa também o pre- paro de alimentos e drogas. Essa manipulagao tinha um valor cognos- citivo e por meio dela 0 médico que, também, “era cozinheiro, far- macéutico e massagista, aprendeu a compreender a fungdo terapéuti- ca dos alimentos, das drogas e dos exercfcios”. Somente mais tarde € que, segundo alguns autores, no quadro propicio de uma sociedade escravocrata e por uma influéncia intelec- tual que se inicia em Platao ¢ se consolida com Aristételes™, a medi- cina vai se dissociando das técnicas manuais, préprias dos escravos, € se transformando num saber te6rico-especulativo*. Uma das con- seqiiéncias importantes dessa transformacdo € que o saber médico- cientffico assim desvinculado da técnica acaba por nao ser quase nada mais que comentario e discuss4o, entrando em decadéncia. O que se procura ressaltar aqui é apenas 0 fato hist6rico de que, numa situagdo especifica como a da medicina hipocratica, houve uma segunda fase em que 0 seu cultivo, contaminado pela preocupagao filos6fica, pas- 22. R. Mondolfo, “Tecnica y Ciencia en la Grécia Antigua”, em Momentos del Pensamiento Grego y Cristiano, Editorial Buenos Aires, 1964, p. 51. Também de Mondolfo convém examinar “Su- gestiones de la Técnica en las Concepciones de los Naturalistas Presocriticos”, em En los Ori- genes de la Filosofia de ta Cultura, Buenos Aires, Libreria Hachette, 2 ed., 1960. Neste traba- tho, Mondolfo analisa extensamente a questo da influéncia da técnica sobre a ciéncia grega. Segundo ele, essa influéncia ocorreu “de duas maneiras: 1) diretamente, mediante seus pré- Prios procedimentos e resultados e 2) indiretamente, mediante fatos, produzidos pela natureza € nao pela atividade do homem, mas que se converteram em objeto de interesse (e por isso de conhecimento) somente por sua relacio com as atividades técnicas” [p. 87]. Ao longo do estu- do, Mondolfo mostra como alguns conceitos centrais do pensamento grego (como a idéia de justiga e de harmonia) derivam-se também de préticas (juridica e musical), 23. B. Farrington, op. cit., p. 69. 24. Cf. Schuhl, Mécanisme et Philosophie, Franca, PUF, 1947; e Mondolio, op. cit. (No caso de Mondolfo, as duas obras). 25. & tao profunda esta transformagéo que, num dos textos tardios da medicina hipocritica, uma das recomendagées (juramento) € a de que 0 médico néo deve “operar nem mesmo aos pa- cientes que padecem de célculos, mas deix4-los nas mAos dos que se ocupam dessas prticas”. La Medicina Hipocritica [Colegio de textos com uma introdugao de P. Lain-Entralgo], trad. do grego de J. Alsina et alii, Clasicos de la Medicina, Madri, Instituto Arnau de Vilanova, 1976, p. 180. UMA IDEIA DE PESQUISA EDUCACIONAL 29 sou a ser feito com total desprezo da pratica e da experiéncia e que is- so repercutiu de modo estagnante sobre certos aspectos desse saber. £ 0 caso da anatomia, por exemplo, onde 0 médico abandonou 0 tra- balho manual aos barbeiros e massagistas. Alids, para Mondolfo, essa situagéo de “desprezo pelo trabalho e pela técnica” extravasou o ‘ina e acabou sendo prejudicial para toda a ciéncia Aparentemente, essa situagao milita a favor da apreciagdo ba- coniana da ciéncia grega que teria assim malogrado em “dotar a vida humana de novos inventos € recursos”, que € a “verdadeira ¢ legitima meta das ciéncias”. De tal modo parece que Bacon tinha razio, que um baconista notdvel como Farrington encontrou na organizacao es- cravocrata da socicdade grega a tinica explicagdo plausfvel para que a ciéncia de entdo nao tivesse produzido o seu fruto natural: a tecnolo- gia’. Contudo, ainda que essa tese seja amplamente aceita, Needham observa que, embora ela possa talvez estar correta para explicar 0 “fa- to