Você está na página 1de 21

PARTE 1 - A DOUTRINA DAS ESCRITURAS

BIBLIOLOGIA

Autor: Leandro Lima (Extraído do livro “Razão da Esperança – Teologia Para


hoje”.

1. A REVELAÇÃO DE DEUS1
Há duas formas de se fazer teologia. Depende de como se aborda a
Escritura. Teologia, necessariamente precisa ser Teologia da Bíblia 2, porém, há duas
formas de se aproximar da Escritura: 1) Com pressuposto da fé. 2) Com pressuposto da
dúvida. As duas formas têm sido adotadas ao longo da história.

Pressupostos teológicos

Quem se aproxima com o pressuposto da fé entende que a Escritura é


inspirada, infalível e inerrante em tudo o que ensina. Este estudioso não se preocupará
primariamente em encontrar questões como fontes, desenvolvimento de tradições,
questionamento de datas ou autorias. Ele procurará entender o ensino da Bíblia e se
submeterá a ele, porque acredita ser verdadeiro e normativo. Além disso, entende que, ao
longo dos séculos, a Escritura já deu suficientes provas de sua autenticidade. Essa posição
não significa estar fechado para discussões, mas significa que não se está disposto a
abandonar a fé como pressuposto fundamental da teologia. Anselmo, que foi Arcebispo
da Cantuária (1033-1109), dizia que teologia é a fé em busca de compreensão 3. E de fato,
não se estuda teologia necessariamente para questionar a fé, embora algumas vezes ela
precise de questionamento, mas para desenvolver e fundamentar a fé 4. Geralmente
aqueles que adotam esta perspectiva são chamados de “conservadores”, e, às vezes até de
“fundamentalistas”, o que nem sempre é um rótulo adequado. É possível identificar uma
1
Os teólogos chamam a primeira das oito disciplinas da teologia sistemática de Introdução ou
Prolegômena. É a parte que trata das questões introdutórias à teologia, como a questão da Revelação (Geral
e Especial), os pressupostos filosóficos, a função e o método da teologia, etc. Nesse trabalho, simplificamos
bastante essa parte, tratando apenas da questão da Revelação, e mais especificamente da Revelação
Especial.
2
Aqui já deixamos de lado todo tipo de especulações ou naturalismo.
3
Anselmo falou sobre a necessidade de entender a fé, e que isso é uma espécie de “desejo” da fé
(Ver Karl Barth. Fé em Busca de Compreensão, p. 28).
4
A perspectiva adotada aqui é de que a fé pode ser compreendida, porém, não no sentido iluminista
de que se crê apenas naquilo que se pode compreender (Ver Stanley J. Grenz & Roger E. Olson. Teologia
do Século 20, p. 16). Muitas coisas da fé permanecem além da compreensão humana, mas jamais recebemos
a permissão para cruzar os braços.
linha histórica de estudiosos assim, desde os dias atuais até o tempo dos apóstolos.
Recentemente tem surgido uma nova forma de se abordar a Escritura. É o que se intitula
aqui de pressuposto da dúvida. Especialmente a partir do iluminismo (Séc XVII), e com
as descobertas científicas dos séculos seguintes, muitos estudiosos começaram a abordar
a Bíblia como um livro meramente histórico que precisava ser analisado de uma
perspectiva científica. Já não se aceitava mais o pressuposto da fé. A partir daí começou-
se a questionar as narrativas bíblicas, principalmente aquelas que narram eventos
sobrenaturais. Um grande esforço foi feito para recuperar o Jesus histórico que teria sido
distorcido pelos Evangelhos. A autoria mosaica do Pentateuco foi rejeitada e, em seu
lugar, foi desenvolvida uma complexa teoria de fontes. Assim o Pentateuco foi dividido
em diversas ramificações que seguiriam fontes anteriores e que teriam sido compiladas
por alguém depois do Exílio. Esta abordagem ficou conhecida como Crítica das Fontes.
Posteriormente falou-se em crítica das formas, crítica das tradições, crítica da redação,
etc. O que todas essas abordagens têm em comum é a perspectiva de crítica da Escritura
sem respeito ao seu caráter inspirado. Este pressuposto de abordagem não rejeita o
cristianismo, mas não está disposto a aceitar que tudo o que está registrado na Bíblia é
verdadeiro. Após tantos estudos e especulações, no entendimento de tais estudiosos,
pouca coisa na Escritura permanece como verdadeira e acima de qualquer suspeita. Os
adeptos desta abordagem são geralmente rotulados de “liberais”, ou “críticos”. Como já
foi dito, o início desta abordagem se deu no iluminismo, e ela permanece até hoje como
a forma mais predominante nos meios acadêmicos teológicos do mundo todo, embora
com muitas variações.
Não é o propósito dessa obra discutir profundamente esta questão, e o
estudante mais interessado deverá se preocupar em pesquisar outras fontes. Justifica-se a
opção pela primeira forma de abordagem por ser a forma histórica mais praticada, por ser
a que não violenta os escritos bíblicos, e por ser a que mantém as verdades essenciais do
cristianismo. O pressuposto da dúvida, embora tenha dado alguma colaboração para o
aprofundamento acadêmico, tem causado esfacelamento no cristianismo mundial,
retirando sua base de fé, comprometendo o ensino bíblico sobre a Redenção, e assim
demolindo a própria estrutura do cristianismo. Além disso, é necessário que se esclareça
que todas as teorias racionalistas permanecem apenas como teorias, carecendo de provas
documentais. Amplo trabalho apologético (defesa da fé) tem sido feito pelos
conservadores no sentido de rebater as teorias racionalistas. De fato, até hoje, concluímos
que não há razões suficientes para se abandonar o pressuposto de fé na integridade das
Escrituras. Todo crente verdadeiro sabe que a Bíblia é a Palavra de Deus, e sabe isso não
apenas porque a Bíblia é, em si mesma, em seus atributos literários, um livro excepcional,
mas acima de tudo porque o mesmo Espírito que inspirou as Escrituras é aquele que nos
dá esse testemunho interior no assegurando dessa verdade. 5
5
Calvino defendia a questão do testemunho interno do Espírito Santo como “prova” definitiva
para o cristão da veracidade da Bíblia, e não a submissão aos testes empíricos. Calvino ficou conhecido
como “o teólogo do Espírito Santo”, pois, como talvez nenhum outro, ele enfatizou a importância da obra
do Espírito Santo na vida do crente, e principalmente na Palavra de Deus. Calvino escreveu:
Se queremos, pois, velar pelas consciências, a fim de que não sejam de contínuo levadas de cá
para lá carregadas de dúvidas e que não vacilem nem se estanquem e se detenham em qualquer escrúpulo,
é necessário que esta persuasão proceda de mais acima do que de razões, juízos ou conjecturas humanas, a
saber do testemunho secreto do Espírito Santo (Institutas, I,7,5). Isso não significa que Calvino não
percebesse as qualidades da Escritura em si mesma: Calvino disse: “É verdade que se eu quisesse tratar
desta matéria com argumentos e provas, poderia aduzir muitas coisas, as quais facilmente provariam que
se há um Deus no céu, esse Deus é o autor da Lei, dos profetas e do Evangelho” (Institutas, I,7,5). O fato,
porém, é que Calvino entendia que esse não era o caminho correto de argumentação: “Contudo, vão fora
do caminho e pervertem a ordem os que pretendem e se esforçam em manter a autoridade e crédito da
Escritura com argumentos e disputas” (Institutas, I,7,5). A razão é simples: “Mesmo que houvéssemos
Propósito e progressividade
Uma vez que a integridade da Escritura é assumida, é necessário entender
a maneira como ela surgiu e chegou até nós. Neste capítulo, que talvez seja o mais
“técnico” do livro, veremos bastante brevemente, como isso se deu.
Sem a revelação, Deus seria eternamente o absconditus (escondido), pois
a natureza de Deus é tão diferente da dos homens, que os homens jamais conseguiriam
descobrir qualquer coisa de Deus por si mesmos. Talvez, por essa razão, Paulo faça eco
às palavras do Salmo 14 ao dizer: “Não há quem entenda, não há quem busque a Deus”
(Rm 3.11; Sl 14.2). Isso parece contraditório diante do que se vê no mundo, onde as
pessoas, quase que freneticamente, procuram Deus para resolver seus problemas. Mas
esse é justamente o problema, pois no fundo as pessoas não estão buscando a Deus, estão
simplesmente buscando algo dele. A rotina comum do ser humano é fugir de Deus, como
Adão e Eva, escondendo-se por entre as árvores do jardim. O ser humano não quer ter
relacionamento verdadeiro com Deus. E naquela mesma cena, vemos Deus procurando o
casal e chamando-o para restaurar o relacionamento. Isso é revelação. E, nesse caso, já
estamos falando de revelação especial, pois é um movimento de Deus em direção ao
homem, dando-se a conhecer, revelando seu plano redentor, com o objetivo de restaurá-
lo. A revelação especial é, tecnicamente, o ato divino pelo qual Deus se torna conhecido
de forma redentora ao homem decaído.6 A revelação especial, que deve ser distinguida
da revelação geral,7 concentra-se em descortinar o plano redentor de Deus. Adão antes da
queda recebeu revelação especial não redentora, mas após a queda, pode-se dizer que a
revelação especial de Deus é uma revelação com propósitos redentivos. Portanto, é
possível identificar a revelação especial com a Bíblia, pois a Bíblia é o registro da
revelação especial, sendo também, o próprio registro um ato de revelação.
Um aspecto importante da revelação especial é que ela é progressiva. O
que se quer dizer com isto é que tudo o que está escrito na Bíblia a respeito de Deus e de

