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(20230400-PT) National Geographic
(20230400-PT) National Geographic
P T | ABRIL 2023
ORIGAMI:
O FUTURO
DESDOBRA-SE
CÁPSULA DO
TEMPO NUMA
LAGOA DA SERRA
DA ESTRELA
603965 000006
5
N AT I O N A L G E O G R A P H I C ABRIL 2023
S U M Á R I O
2
Já somos 8.000 milhões
Com a mortalidade infantil em
14
A Nigéria cresce
África protagonizará parte
Na capa
O número de habitantes
da Terra superou o marco
de 8.000 milhões em
Novembro e continuará a
aumentar. Os demógrafos
quebra e a esperança de vida do aumento demográfico advertem, porém, que as
alargada, o número de previsto para os próximos futuras projecções poderão
habitantes da Terra duplicou anos e a Nigéria liderará revelar grandes surpresas.
em menos de 50 anos. A ONU essa tendência. Com uma ILUSTRAÇÃO DE JUSTIN METZ
prevê que se poderá chegar a população jovem, o país
10.400 milhões, mas a tendência mais povoado do continente
deverá alterar-se e travar o enfrenta uma elevada
crescimento demográfico até taxa de desemprego
2100, dependendo de variáveis e forte carência de
como os recursos disponíveis recursos alimentares.
e os efeitos das alterações T E X TO D E A DAO B I T R I C I A
climáticas. N WA U B A N I
T E XTO D E C RA I G W E LC H F O T O G R A F I A S D E YA G A Z I E E M E Z I
R E P O R TA G E N S S E C Ç Õ E S
36
SUMÁRIO
A S UA F OTO
VISÕES
A China decresce
A política do filho único e o desen- EXPLORE
volvimento económico reduziram
Pela lente dos fotógrafos
a taxa de fecundidade do gigante
asiático, provocando um declínio Gado todo-o-terreno
demográfico que já começa a ter
consequências no futuro do país. GRANDE ANGULAR
T E X TO D E B RO O K L A R M E R Lagoa do Peixão
E JA N E Z H A N G
F OTO G R A F I A S D E J U ST I N J I N E D I TO R I A L
60
BASTIDORES
N A T E L E V I SÃO
P RÓX I M O N ÚM E RO
Origami, o futuro desdobra-se
Esta centenária arte japonesa
abre novos caminhos para a
ciência e a tecnologia. Os seus
intrincados padrões ajudam a
projectar braços robóticos,
máscaras ou até painéis solares
que se desdobram no espaço.
T E X T O D E M AYA W E I - H A A S
F OTO G R A F I A S D E C R A I G C U T L E R
84
Lebre-alpina
Adaptada a um habitat frio
e com neve onde consegue
camuflar-se magistralmente,
esta lebre terá de se reinventar
à medida que as alterações Envie-nos comentários
climáticas reduzem o número para nationalgeographic
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de dias com neve na Escócia.
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Há 30 mil anos, um lobo
atrevido aproximou-se de um
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DE CIMA PARA BAIXO: JUSTIN JIN; CRAIG CUTLER; ANDY PARKINSON; VASCO COELHO
O FUTURO
DA HUMANIDADE
PASSA PELA FLORESTA
Os grandes desafios atuais da humanidade, como o combate
às alterações climáticas e a descarbonização, exigem um novo
paradigma de desenvolvimento económico, que se afaste do
modelo fóssil e linear. É a hora da bioeconomia circular, que se
desenvolve em harmonia com a natureza e na qual a floresta
tem um papel fundamental.
Anualmente são extraídos 100 mil milhões de toneladas de
materiais em todo o mundo – um valor quase quatro vezes
superior ao que se verificava há 50 anos. Mais de 90% desses
materiais acabam por ser descartados, ou seja, menos de 10%
regressam ao processo produtivo. São dados do Circularity
Gap Report, que espelham o modelo económico linear que
vivemos atualmente, caracterizado por elevados níveis de
desperdício. A este ritmo, diz a ONU, em 2050 seriam
necessários quase três planetas para fornecer os recursos
indispensáveis à sustentação dos atuais estilos de vida.
A resposta está na bioeconomia circular, um modelo
económico inspirado nos ciclos da natureza, em que as
matérias-primas renováveis substituem as de origem fóssil
– florestas, plantas, animais e microrganismos estarão na
origem dos bioprodutos, e os recursos são geridos a longo
prazo, em modo contínuo e circular.
As florestas são uma peça primordial neste novo paradigma de
desenvolvimento. Na bioeconomia circular de base florestal, as
florestas plantadas geridas de forma responsável estão na
origem não só de bens e serviços valorizados pelo mercado,
tais como a madeira, a cortiça ou a resina, mas também de um
conjunto de externalidades positivas decorrentes das práticas
de gestão sustentável – como o sequestro de carbono, a
produção de oxigénio, a promoção de biodiversidade,
a proteção do solo, a regulação dos regimes hidrológicos
torrenciais ou a criação de amenidades paisagísticas.
N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Júpiter
A sonda Juno captou
esta espectacular cena
de uma tempestade
anticiclónica enquanto
transitava a 7.000
quilómetros de Júpiter
numa das maiores
aproximações de sempre
ao gigante gasoso.
NASA / JPL-CALTECH / SWRI / MSSS / GERALD
EICHSTAD / SEAN DORAN © CC NC SA
Chile
O Parque Nacional
Torres del Paine, na
Patagónia Chilena,
esconde recantos
de extraordinária
beleza, mas alguns
são efémeros, como
esta enorme gruta de
gelo esculpida pelo
glaciar Grey.