de que a ciéncia aplicada nao se desenvolveu na primitiva civili- zacgao mediterranea porque havendo a escravidao nao havia proble- mas de mao de obra’, ela nao seria suficiente para dar conta da si- tuagdo, por exemplo, na China antiga e medieval, onde a abundancia da mao-de-obra n4o foi impedimento para um notavel desenvolvi- mento tecnolégico. Alids, a prop6sito do mesmo assunto — relagao de m4o-de-obra e escravidao —, H. Arendt observa que “ao contrdrio do que ocorreu nos tempos modernos, a institui¢éo da escraviddo na an- tiguidade nao foi uma forma de obter mao-de-obra barata nem ins- 26. “Quando a medicina se separa da cirurgia [...] perde 0 conhecimento da anatomia e decai. E decai a matemética quando renega toda vinculacao com a mecénica [...] E decai a ciéncia fisica ‘quando menospreza a criagfo de instrumentos [...] O divércio entre a ciéncia e técnica marca a decadéncia da ciéncia antiga e repercute em toda a Idade Média.” R. Mondolfo, Momento det Pensamiento Grego y Cristiano, p. 63. 27. “A ciéncia greco-romana foi boa semente, que, entretanto, nio poderia germinar no solo em- pedernido da antiga sociedade escravagista”. B. Farrington, A Ciéncia Grega, trad, de J. Cunha Andrade e L. Teixeira, Séo Paulo, Ibrasa, 1961, pp. 264-265. Vide também P. M. Schubl, op. cit, p. AL. 28, J, Needham, “Ciéncia y Sociedad en la Antigua China”, em La Gran Titulacién, trad. de M.T. de la Torre Casas, Madri, Alianza Editorial, p. 174. Nessa coletdnea de conferéncias, o autor em varias oportunidades assinala que, nio obstante na China antiga no houvesse 0 escravis- mo tal como a Europa o conheceu, havia abundincia de mio-de-obra, mas isso néo foi impe- dimento para que surgissem diversas técnicas cuja conseqiiéncia foi a liberacéo dessa mio- de-obra. E 0 caso, por exemplo, do arnés peitoral, do uso de vela na navegacio etc. 30 JOSE MARIO PIRES AZANHA trumento de explorago para fins de lucro, mas sim a tentativa de ex- cluir o labor das condig6es da vida humana”. A conclusdéo que podemos tirar desta breve digressdo € a de que falta fundamento histérico a alega¢do baconista de que Bacon captara a verdadeira natureza das relagoes entre ciéncia e tecnologia. No perio- do da hist6ria da ciéncia que antecedeu a Bacon, nada do que ocorreu nesse relacionamento poderia fundamentar a sua tese de que a meta natural da ciéncia € produzir tecnologia. Ainda que de modo sumario, tentamos mostrar que a extrema complexidade desse relacionamento sujeito as variagdes histéricas ndo se deixa apreender na rigidez da formula baconiana. Na verdade, nem o préprio Bacon pretendeu tal coisa, a idéia é antes baconista do que baconiana. A sua tese sobre 0 assunto tinha antes um claro propésito prescritivo; nao se tratava, para ele, propriamente, de dizer o que a ciéncia fora no passado ou era no seu tempo, mas 0 que deveria ser: A gloria dos antigos, como a dos demais, permanece intacta [...] Nao nos colo- camos no papel de juiz, mas de guia [No, livro 1, Xxxul]. Todavia, como ja dissemos, ndo hé esperanca sendo na regeneracéo das cién- cias, vale dizer, na sua reconstrucdo, segundo uma ordem certa que as faca brotar da experiéncia. Ninguém pode afirmar, segundo presumimos, que tal tarefa tenha sido feita ou sequer cogitada [No, livro 1, xcvtl}. Ainda ha outra causa grande poderosa do pequeno progresso das ciéncias. E cicla aqui: no € possivel cumprir-se bem uma corrida quando ndo foi estabelecida prefixada a meta a ser atingida [...] Em suma, se ninguém até agora fixou de forma jus- ta o fim da ciéncia, nao é para causar espanto que tudo 0 que se subordine a esse fim desemboque em uma aberracao [NO, livro 1, LXXxI]. Estas passagens evidenciam