defendido a Palavra de Deus das detrações e murmurações dos ímpios, isso não quer dizer que por isso
logramos imprimir no coração dos homens uma certeza tal qual exige a piedade” (Institutas, I,7,5).
6
Alguém poderia perguntar se houve revelação especial antes da queda, considerando que Deus
se revelou diretamente ao ser humano, falando com ele pessoalmente, e não apenas através das coisas
criadas. Porém, a revelação antes da Queda não precisa ser enquadrada nesses critérios “geral e especial”,
pois como ainda não havia pecado, tudo era revelação sobre Deus sem precisar ser revelação a respeito da
salvação.
7
Revelação Geral, que também é chamada de natural, diz respeito à revelação que Deus faz de si
mesmo e que pode ser vista na natureza, na maneira como Deus conduz a história (providência) e na própria
constituição do ser humano. O propósito desta revelação não é redentivo, mas demonstrar a glória de Deus
como criador (Ver Sl 19.1-6; Rm 1.18-32). A Escritura diz que os “céus proclamam a glória de Deus” (Sl
19.1), e que Deus revelou sua divindade e atributos através das coisas que foram criadas (Rm 1.20).
Portanto, a criação é a uma forma de Deus manifestar sua existência e sua glória para as pessoas. No entanto,
devemos observar que a Revelação Natural é sempre Sobrenatural no sentido que parte sempre
deliberadamente de Deus. Contudo, no nosso entendimento, essa revelação não recebeu o atributo de
revelar o modo como Deus salva os pecadores. Ela não foi proposta para isso, até porque, essa revelação é,
de certo modo, anterior à própria Queda. Ela funciona mais como um “alarme” divino feito para disparar
cada vez que as pessoas olham para a criação, e se admiram dela, e pensam que essa grande obra de arte
precisa ter um “artista” por trás. Mas, esse alarme também dispara quando o homem olha para o desenrolar
dos fatos na história e se questiona sobre se alguém está no controle de tudo isso. Até mesmo quando o
homem questiona Deus por não entender os motivos dele em permitir o mal, as tragédias e todo o
sofrimento, ainda assim, o alarme está soando, pois mesmo que isso leve alguém a questionar Deus, ou até
mesmo duvidar da existência dele, ainda assim, está pensando a respeito de Deus. Contudo, o soar mais
forte desse alarme acontece quando o ser humano olha para si mesmo, e vê a complexidade de sua própria
existência, e percebe que, lá no fundo de seu ser, há uma consciência, como diz Paulo, “acusando-o ou
defendendo-o” (Rm 2.15), ou seja, a voz interior que sempre está clamando “Deus existe”. Essa voz interior
é o que o insensato tenta abafar quando “prega” para seu próprio coração: “não há Deus” (Sl 14.1)
todas as coisas, não foi revelado e registrado em um único momento, mas, foi revelado e
registrado progressivamente. Deus usou diversas pessoas em diversas épocas para
registrar o que está na Bíblia, pois ele não revelou tudo de si de uma única vez apenas.
De certa forma, Gênesis 1.1 é o resumo de toda a Bíblia, pois contém embrionariamente
tudo o que foi explanado depois, mas, Deus não revelou tudo de uma única vez. Ao longo
da história, Deus foi oferecendo cada vez mais conhecimento de si mesmo aos homens,
e esse conhecimento foi sendo registrado na Escritura, de maneira aplicada a cada época
e geração.8 Portanto, conhecemos melhor a Deus quando vamos compreendendo o
progresso da sua revelação ao longo da história bíblica. Disto decorre que é preciso
entender o significado como um todo, em toda a Escritura, entendendo que muitas coisas
que não estão claras a princípio, serão esclarecidas depois. Isso pode ser visto nas várias
ministrações da Aliança divina, que embora seja uma só, foi renovada em momentos
subsequentes, e elementos novos foram acrescentados, que revelaram mais do caráter
divino e de seu plano redentor. Uma única cena antiga, digamos, no livro de Gênesis, ou
em Deuterônomio, por certo, nos revela muito a respeito de Deus, mas não nos revela
tudo a respeito dele. Precisaremos continuar folheando a Escritura até o fim se quisermos
entender melhor quem é Deus. O mesmo pode ser dito a respeito de todos os demais
“personagens” bíblicos, incluindo o próprio diabo. Se alguém lesse apenas o capítulo 3
de Gênesis, não poderia chegar a uma conclusão absoluta de que a serpente tem alguma
relação com o diabo, pois o texto não menciona o diabo em momento algum. Na verdade,
explicitamente, em nenhum lugar do Antigo Testamento existe alguma menção que
relacione a serpente com o diabo. Curiosamente, só quando chegamos ao último livro da
Bíblia, o Apocalipse, é que temos essa “dúvida” completamente sanada, pois
explicitamente o livro identifica Satanás, com “nome e sobrenome”, como sendo “a antiga
serpente que se chama diabo e Satanás” (Ap 12.9). A revelação bíblica é progressiva.

8
Gerhardus Vos Vos conceituou a revelação como sendo “histórica, progressiva, orgânica e
adaptável”. Histórica porque se deu num dado momento histórico onde aconteceu o evento redentivo.
Progressiva porque nem tudo foi revelado de uma só vez. Orgânica porque o conhecimento da redenção foi
suficiente em cada estágio de desenvolvimento. E Adaptável porque “tudo o que Deus auto-revelou veio
como resposta às necessidades religiosas práticas de seu povo na medida em que estas iam surgindo no
decorrer da história” (Geerhardus Vos. Biblical Theology, p. 17).
2. FORMAS DE REVELAÇÃO
O autor aos Hebreus diz: “Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e
de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou pelo Filho, a
quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo” (Hb 1.1-
2). O autor, nessa passagem, pretende mostrar como, em Cristo, toda a revelação divina
chegou ao ápice, pois Jesus “é o resplendor da glória e a expressão exata do seu Ser” (Hb
1.3). Contudo, até que essa perfeição revelacional se manifestasse, Deus não estava em
silêncio, ele estava falando “muitas vezes e de muitas maneiras” aos pais pelos profestas.
E, antes mesmo que os profetas aparecessem, Deus já estava falando com os homens.
Primeiramente, Deus falou através de aparições diretas dele, as quais chamamos de
“teofania”.

Revelação por Teofania


Teofania, que literalmente significa “manifestação de Deus”, refere-se às
aparições de Deus, bem como as demonstrações fantásticas de seu poder em certos
momentos históricos antigos. A teofania foi predominante da criação até o período
mosaico. Deus se manifestou a homens como Adão (Gn 2.15-17, 22-23; 3.8), Abraão (Gn
12.2; 28.13), e especialmente a Moisés, tomando alguma forma visível. A Bíblia afirma
que após Moisés esta não seria mais a forma “oficial” de Revelação (Dt 34.10), sendo
que, a partir daí, a forma “oficial” se tornou a profecia, mesmo que alguns homens do
Antigo Testamento ainda continuaram recebendo Teofanias, como Elias, por exemplo. A
característica principal da teofania é o apelo ao físico, ao sensitivo. Deus tomava a forma
de um anjo, ou de um homem e podia ser visto, ouvido, e até tocado. Evidentemente que
aquelas eram formas temporárias, assumidas por Deus para se comunicar com o ser
humano.
Uma pergunta difícil de responder nesse sentido é: qual pessoa da trindade
aparecia quando uma teofania acontecia? Nossa resposta é que, provavelmente, todas as
vezes que Deus apareceu, foi a segunda pessoa que se manifestou com o intuito de revelar
o Pai. Deduzimos isso por causa da passagem de João 1.18: “Ninguém jamais viu a Deus;
o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou”. É função trinitária do Filho
revelar a Deus (ver sobre a Trindade no capítulo 4). Quando um dos discípulos de Jesus,
chamado Filipe, fez o pedido para que Jesus mostrasse o Pai, ele respondeu: “Filipe, há
tanto tempo estou convosco, e não me tens conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai;
como dizes tu: Mostra-nos o Pai?” (Jo 14.9). Disso entendemos que o Senhor Jesus
mostrou que o único modo de ver o Pai e vendo a ele próprio. Assim sendo, foi a segunda
pessoa que se manifestou no Antigo Testamento, e ao fazer isso, o Pai foi visto também. 9

Revelação por Profecia


A partir de Moisés, Deus passou a usar mais amplamente uma nova forma
de revelação. Ele começou a se revelar através de Profecia (Nm 12.6-8). A revelação por
profecia é uma forma mais indireta de revelação. O profeta recebia algo de Deus, porém
em forma de sonho ou visão. Era responsabilidade do profeta transmitir ao povo aquilo
que viu no sonho ou na visão. Como sempre havia risco de falsificação, Deus estabeleceu

9
Em João 12.40-41, o Evangelho diz que Isaías viu a glória de Jesus e falou a respeito dele. A
citação do verso 40 é tirada diretamente do capítulo 6 de Isaías, o capítulo que relata a visão celestial do
profeta: “No ano da morte do rei Uzias, eu vi o Senhor assentado sobre um alto e sublime trono” (Is 6.1).
testes para confirmar o profeta e a profecia. Eram basicamente dois testes, o da veracidade
do fato profetizado (Dt 18.20-22) e o da conformidade com a Palavra Escrita (Dt 13.1-5).
O tempo predominante dos profetas se estende desde a morte de Moisés
até João Batista (Mt 11.13). A função básica do Profeta era ser um porta-voz de Deus.
Por isso, usualmente o profeta começava sua mensagem com a seguinte sentença: “Assim
diz o Senhor...”. Isso indica que o próprio Deus colocava suas palavras na boca dos
profetas (Jr 1.7; Is 51.14; Ex 4.10-12; Dt 18.18). Um detalhe que não pode ser olvidado
é o caráter orgânico da recepção e da entrega da mensagem profética. Os profetas não
falavam em transe, mas usavam seus recursos, qualidades e talentos para transmitir a
mensagem de Deus. A mensagem era, de certo modo, acomodada à personalidade do
profeta.

