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situagdes desencorajando o caminhar. A distancia psicoldgica entre ruas de comércio suicessivas se faz ainda maior que a distincia real ja bastante grande. A implantagio dos blocos sobre as superquadras entre essas ruas tende a dispersar 0 movimento de pedestres no seu interior, Ao contrario dos veiculos, os pedestres tém multiplas opges de trajetos, diminuindo-se em consequéncia as probabilidades de sua intera- 20 casual. A situagao se agrava quando a superquadra apresenta excepcionalmente fechamento dos pilotis on, nao téo infrequente, desnivelamento do pavimento térreo dos blocos em relagao ao terreno nao edificado. Fenémeno similar se observa na drea central, onde tentar ir a pé de um setor a outro constitui mesmo temeridade face & supremacia das facitidades concedidas ao automével ‘A andlise feita acima nao implica desprezar o enorme potencial de transforma- 40 ainda existente do plano piloto. Se as quantidades excessivas de espaco aberto em Brasilia constituem problema, elas se apresentam igualmente como territério de manobra viavel. Concretizar esse potencial envolverd reformulagdes ideoldgicas que ultrapassam o nivel da administragao pablica local. Com toda a certeza, as mo- diftcagdes da estrutura urbanistica de Brasilia deverao ser simultaneas a uma trans- formagao da doutrina e paradigmas que embasaram o projeto da capital brasileira, doutrina e paradigmas todavia prevalentes tanto nas universidades como na pritica que rege os mecanismos de controle urbanistico no pais. BRASILIA, MODERNIDADE RADICAL A DERIVA RUTH VERDE ZEIN CATALOGO DO CONGRESO DA UIA, BARCELONA, 1996 / 0 LUGAR DA CRITICA - ENSAIOS OPORTUNOS DE ARQUITETURA, PORTO ALEGRE: UNIAITTER /PAOEDITORES, 2001, PF, 177-80 a capital do Brasil, foi planejada ¢ construida entre 1956 e 1960 como a Se Brasitia tivesse permanecido um sonho, ela seria apenas um incidente local sem maior interesse. Mas Brasilia no é um sonho, e sem davida também nao é um pesadelo. E uma cidade viva, em cons- tante crescimento e transformagao, hitando entre um esquema fixo de modernidade eas necessidades de cada dia. Nao pretendo fazer aqui uma apreciacdo critica com- pleta de Brasilia, e nao quero falar dela como de um fracasso on de um sucesso. Mas como uma imagem que foi e ainda € seguida por outras cidades brasileiras, cia de outras opgdes de desenho. Ps Nés costumamos desdenhar Brasilia. E por isso mesmo ela continua sendo um modelo vivo e forte. Ela tem sido negligenciada nas tiltimas décadas, mesmo por muitos dos arquitetos brasileiros ~ mas nao pelas mesmas razes que a puseram fora de moda internacionalmente com as rejeigdes dos anos 1950, 0s preconceitos dos anos 1960 € as revisdes criticas da arquitetura moderna dos anos 197: Diz Norma Evenson! que, para apreciarmos Brasilia, devemos tomé-la em seus proprios termos. E o que tentarei fazer. E sabido qu © nascimento dos conceitos urbanos modernos pode ser tragado a partir do século passado, mas foram ento, em meados deste século, praticamente todos 8 arquitetos compartilhavam de um conjunto comum de conceit ssas ideias haviam sido apli- cadas no projeto das new towns e conjuntos habitacionais do pés-Segunda Guerra, na Europa, mas o escopo de Brasilia era entao tnico, pela sua escala e importancia ‘como nova capital nacional. Foi realizado um con . olher seu projeto. Todos os partici- pantes apresentar: que deveria ser uma cidade radicalmente dife- rente: um exemplo ut6pico impregnado dos compromissos sociais da arquitetura moderna. Era esse o parecer do jiiri, que incluia trés urbanistas estrangeiros e trés arquitetos jeitando os projetos que nao tinham “caréter de capital’ o jiri decidiu que “o projeto capital federal, apresentando uma composicio coerente, racional, de esstacia urbana ~ ~ €0 projeto n. 22 do senhor Lucio Costa’? 