que, para Bacon, a ciéncia até ent’io nao fora aquilo que ele pretendia que viesse a ser: fonte de dominio da natureza. Mas, ainda assim, pata um baconismo renitente nao ha- veria nessa constatagao hist6rica um desmentido a tese de que as re- lagdes entre ciéncia e tecnologia sdo essencialmente aquilo que Bacon dissera. Se falta 4 visdo baconiana alicerce histérico, isso apenas se deveria 4 agdo de fatores perturbadores (como a escravidao), impedi- tivos de que a ciéncia tivesse produzido os seus frutos naturais; tanto assim € que a hist6ria a partir de Bacon mostrou que a sua visao era, 29. H. Arendt, A Condigéo Humana, trad. de R. Raposo, Séo Paulo, Forense-Universitéria/E- dusp, 1981, p. 95. UMA IDEIA DE PESQUISA EDUCACIONAL 31 na verdade, uma antevisdo, pois desde essa época a ciéncia veio se transformando de modo crescente na grande matriz da tecnologia tal como é nos dias que correm™. Indiscutivelmente, apés 0 século Xvil e de um modo cada vez mais acelerado, a evolugdo dos acontecimentos no campo da tecnolo- gia e da ciéncia parece confirmar as idéias de Bacon sobre 0 assunto e mesmo conferir-lhe um valor de prognéstico. E necessério, porém, es- tabelecer algumas restrig6es qualificativas a essa linha de raciocinio para torn4-la mais compativel com a perspectiva da historiografia atual da ciéncia e da tecnologia. Em verdade, é preciso reconhecer que: a. As evidéncias arroladas no sentido da confirmagéo de. uma influéncia determinante da ciéncia sobre a tecnologia limitam-se a ca- sos que antes parecem constituir excegdo do que regra. De fato, tém ocorrido situagdes de impacto direto de descobertas cientificas sobre a tecnologia e, muitas vezes, a grandiosidade desse impacto ¢ a publi- cidade que se faz em torno obscurecem uma ligacdo que antes sugere uma interac¢do do que propriamente uma determinagao unfvoca*. A esses eventos espetaculares nao seria dificil contrapor outros em que ocorre 0 inverso, e nos quais a repercussdo da tecnologia sobre a ciéncia nao é menos notavel. Segundo Walker, o crescente débito da ciéncia A tecnologia nem sempre é completamente imaginado. Mas, sem 0 telescépio - uma invengdo tecnolégica - a ciéncia da moderna astrono mia teria sido impossivel. Sem 0 microsc6pio as ciéncias modernas da zoologia, biolo 30. Essa antevisio baconiana do futuro das relagGes entre a ciéncia e a técnica sofreu a influéncia dos autores “‘técnicos” de sua época, que viam no desenvolvimento da técnica um “modelo” para o desenvolvimento do saber. Segundo Paolo Rossi, “é indubitével que a undnime in- sisténcia sobre o carter progressivo € colaborativo das artes, a afirmagéo de um saber que ‘aumenta no tempo € se enriquece - do mesmo modo que o rio com seus afluentes - gracas {is fadigas de muitos, ndo podem explicar-se t0-s6 por reminiscéncias dos textos cléssicos. O reconhecimento dos resultados sempre novos a que dio lugar as artes levava neste terreno a ‘afirmar a limitagdo do horizonte cultural dos antigos e a sublimar o cardter provis6rio e hist6- rico de suas verdades ¢ descobertas. Esta afirmacio ~ que encontramos em dezenas de textos escritos por técnicos de navegacéo e por viajantes ~ estava destinada, por sua vez, a desembo- car noutra, bem conhecida e destinada a singular ressondncia, a da superioridade dos moder- nos”. P, Rossi, Los Fildsofos y las Méquinas (1400-1700), trad. de J. M. Garcia de la Mora, Barcelona, Nueva CoJeccién Labor, 1966, p. 68. 31. “..08 casos excepcionais de uma mudanga espetacular, como o da penicilina e o dos transisto- res, no sio muito representativos do intercimbio normal entre a ciéncia e a técnica”, J. D. Solla Price, “Science and Technology: Distinctions and Interrelationships”, em B. Barnes, [ed], Sociology of Science, Penguin, 1972, p. 175. 