Revelação na pessoa do Filho


Jesus Cristo é o clímax de toda revelação de Deus (Hb 1.1-2). Nada antes
ou depois dele fala mais, ou melhor, do que ele sobre Deus. Aqui, também podemos ver
o caráter progressivo da revelação divina. Cristo é a expressão máxima do Ser de Deus.
Ele é o próprio Emanuel, o Deus conosco. Ele é o Deus manifestado na carne, pois nele
habita toda a plenitude da divindade (Cl 2.9). Jesus não é uma teofania nos moldes do
Antigo Testamento, pois não é uma manifestação temporária de Deus. Ele é a
manifestação plena e eterna de Deus, é o Deus conosco. Ele é e para sempre será o Deus-
homem. Na pessoa de Jesus estava o ápice da revelação. Ele próprio costumava dizer:
“Quem me vê a mim vê o Pai” (Jo 14.9). Entretanto, só em algumas ocasiões ele se
descortinou mais amplamente aos olhos humanos (Lc 9.29). Durante todo o seu
ministério terreno permaneceu esvaziado de algumas de suas prerrogativas divinas (Jo
17.5; Fp 2.5-8), carregando com alegria o fardo dos homens e se submetendo a uma vida
de servidão. Mas seus milagres, suas palavras, e especialmente sua presença foram a
maior demonstração de Deus para o mundo. E sua morte na cruz foi a grande prova do
amor desse Deus (Rm 5.8).
Sendo Jesus o ápice de toda a revelação especial, sendo ele também o
instrumento de toda essa revelação, conclui-se que a revelação especial é essencialmente
a respeito dele. Nesse sentido, tudo o que foi registrado no Antigo Testamento revelava
progressivamente o Cristo vindouro. E tudo o que foi escrito no Novo Testamento revela
o Cristo que já veio e que ainda voltará.
3. INSPIRAÇÃO: O REGISTRO DA REVELAÇÃO10
Deus se revelou de muitas formas, como diz a Bíblia, porém, houve um
processo pelo qual esta revelação foi registrada, ou seja, escrita e preservada nas páginas
da Escritura Sagrada.
Na revelação de Deus, por vezes, há o momento do ato propriamente dito
em que Deus revelou algo de si mesmo. Esse ato é uma tarefa exclusiva de Deus. A
inspiração é o momento de registrar essa revelação. O registro é uma tarefa divina e
humana. Inspiração é a influência divina sobre os escritores da Bíblia a fim de preservá-
los de erros, e para que registrassem com toda a fidelidade os eventos revelatórios de
Deus e mesmo os presenciados pelos escritores (Boa parte dos Evangelhos e de Atos, por
exemplo).
Em alguns casos, como nos salmos ou nas epístolas, o ato da revelação
coincidiu com a escrituração, pois, quando o salmista ou o apóstolo meditava sobre algum
assunto, tomava a pena para escrever e acontecia simultaneamente a revelação e o
registro. Mas em outros casos, houve momentos de intervalo entre o ato divino da
revelação e sua escrituração, como por exemplo, quando o profeta recebia a visão, e
somente a registrava posteriormente. De qualquer forma, todo o processo, desde o ato
revelatório até o momento da escrituração é revelação de Deus. A inspiração não é uma
atividade à parte da revelação. Fazemos essa distinção nesse trabalho apenas para
entender os dois momentos, que as vezes aconteceram juntos e as vezes foram separados.

Fatores que contribuíram para o registro


No ato de registrar a revelação é perfeitamente possível que alguns fatores
tenham contribuído. Porém, isso não anula, nem torna desnecessária a atuação divina. Os
principais fatores que contribuíram para o registro da revelação, especialmente nos
registros posteriores aos eventos, foram a tradição oral e a tradição escrita.
A tradição oral foi muitas vezes uma intermediária entre os eventos antigos
e o registro inspirado. A tradição oral pode ter tido um papel importante antes da invenção
da escrita. Histórias que passavam de pai para filho podiam conduzir às gerações
subsequentes os momentos importantes da revelação de Deus. É provável que Adão tenha
transmitido informações que havia recebido diretamente de Deus a seus filhos, e esses às
gerações seguintes. Desta forma os conhecimentos a respeito do Jardim do Éden, da
expulsão do Jardim, da torre de Babel, do Dilúvio, foram transmitidos de pai para filho,
e provavelmente assim chegaram até Moisés, que escreveu o Pentateuco (Js 4.6, 21). Isto
explicaria, inclusive, o fato de haver certos relatos antigos em outras culturas primitivas,
que se parecem com os relatos bíblicos da criação e do dilúvio. É importante, porém, que
seja notado que estas tradições podem muitas vezes ter sido danificadas ao longo da
história. De qualquer modo, não significa que Moisés e os outros escritores bíblicos
fizeram seus registros sobre a base exclusiva destas tradições. É possível que as tradições
tenham colaborado, mas foi a inspiração divina que garantiu que fosse registrada a pura
e exclusiva verdade divina.
Quanto à tradição escrita, sabe-se que há muitos escritos antigos que não são
bíblicos, mas que eram tidos em grande consideração, e por certo, continham dados
históricos bastante precisos. Estes livros podem ter sido usados como ajuda no processo
de registro da Escritura. São exemplos bem claros disto os seguintes livros: O Livro das
Guerras do SENHOR (Nm 21.14). O Livro dos Justos (Js 10.13; 2Sm 1.18). O Livro das

10
Para uma excelente exposição sobre Inspiração e Inerrância da Bíblia ver: Hermisten Maia
Pereira da Costa. A Inspiração e Inerrância das Escrituras. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998.
Crônicas de Samuel, o vidente; Natã, o vidente; e Gade, o vidente (1Cr 29.29). O Livro
da História de Salomão (1Rs 11.41). O Livro da História de Semaías, o profeta e de Ido,
o vidente (2Cr 12.15). Todos esses livros se perderam, e nenhum mais existe, porém,
foram úteis no registro da revelação de Deus. Não quer dizer que essas fontes escritas
fossem inspiradas por Deus, mas podiam conter verdades que, quando foram trazidas
também para o texto sagrado, tornaram-se verdades inspiradas. Por exemplo, é possível
que escritores do Novo Testamento como Pedro e Judas tenham citado ou feito menções
a histórias registradas em textos apócrifos ou pseudepígrafos (escritos que reivindicam
autoria de personagens do passado). Um exemplo disso é o provável uso que Judas faz de
tradições escritas num antigo livro chamado de 1Enoque, 11 o qual possivelmente foi
escrito no segundo século antes de Cristo, não sendo, portanto, escrito por Enoque. Se
alguma tradição, por exemplo, sobre o pecado dos anjos foi preservada e chegou até esses
escritos apócrifos e, posteriormente, incorporada no texto canônico, isso não faz do texto
apócrifo ou pseudefígrafo algo inteiramente verdadeiro e, muito menos, inspirado.
Significa apenas que pode haver verdade de Deus em lugares distintos. Quando Paulo
citou poetas pagãos em seu discurso em Atenas e em suas cartas (At 17.28; Tt 1.12), ou
fez uma possível alusão ao midraxe rabínico sobre a Rocha em 1Coríntios 10.4, ele não
estava citando esses autores como Escritura ou como inspirados.
Um excelente exemplo do uso de tradições escritas e orais para o registro
da revelação de Deus vem do Novo Testamento, para ser mais preciso, dos escritos de
Lucas. Ele escreve: “Visto que muitos houve que empreenderam uma narração
coordenada dos fatos que entre nós se realizaram, conforme nos transmitiram os que
desde o princípio foram deles testemunhas oculares e ministros da palavra, igualmente a
mim me pareceu bem, depois de acurada investigação de tudo desde sua origem, dar-te
por escrito, excelentíssimo Teófilo, uma exposição em ordem, para que tenhas plena
certeza das verdades em que foste instruído” (Lc 1.1-4). Lucas diz claramente que tinha
conhecimento de outros escritos que relatavam a vida de Jesus, e que fez uma longa e
acurada pesquisa histórica para relatar os fatos. Isso em hipótese alguma tornou
desnecessária a inspiração, porém, transparece no texto, pois de fato, Lucas é o que tem
mais detalhes da vida de Jesus, especialmente de seu nascimento e infância. Ou seja, há
boas razões para concluir que além dos Evangelhos canônicos (Mateus e Marcos), Lucas
tenha consultado outros escritos da época que registraram aspectos da vida de Jesus,12 e,
quem sabe, entrevistou pessoas e testemunhas oculares da época que preservaram
11
Parece que Judas utilizou também o livro “Assunção de Moisés” (v. 9), e possivelmente também
do “Testamento de Naftali” (v. 6), e do “Testamento de Aser” (v. 8). No verso 15 Judas cita Enoque 1.9
quase que palavra por palavra. A expressão “o sétimo depois de Adão” aplicada a Enoque está em 1Enoque
40.8. Ainda assim, é preciso entender que a inspiração de Judas exige que ele esteja dizendo a verdade, ou
seja, que o sétimo depois de Adão, o verdadeiro Enoque, profetizou o que se encontra no verso 15. Por
outro lado, se essa mesma profecia se encontra no texto pseudepígrafo de 1En 1.9, então é preciso concluir
que a profecia verdadeira que foi preservada ao longo da história (talvez por tradição oral) chegou antes a
tradição apocalíptica escrita do livro de 1Enoque e posteriormente ao texto de Judas.
12
Cerca de 93% de tudo que se encontra no Evangelho de Marcos pode ser encontrado nos outros
três Evangelhos. Na verdade, apenas cerca de trinta versos são exclusivos em Marcos. Isso parece apontar
que Mateus e Lucas fizeram uso de Marcos. Por outro lado, uma parcela considerável de ensinos registrados
igualmente em Mateus e Lucas não estão em Marcos. De onde eles tiraram esses ensinos? Um
desenvolvimento recente sugere que, desde que Mateus e Lucas são normalmente encontrados em
concordância com Marcos, e desde que muito material de Marcos é encontrado em Mateus e Lucas, Marcos
pode ter sido escrito primeiro e usado por Mateus e Lucas. Mas desde que Mateus e Lucas têm considerável
material em comum não encontrado em Marcos, eles precisam ter bebido de uma segunda fonte primitiva,
a qual foi chamada de fonte “Q” (no alemão, quelle significa fonte, por isso a inicial “Q”). Até hoje, essa
teoria permanece como a mais aceita entre os eruditos. Contudo, precisa ser dito que permanece como uma
teoria, sem comprovação definitiva. Essa teoria está exposta em T. W. Manson. O Ensino de Jesus. São
Paulo: Aste, 1965, p. 41-61.
oralmente aquelas tradições. Contudo, foi a inspiração do Espírito Santo que garantiu que
a verdade divina fosse registrada em seu Evangelho.