SAÚL SANTOS
E X P L O R E
COMPORTAMENTO
Esta ave
faz sombra
A garça-preta,
autóctone da
África subsaariana,
tem uma forma
inteligente de
capturar presas.
Ao caçar peixes
pequenos em
águas pouco pro-
fundas, esta ave
abre as asas como
se fosse uma som-
brinha, criando
uma sombra que
atrai peixes
à procura de
abrigo. A sombra
ARQUEOGENÉTICA
também parece
tornar a garça mais
GADO TODO-O-TERRENO difícil de detectar
para os peixes.
RAÇ A S D E GA D O B OV I N O AU TÓ C TO N E S P O D E M
A J U D A R A E N F R E N TA R A S A LT E R A Ç Õ E S C L I M ÁT I C A S — A N N I E ROT H
JÁ NAS BANCAS
G R A N D E A N G U L A R
T E X T O E F O T O G R A F I A S D E F I L I P E PAT RO C Í N I O
Território de pastores, a cadeia montanhosa da Cântaros, mas o vale que se lhe desdobra próximo e
Estrela foi sempre motivo de mitos e mistérios. as suas vertentes são muito mais abundantemente
À montanha, só se ia em caso de necessidade e foi vegetalizados e vêem-se enfim aí árvores de diversas
preciso esperar até ao final do século XIX para uma espécies, embora em exemplares isolados.” Passaram
primeira expedição de sábios ousar subir a serra e 140 anos sobre esta expedição e a lagoa do Peixão vol-
aplicar métodos científicos. A Expedição Científica tou a ser o destino de uma equipa de investigadores.
de 1881 conduziu a nata da ciência portuguesa ao Carregados de equipamento, negoceiam cada
território bravio da Estrela, com o propósito de docu- passo entre os blocos de granito com que os glaciares
mentar a diversidade de fauna, flora, geologia, clima moldaram a paisagem. Caminham motivados pelo
e arqueologia. As lagoas foram, naturalmente, motivo desejo de descrever o clima de um passado recuado.
de interesse, mas uma expedição tão generalista não A história geológica da serra e das suas lagoas encerra
poderia desbravar todos os mistérios da serra. o registo das transformações climáticas após a última
A lagoa do Peixão foi, naturalmente, estudada. glaciação. No fundo das lagoas, sedimentos acumu-
Os naturalistas avistaram patos nas margens. Os botâ- lados escondem vestígios milenares de fauna e flora.
nicos saudaram o facto de, nas suas margens, existi- A serra da Estrela continua a ser um laboratório
rem espécies de flora inexistentes nas lagoas de cotas vivo. Armand Hernandez, paleoclimatologista da
mais altas e os geólogos comprovaram que a lagoa Universidade da Corunha, e Alexandre Ramos, cli-
teria origem glaciária. “Perto dos Cântaros está uma matólogo do Instituto de Meteorologia e Investigação
das mais bonitas, a que deles toma o nome, e além, Climática de Karlsruhe, focam agora as suas sonda-
passadas duas dobras da montanha, está a Lagôa da gens nas lagoas mais remotas. “Não são apenas os
Paxão”, anotou o diário da expedição. “A bacia desta anéis das árvores ou os espeleotemas que guardam
lagoa é menos pitoresca do que a Escura e a dos registos climáticos”, afirma o investigador espanhol.
N AT I O N A L G E O G R A P H I C
FEVEREIRO 2023
G R A N D E A N G U L A R | LAGOA DO PEIXÃO
“A lagoa do Peixão é um hotspot para a reconstrução AS AMOSTRAS viajaram pelo mundo para serem ana-
do clima, porque foi menos intervencionada pelo lisadas com técnicas não invasivas que permitiram
homem e é portanto capaz de conservar variações conhecer as suas propriedades físicas e químicas.
ambientais dos últimos milhares de anos.” Regressadas a Portugal, foram guardadas em câmara
Além da importância científica do local, a lagoa do fria no Instituto Português do Mar e da Atmosfera
Peixão é mágica. No dia escolhido para a recolha das (IPMA). Desta forma, a temperatura simulada dos
amostras, o espectáculo de cortar a respiração é refor- sedimentos foi mantida de modo a evitar a sua con-
çado por milhares de libelinhas que emergem do seu taminação por organismos invasores. Por fim, no
estado larvar enquanto outras sobrevoam a superfície, Laboratório de Sedimentologia e Micropaleontologia
tentando manter-se a salvo das relas que coaxam à do IPMA, a equipa começou a estudar os resultados.
beira da água numa perfeita sinfonia natural. Mas estava escrito que o mistério da idade da lagoa
A bucólica paisagem acústica é interrompida pelo ainda se manteria por mais algum tempo.
ruído de um helicóptero que se aproxima. A aeronave A pandemia atrasou o estudo, pois forçou o fecho
transporta a pesada plataforma flutuante que servirá dos laboratórios por todo o mundo. Por fim, contro-
de base para este grupo de investigadores durante lado o vírus, os investigadores começaram a recons-
dois dias. A perspectiva a partir da plataforma é des- truir o novelo do tempo e a desvendar o clima do
lumbrante e os picos rochosos do Fragão do Poio dos passado com grande minúcia. As amostras confir-
Cães ou do Cântaro Gordo evocam também os antigos maram que o último degelo ocorreu na região da
glaciares. Munidos de equipamento de segurança Estrela há cerca de 14.500 anos. O recuo do glaciar
para a eventualidade de alguém cair desamparado à formou a lagoa do Peixão, ocupando um antigo covão
água, os investigadores embarcam no bote insuflável escavado por glaciares milhares de anos antes.