32 JOSE MARIO PIRES AZANHA gia ¢ bacteriologia nao teriam se desenvolvido. Mas os exemplos inumerdveis sao ¢ podem ser encontrados em quase todos os setores da ciéncia ¢ da tecnologia moder- nas. Um dos iiltimos e mais notaveis débitos da ciéncia a tecnologia est4 no campo da matemitica e da fisica. O progresso em ambos os campos ¢ hoje dependente dos com- putadores automaticos de alta velocidade. Por sua vez, 0 computador deve 0 seu de- senvolvimento a teoria da informagao e as investigagdes do matematico™. Nessas condigdes, parece muito mais plausfvel admitir-se que ha influéncias recfprocas entre ciéncia ¢ tecnologia ¢ nao a linear deter- minagdo unfvoca de uma pela outra. b. Porém, a simples admisso da existéncia de uma interagéo entre esses campos parece insuficiente para exibir toda a complexida- de do relacionamento entre eles. A compreensao do que realmente ocorre talvez nado experimente nenhum progresso na substituic¢éo de um equivoco por uma ambigilidade, pois a forga descritiva do termo “Gnteragado” € quase nula tanto aqui como em outros assuntos, se nao for possfvel adiantar-se alguma coisa sobre a intensidade da presumi- da interacdo ¢ sobre os mecanismos especfficos pelos quais cla ocor- re®, No que diz respeito a intensidade da interagdo, algumas investi- gagdes empiricas apontam no sentido de que se trata de um relacio- namento antes fraco do que forte, nado obstante certas aparéncias em contrario™, Segundo esses estudos, nao haveria nenhum mecanismo automatico por meio do qual progressos na pesquisa basica implica- riam conseqiiéncias sobre o progresso da tecnologia ou vice-versa. Uma evidéncia empirica desta tese estaria no fato de que ha um “con- sider4vel atraso” nas repercussdes reciprocas das linhas de ponta da investigacéo cientifica e tecnolégica, contrastando “com a rapidez com que a nova tecnologia surge diretamente da interacdo forte com a velha tecnologia ¢ com o processo similar pelo qual a velha ciéncia > 32. C, Walker, op. cit, pp. 13-14, 33, Como exemplo de uma maneira ambigua de admisséo dessa interagéo, veja-se Habermas. Se- gundo ele, ‘a situacéo [industrial] mudou na medida em que o desenvolvimento técnico en- trou numa relagéo de feedback com 0 progresso da ciéncia moderna. Com 0 advento da inves- tigagdo industrial em grande escala, a ciéncia, a tecnologia e a ulilizacho industrial fundiram-se ‘num $6 sistema” [p. 104]. Néo obstante o interesse politico que afirmagoes desse tipo possam ter como apreciagéo de conjunto, a sua forca elucidativa é escassa com relagio a0 modus ope- randi da interagéo entre ciéncia e tecnologia. Towards a Rational Society, trad. de Shapiro, Boston, Beacom Press, 1971, p. 104. 44. CL J. D. Sola Price, op. cit., e também J. Ben-David, “Scientific Entrepreneurship and the Utilization of Research” na mesma coletinea. UMA IDEIA DE PESQUISA EDUCACIONAL 33 gera a nova”. Nao haveria nem mesmo qualquer possibilidade de previsao dessas repercussdes, pois nao ha uma relagdo direta “entre 0 lugar c 0 momento da produgdo de base cientifica de um lado € a ob- tengdo de beneficios tecnolégicos e econdmicos de outro”3’, Nessas condiges, as investigagdes empfricas (e nao meramente especulati- vas) parecem indicar que o préprio mecanismo de interagdo entre ciéncia e tecnologia se prende mais a circunstancias até certo ponto aleat6rias (pessoais, sociais, polfticas e econémicas) do que a carac- teristicas permanentes dessas areas do saber humano*’. Em face dessas consideragées, parece bastante mais razodvel concluir que — contrariamente a uma perspectiva baconista