O Processo de Seleção
Nem toda a revelação de Deus foi registrada. Deus superintendeu a todo
um processo de seleção, para que fosse guardado para a posteridade aquilo que Deus
julgou mais importante. Grandes porções do que pode ter sido revelação divina se
perderam ao longo da história. Possivelmente fossem revelações apropriadas para uma
determinada época, mas que Deus não julgou relevantes para a posteridade, assim não
passaram pelo processo de inspiração (1R 4.32; Nm 11.26-29; Jr 36.1-3, 27-28; Jo 20.30-
31; 21.25). Até mesmo, pelo menos duas das cartas do Apóstolo Paulo se perderam. Ele
diz ter escrito uma carta anterior aos Coríntios (1Co 5.9) e outra para a igreja de Laodicéia
(Cl 4.16).13 Possivelmente fossem aplicáveis apenas para a situação daquelas igrejas, ou
quem sabe, muito semelhantes com outras cartas de Paulo. O fato é que não temos como
saber o porquê de o Espírito não ter preservado essas cartas para a posteridade. Só
podemos dizer que Deus, em seu processo de seleção, não julgou que elas deveriam ser
preservadas, bem como muitas outras revelações que não chegaram até nós.

Evidência Bíblica da Inspiração


As principais evidências da inspiração da Bíblia são internas, ou seja,
provêm da própria Bíblia. A Bíblia reclama para si a Inspiração Divina: “Toda a Escritura
é inspirada por Deus” (2Tm 3.16), disse o Apóstolo Paulo. Pedro diz com relação aos
escritores bíblicos: “Homens santos de Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo” (2Pe
1.21). Os escritores do Antigo Testamento tinham a convicção de que escreviam a Palavra
de Deus (Dt 4.2; Am 3.7). O Novo Testamento reconhece claramente a autoridade divina
do Antigo Testamento em todas as citações que faz dele, e na consciência de Inspiração
de seus próprios autores (Jo 20.30-31; At 4.25; 7.37-38; 28.25-26; 1Co 2.13; 7.10, 12, 17,
40; 2Co 13.13; Gl 3.8; 1Ts 2.13; 2Tm 3.16-17; Hb 1.1; Tg 4.5; 1Pe 1.12; 2Pe 1.19-21).
Jesus deu testemunho de que a Escritura do Antigo Testamento era a Palavra de Deus (Mt
5.17-20; Jo 10.33-36; Mt 10.19-20; Jo 16.7,13). Além disto, os escritores do Novo
Testamento demonstram ter consciência da inspiração dos outros escritores do Novo
Testamento (1Tm 5.18/Lc 10.7; 2Pe 3.16).
Há igualmente evidências externas da inspiração da Bíblia. Muitos
argumentos podem ser usados em favor da inspiração da Bíblia. Por exemplo, a
credibilidade da Bíblia. Suas histórias têm sido comprovadas cientificamente como
verdadeiras. As descobertas arqueológicas não conseguem provar que a Bíblia esteja
errada, ao contrário a confirmam. A sobriedade das Escrituras é outro argumento em favor
de sua Inspiração. Apesar de ser um livro tão antigo, está completamente livre de
absurdos. Todos os livros religiosos antigos dos chineses, dos árabes, dos persas, dos
hindus, dos gregos, etc., estão cheios de superstições e erros históricos, geográficos e
científicos. A Bíblia, porém, não afirma absurdos sobre o sol, a terra, ou as estrelas como
aqueles livros ensinam, ao contrário ensina coisas bem precisas (Jó 26.7; Sl 135.7; Ec

13
No caso da carta de Laodiceia, existe alguma possibilidade de que seja a mesma carta de
Filemon. Este seria um senhor de Laodiceia, e em sua casa havia uma igreja (outra igreja poderia haver na
casa de Ninfa), e Árquipo se tornou o ministro responsável em Laodiceia e Colossos após a prisão de
Epafras, pois ele é mencionado tanto na carta aos Colossenses, como em Filemom 1. Provavelmente, não
estava fazendo um bom ministério, exatamente por isso Paulo manda uma repreensão para ele através da
igreja. Portanto, a carta aos laodicenses na verdade pode ter sido a carta à Filemom. Ao enviar Tíquico e
Onésimo, talvez Paulo desejasse que os dois assumissem o trabalho evangelístico. Especialmente Onésimo
em Laodiceia, onde vivia seu senhor Filemom.
1.7; Is 40.22). O mesmo deve ser falado de sua coerência e unidade. É difícil imaginar
um livro escrito por mais de 40 autores diferentes num espaço de mais de 1500 anos, que
conta uma história homogênea, com começo, meio e fim. A Bíblia é este livro. Porém,
como já dissemos, o que garante em última instância que a Bíblia é a Palavra de Deus é
o testemunho interno do Espírito Santo.

Inspiração orgânica
Dissemos até aqui que a Inspiração é uma obra divina que conta com a
participação humana. Uma das coisas mais difíceis de explicar é justamente esse
relacionamento entre o aspecto divino e o aspecto humano na inspiração. Qual é a função
de cada parte?
O apóstolo Paulo chama a Escritura em 2Tm 3.15 de “as sagradas letras”,
e diz que “toda a Escritura é inspirada por Deus” (2Tm 3.16). Existe um grande esforço
em muitos estudiosos antigos e modernos de “desvincular" a Palavra de Deus da Bíblia
em si mesma. Lembramos aqui do velho slogan do Liberalismo Teológico: a Bíblia é o
registro das experiências religiosas de um antigo povo semítico ou seja, para o liberalismo
a Bíblia no máximo “contém" a palavra de Deus. Assim, tudo o que não pode ser aceito
pelo homem moderno na Escritura, basta recortar e descartar como simples mito. Mas,
podemos lembrar também do slogan geralmente associado à neo-ortodoxia: a Bíblia
torna-se a Palavra de Deus. Ou seja, é apenas um registro normal, até que, através de um
encontro existencial, ela subitamente “se torna a Palavra para mim”. Existe também a
concepção carismática de que “a letra mata”, portanto, não se deve estudar muito a Bíblia,
antes confiar nas revelações extraordinárias. Ou ideias que dizem que Jesus é a chave
hermenêutica da Bíblia, mas a frase é usada num sentido que “desvincula” Jesus do
próprio texto, abandonando o texto bíblico como obsoleto, ultrapassado ou culturalmente
tendencioso. O que todos eles têm em comum? Não aceitam que a “letra" seja “sacra”.
Mas é exatamente isso o que Paulo está dizendo: “sabes as sagradas letras”. 14 Por um
lado, ele está apontando para o aspecto instrumental dessa Palavra, o aspecto bem
material dela. São os pergaminhos do Antigo Testamento, e agora também, os do Novo
Testamento. Mas, evidentemente Paulo não está falando de tinta ou papel. Ele está
falando da Palavra de Deus que está registrada em papel através de tinta. Portanto, é
impossível desvincular a “Palavra de Deus” das “Sagradas Letras”. O motivo é simples:
esse é o único “testemunho" confiável que temos sobre Deus e sobre Jesus. Sem a
Escritura, nada sabemos sobre Jesus. Por isso, qual é a vantagem de tentar dissociar a
Escritura da Palavra de Deus?
Contudo como se deu a inspiração. O apóstolo Paulo diz que a Escritura é
“divinamente soprada”. É assim que o termo grego teopneustos (θεόπνευστος) pode ser
traduzido em 2Tm 2.16. É importante notar que Paulo não está dizendo que o “autor” foi
inspirado ou “soprado” por Deus, mas que a Escritura, a letra sagrada é que foi. O texto,
portanto, é inspirado, pois Deus o “soprou”, através do seu Espírito, o qual passou pelo
autor humano, e se estabeleceu no texto sagrado, nas “sagradas letras”.
Disso podemos auferir que não se tratou de um ditado mecânico. Ou seja,
Deus não ditou literalmente todas as palavras que foram registradas, como se ao homem
não coubesse qualquer participação emocional ou inteligente no registro da obra. O ser
humano não foi apenas um instrumento, praticamente inanimado, que Deus usou para
registrar sua Palavra. Uma das provas de que não foi assim é que, ao observamos a Bíblia,
vemos que ela não tem uma uniformidade literária. É difícil conciliar a ideia de ditado
divino com a percepção de que há aspectos variados e estilos pessoais na Bíblia. Se tudo