1 Norma Evenson, Two Brazilian Capitats ~ Architecture and Urbanism in Rie de Janeiro and Brasilia. New Haven /Londres. Yale dniversity Press, 1973, p. 104. [Ver p. 228, neste volume] A ata do jr toi nublicada em Métufo, a, 8, ia de Janeiro, jul. 1967, p. 12 Id. foi. Na sua proposta, Costa modestamente afirma que a ideia de Brasilia lhe ocor- rew quase involuntariamente, num desenho completo, mas que ele nao bavia pro- Mas Costa nao era, absolutamente, um arquiteto intuitive. Com uma sélida educagio na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, depois de algum tempo engajado na tendéncia neocolonial durante os anos 1920, sua subsequen- te reacdo contra o ecleticismo ¢ historicismo da pratica das beaux-arts tornou-o 0, ele texto fundacional, Razées da nova arquitefura (1934), apresentava Le Corbusier como 0 tegitimo herdeiro da tradicéo académica. Brasilia foi concebida por um arquiteto, urbanista e pensador altamente qualificado, e sua assim chamada “in- tuicao” deve ser mais propriamente entendida como sua habi profundo interesse pela modernidade e pelo passa dimentos tradicionais. Apos a revisdo basica de seu plano, Costa nao tomou parte ativa na construgdo da nova capital, Mas isso nao modificou em muito o destino de Brasilia, pois ele esta- belecera seus conceitos fundacionaj . ‘assar do tempo tém ficado cada vez mais evidentes as dificuldades, surgidas & medi le passou a lidar com as embora mantendo a esséncia do plano piloto. Essa uta conflitiva e ainda nao resolvida entre ideais fixos de modernidade ~ ou pelo menos de um tipo de modernidade ~ ea crescente necessidade de mudanca ae en tom ecco mi interessante pare uma rein dos modelos i desenho urba- Mas Brasilia tornou-se conhecida mundialmente nao pelo s no, € sim principalmente como ums A livre e expressiva variedade de formas celebrada como a mais interessante caracteristica da arqui- 4 Ver Carlos Eduariio Comes, "Context and Modernity’. Annats of the Seminary at the Technical Schoot of ib Achitectura, Delft, 1990 ii tetura moderna brasileira dos anos 1930 e 4o foi radicalmente transformada, em — = =e influenciado por Le Corbusier e Lucio Costa no inicio de sua carreira, Niemeyer, ao projetar os edificios pitblicos de Brasilia, estava em um ponto de inflexdo na sua carreira profissional; nas suas palavras, numa “etapa que se caracteriza por uma procura constante de concisao e pureza [...] passaram a me interessar a ‘A monumentalidade de Brasilia foi submetida a consideravel debate nacional ¢ internacional. Embora nao fosse absolutamente uma discussdo recente, a busca de monumentalidade na arquitetura moderna ganhou forga depois da Segunda Guerra. Os arquitetos modernos condenavam os estilos tradicionais ¢ eam visce- ralmente contra a ideia de estabelecer um conjunto de simbolos para a monumen- talidade - talvez, por falta de oportunidades de fazé-lo. Antes da Segunda Guerra, a arquitetura moderna ainda nao era oficialmente aceita, ¢ 0s anos 1930 viram a continuacao do revivalismo nos edificios governamentais, para clientes tao diver- sos como Roosevelt em Washington, Hitler em Berlim e Stalin em Moscou, que patrocinaram grandes programas construtivos caracterizados pelo estilo classico. Isso também acontecera durante a era Vargas, nos anos 1930, no Brasil. Mas em- bora nao fosse exclusiva nem dominante, a arquitetura moderna também recebeu entio um importante patrocinio do governo federal. A construcao do Ministério da Educacao e Satide, no Rio de Janeiro (1937-45), proporcionou um exemplo isolado, mas muito importante, de arquitetura moderna para um edificio governamental, tendo sido muito elogiada por criticos de arquitetura de todo o do. Kenneth Frampton lamenta que “a exuberancia inicial da arquitetura moderna bra- sileira contivesse a raptura come 5 Oscar Niemeyer, “Depoimento”. Médula, n. 9, Rio de Janeira, fev. 1958, pp. 3-8, Ver p. 48, neste volume] mais além da ordem do edificio do Congresso, cercado por um lago artificial, havia _ init extensio da lores Essa imagem romantica estd i projetos de Niemeyes mas a tentativa ds demos ou nao com os resultados. O lago artificial nao era uma orgulhosa afirmagio sobre a natureza como o similar de Versalhes, mas um reservatorio, uma necessi- dade basica em um lugar onde havia pouca agua; ¢ a jungle ~ ou melhor, a floresta tropical - fica a um milhar de quilémetros de Brasilia Sobre Brasilia, diz Manfredo Tafuri: “Nascida de inten meio da selva” ~ de novo, a jungla -, “guiada por um plano alegérico infantil, que tenta reinterpretar um modelo urbano ja experimentado na Uniio Sovietica dos anos 1930” E tudo o que ele pontifica sobre seu desenho urbano. Diz ainda que “Niemeyer mostrou ali as limitagSes de sua postica, que se tornow uma maniera co- mum repetida 4 néusea [...] com resultados espetaculares, mas superfluamente ia de preconceitos e mal-entendidos. Os es demagégicas, no caprichosos”” Talvez ele tenha razdo. Essas ¢ outras imagens fixadas nos livros canénicos ¢ em artigos publicados em revistas passaram por arquitetos e criticos, ger ae ajudando a criar a ideia de que Brasilia era um fracasso total ou comum até mesmo entre os arquitetos brasileiros, e, com isso, raramente se vé uma critica consequente sobre Brasilia.