estrita - faltam bases empiricas para a idéia de que hd um relacionamento es- sencial e invariante entre ciéncia e tecnologia. Além de nao haver ne- nhum ganho visivel na postulagdo dessa essencialidade e invariancia, ha, pelo contrdrio, exemplos histéricos que ilustram como, por vezes, 0 estabelecimento de prioridades de investigag4o cientifica que pres- supdem essa imutabilidade de relacées pode ter efeitos mais negativos que positivos*. A complexidade dessa interagdo sugere que o seu es- tudo e equacionamento para fins de politica de investigagao cientifica nao pode ser abstrafdo de circunstancias histéricas especificas. Quan- do se ignora esse fato ¢ a meta da ciéncia é estreitada pela Ansia de obtengao de resultados prdticos, é inevitavel de imediato o sacrificio dos objetivos teéricos permanentes da investigagdo cientifica e, em conseqiiéncia, a longo prazo, também da obtengdo de frutos prati- cos®, Nao se deve, contudo, fazer injustiga a Bacon com relagéo ao assunto. A sua tese sobre a “verdadeira meta da ciéncia” n4o pode ser 35. J. D. Solla Price, op. cit., p. 175. 36. J. Ben-David, op. cit, p. 182. 37. Segundo Solla Price, a chave para compreenséo do assunto, isto é, de como ocorrem as “trans- feréncias” de um campo a outro, estaria no fato de que “quando um tecndlogo é educado na frente de investigagio de sua arte, necessariamente deve receber certa preparacéo no estado ambiental da ciéncia de seu tempo. Analogamente, em sua educagéo, 0 cientista recebe co- nhecimento sobre o estado ambiental da técnica” [op. cit. p. 174]. Esse fato ajuda, até mesmo, a compreensio da “demora” com que as conquistas num campo repercutem sobre 0 outro. 38. Ben-David, que estudou 0 assunto numa perspectiva hist6rico-comparativa, mostra como na Inglaterra, nos iltimos cem anos (0 original é de 1971), a motivacéo pratica na fixagdo de pro- gramas cientificos foi indcua e conclui que “aparentemente, portanto, néo existe uma forma teoricamente valida para fixar a participacéo do esforco cientifico na economia”. J. Ben-David, O Papel do Cientisia na Sociedade, trad. de Dante M. Leite, $80 Paulo, Pioneira/Edusp, 1974, p. 244. 39. O episédio Lysenko é uma ilustragéo dramética dessa situagéo. O que entao aconteceu é bem 34 JOSE MARIO PIRES AZANHA responsabilizada pelos equivocos do baconismo triunfante na pesquisa cientifica em geral e, principalmente, na pesquisa educacional nos dias que correm, na qual parece que o valor pratico dos estudos esté na raz4o inversa da preocupagao teérica que os anime. Para cle, a espe- ranga de utilizagao do conhecimento cientifico nao deveria interferir na sua busca®. O BACONISMO NA EDUCAGAO A concepgao de ciéncia de Bacon repercutiu pelos anos ¢ sécu- los seguintes, ¢ nao seria exagero afirmar a sua firme persisténcia até hoje, ainda no ambito de orientagdes que rejeitam ostensivamente 0 empirismo. Qual a razdo desse sucesso? dessa forga hist6rica? Paolo Rossi — um dos principais baconistas do século — talvez nos dé a res- posta ao apresentar Bacon como arauto de um tempo novo: ‘A obra inteira de Bacon esté orientada a substituir uma cultura de tipo retéri- co-literrio por uma cultura de tipo técnico-cientifico. Bacon é perfeitamente cons- ciente de que a realizagéo deste programa de reforma sup6e uma rupwura com a tra- digo e est firmemente convencido de duas coisas: de que para efetuar tal rompimen- to € necessdrio submeter a um exame histérico a civilizagéo do passado, e que tal conhecido: a urgente necessidade prética da URSS de aumentar significalivamente a produgio de batatas levou A opcdo oficial por uma linha de investigacao cientifica que parecia mais promissora desse ponto de