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Wellington Melo
Apresentação
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dedicar-se à poesia em si, de modo a constituir sua primeira
obra literária. Este livro debutante representa justamente
este parto de uma nova era para o escritor, e por isso
mesmo é um momento confuso e inebriante. Podemos
observar que é um trabalho repleto de sangue, dor, delírio...
e também luz, muita luz, aquela presente no âmago de toda
nova vida.
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O diálogo das coisas segundo Wellington Melo
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paredes e eu: em algum momento/que já não é o meu;
estático/êxtase/estase; o real escapa à vista/à forma volta o sono em
volta envolto em pânico. Uma poesia que às vezes necessita de
referências espaciais, como em Casa Vazia na Rua do
Futuro: na solidão de um casarão vazio/morreu um pedaço do meu
passado/na Rua do Futuro/meu nome calado... /a cada foto
apagada sorrisos mortos guardo:/ obrigado,obrigado, obrigado. Ou
de evocações intimistas a antigas mestras da infância:
matematicamente Dona Mércia/enchia a sala de ternura/Dona Júlia
provava/cientificamente o amor ao mundo. A letra bebe sangue,
afirma, como que imbuído do espírito analítico de Philippe
Lejeune em O pacto autobiográfico. A letra comparti-
lhando o medo na ocultação: a cada espaço a sombra de minhas
memórias atônitas... /faço-me ler mais no que não digo, palavra
gargantilha / que aprisiona pensamentos/num tempo
elíptico./Ourives? Palavra lâmina arde em brasa /pai/mãe/filha /
de ti mesma: queres ser menos/mas não te cabes. Porque a letra
essencial / perdeu-se na minha boca de menino/quando minha mãe
olhou para o outro lado.
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“Minha letra
de sangue se alimenta.
Se não sangra,
dorme.”
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A seu Geraldo e dona Iraci, meus pais,
pelo sangue.
A Lucila Nogueira e
a Maria do Carmo Barreto Campello de Melo,
pela letra.
A Ana,
por todas as coisas.
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O sangue
Fagundes Varela
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Legado
Aceito-te inconcluso
como meus dias
à tua espera
à tua espreita
à tua chama.
Assumo-me imperfeito
enquanto durmo
e te esqueço
e te lacero
e te devoro.
Aceito-te inconcluso
como imperfeito
me morro
te mato
me sorvo.
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O sangue
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Espera
Não agradeças.
O silêncio de tuas coisas guarda meu pesadelo.
No silêncio do Nada
repousas e esperas o momento do encontro.
Nunca virá.
Teu algoz, acorrentado, te espera.
Espera.
Espera.
Espera.
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Tempo
Porque o tempo
e o dia
e a fome
sugam
tua essência
É que te vejo
preso
em cada
brinquedo
quebrado
É que me pego
buscando
na minha
memória
teu nome
esquecido.
É porque te desejo
que o eterno porto
distante
me deixas
te deixo
me esqueces...
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Acalanto
Dorme, dorme
que a espera
será para ti meu sonho.
Dorme, dorme
que teu perdão
acalmará minha pena.
Dorme, dorme
na doce calma do afeto,
no silêncio a que te condenei.
Dorme, dorme
Pois todas as canções que te guardei
esperam sedentas teu suspiro.
Dorme, dorme
Um dia, uno comigo e meu sangue,
serás todos os que te precederam.
Dorme, dorme
que um dia em meu leito de morte
esperarei tua lágrima inocente.
E dormirei, dormirei...
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A letra
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Gênese
Se não há sangue
que alimente o verso
busco na gênese da
letra o fruto.
?Como nasce
me pergunto
e a resposta
em letra torna
E renasce palavra
em peito mudo
pelo veio
do mundo do tempo escasso.
É labor da língua
não há cansaço
A palavra pétala
logo
ramalhaço.
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Sem métrica
simétrico
sintético
sinta-se
seu
soma
o seio
semente
mas a fúria
se faz força
sentido
fagulha
forja
a forma.
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Obviedade
O tema
teima em fugir
torna
foge
forje o que
se queira
mas não se tema
que o tema fuja.
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Silêncios
Busco ritmo
feito fera.
Afeito à forma
retumba
na soleira do pensamento
o ponto
certo
de que alcance
o seio do verso
e ressoe surda
a pausa
perfeita.