® Talvez Brasilia tenha sido esquecida porquelfol uma grande decepead para oo) GaazZz=D> Embora criacla para preencher os ideais modernistas, exemplificar um novo futuro para a nacao, para’ a sociedade brasileira ~ cidade, a tinha, de fato, construido ¢ ocupado. Kenneth Frampton, Modern Architecture — A Critica! History. Londres: Thames and Hudson, 1980 ed. bras : Historia critica da arquitetura moderna tad. Jefferson Luiz Camargo e Marcelo Brandao Cipolla. Sao Paulo: Martins Fontes, 1997/2008, p. 313). 7 Manfredo Taturie Francesco Dal Co, Aschitettura Cantemparanea, Milo: Electa, 1979, p. 397. 8 Omelhos iva recente nesse assunto & ta antropélogo norte-mericano James Holston, The Modernist City An Anitvopotogical Critique of Brasilia, Chieago: The University of Chicago Press, 1983 ed, bras.: A cidade moder nista ~ Uma ertica de Brasita @ sua utopia, ad. Marcelo Coelho. S20 Paulo: Compania das Letras, 2010 Mesnio assim, nao posso etiquetar Brasilia como sendo um fracasso total, até porque nunca aceitei totalmente que ela pudesse ser a realizagio perfeita das verda- des modernas. ou que essas verdades tivessem, de fato, tanto poder sobre a realidade. Brasilia nfio é uma ideia maravilhosa que foi pervertida pela realidade, nem € um esforco a ser esquecido de uma concepgao de modernidade fora de moda, da qual nio ha nada a aprender. Ao contririo/as ContradigGes de Brasilia sao eruciais para entender os desenvolvimentos posteriores da arquitetura moderna brasileira. Mais do que isso, Brasilia € um interessante exemplo de deriva dos ideais utépicos das cidades modernas ~ e seu estudo, por isso, pode nos ensinar muito. ‘Note-se que, comoaponta James Holston as eontradigdes da Brasilia real sao. muito mais complexas do que o mero resultado da oposicdo entre a utopia imagina- da ea ordem existente,’ Para entender isso melhor seria necessdria uma andlise mais circunstanciada, que nao ser possivel fazer aqui. Brasilia nao é apenas seu plano piloto e sua arquitetura monumental. Brasilia esta longe de ser uma cidade perfeita, com gente perfeitamente comum desprovida de problemas existenciais vivendo nela, como queriam os sonhos dos mestres mo- dernistas ~ mas, de fatol@lliitta boajctdade para seviversBrasilia nao é apenas o que o turista vé quando a visita, mas também uma extensa area metropolitana, tao viva e interessante quanto o proprio plano piloto. Nesse sentido, ela é uma cidade comum, Mas, a0 mesmo tempo, é mais do que isso. (EalFeveonvertida em um mito e num tabu; ¢ ainda € empregada como um modelo corrente para “organizar” e “regrar” nossas cidades, devido ao peso inercial que as crengas ¢ procedimentos modernistas tém ainda na pritica diaria dos arquitetos. A lacuna entre a cultura arquitetOnica e a situagao factual das cidades de hoje, 0 s que foram usados para crid-las ¢ as deslocamento entre os conceitos modernist contradigées de suas performances podem ser apreciados em Brasilia de maneira bem clara. Brasilia néo conseguiu mudar a.sociedatiesmas.de certa maneirdante cipou algumas das transformagoes que nos levaram as situagdes metropolitanas de hoje; curiosamente bastante similares a realidadede Brasilia) ¢ isso no mundo todo, mas especialmente na América Latina. Escolhendo Brasilia como o tema de debate para um congresso de arquitetos, minha intengio foi tentar contribuir, de alguma forma, para encontrar caminhos para revé-la como uma experiéncia rica e contra ditéria de transformagao e mutagao; nao apenas para estabelecer novos caminhos para nossas teorias, mas também para nos ajudar, aos arquitetosf@entendenmelhoe nossas cidades modernas atuais, principalmente se ainda acreditarmos no nosso papel de construtores de cidades. 8d, ibid, p. 108.

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