vista. Com isso, outra perspectiva de investigagio foi posta de lado com resultados desastrosos para o desenvolvimento da genética na Uniao Soviética. Embora 0 assunto tenha sido muito explorado politicamente para denunciar 0 obscurantismo de uma nagio totalitéria, € bom no esquecer que situagbes semelhantes ocorrem também em nacdes democriticas cada vez que se fixam por critérios extracientificos as prioridades da investigacio cientifica. A ligo mais importante a se tirar é antes no sentido de reconhecer o efeito parali- sante que pode, eventualmente, ter sobre a ciéncia a obsesséo por resultados priticos imedia- tos. Ver: D. Joravsky, “The Lysenko Affair”, em Scientific American, vol. 207, n. 5, nov.-1962, pp. 41-49. 40. Criticando 0 imediatismo dos alquimistas, ele disse que “demonstram uma disposigao prema tura de se voltarem para a pratica [..] Por isso acaba acontecendo com eles o que aconteceu a Atalanta: desviam-se de seu caminho para recolherem 0s frutos de ouro, interrompendo a cor- rida e deixando escapar a vit6ria” [NO, livro 1, LXX]. Aliés, 0 proprio Bacon tinha consciéncia de que poderia ser mal compreendido nas suas recomendagées sobre a meta da ciéncia. Por isso nos alerta, no final do livro 1 do Novum Organum, sobre a relevincia dos experimenta luci- fera sobre 0s experimenta fructifera, pois “a contemplagio da verdade é mais digna e elevada ‘que a utilidade ¢ a grandeza de qualquer obra” [NO, livro 1, CXXIV]. UMA IDEIA DE PESQUISA EDUCACIONAL 35 rompimento diz respeito néo sé ao modo de pensar, mas ao modo de viver dos ho- mens, 4 sua atitude para com o mundo da natureza ¢ para com a tradicdo cultural‘! Este anseio reformista da obra de Bacon transformou-a na base politico-filosdfica das décadas agitadas que a Inglaterra viveu apés a morte dele. Os seus ensinamentos — se bem que simplificados e vul- garizados — foram o ponto constante de referéncia para os politicos, intelectuais ¢ religiosos que com maior ou menor forca dominaram os acontecimentos da vida piblica inglesa até 0 momento da Restau- racdo ¢ além dela, mas jé af numa outra interpretaga: O historiador Trevor-Roper chama-nos a atengao para 0 fato de que, no intensissimo movimento reformista dessa época, um dos pon- tos centrais foi o da reorganizagdo da educagao, e Bacon é seu inspi- rador, As circunstancias reuniram trés homens para a realizagéo dessa tarefa, Samuel Hartlib, John Dury e Coménio, este convidado pelo primeiro, A motivagao politico-religiosa e 0 baconismo os irma- navam. Coménio, j4 ento (1641) com um prestigio curopeu no cam- po da educagao, h4 muito tinha por Bacon uma grande admiracao ¢ considerava o Novum Organum a “aurora brilhante de uma nova era”. Quando foi para a Inglaterra, Coménio j4 vinha trabalhando ha anos numa obra, que apenas foi publicada em 1657, com 0 titulo Didética Magna, “scm divida, o primeiro tratado sistematico de pedagogia, de didactica ¢ até de sociologia escolar. Como que compendiando todo o idedrio pedagégico de Coménio, foi sobretudo ela que Ihe mereceu ser considerado o ‘Bacon da pedagogia’ *°, O exame desse tratado é chave para a compreensio da decisiva influéncia de Bacon sobre uma das correntes mais vivas do pensamen- to pedagdgico, que se inicia de modo sistematico com Coménio, e que 41. P. Rossi, Los Filésofos y las Maquinas (1400-1700), pp. 81-82. Grifo do autor. 