14
Em grego: ἱερὰ γράμματα οἶδας.
fosse “ditado” deveria haver uma uniformidade de estilo, o que não ocorre.
Porém, também podemos estabelecer que a inspiração não foi apenas uma
espécie de “elevação mental” dos autores. Isso seria praticamente o oposto da ideia de
inspiração mecânica ou ditado. Significaria que apenas os pensamentos dos autores foram
inspirados, mas que eles foram livres para registrar suas ideias, e nesse sentido, poderiam
ter cometido erros no ato de registrar. Uma inspiração mental advoga inspiração apenas
dos conceitos e não das palavras. É no liberalismo teológico que a ideia da Inspiração
Mental parece encontrar maior conformidade. Uma vez que os teólogos liberais têm
dificuldades em acreditar que Deus se revelou através de atos e principalmente de
palavras, pode ser mais fácil para aqueles liberais que ainda desejam preservar algo de
divino na Bíblia advogar que foi o autor quem teve uma espécie de “elevação” em seu
raciocínio, o qual desta forma pode ser considerado inspirado. Porém, esta ideia elimina
completamente a noção de uma ação direta do Espírito sobre os homens na produção dos
livros da Bíblia. O autor bíblico seria inspirado como qualquer outro autor pode ser na
composição de uma poesia ou de uma música. Desse modo, Deus não é o autor da Bíblia,
ele apenas é a fonte da vida dos autores bíblicos que falaram, com palavras imperfeitas,
aquilo que vem de Deus. No conceito mental de inspiração, a Bíblia está condicionada à
cultura de cada povo, e às vezes não passa do registro da experiência religiosa de um povo
numa determinada situação. Porém, pode haver momentos em que o escritor se elevou de
si mesmo e produziu algo que pode ser considerado divino. Neste sentido, as vezes se fala
em certos círculos liberais que somente algumas coisas na Bíblia seriam a “pura” Palavra,
e o resto seria palavra de homens. Daí o método “desrespeitoso” como abordam a Bíblia,
ainda que prefiram dizer “científico”, procurando aqui ou ali indicações de imprecisões
ou pistas que os remetam a outras situações históricas, que consideram mais importantes
e dignas de crédito do que aquilo que a Bíblia relata. Essa teoria não faz justiça ao que a
Bíblia representa para a fé cristã.
O melhor modo de entender o sentido em que a Bíblia é “inspirada” ou
“soprada” por Deus é considerar o aspecto orgânico do processo do registro das sagradas
letras. Chamamos isso de “inspiração orgânica”. Ela não diz que a Bíblia é
exclusivamente humana e nem exclusivamente divina, mas que é divina e humana ao
mesmo tempo. O Espírito Santo usou homens como organismos vivos e não como meros
registradores. Deus não ditou palavras para serem escritas, e nem simplesmente os
homens tiveram “elevações” que registraram. Deus agiu no ser humano usando todos os
recursos pessoais, superintendendo a todo o processo, de modo a garantir a veracidade
absoluta dos escritos. Assim, esses escritos podem ser considerados humanos, porque
foram produzidos por homens, e também divinos, porque foram dirigidos pelo Espírito
Santo. O Espírito usou um homem da corte como Isaías, um boiadeiro como Amós, um
músico como Davi, um sábio como Salomão, um general como Josué, um homem
formado na corte egípcia como Moisés, um pescador como Pedro, um erudito como
Paulo, um médico como Lucas ou um cobrador de impostos como Mateus. Em cada texto
escrito por eles, o estilo pode ser diferente um do outro, mas o resultado final é o mesmo.
O Espírito fez uso das faculdades humanas, adequando-as, para que o produto final,
embora contendo traços do perfil humano, fosse a exata expressão da vontade de Deus.
Deus usou os recursos humanos, como por exemplo, a capacidade de pesquisa, o
raciocínio, a arte ou a musicalidade de uma pessoa, mas, superintendeu a todo o processo
a fim de que Sua Vontade fosse expressamente revelada. Há uma idéia de cooperação,
pois Deus age no homem, dirigindo-o, controlando-o, capacitando-o, de tal forma que,
como Seu instrumento, ele fica acima de si mesmo, pois escreve algo que nunca
conseguiria sozinho, permanecendo debaixo da direção de Deus. Deus sopra sua Palavra
que passa através dos autores humanos, adquirindo vários aspectos da personalidade dos
autores. Como diz Calvino, a Palavra emanou diretamente da boca de Deus através dos
homens.15 Como quando a luz do sol passa pelos vidros coloridos de uma igreja,
adquirindo a tonalidade dos vidros, mas sem deixar de ser a luz do sol, assim Deus soprou
sua palavra através dos homens, de modo que ela adquiriu os tons humanos, porém, cada
um dos livros bíblicos, mesmo tendo sido escrito por autores diferentes, continua sendo
a mesma palavra de Deus. 16 O produto final é sua palavra inspirada e inerrante. Essa é a
concepção conservadora de Inspiração. Ela evita os extremos das ideias de ditado ou
elevação mental, e faz justiça ao ensino e ao caráter das Escrituras

15
Institutas, I,7,5.
16
Atribui-se a B. B. Warfield essa ilustração.
4. A ESCRITURA É CONFIÁVEL
Como já dissemos, o que nos assegura que a Bíblia é confiável é o autor
primário dela, o Espírito Santo, ao testificar em nossos corações que se trata da Palavra
de Deus. Nesse momento, precisamos entender um pouco mais os conceitos de
“inerrância” e “suficiência” da Escritura.

A Inerrância das Escrituras


Quando se fala que a Bíblia é inerrante, se quer dizer que em tudo o que a
Bíblia ensina, seja religioso, moral, social ou físico, ela é absolutamente verdadeira e livre
de erros (Sl 119.142, 160; Pv 30.5-6; Mt 5.17-20; Jo 10.34-35; 17.17). Não significa que
a Escritura diga toda a verdade sobre tudo o que ensina, mas que em tudo o que ensina
ela diz a verdade. Muitos defendem uma inerrância limitada (“Inspiração Parcial”). Desta
forma a Escritura seria infalível apenas em assuntos de fé e prática no que diz respeito à
salvação, e nos demais assuntos poderia ter falhas. Porém, como acreditar que ela possa
falar a verdade sobre um assunto e mentir sobre o outro? Além disso, dessa forma a base
histórica da salvação poderia ser retirada (2Tm 3.16; Sl 12.6; Sl 119.96; Rm 15.4).
A Escritura não tem “erros”. Porém, como o Apóstolo Paulo diz, ela foi
inspirada e escrita, sendo as sagradas letras que “que podem tornar-te sábio para a
salvação pela fé em Cristo Jesus” (2Tm 3.15). Ou seja, o objetivo primordial da Escritura
é nos dar o conhecimento da salvação através de Jesus. Sobre outros assuntos que, hoje
em dia, poderiam ser chamados de científicos ou filosóficos, a Escritura tem pouco a
falar. Tudo o que ela fala sobre esses assuntos é absolutamente verdadeiro, contudo, não
é exaustivo. A Escritura só é exaustiva no assunto relativo à revelação da salvação em
Cristo Jesus, o que envolve ter o conhecimento suficiente de quem é Deus, de quem nós
somos, do nosso estado de pecado, e de toda a obra salvífica realizada por Cristo.
Podemos dizer que seu ensino sobre os outros assuntos (exceto salvação) é “informal”,
“fenomenológico" e “resumido”. É “informal" porque não segue um padrão formal
científico, o que seria de fato anacrônico. É “fenomenológico" porque descreve os
elementos a partir do observador, levando em conta a capacidade de descrição tanto de
quem a redigiu, quanto de quen a recebia. 17 É “resumido”, pois basta perceber que temos
onze capítulos no início do Gênesis para contar uma história que cobre um longo período
de tempo (criação e desenvolvimento dos seres humanos na terra), e trinta e nove
capítulos para relatar a história soteriológica de uma família em quatro gerações (Abraão
- Isaque - Jacó - Judá (José).
A inspiração da Bíblia não exige que ela use linguagem científica em suas
afirmações, como dissemos, sua linguagem é fenomenológica. A linguagem da Bíblia é
a linguagem do homem comum. Neste sentido a Bíblia diz que o Sol gira ao redor da
terra, que o vento sopra, e outras afirmações fenomenológicas, ou seja, que podem ser