que os transporta até à plataforma. Com eles, terá de Ao longo dos setecentos anos seguintes, a lagoa
ir também o almoço, já que o dia será longo. encheu-se de água e sedimentos turvos. As amostras
Motivados pelos resultados obtidos na campanha documentaram também que há 13.800 anos, já sem
anterior, preenchem agora uma lacuna temporal, o glaciar, surgiram na paisagem os pequenos riachos
alcançando mais fundo a lagoa e recuando no tempo que alimentam e dão vida à lagoa do Peixão. A página
até à era glaciar. Recolhem amostras de sedimentos seguinte foi escrita há 12.800 anos: os sedimentos da
(cores), em tubos de PVC de seis centímetros de diâ- lagoa revelaram um período mais frio, onde a lagoa
metro e dois metros de comprimento cada. Para che- parece ter atravessado períodos de congelamento
gar à base de granito, é necessário ultrapassar os três duradouro. Por fim, há cerca de 11.700 anos, surgiu a
metros da coluna de água e quase oito metros de primeira vegetação com a dinâmica actual.
sedimento. Alexandre Ramos lembra que a metodo- No novelo do tempo,Ricardo N. Santos, paleo-
logia destes estudos segue um rigoroso protocolo climatólogo do IPMA, estudou inicialmente as
internacional para minimizar efeitos potencialmente plantas e o primeiro centímetro de sedimentos
negativos na flora e fauna locais. da lagoa, que correspondem aos últimos 20 anos,
“Imagine uma estante onde cada prateleira contém dedicando-se agora a investigar a vegetação dos
livros que ajudam a entender esse período”, diz Pedro últimos dois mil anos com base em 120 centíme-
Costa, geólogo da Universidade de Coimbra. “Cada tros de sedimentos. Nesse intervalo, ao contrário
livro conta uma história e, à medida que descemos, das plantas aquáticas, a vegetação terrestre,
recuamos mais no tempo e aprendemos mais.” Pedro como os juniperus ou zimbros, mostra evidências
Raposeiro, biólogo da Universidade dos Açores, lembra de maior adaptação a condições de frio extremo.
que “o tipo de mosquitos ou pólen enterrados nos “Queremos descobrir o que os sedimentos nos
sedimentos ajuda a perceber o clima de cada idade”. revelam nos últimos 11.700 anos”, explica
Trabalhando apressadamente, a equipa recolhe Armand. “As janelas de tempo mais curtas, de
8,63 metros de sedimentos até chegar ao granito des- centenas a dezenas de anos, desvendam os perío-
feito. Nas amostras, ficam retidos os sedimentos que dos mais quentes e frios.”
retêm informação de tudo o que se passou nos últi- O clima está a aquecer e neva cada vez menos na
mos milhares de anos. serra da Estrela. À nossa escala temporal, as alte-
O helicóptero regressa para recolher a plataforma rações climáticas são uma tragédia, mas será arro-
enquanto os investigadores carregam às costas as gância perder de vista que a Terra tem muito tempo
amostras de dez quilogramas cada, como se de peças pela frente. Não sabemos o que acontecerá à nossa
delicadas de porcelana se tratasse. Estes vestígios espécie e é uma lição de humildade olhar para as
permitirão esclarecer a cronologia da última glaciação. transformações do planeta à escala geológica. j
N AT I O N A L G E O G R A P H I C
A HISTÓRIA DE UM GLACIAR EXPRESSA NUMA LAGOA
Nos últimos trinta mil anos, a paisagem da serra da Estrela modificou-se radicalmente.
Se a pudéssemos então observar, veríamos um gigantesco glaciar cobrindo uma área
significativa do território. O recuo do glaciar criou condições para uma explosão de vida.
A lagoa do Peixão ganhou então forma.
ILUSTRAÇÃO: ANYFORMS DESIGN. FONTE: “THE TIMING OF THE DEGLACIATION IN THE ATLANTIC IBERIAN MOUNTAINS: INSIGHTS FROM
THE STRATIGRAPHIC ANALYSIS OF A LAKE SEQUENCE IN SERRA DA ESTRELA (PORTUGAL)”, HERNÁNDEZ ET AL., 2023, ESPL
ABRIL 2023
«Acreditamos que, quando as pessoas compreendem melhor
o mundo, preocupam-se mais profundamente com ele.»
VICTOR HUGO FORJAZ, Vulcanologia CHIEF TECHNOLOGY & INFORMATION OFFICER Jason Southern
_____________________________________________ MLP – Media Logistic Park CHIEF OF STAFF & PROGRAM ALIGNMENT Kim Waldron
Quinta do Grajal CHIEF STORYTELLING OFFICER Kaitlin Yarnall
TRADUÇÃO E REVISÃO CHIEF FINANCIAL OFFICER Rob Young
2739-511 Agualva - Cacém
Bernardo Sá Nogueira, Coordenação BOARD OF TRUSTEES
de tradução; Bernardo Sá Nogueira, Tel.: (351) 214 337 000 CHAIRMAN Jean M. Case
Erica da Cunha Alves e Luís Pinto, VICE CHAIRMAN Katherine Bradley
Tradução; Elsa Gonçalves, Revisão Brendan P. Bechtel, Afsaneh Beschloss, Ángel Cabrera,
_____________________________________________ Periodicidade: mensal
Elizabeth Comstock, Joseph M. DeSimone, Alexandra
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LI RECENTEMENTE a obra de 2018 “The Por este motivo, as reportagens deste Coroada com uma faixa de
tule cor-de-rosa e renda, esta
Wizard and the Prophet”, de Charles mês abordam a questão da população em
bebé foi fotografada num
C. Mann. Pelas vidas dos cientistas do dois países muito diferentes: a Nigéria, centro de cuidados pós-natal
século XX, Norman Borlaug e William actualmente com um crescimento demo- em Hangzhou, na China.