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Letras e números
Matematicamente
Dona Mércia
enchia a sala de ternura.
Dona Mércia...
guardo-lhe a letra
e o carinho.
Onde anda?
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A letra bebe sangue
Muda o tempo
a dor não muda:
emudece a forma.
Minha letra
de sangue se alimenta.
Se não sangra,
dorme.
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S
Serpenteia,
precede o silêncio
espiralado do não.
Escorre o verso
beija a língua
sorvedouro de som.
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Esconderijos
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Ofício
Ourives?
Não.
A palavra não se doma.
Dorme, apenas.
A penas.
Ourives?
Não.
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Lâmina
A Lucila Nogueira
arde em brasa
teu nome
e aguarda, fera,
onde a língua se encerra
do teu olho
(lâmina)
num suspiro
toda carne lacera
flamejante
tua letra, pletora,
pulsa
serpente
e nos rubros
os rios
de fêmea
concreta
teu voraz
aceno
a presa espera
pai
mãe
filha
de ti mesma:
despedaças o
anjo terrível
em chamas
que te espreita
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Autopoiesis
Se me recrio
À imagem que me negam
Em novas vidas
Sobrevivo
E temo
voltar à sombra minha
Ao que querem que seja
Ao papel que acham
que me cabe
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Mínimo
A Lourival Holanda
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A letra essencial
A letra essencial
é lampejo apenas.
Perdeu-se
na minha boca de menino
quando minha mãe
olhou pro outro lado.
A letra essencial
a escrevi contra o vidro
suado de um ônibus
com meus dedos
de infante.
A letra essencial
está adormecida
no meu silêncio
entre um fôlego
e outro.
A letra essencial
é a que ainda não escrevi
é o não-dito que penso
antever na linha
seguinte.
A letra essencial
me espera no túmulo
onde a escreverei
já morto
esperando dizer
o que o tempo
não deixou.
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As coisas
28
Ponto
29
Fuga
do passado nada
do passado a dor
do passado um ponto escuro
o passado e o tempo
o passado e um corte
o passado e um nome
no passado cores
no passado letras
no passado o que não foi
do passado o esquecimento
do passado imagem que se vai
do passado a fuga.
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Um nome
A imagem e o nome
e nada dentro
e meu peito minúsculo
nada em sangue
entre o ar cortante
que do nada volta
que em volta do teu corpo
envolto de ira desaba
e toca o instante
e retumba onde ontem
do vento vinha a tua fúria
o vento via tua fúria
Retumba
Sangue e palavras retorcidas
e um nome
derramado
de rancor, do que resta
do nome
do
na
da
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Luz
A Ana
De novo luz
De novo luz
De novo luz
De novo luz
Dentro do fio
a navalha à luz retorna
a dor adormece
e se detém o corte
se a luz se ama
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Paredes
As paredes e eu.
em algum momento
que já não é meu
Meu sorriso
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Pedaços de coisas
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Ladrilhos
não há rostos
bem-vindo ao horizonte
ou ao começo de tudo
ou à eternidade
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Número 1
De anos vêm
entre sons e esquecimentos
as muitas formas
de ver-te só
De tocar-te em mim
a pena de sentir
apenas um sussurro
sobressai o alento
De um sopro
vem a que julgava perdida
tua imagem
em mim partida.
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Número 2
Pois se me julgo
perdidas as falas
adormecidas e caladas
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Número 3
estático
êxtase
estamos
todos
estáticos
?ou eu
pragmático
estático
esta
é
a verdade
estase.
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Sombra do minuto
e não existo
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Casa vazia na Rua do Futuro
A seu Oliveira e Elvira
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O diálogo das coisas
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Sumário
Apresentação/2
Henrique Randau
O sangue Autopoiesis/25
Mínimo/26
Legado/9 A letra essencial/27
O sangue/10
Espera/11 As coisas
Tempo/12
Acalanto/13 Ponto/29
Fuga/30
A letra Um nome/31
Luz/32
Gênese/15 Paredes/33
Sem métrica/16 Pedaços de coisas/34
Obviedade/17 Ladrilhos/35
Silêncios/18 Número 1/36
Letras e números/19 Número 2/37
A letra bebe sangue/20 Número 3/38
S/21 Sombra do minuto/39
Esconderijos/22 A casa vazia na Rua do
Ofício/23 Futuro/40
Lâmina/24 O diálogo das coisas/41
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