17
Calvino não tinha dificuldades em entender que certos termos utilizados na Bíblia foram
acomodados para a compreensão de um povo que era, segundo suas palavras, rude, ignorante e imperfeito
(Ver comentários de Calvino em Dt 22.23, Ex 24.9, Ex 33.21, Dt 30.1). Para Calvino, quando Deus fala
através do Evangelho, “ele se acomoda à nossa capacidade” (Calvino, Primeira Coríntios, p. 82, 1Co 2.7).
Isso está conectado ao conceito de inspiração advogado por Calvino. Calvino desenvolveu, no século 16,
uma teoria sofisticada sobre a natureza e a função da linguagem humana. Nas Escrituras, segundo Calvino,
Deus se revela por meio de palavras. Essas palavras humanas conseguem falar algo sobre Deus, mas são
limitadas. Aqui está uma das grandes contribuições de Calvino para o pensamento cristão: o princípio da
acomodação. Ou seja, a palavra divina adapta-se ou acomoda-se à capacidade humana, para suprir as
necessidades da situação. (Ver A. D. R. Polmann “Calvino y la inspiración de la Escritura”, in Juan Calvino
Profeta Contemporâneo, org. J. T. Hoogstra. Barcelona: Editorial Clie, 1974.)
vistas da perspectiva comum. Deve ser entendido que a Bíblia não pretende ser um
compêndio de química, física ou geografia, e, portanto, ela não tem a necessidade de se
apegar às linguagens próprias destas ciências.
Inerrância também não exige uma estrita conformidade com as regras da
gramática. Nos escritos dos melhores escritores se permite “errar” em troca da
comunicação. O próprio uso de figuras de linguagem como hipérbole (exageros),
sinédoque (o menor pelo maior) e metonímia (um nome por outro) não comprometem a
doutrina da inerrância. No contexto da inerrância, os gêneros literários da Bíblia, como o
poético ou o apocalíptico, precisam ser entendidos a partir de suas peculiaridades. As
imagens fabulosas e fantasiosas são condicionadas ao seu próprio gênero, e devem ser
consideradas a partir de sua interpretação, e não da perspectiva literal. O fato de a Bíblia
não dar explicações científicas completas sobre geografia ou geologia não implica em
que haja alguma imprecisão. Seria impreciso se as informações fossem falsas, mas se são
limitadas, ainda assim são verdadeiras.
O conceito de narrativa histórica bíblica é acima de tudo um conceito de
narrativa teológica. Ou seja, os autores podem ter selecionado os momentos históricos
para defender seu ponto de vista teológico. O que se vê não é a preocupação com uma
narrativa estritamente cronológica. Percebemos, por exemplo, a seleção do material nos
Evangelhos. João selecionou sete milagres realizados por Jesus, não necessariamente em
ordem cronológica e muito menos exaustivo, pois ele próprio diz: “Na verdade, fez Jesus
diante dos discípulos muitos outros sinais que não estão escritos neste livro. Estes, porém,
foram registrados para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que,
crendo, tenhais vida em seu nome” (Jo 20.30–31). Assim, cada Evangelista organizou seu
material, registrando as coisas que de fato aconteceram, mas sem rigor cronológico. Um
exemplo simples pode ajudar: na narrativa da tentação de Cristo, que é deixada de lado
por João, Marcos tem apenas uma frase “E logo o Espírito o impeliu para o deserto, onde
permaneceu quarenta dias, sendo tentado por Satanás; estava com as feras, mas os anjos
o serviam” (Mc 1.12–13). Contudo, Mateus e Lucas registram três investidas do diabo
contra Jesus, mas não na mesma ordem. A ordem em Mateus é: deserto, pináculo do
templo, monte muito alto (Mt 4.1-11). A ordem de Lucas é: deserto, monte muito alto,
pináculo do templo (Lc 4.1-13). A inversão não deve ser vista como imprecisão, uma vez
que os próprios evangelistas conheciam as obras uns dos outros, mas como um propósito
teológico de evidenciar uma verdade específica. Mateus, provavelmente, quis dar ênfase
ao teste a respeito dos reinos do mundo, enquanto Lucas quis enfatizar o aspecto
relacionado ao templo e à religião judaica.
Nem mesmo as citações imprecisas da Escritura do Antigo Testamento no
Novo Testamento podem ser consideradas como erros. Quando se citava o Antigo
Testamento era necessário fazer uma tradução, e toda tradução envolve muitas variantes.
Além disso, citações livres sempre fizeram parte da produção literária antiga. Do mesmo
modo não precisamos esperar na Escritura que as palavras de Jesus, conforme foram
registradas pelos evangelistas, contenham a ipsissima verba (palavras exatas), mas a
ipsissima vox (voz exata). Ou seja, o que importa é o significado preciso e não
necessariamente as palavras exatas. Os Apóstolos registraram fielmente o que Jesus
ensinou, mas precisa ser lembrado que muitas palavras de Jesus foram ditas em aramaico
e os Evangelhos foram escritos em grego, portanto, sempre houve necessidade de
adaptações. Do mesmo modo, as palavras de Pedro, de Paulo, ou dos demais apóstolos
quando foram registradas por Lucas, por exemplo, não foram necessariamente citações
literais de seus sermões, pois é compreensível que Lucas tenha feito resumos dessas
preleções, mas que representam perfeitamente o significado pretendido pelos Apóstolos.
Inerrância igualmente não exige um grau de exatidão nos números.
Quando se diz que 5000 pessoas estavam num determinado evento, aponta-se um valor
aproximado, mas não há necessidade de que se conte uma por uma. Geralmente aponta-
se como erro o fato de um evangelista dizer que havia uma pessoa numa determinada
casa, enquanto o outro evangelista diz que havia duas. Muitas coisas poderiam explicar
essa aparente divergência. Os dois poderiam não ter contado as pessoas no mesmo
momento. Cada um registrou o que viu no determinado momento em que viu, o que não
implica necessariamente num erro.
Finalmente deve ser entendido que a inerrância se refere apenas aos
18
autógrafos . Quanto ao argumento de que, se somente eram inerrantes os autógrafos
originais, e nenhum deles existe mais, falar em inerrância não tem muito sentido,
respondemos que, de fato não temos mais os originais, porém, pelo estudo que se chega
da comparação entre todas as cópias (variantes), pode se concluir que em 99% de tudo o
que as cópias tratam, elas concordam, e nenhum caso sério de doutrina se veria afetado
pelas variantes. Além do mais, se o Espírito Santo inspirou os escritos, não poderia
preservar com fidelidade o que estava escrito neles? Podemos concluir que, apesar de
todos os seus esforços, os críticos não têm conseguido provar que a Bíblia contenha erros.

A Suficiência das Escrituras


O conceito da suficiência das Escrituras deriva obviamente de sua
inspiração. Se somente as sagradas letras são “divinamente sopradas”, então, nenhuma
outra fonte de autoridade pode ser equiparada à Escritura. Não há outra fonte onde o
cristão possa achar orientações infalíveis para sua vida. A tradição, embora considerada
na teologia, não pode ser comparada com a Escritura.
O Apóstolo Paulo diz é “divinamente soprada”, e acrescenta “e útil para o
ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o
homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra”. (2Tm 3.16–
17). Isso mostra que, nada além da Escritura é necessário para produzir ensino
(διδασκαλίαν), repreensão ou confronto (ἐλεγμόν), correção ou restauração
(ἐπανόρθωσιν) e o contínuo e disciplinar crescimento educativo na justiça (παιδείαν τὴν
ἐν δικαιοσύνῃ). Assim, a Escritura é tudo o que alguém precisa para alcançar o nível mais
elevado de santidade e produtividade espiritual neste mundo. Desse modo perguntamos:
o que mais seria necessário? Para aqueles que, como o rico da parábola contada por Jesus,
esperam algum falar direto de Deus ou dos mortos, ou qualquer outra manifestação
“superior”, Jesus disse: “Eles têm Moisés e os Profetas; ouçam-nos” (Lc 16.29). E, se
alguém, como o homem condenado ainda insistir: “Não, pai Abraão; se alguém dentre os
mortos for ter com eles, arrepender-se-ão” (Lc 16.30), a resposta do Senhor é taxativa:
“Se não ouvem a Moisés e aos Profetas, tampouco se deixarão persuadir, ainda que
ressuscite alguém dentre os mortos” (Lc 16.31). Disso decorre que, se a Escritura não é
suficiente para alguém, nada mais será.
Uma pergunta que normalmente surge quando se pensa em suficiência das
Escrituras é: “Ainda há revelação divina hoje?”. Nossa posição exposta acima pelos
motivos estabelecidos é que não há mais revelações de Deus hoje, pois a Escritura é
suficiente. Entretanto, deve ser dito que a Revelação de Deus continua hoje. Deus se
revelou na criação, e essa criação continua apontando para Deus. A providência, que é a
continuação da criação, ou seja, a maneira como ele dirige a história e o mundo, também
o revela. Mas não quer dizer que há uma “nova” revelação de Deus. É a mesma revelação
dele desde o início, porém, sempre sendo percebida de formas diferentes. A Escritura
também é a mesma, mas cada vez que vamos até ela descobrimos coisas novas, em forma