gráfico explosivo, e a China, em processo Embora a população do país
Vogt, o autor explora duas visões con-
asiático esteja a diminuir, o
trastantes de como a humanidade pode de declínio populacional. director do centro lembra
enfrentar os desafios à medida que a nossa Nas próximas décadas, estas duas que o negócio corre bem
população cresce e o nosso impacte sobre nações e outras com tendências seme- porque muitas mães com
bebés procuram a assistência
o planeta aumenta. lhantes enfrentarão desafios díspares. de profissionais para acelerar
De um lado, está a aceitação dos limites Mas o impacte geral do rápido cresci- o regresso ao trabalho.
de Vogt: devemos restringir-nos ao que a mento populacional terá implicações para
Terra consegue suportar. Do outro, está todos. É ingénuo pensar que este pro-
a crença de Borlaug na promessa da ino- blema não afectará todos os humanos.
vação: podemos sempre inventar solu- Ao ler as nossas reportagens, pensei
ções. Muitos, como eu, não vêem estas muito no livro de Mann. É certo que nós,
duas noções como binárias, acreditando humanos, somos engenhosos em inven-
que o caminho a seguir é uma combina- tar soluções, mas teremos controlo sufi-
ção das duas atitudes. Ainda assim, não ciente para que essas soluções possam
há consenso sobre a melhor abordagem. superar os problemas que criamos à
Este mês, a revista National Geographic medida que exigimos mais aos recursos
explora as ramificações de um marco do planeta? As respostas não serão fáceis.
alcançado no final do ano passado, Como sempre, cabe-nos lançar o debate
quando as Nações Unidas projectaram e deixar pistas de interpretação.
que a população mundial chegara por fim Esperamos que goste desta edição.
à fasquia dos oito mil milhões de habi-
tantes. Embora o número de habitantes
no planeta tenha crescido explosivamente
no século passado, esse crescimento não
foi uniforme e algumas nações têm agora Nathan Lump,
menos pessoas. Director
JUSTIN JIN
8.000
~
A EXPLOSA0
´
DEMOGRAFICA
A TERRA TEM A MAIOR
POPULAÇÃO DE SEMPRE,
MAS ESSE DADO MASCARA
UMA NOVA REALIDADE.
NESTE SÉCULO, PODEREMOS
ATINGIR O PICO E COMEÇAR A
DECRESCER. ALGUNS PAÍSES
CONTINUARÃO A CRESCER
RAPIDAMENTE; OUTROS VERÃO
A SUA POPULAÇÃO DIMINUIR.
Pg. 2 Pg. 14 Pg. 36
~
I N T RO D U ÇÃO N A N I G É́ R I A NA CHINA
À medida que ganha Grande parte do cres- A política de filho único
habitantes, o planeta cimento demográfico e o desenvolvimento
enfrentará o desafio acontecerá em económico conjuga-
de alimentar mais África, onde as taxas ram-se para debilitar a
pessoas e superar de fecundidade taxa de fecundidade,
os fluxos crescentes superam as dos com o consequente
de migrações. outros continentes. declínio populacional.
TEXTO DE C R A I G W E LC H
T I N G I M O S U M N OVO M A R C O da viagem
humana. Segundo as Nações Unidas, há oito mil
milhões de habitantes na Terra desde Novembro.
A nossa população duplicou em menos de 50 anos,
desde apenas 1974, ano em que a ONU juntou os paí-
ses do mundo na primeira conferência intergoverna-
mental para discutir o crescimento demográfico.
Na altura, apenas três áreas metropolitanas acolhiam
dez milhões de pessoas ou mais: Nova Iorque, Tóquio
e a Cidade do México. Actualmente, há mais de 30.
As razões para esta explosão são bem conhecidas: a
medicina, o saneamento básico e o rendimento das
culturas agrícolas continuam a melhorar. A mortali-
dade infantil está a descer a pique e a esperança de
vida a aumentar. Segundo as projecções dos demógra-
fos do Instituto Internacional para a Análise de Siste-
mas Aplicados, na Áustria, e do Instituto de Avaliação
de Indicadores de Saúde de Seattle, o número de seres
humanos do planeta deverá atingir 9.400 milhões e
9.700 milhões até final deste século, consoante as res-
pectivas projecções. Para os peritos das Nações Uni-
das, esse número poderá chegar a 10.400 milhões.
Contudo, estes valores mascaram uma mudança
curiosa. Entre meados deste século e o ano 2100, a
nossa incessante expansão deverá parar abrupta-
mente. Estamos a caminho de algo novo. “Existe con-
senso quanto ao facto de a população mundial atingir
o pico provavelmente antes do final do século”, diz
Patrick Gerland, que supervisiona as projecções do
Departamento de População dos EUA.
1.000
milhões
1802
125 anos
JASON TREAT
FONTES: “PREVISÕES SOBRE POPULAÇÃO MUNDIAL DA ONU 2022”; GAPMINDER
9,7 mil milhões
2050
9 mil milhões
2036
8 mil milhões
2022 14
7 mil milhões
2010 12
6 mil milhões
1998 12
5 mil milhões
1986 12
4 mil milhões
1974 12
3 mil milhões
1959 15
2 mil
milhões
1927
32
P ROJ E C Ç ÃO
8.