42. “Todas as reformas da legislacdo que seriam exigidas em voz clamorosa ¢ irada por um povo rebelde na década de 1640 tinham sido jé reclamadas, ldcida e lealmente, uma geragio antes, no por Coke, nunca por Coke, mas sempre por Bacon. © mesmo se passou na educagio. Ba- con, 0 grande defensor da razo € da religiéo laicas [sic], queria reformar as universidades, destronar Arist6teles, introduzir no ensino as ciéncias naturais; queria acabar com a prolife- Tagéo das escolas secundérias ¢ desenvolver a educacéo elementar.” H. R. Trevor-Roper, “Trés Estrangeiros: Os Fildsofos da Revolucio Puritana”, em Religido, Reforma e Transfor- ‘macdo Social, trad. de Maria do Carmo Cary, Lisboa, Editorial Presenca/Martins Fontes, 1981, p. 182. 43. J. Ferreira Gomes, “Introdugio” de Diddetica Magna {J. A. Coménio}, trad. do autor da “In- troducio”, Lisboa, Fundagio Calouste Gulbenkian, 1968, p. 33. 36 JOSE MARIO PIRES AZANHA perdura até hoje. Por meio dessa obra, Coménio realizou uma trans- posigéo das idéias mestras de Bacon sobre a ciéncia para 0 campo da educagao. Para nao alongar o assunto além do necessario, basta refe- tir 0 seguinte: para Bacon, o estado lastimAvel da ciéncia de entio in- dicava a necessidade de um novo método, que seria tinico para todas as ciéncias e fundado na observacao. A exceléncia desse método seria a garantia do éxito de sua aplicagao independentemente do talento dos individuos que 0 usassem. A “arte de ensinar tudo a todos” foi a ré- plica pedagégica, que Coménio propés, da “verdadeira indugdo” ba- coniana. O simples pareamento de umas poucas passagens de ambos os autores € 0 suficiente para convencer-nos da transposi¢ao: NOVUM ORGANUM DIDATICA MAGNA A verdadeira causa ¢ raiz de todos os Mas no poderemos encontrar os males que afetam as ciéncias é uma remédios sem primeiro termos desco- (nica: enquanto admiramos e exalta- berto as doencas e as causas das mos de modo falso os poderes da doencas [Coménio refere-se a de- mente, nao Ihe buscamos auxilios cadéncia da educagao] [...] E sabido adequados [...] Porque 0 intelecto néo que sao absolutamente verdadeiras as regulado e sem apoio ¢ irregular e de_seguintes causas: todo in4bil para superar a obscurida- de das coisas [NO, IX, Xx1]. Primeira: ndo havia nenhumas metas &s quais deviam ser conduzidos os alunos em cada ano, em cada més e em cada dia, mas tudo era incerto duvidoso. Segunda: Nao estavam tracadas ne- nhumas vias que conduzissem infali- svelmente as metas [p. 274]. Ainda nos pode ser indagado, mais como divida que como objecdo, se in- tentamos, com nosso método, aper- feicoar apenas a filosofia natural ou também as demais ciéncias: a légica, a ética e a politica. Ora, 0 que dissemos deve ser tomado como se estendendo a todas as ciéncias [NO, CXXvII]. Confunde, portanto, a juventude e torna os estudos excessivamente in- trincados, a variedade do método [...] Por esta razdo, procurar-se-4 daqui para o futuro, que: I. Se ensinem, com um s6 € mesmo método, todas as ciéncias: com um s6 © mesmo método, todas as artes; com um s6 e mesmo método, todas as lin- guas [p. 247]. UMA IDEIA DE PESQUISA EDUCACIONAL 37 Todavia, como j4 dissemos, nao ha es- peranca sendo na regeneracdo das ciéncias, vale dizer, na sua recons- trugaéo, segundo uma ordem certa, que as faca brotar da experiéncia. [...] Mui- to se poderd esperar das ciéncias quan- do, seguindo a verdadeira escala, por graus continuos, sem interrupcdo, ou falhas, se souber caminhar dos fatos O conhecimento deve necessariamen- te principiar pelos sentidos (uma vez que nada se encontra na inteligéncia, que primeiro nao tenha passado pelos sentidos). Por que é que entao o en- sino hé de principiar por uma expo- sigdo verbal das coisas e no por uma observagdo real dessas mesmas coi- sas? [p. 307]. particulares aos axiomas menores, des- tes aos médios, os quais se elevam aci- ma dos outros, e finalmente aos mais gerais [NO, XCVII, CVI]. Um coxo (segundo se diz), no caminho Se todas estas regras forem