18
Os autógrafos são os escritos originais. Aqueles que saíram da pena dos escritores.
de aplicações diferentes para nossa vida. Deus continua se revelando, portanto, através
da criação (revelação geral) e através da Escritura (revelação especial). Essa última é a
principal fonte de conhecimento, especialmente da salvação. O Espírito age no crente
quando ele medita na Palavra de Deus e o faz conhecer e compreender a vontade de Deus
através do processo de “renovação da mente” (Rm 12.1-2). Chamamos isso de
“iluminação espiritual”. Através da obra da iluminação a Escritura é esclarecida em nossa
mente e aplicada ao nosso coração, de modo que a compreendemos, desejamos praticá-
la, e, assim, nos aproximamos mais de Deus e nos tornamos mais úteis em sua obra.
Embora cada parte da Bíblia tenha sido escrita em uma determinada época,
ela nunca esteve limitada ao tempo. De fato, Deus se revelou no passado, mas a
mensagem continua significativa para as pessoas de hoje e de sempre. Deus é o mesmo e
sua Palavra também. A mesma denúncia do pecado e o mesmo chamado ao
arrependimento dirigido às pessoas dos tempos bíblicos vale para hoje. Embora tenha
havido muito progresso no mundo, as pessoas ainda são as mesmas e o pecado ainda é o
mesmo, pois continua dominando a sociedade. Da mesma forma as necessidades são as
mesmas bem como a solução, que é Cristo, o qual se revela através da Escritura.
Desde sua fundação, a Igreja Romana sustenta outra fonte de autoridade
em pé de igualdade com a Escritura: A tradição. O catolicismo entende que a igreja
originou a Bíblia e não a Bíblia originou a igreja, e, portanto, entre as duas, a igreja tem
a prioridade. Esta é a base para defender muitas doutrinas que foram criadas pelos
concílios, ainda que não tenham embasamento escriturístico. A Reforma disse não à teoria
da dupla autoridade. No pensamento Reformado, a Escritura tem a primazia. Esta questão
de outra fonte de autoridade continua sendo um problema nos dias atuais, mas não apenas
para Roma, como também para os evangélicos. E nem é preciso pensar em casos extremos
como o dos Mórmons, que sustentam outro livro como fonte de autoridade, pois o
subjetivismo evangélico coloca a autoridade no “Deus me falou”. As vezes quando
crentes conservadores dizem que nada além da Bíblia é necessário para o crescimento
espiritual, são taxados de “frios” e insensíveis à atuação do Espírito. Mas é a própria
Bíblia que afirma esta suficiência. Como vimos, Paulo escreveu a Timóteo: “Toda a
Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção,
para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente
habilitado para toda boa obra” (2Tm 3.16-17). Isso nos leva mais uma vez à conclusão de
que, tudo o que uma pessoa precisa para chegar ao nível espiritual máximo nesta vida,
pode ser encontrado na Escritura. Portanto, a Escritura é suficiente.
5. O CÂNON DAS ESCRITURAS
Cânon literalmente significa “medida”, “regra”, “norma” e refere-se à lista
de livros estabelecida para fazer parte da Escritura. Provavelmente seja uma palavra
derivada do hebraico keneh que significa “cana” ou “vara de medir”. Essa palavra tomou
um significado metafórico, sendo usado como “padrão”, “limite”, etc. Em 2Coríntios
10.13 Paulo diz que respeitava o limite da esfera de ação que Deus havia demarcado para
ele. Essa “esfera de ação” no grego é canonos (Cf. Gl 6.16). De qualquer modo, a palavra
Cânon passou a ter um sentido teológico de delimitação dos livros normativos. Os livros
canônicos são os livros inspirados.

A inspiração determina o cânon


Desde cedo na Igreja primitiva começou-se a ter dúvidas sobre a quais
escritos deveriam ser considerados normativos. Havia muitos escritos religiosos na época,
alguns abertamente heréticos, outros de autoria duvidosa. Mas, como saber quais livros
deveriam ser considerados canônicos?
A inspiração é a única garantia da canonicidade do texto. Essa é a grande
pressuposição dos crentes conservadores ao longo da história. Se cremos que a Escritura
é parte da revelação de Deus e, se cremos que ela é o grande compêndio da revelação
redentiva, então, para que cheguemos a um Cânon, necessariamente dependeremos da
inspiração divina. De acordo com Geisler/ Nix “a inspiração é meio pelo qual a Bíblia
recebeu sua autoridade: a canonização é o processo pelo qual a Bíblia recebeu sua
aceitação definitiva”. 19 Sendo a inspiração o registro da revelação que garante que o
resultado (material escrito) é absolutamente infalível e inerrante em todas as suas
asseverações, então, para que tenhamos um número limitado desses escritos, a inspiração
deverá ter a palavra final.
É verdade que muitos têm feito tentativas de achar base para o Cânon à
parte da inspiração. Argumentam, por exemplo, que a idade dos escritos determina sua
canonicidade. Entretanto, essa asseveração é perigosa, pois há muitos escritos de
comprovada antiguidade que não são considerados canônicos. Além disso “há evidências
de que os livros canônicos foram introduzidos no Cânon imediatamente, e não depois de
haverem envelhecido. É o caso dos livros de Moisés (Dt 31.24-26), de Jeremias (Dn 9.2)
e dos escritos do Novo Testamento produzidos por Paulo (2Pe 3.16)”.20 Outro argumento
usado é o de que a língua hebraica determina a canonicidade, porém, nem todos os
escritos do Antigo Testamento estão na língua hebraica. É o caso, por exemplo, de partes
de Daniel que foram escritas em aramaico. Por outro lado, muitos livros, que foram
escritos em hebraico, não podem ser considerados canônicos. Outro exemplo falho deste
tipo de tentativa é dizer que a conformidade com a Torah garante a canonicidade. Muitos
escritos antigos, embora estejam em harmonia com a Torah, jamais foram considerados
canônicos. Também não podemos dizer que o valor religioso do escrito garante sua
canonicidade, pois assim teríamos um Cânon bem maior, pois há muitos livros antigos de
reconhecido valor religioso, que não obstante, jamais foram incorporados ao Cânon.
Outro ponto que nos ajuda a entender o fato de que é a inspiração que
garante e determina a canonicidade do escrito refere-se a discussão sobre quem tem

19
Norman Geisler & William Nix, Introdução Bíblica, p. 61.
20
Ibidem, p. 64.
autoridade para designar a canonicidade de um livro. No catolicismo sempre foi a Igreja
quem teve essa prerrogativa. Dessa forma, ela mesma é quem garante o Cânon, pois cabe
a ela dizer se um livro é inspirado ou não. Assim, a base da autoridade do livro emana da
Igreja. No protestantismo, especialmente o reformado, a intepretação é bem diferente.
Não é a igreja quem determina se um escrito é canônico ou não, mas o próprio escrito. É
ele quem impõe a sua canonicidade e cabe à igreja tão somente reconhecer isso. É preciso
lembrar ainda que este reconhecimento por parte da Igreja é obra do Espírito Santo. O
Espírito Santo testifica em nosso íntimo que o escrito é Palavra de Deus, e dessa forma o
aceitamos definitivamente. Porém, é claro que mais conceitos são analisados, como
veremos a seguir.
Assim, não são fatores externos que determinam se um livro é canônico ou não,
pois “os livros da Bíblia não são considerados oriundos de Deus por se haver descoberto
neles algum valor (humano); são valiosos porque provieram de Deus — fonte de todo
bem”.21 É a inspiração que determina a canonicidade do Escrito Sagrado.

Os livros apócrifos
O Cânon do AT fechou-se em cerca de 435 a.C., e o último livro escrito
foi provavelmente Malaquias. Continuou-se a escrever a história do povo judeu em livros
como Macabeus, mas esses livros jamais foram aceitos pelos judeus como inspirados. Na
verdade, Israel tinha certeza de que desde os tempos de Malaquias não havia mais se
levantado profeta em Israel com condições de trazer uma mensagem normativa. O próprio
autor de 1Macabeus, escrito em 100 a.C., declara que todos estavam à espera de que
viesse “algum profeta e se pronunciasse a respeito” (1Mac 4.45-46) da terrível situação
da nação. Ele chegou a dizer que fazia muito tempo que não se levantava um profeta, pois
falou a respeito de um grande sofrimento “qual não tinha havido desde o dia em que não
mais aparecera um profeta no meio deles” (1Mac 9.27). Josefo, o maior historiador judeu
do período, que nasceu entre 37/38 d.C., disse que aqueles livros que continham a história
dos judeus depois de Artaxerxes não foram julgados dignos de crédito, porque não havia
mais sucessão profética. Os judeus não aceitavam os Apócrifos, pois criam que depois
dos últimos profetas Ageu, Zacarias e Malaquias, o Espírito Santo havia se afastado de
Israel.
Ainda devemos lembrar que não há qualquer citação do Novo Testamento com
relação aos livros Apócrifos,22 e não há registro de nenhuma divergência entre Jesus e os
judeus com relação a quais livros eram normativos.
A primeira vez que os Apócrifos apareceram na Bíblia dos judeus foi na
tradução grega chamada de Septuaginta, a qual começou a ser traduzida em Alexandria
cerca de três séculos antes de Cristo. Essa tradução incluiu vários dos apócrifos aceitos
posteriormente pela Igreja Católica e também outros livros não aceitos por ela (como 3 e
4 Macabeus).23