’
O DIVIDENDO DEMOGRAFICO 80%
Mais
população
Quando as taxas de fecundidade baixam e a população produ- laboral
tiva constitui mais de dois terços do total, um país com uma
economia operacional tem uma oportunidade rara de investir
em si mesmo. A China já colheu este dividendo e a Nigéria
aponta ao futuro. No entanto, se as taxas de fecundidade
descerem demasiado (para menos de 2,1 filhos por mulher),
Percentagem
o número de adultos idosos poderá sobrecarregar os sistemas. da população
em idade
laboral (15–64)
2023
2000
Limiar do
dividendo 65%
CHINA demográfico
O início do declínio
A preocupação com o excesso de população conduziu à
2050
política de filho único em 1980. Em 2009, a percentagem Projecção
de população em idade activa face ao total atingiu o pico.
1950
As reformas de
1958–1962 conduziram Projecção
a taxas de fecundidade 2050
erráticas e a crises de
fome em massa.
1975
1950
2023 NIG ÉRIA
1975 2000 Força laboral em ascensão
A taxa de fecundidade diminuirá nas
próximas décadas, gerando um rácio
mais elevado de trabalhadores em Menos
relação aos dependentes. população
laboral
50%
8 7 6 5 4 3 2 1 0
nados vivos
por mulher Taxa total de fertilidade Taxa de
substituição*: 2,1
E S TA D O S U N I D O S Í́ N D I A I T Á́ L I A
Parados no mesmo sítio No limite Do outro lado da curva
A imigração permitiu a países A Nigéria pode olhar para a Índia Os países com populações idosas
como os EUA mitigar os efeitos como exemplo do que poderá ocorrer. servem de aviso: quando a taxa de
da diminuição da taxa de fecundi- As projecções sugerem que a Índia fecundidade desce demasiado, a
dade com um fluxo de adultos atingirá a sua percentagem máxima percentagem de população activa
economicamente produtivos. de população activa em 2032. cai a pique.
80 80 80
2023
2000
2050 1950 2000
1950 65 65 65
1975 2023
1975 2023
2000
2050 1950
1975
2050
50 50 50
8 2,1 0 8 2,1 0 8 2,1 0
A
ONU PROJECTA que, durante
este ano, pela primeira vez em
centenas de anos, a China deixará
de ser o país mais populoso do
mundo e será ultrapassada pela
Índia. Mesmo antes de a política de filho único da
China ser instituída em 1980, a sua taxa de natali-
dade já estava a diminuir. O crescimento económico
do país aumentou as oportunidades de formação e
de carreira para as mulheres, levando muitas a adiar
a maternidade ou a prescindir dela. O número de
mulheres em idade fértil diminuiu.
Embora os habitantes da China estejam a viver
mais tempo, a sua população – actualmente de
1.400 milhões de habitantes – começou a decrescer.
A força laboral que transformou a China na fábrica
do mundo já está a diminuir há uma década. Até
2050, a China poderá ter 500 milhões de pessoas
com mais de 60 anos. Este desequilíbrio entre jovens
e idosos será o grande desafio enfrentado pelo país.
8.000 MILHÕES 7
NO TOPO
DO MUNDO
Estes recém-nascidos
num hospital de
Noida, na Índia, são
uma metáfora do que
sucederá em breve:
a população da Índia
suplantará a da China já
este ano. Passado meio
século, a população
indiana pode começar
a diminuir, mas a Índia
deve continuar a ser
o país mais populoso
do mundo na transição
para o século XXII.
ANINDITO MUKHERJEE,
GETTY IMAGES
A um continente de distância, a situação parece
diferente. Na Nigéria, a média etária é de apenas
17 anos. A taxa de fecundidade também está a dimi-
nuir aqui, mas permanece cinco vezes mais elevada
do que na China. A população do país poderá triplicar
até final do século. Cerca de um terço dos nigerianos
vivem em pobreza extrema, correspondendo a quase
metade do número que vive em pobreza extrema na
Índia. A fome já é uma preocupação: milhões de pes-
soas correm risco de fome na Nigéria.
C
OMO IREMOS NAVEGAR entre
estes altos e baixos? Nenhuma des-
tas projecções se adequa à pressão
exercida pelos recursos finitos da
Terra. Os animais selvagens encon-
tram-se já em queda acentuada e as alterações climá-
ticas estão a tornar-se a maior ameaça da história para
a biodiversidade, a segurança alimentar e o acesso a
água potável e a solos agrícolas.
No entanto, enquanto o calor extremo, o nível do mar
e os fenómenos meteorológicos extremos vão aumen-
tar, também podem ocorrer mais deslocações entre
países. Os territórios com forças laborais decrescentes
procurarão mão-de-obra fora das suas fronteiras. Em
países com rendimentos elevados, a imigração impul-
sionará um crescimento demográfico.
Em 1968, quando havia apenas 3.500 milhões de
pessoas na Terra, o biólogo Paul Ehrlich, no livro “The
Population Bomb” [sem tradução portuguesa], mos-
trou-se preocupado quanto à possibilidade de o
excesso de população matar de fome centenas de
milhões de pessoas. Em vez disso, uma revolução
verde substanciada na adopção generalizada de adu-
bos, na mecanização e na adopção de culturas de alto
rendimento, transformou a agricultura.
Estamos a avançar rumo a um futuro com mais pes-
soas, mas, em muitos países, o problema já é o inverso.
Conseguirão o engenho humano e os milhões de cére-
bros adicionais que teremos à nossa disposição encon-
trar formas de lidar com esta nova realidade? A Nigéria
e a China poderão ser os nossos principais testes. j
10 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
’
CRESCIMENTO DEMOGRAFICO TRAVA
A população da Nigéria e da China (e, na verdade, de todos os países do mundo) vive mais, em
parte graças às melhorias dos cuidados de saúde e do nível de vida. No entanto, a diminuição das
taxas de fecundidade funciona como um contrapeso global para a tendência de vidas mais longas.