observa- certo, chega antes que um corredor ex- das escrupulosamente, ser quase im- traviado, e © mais hdbil e veloz, cor- possivel que as escolas falhem na sua rendo fora do caminho, mais se afasta.missdo [p. 226]. de sua meta. [...] Pois 0 nosso método de descoberta das ciéncias quase que ‘ iguala os engenhos e nao deixa muita margem a exceléncia individual, pois tudo submete a regras rigidas e de- monstragdes [No, LxI, Cxxm]. Esse pareamento, que poderia estender-se a dezenas de passa- gens, exibe mais do que uma influéncia intelectual no sentido corrente e ambiguo da expressao. Coménio tentou implantar, no campo da educacao, a reforma pretendida por Bacon no dominio das ciéncias. Assim como para Bacon fazer ciéncia era aplicar um método, também para Coménio educar ou ensinar era a aplicagao de um método. E da mesma mancira que algumas idéias de Bacon marcaram de modo in- delével a visdo mais difundida da ciéncia nos séculos posteriores, as idéias de Coménio sobre as relagdes entre ensino e método perduram até hoje. E claro que nao queremos com isso dizer que o pensamento pedagégico de hoje seja um pensamento comeniano. Mas, com re- lacdo a alguns pontos, é exatamente isso que acontece. Veja-se, por exemplo, a importancia muitas vezes excessiva que se dé no ensino ao papel da observagao, da experiéncia direta. Contudo, 0 ponto mais importante de influéncia de Coménio em educagao € a reivindicagdo da centralidade do método em todo ensino. Depois de Coménio, 38 JOSE MARIO PIRES AZANHA a preocupacéo metodolégica tornou-se uma constante do pensamento pedagégico até os dias de hoje. Desde o fim do século passado e ao longo deste, com as primei- ras investigagdes educacionais empiricas ¢ a posterior consolidag4o da pesquisa educacional como pratica institucional regular, grande parte da tematica dessa pesquisa tem sido a busca de procedimentos de en- sino mais adequados e eficazes*. O simples arrolamento de alguns nomes notaveis no pensamen- to pedagdgico deste século, como o de Dewey, Montessori, Decroly, Ferriére, basta para ilustrar a predominancia da tematica metodolégi- ca na educagao e, em conseqiiéncia, na pesquisa educacional. Todos esses autores, embora com preocupagées diversas e a partir de orien- tagdes diferentes, deram a questao metodolégica uma importancia central. Até mesmo um autor como Piaget, que a rigor ndo propés um método, difundiu-se nos meios educacionais como se preconizasse re- formas metodolégicas. O langamento do primeiro satélite artificial em 1957 desencadeou, nos Estados Unidos, um intenso movimento de renovag’o do ensino das ciéncias e da matemAtica que repercutiu em todo o Ocidente. A prépria questao da alfabetizacao, assunto de im- portncia educacional ¢ social geral, tem sido muitas vezes simplifica- da e reduzida a uma questdo de inovagdo metodolégica. Mais recen- temente, Seymour Papert, com o sucesso de seu livro sobre 0 uso de computadores no ensino, parece-nos que reviveu em versdo eletr6énica © sonho de Coménio de, afinal, descobrir a “arte de ensinar tudo a todos”. 44, Essa afirmagio aparentemente contraria, no caso brasileiro, uma das concluses de A. Joly Gouvela sobre o niimero relativo de temas metodol6gicos objetos de pesquisa no periodo con- siderado pela autora (dois anos). Mas é preciso levar em conta que, além do periodo ser muito pequeno, esse foi um periodo politicamente especial no qual a temética metodolégica nio exercia maior atragio. Cf. “A Pesquisa Educacional no Brasil”, em Revista Brasileira de Estu- dos Pedagégicos, vol. 55, n. 122, abr.-jun., Rio de Janeiro, 1971. UMA IDEIA DE PESQUISA EDUCACIONAL 39

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