21
Ibidem, p. 65.
22
Judas 14-15 cita 1Enoque, mas não como Escritura. Não há uma declaração “assim diz a
Escritura”, ou “como está escrito”. Quanto aos apócrifos Tobias, Judite, acréscimos a Ester, Sabedoria de
Salomão, Eclesiástico, Baruque, 1 e 2 Macabeus, não há qualquer citação do Novo Testamento, que cita o
Antigo pelo menos 295 vezes.
23
Judeus alexandrinos podem ter escrito outros livros que também foram incluídos na biblioteca
judaica de Alexandria, como Primeiro e Segundo Esdras, adições a Ester, Sabedoria, e a Epístola de
Jeremias. O Códice Vaticano (B) omite Primeiro e Segundo Macabeus (canônicos para a Igreja Católica) e
inclui Primeiro Esdras (não canônico para a Igreja Católica). O Códice Sináitico (À) omite Baruque
No caso da Bíblia cristã, a primeira vez foi na tradução de Jerônimo
chamada Vulgata (404 d.C.), 24 entretanto Jerônimo havia colocado uma nota com relação
àqueles livros, dizendo que não eram inspirados, não sendo do “Cânon” e sim da “Igreja”
e que, somente como tal poderiam ser úteis e proveitosos.25 Mas a ampla divulgação da
Vulgata Latina assegurou o acesso àqueles livros.
Foi somente em 1546, no Concílio de Trento, que a Igreja Católica
Romana finalmente canonizou aqueles livros. O interesse desse Concílio era atacar a
Reforma de Lutero e Calvino e os apócrifos ofereciam material suficiente para atacar a
doutrina da salvação pela graça e preservar a oração pelos mortos. 26 Então, a aceitação
católica dos apócrifos foi muito mais por causa de um embate histórico e teológico.
Para resumir, podemos citar os motivos pelos quais, segundo Grudem, os
Apócrifos não devem ser aceitos: “1) eles não atribuem a si o mesmo tipo de autoridade
que têm os escritos do Antigo Testamento; 2) não foram considerados palavras de Deus
pelo povo judeu, do qual se originaram; 3) não foram considerados Escrituras por Jesus
nem pelos escritores do Novo Testamento; 4) contêm ensinos incoerentes com o restante
da Bíblia”.27

A formação do cânon do novo testamento


Os Escritos do Novo Testamento foram feitos sob a autoridade Apostólica.
A autoridade dos Apóstolos era equivalente à autoridade dos profetas do Antigo
Testamento (Cf. Jo 14.26; 16.13-14; At 5.3-4; 2Pe 3.2). Na verdade, temos base suficiente
para dizer que os Escritos Apostólicos eram reconhecidos como normativos logo de seu
“lançamento” (2Pe 3.16; 1Tm 5.17-18), tanto quanto falamos dos livros do Antigo
Testamento. Todos os livros do Novo Testamento foram escritos por Apóstolos ou
supervisionados por eles. Como já dissemos é a inspiração que impõe o reconhecimento
do livro, mas o caráter apostólico garante essa inspiração, pois os apóstolos foram
comissionados por Jesus para continuar a obra dele. Todos os 27 livros do Novo
Testamento são reconhecidamente inspirados. Há outros livros escritos por cristãos
piedosos da antiguidade que podem ser edificantes, ou historicamente importantes, mas
estão longe de ter o conteúdo dos livros canônicos e, muitos desses contêm heresias e
afirmações contraditórios.
Durante o Século I d.C., os livros apostólicos já desfrutavam de
reconhecida autoridade pela Igreja, mas foi somente no Século II que passou-se a ter uma
ideia de um Cânon do Novo Testamento. Sabemos que ainda no Século I d.C., muitos dos
escritos apostólicos já eram considerados normativos. E sabemos também que só no final
do Século IV d.C., é que o Cânon como o temos hoje foi definitivamente reconhecido.
Mas foi no segundo século que se começou a formar a ideia de um Cânon. Como declara
F. F. Bruce: “os primeiros passos no sentido da formação de um Cânon de livros cristãos

(canônico para Roma), mas inclui o quarto livro dos Macabeus (não canônico para Roma). O Códice
Alexandrino (A) inclui o Primeiro Livro de Esdras e o Terceiro e Quarto Livros dos Macabeus (apócrifos
para Roma). (Ver, Paulo Anglada, “O Canon Bíblico”. Disponível em:
http://www.monergismo.com/textos/bibliologia/canon_anglada.htm
24
A tradução copta chamada de Peshita, que foi traduzida antes, entre os séculos 1 e 3 não contém
os apócrifos.
25
Ver Gleason L. Archer Jr, Merece Confiança o Antigo Testamento?, 76.
26
Em 2Macabeus 12.38-45, há um sacrifício feito por Judas Macabeus em favor de alguns
soldados mortos em combate, que haviam sido descobertos como idólatras. Assim, o texto sugere uma
intercessão pós-morte.
27
Wayne Grudem, Teologia Sistemática, p. 32.
havidos como dotados de autoridade, dignos de figurar ao lado do Cânon do Antigo
Testamento, a Bíblia do Senhor Jesus e seus apóstolos, parecem haver sidos tomados por
volta do começo do segundo século, época em que há evidência da circulação de duas
coleções de escritos cristãos na Igreja”. 28
Havia muitos motivos no segundo século para a formação do Cânon. O
principal motivo era a necessidade de algo que pudesse ser considerado como norma para
discussões teológicas e como regra de fé e prática. Nesse sentido, até meados do segundo
século a tradição oral era praticamente dominante. A partir daí, os Evangelhos escritos
começaram a ocupar o lugar da tradição oral, dando muito maior precisão na proclamação
evangélica.
Outro motivo que levou à formação do Cânon foi o falso Cânon de
Marcião. Marcião, que era antissemita criou um Cânon particular composto do Evangelho
de Lucas e de dez cartas de Paulo, deixando fora as pastorais. Como resposta a Marcião,
a igreja precisava mostrar o verdadeiro Cânon. Também havia necessidade de um Cânon
por causa da prática de ler nas igrejas os escritos autorizados. Mas, como saber quais
escritos deveriam ser lidos se não houvesse uma indicação nesse sentido?

Em meados do segundo século já começavam a circular coleções inteiras


das cartas de Paulo e dos Evangelhos. Esse colecionamento mostra que esses escritos
eram considerados normativos para a Igreja. Como já dissemos, por si só os escritos
apostólicos já demonstravam sua autoridade canônica, mas o reconhecimento dos pais
apostólicos foi decisivo na formação do Cânon. Conforme Geisler/Nix “logo após a
primeira geração, passada a era apostólica, todos os livros do Novo Testamento haviam
sido citados como dotados de autoridade por algum pai da igreja”. 29 São essas citações,
datadas do primeiro e do segundo século, aliadas às listas e traduções do segundo século,
que constituem a grande base da formação do Cânon como o temos hoje.

O fechamento do canon

Em 367 d.C., Atanásio na Trigésima Nona Carta Pascal citou uma lista
com os exatos 27 livros do Novo Testamento, como o temos hoje. Em 397 d.C., o
Concílio de Cartago, concordou com essa lista e então, o Cânon foi considerado fechado.
Não há possibilidade de que novos escritos possam ser incluídos no Cânon. Um dos
motivos é que não há mais profetas ou apóstolos e outro é que não houve mais eventos
redentivos depois da Ascensão de Jesus.

A Confissão de Fé de Westminster coloca a questão da seguinte forma:


“foi o Senhor servido, em diversos tempos e diferentes modos, revelar-se e declarar à sua
Igreja aquela sua vontade; e depois, para melhor preservação e propagação da verdade,
para o mais seguro estabelecimento e conforto da Igreja contra a corrupção da carne e
malícia de Satanás e do mundo, foi igualmente servido fazê-la escrever toda. Isto torna a
Escritura Sagrada indispensável, tendo cessado aqueles antigos modos de Deus revelar a
sua vontade ao seu povo” (CFW, i,1).

28
F. F. Bruce. Merece Confiança o Novo Testamento? p. 31

29 Norman Geisler & William Nix. Introdução Bíblica. p. 105


Conclusão

Todas essas considerações devem levar o estudante de teologia a uma


atitude de reverência para com a Bíblia. Não podemos nos aproximar dela como juízes, e
sim como servos. Estudar a Escritura precisa ser fonte de vida devocional e
aprimoramento do relacionamento espiritual com Deus. O Deus das Escrituras é o Deus
que deseja estreitar o relacionamento da Aliança com o seu povo. Ele se revelou nessas
antigas páginas porque deseja que o conheçamos melhor, e para que o amemos com mais
intensidade. Ao estudarmos essas “sagradas letras”, podemos ter a certeza de que estamos
nos aprofundando em algo não apenas sagrado, mas confiável, e que pode aumentar a
nossa sabedoria e o nosso vigor espiritual.

Você também pode gostar