Portugal
China
As populações viverão Mundo
até mais tarde
Até 2050, uma pessoa comum Pandemia de
viverá quase até aos 78 anos. COVID-19
Nigéria
O aumento da longevidade contribui
para uma população maior. No 50
entanto, quanto mais tempo as Limiar de
pessoas vivem, mais anos passam incerteza
como dependentes da força laboral,
pesando no crescimento económico. Grande
Salto em
Frente
~
PROJ EC ÇÃO
0
1950 2023 2050
As taxas de fecundidade 6
diminuirão mais
5
Em 1950, a taxa de fecundidade
global era de cinco filhos por mulher
4
a nível mundial. Em 2021, descera
para 2,3 e prevê-se que diminua
3 Nigéria
para 2,1 até meados deste século.
2 Mundo
Portugal
1 China
~
PROJECÇAO
0
1950 2023 2050
3%
2%
Os países crescerão
Nigéria
mais devagar
1%
A taxa de crescimento
demográfico mundial desceu abaixo Mundo
de 1% em 2020, pela primeira vez População em crescimento
0%
desde 1950. Se este declínio se
População em quebra
mantiver, a população da Terra Portugal
atingirá o pico antes de 2100. China
–1%
~
–2% PROJECÇÃO
1950 2023 2050
’
UM MUNDO MENOS FERTIL
O acesso das mulheres ao ensino, ao emprego e o controlo
de natalidade ajudaram a reduzir a taxa de fecundidade
global para metade desde 1950. A África subsaariana, que
não viveu estas mudanças sociais de maneira uniforme e
onde as famílias numerosas são a norma, é a última região do
mundo a manter uma taxa de fecundidade elevada. Como
tal, muitas populações africanas continuarão a aumentar
enquanto as populações no resto do mundo diminuirão.
CHINA
A forma da mudança Taxa de fecund. em 2023: 1,2
As pirâmides demográficas ajudam a ilustrar a percentagem Décadas de declínio na taxa
populacional de um país que depende economicamente da população activa. de fecundidade deixaram
À medida que as taxas de mortalidade e fecundidade diminuem, as pirâmides a China com uma pirâmide
podem transitar de uma base larga (muitos jovens, como na Nigéria) para ligeiramente mais larga
uma forma mais uniformemente vertical (como nos EUA). Quando há no topo e que continuará
mais idosos, a pirâmide alarga no topo. a alargar até 2050.
100+ Média
95–99 mundial
90–94 Distribuição da
1950
85–89 população mundial População em
80–84
em 2023 idade activa
por idade e género
75–79
70–74
65–69 Média
60–64 mundial
55–59 As populações
2023
50–54 da faixa População em
45–49 sombreada estão idade activa
40–44 na idade activa,
35–39 sustentando as
30–34 mais velhas e
25–29 Média
as mais novas.
mundial
20–24
15–19
10–14
5–9
0–4 Masculino Feminino
2050 População em
idade activa
10 5 0 5 10
Percentagem da população
IT ÁLIA E S TA D O S U N I D O S ÍNDIA NIGÉRIA
1,3 1,7 2,0 5,1
Até 2050, 36% da A imigração manteve a O país que será, em Uma elevada taxa de
população de Itália pirâmide do país breve, o mais populoso fecundidade manterá a
terá 65 anos, ou mais, relativamente consistente, espelha a pirâmide pirâmide mais larga na
enquanto menos compensando o declínio global. Até 2050, 68% da base. Até 2050, mais
de 12% terá menos gradual do número de sua população estará em de 35% da sua população
de 15 anos. nascimentos. idade activa. terá menos de 15 anos.
JASON TREAT, RILEY D. CHAMPINE E EVE CONANT; BRANDON SHYPKOWSKI FONTES: “PREVISÕES SOBRE POPULAÇÃO MUNDIAL
DA ONU 2022”; SAMUEL CLARK, UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OHIO; ADRIAN RAFTERY, UNIVERSIDADE DE WASHINGTON;
PATRICK HEUVELINE, UCLA; COMISSÃO EUROPEIA, JOINT RESEARCH CENTRE
ONDE
~
A POPULACAO
CRESCE
ATÉ 2050, ESPERA-SE
QUE A NIGÉRIA ACOMODE
377 MILHÕES DE
HABITANTES NUM PAÍS
COM MENOS DE UM DÉCIMO
DO TAMANHO DOS ESTADOS
UNIDOS. COMO SERÁ A VIDA
DE UMA CRIANÇA QUE
CRESÇA NO PAÍS MAIS
POPULOSO DE ÁFRICA?
TEXTO DE ADAOBI TRICIA NWAUBANI
FOTOGRAFIAS DE YAGAZIE EMEZI
15
COM 5 BEBÉS,
DÁ SETE
Após cinco anos a
tentar conceber, Foyeke
Omage e o marido,
Ewanle, tiveram
quíntuplos por milagre.
No entanto, ficaram
endividados. O país
que estas crianças
herdarão será muito
diferente. Até 2050,
quando tiverem 29 anos,
a Nigéria deverá
ter mais 150 milhões
de habitantes.
INVESTIMENTO de habitantes. Apesar
do investimento da
20 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Segundo as projecções, até 2050, ano em que mos, então, o futuro da Nigéria, a minha terra
Eziaku completará 28 anos, a Nigéria terá 377 mi- natal, através dos olhos de Eziaku, que crescerá
lhões de habitantes, tornando-se o terceiro país num país diferente daquele em que eu e os seus
mais populoso do mundo, superado apenas pela pais crescemos.
Índia e pela China.
Partindo do princípio de que a criança perma-
E
necerá na Nigéria, qual será o aspecto do país ZIAKU DESCANSA tranquila-
de Eziaku? Todas estas pessoas têm as suas pre- mente nos braços maternos, com o
ferências culturais, as suas políticas e práticas rosto gorducho várias vezes mais escu-
religiosas. Todas precisam de comida, emprego, ro do que o da mãe, uma das muitas característi-
transportes, água, saneamento, electricidade, cas que a bebé partilha com a avó, com quem os
cuidados de saúde e escolas, entre outros servi- parentes dizem que se parece. Amara deu a
ços. Segundo os indicadores demográficos, será Eziaku o nome da sua mãe, professora primária
esse o aspecto da Nigéria até meados do século. reformada que morreu aos 71 anos, quatro meses
As estatísticas são fundamentais para projectar antes de a neta nascer. Sofria de diabetes e de
o futuro, mas também são desligadas dos seres problemas renais e fez diálise durante a maior
humanos que pretendem representar. Observe- parte da gravidez da filha.
24 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
P ROJ EC ÇÕE S
1.670 1. Índia
milhões
~
A ASCENSAO
´
DE AFRICA 1.428
6. Indonésia
7. Brasil
340
8. R.D. Congo
9. Etiópia
10. Bangladesh
Países com maior população
224
do planeta entre aqueles
que se projecta que terão
mais de 10 milhões de
habitantes em 2050
Países subsaarianos 15. Tanzânia
representados a verde
20. Uganda
21. Quénia
22. Sudão
544
1. China milhões de
habitantes 26. África do Sul
27. Angola
28 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
mulher não deveria ter mais do que quatro filhos,
embora a directiva tivesse sido parcialmente
baseada em estudos que mostram que a saúde
da mãe começa a sofrer após a quarta gravidez.
“As pessoas citam sempre mal essa política”, diz
Akanni Akinyemi, professor de demografia na
Universidade Obafemi Awolowo. “Dizem que não
podemos ter mais do que quatro filhos, como se
fosse uma lei. Não era nada disso”, diz-me. “Pe-
dia-se apenas para a população tomar uma deci-
são racional sobre planeamento familiar.”
Amara conhece as iniciativas de planeamen-
to familiar do governo e considera-as positivas.
“Olhe para quantos somos agora e há pessoas com
dificuldades em sobreviver. Os ricos da Nigéria
estão a chorar e os pobres também. Todos estão
VIVER
com problemas. Imagine como será ainda mais
difícil se a nossa população continuar a crescer”,
COM POUCO afirma. No entanto, ela não usa métodos de con-
tracepção modernos, preferindo métodos de pla-
Emmanuel e Nwakaego neamento familiar naturais, como o aleitamento
Ewenike vivem com prolongado, que reduz a fertilidade, e evitar as
quatro filhos num
apartamento de um relações sexuais durante a ovulação.
quarto, na cidade de “A minha mãe aconselhou-me a não meter no
Ajegunle. Cerca de meu corpo essas coisas que as pessoas metem no
trinta pessoas partilham
o edifício, que não tem corpo para o planeamento familiar”, diz Amara,
água canalizada nem mencionando histórias que ouviu sobre efeitos
electricidade. secundários do uso de contraceptivos. “Ela acre-
O ambiente para criar
crianças é “mau”, conta ditava que tudo acontece com naturalidade, so-
Emmanuel. No entanto, bretudo quando rezamos e acreditamos em Deus.
ele e Nwakaego Por enquanto, vou seguir os seus conselhos.”
conseguem que eles
frequentem a escola Amara ri-se enquanto admite com timidez que
e aulas de religião. poderá ter até quatro filhos, uma vez que não pla-
neia parar até ter um rapaz. “Se o terceiro for uma
rapariga, vou tentar ter mais um”, afirma.
Embora Amara não esteja sob nenhuma pres-
incluindo primos e outros membros da família são do marido ou família alargada para ter um ra-
alargada. “Ir para casa era sempre divertido”, diz. paz, a maioria das culturas da Nigéria dá mais va-
Tinha sempre com quem brincar. “Os meus filhos lor aos meninos do que às meninas. “Em algumas
não vão ter as famílias grandes que nós tivemos.” culturas, quando uma mulher não tem um filho,
A taxa de fecundidade da Nigéria era superior isso pode ser um problema para ela”, diz Chide-
a sete filhos por mulher quando Kenneth nasceu, ra Benoit, da Iniciativa para a Consciencialização
em 1983. Em 2004, o governo lançou um plano sobre a Explosão Populacional, uma associação
de dez anos destinado a reduzir a taxa de fecun- sem fins lucrativos nigeriana empenhada em
didade para apenas quatro filhos por mulher e a contrariar as crenças que levam os casais a terem
aumentar o uso de contraceptivos pela população muitos filhos. Em algumas famílias, quando o ho-
sexualmente activa do país, elevando-o a 30%. mem morre, “expulsam a mulher, apreendem to-
A taxa de fecundidade desceu ao longo da década dos os bens do homem e dizem que a mulher não
seguinte, mas apenas para 5,5 filhos por mulher, tem um filho homem para perpetuar a linhagem.
pois menos de 10% dos casais usa contracepção. Por isso, uma mulher com quatro ou cinco filhas
O fracasso da política não foi surpreendente. Des- vai continuar… a ter mais filhos, na esperança de
de o início que muitos nigerianos condenavam a ter um rapaz porque esse filho homem é a sua
recomendação do governo, segundo a qual uma apólice de seguro para o futuro.”
M
ESMO SENDO uma adulta os nigerianos viram os preços dos alimentos
com formação superior, Eziaku aumentar 20% face ao ano anterior – o maior
deverá enfrentar um dos maiores aumento dos últimos 17 anos. Mesmo que
desafios do seu país: encontrar comida suficien- Eziaku tenha dinheiro, pode não haver comida
te. A Nigéria gasta 20,7 mil milhões de euros por suficiente para comprar.
ano com a importação de alimentos e é um dos Antigo presidente da Nigéria e um dos agri-
países que mais sofrem de fome no mundo: mais cultores mais famosos do país, Olusegun Oba-
de 19 milhões de pessoas enfrentaram níveis crí- sanjo fez uma alusão ao problema num evento
ticos de insegurança alimentar em 2022. em Lagos em 2021. “O meu coração sofre com o
Kenneth e Amara não estão entre eles, mas mar de cabeças que voam diante dos meus olhos
mantêm um controlo rigoroso sobre o seu orça- nos parques, nos mercados e sob as pontes”, de-
mento. “Compramos comida primeiro e depois clarou. “Como vamos alimentar esta população
poupamos para o resto”, diz Amara. Apesar dis- explosiva?”
32 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
No Outono passado, viajei até à vila de apostasse de novo na agricultura durante o seu
Abeokuta para ver Obasanjo, que há quase primeiro mandato, que durou até 1979. Lançou
50 anos vive obcecado com o aprovisionamento a Operação Alimentem a Nação, que incentivou
alimentar da Nigéria. Encontrei-me com ele no todos os nigerianos a dedicarem-se à agricultura.
último piso do edifício que aloja a sua residên- “A ideia era cultivar legumes, até nas traseiras
cia particular e a sua biblioteca presidencial. de casa”, explica.
Antes da descoberta de petróleo, em 1956, a Enquanto converso com ele sobre essas ideias,
Nigéria era famosa por uma longa lista de cultu- uma fila de pessoas aguarda pacientemente a
ras lucrativas como óleo de palmeira-dendém, sua vez, do lado de fora da sala de visitas. Apesar
cacau e amendoim, mas a aposta excessiva do dos seus 86 anos, Obasanjo continua a ser um
governo no crude resultou na negligência de homem ocupado, reunindo-se com aspirantes a
outros sectores e a economia agrária esgotou- políticos, agências governamentais e chefes de
-se. Obasanjo é uma figura recorrente da histó- Estado africanos, mas a sua paixão pela agricul-
ria pós-colonial da Nigéria. Ascendeu ao poder tura prevalece sempre. Quando os meus 30 mi-
em 1975, durante uma década de governos mili- nutos acabam, ele pede-me que espere algumas
tares sucessivos, e foi mais tarde eleito para dois horas para me mostrar as suas famosas quintas
mandatos presidenciais. Tentou que a Nigéria nos arredores da cidade.
34 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Nwuneli explica que os trabalhadores têm
agora de ser escoltados de e para as quintas onde
a sua empresa investe. Sob o espectro do medo,
diz, “não é possível gerir uma empresa”.
À medida que a população da Nigéria aumen-
ta, a crescente insegurança, especialmente no
Norte, é a maior preocupação de Kenneth no
que diz respeito à sua família. É também por
isso que ele costuma estar longe de casa, dei-
xando Eziaku sozinha com a mãe e a irmã. Cerca
de um ano depois de se casarem, foi transferido
da cidade meridional de Enugu para Jos, mais a
norte, palco de vários incidentes violentos nas
duas últimas décadas. Kenneth mostrou-se re-
lutante em levar a família. O sítio seguro mais
próximo de que se conseguiu lembrar foi Abu-
ja, a cerca de 265 quilómetros. “Não digo que
Abuja seja totalmente segura, mas é mais segura
do que qualquer outro sítio do Norte,” diz. “Por
EDUCAÇÃO isso, decidi que elas ficariam cá enquanto eu
A
um ensino moderno MARA PASSA MUITO tempo a
alicerçado nos murmurar orações a Eziaku, sobretudo
princípios islâmicos. trechos da Bíblia que decorou. “O rosto
No Norte da Nigéria,
predominantemente do Senhor brilhará sobre ti”, diz-lhe. “Vais dei-
muçulmano, onde o tar-te sempre em pastos verdejantes.” Ela segura
conflito arrasou muitas as mãos e os pés da bebé e fala com ela. “Não vais
escolas, só cerca de
metade das crianças ser como eu. Não vais passar dificuldades”, diz,
tem acesso ao ensino. acreditando que as palavras positivas têm o
poder de moldar o futuro de uma criança.
Eziaku é o termo igbo para “boa saúde” e um
dos pedidos de Amara é que o nome da sua filha
seja profético.
também… Esse pico de criminalidade tornou a “Sei que trabalhamos arduamente e que há
agricultura mais difícil.” Nos dois últimos anos, dignidade no trabalho, mas continua a haver
homens armados deslocando-se de motocicleta alturas em que a sorte ultrapassa o trabalho ár-
raptaram milhares de pessoas na Nigéria para duo”, diz Amara. “Rezo para que ela nunca tenha
pedir resgates. Os trabalhadores de empresas dificuldades nesta vida, na Nigéria ou noutro lu-
agrícolas foram especialmente visados, obrigan- gar qualquer. Em qualquer sítio onde esteja, que
do muitas quintas a abandonarem ou reduzirem as suas mãos não se esforcem para abrir portas.
as operações. A maioria das grandes quintas ni- Que ela encontre apenas portas abertas.”
gerianas situa-se nas regiões férteis do Norte. Quando Eziaku completar 34 anos, a idade
Em Março de 2022, no estado de Kebbi, várias que a sua mãe tinha quando ela nasceu, o bebé
pessoas foram mortas num tiroteio entre agentes número 9.000 milhões já terá chegado há muito
de segurança e bandidos que atacaram as instala- e faltarão poucos anos para atingirmos 10.000
ções da GB Foods, uma fábrica de processamento milhões. “Haverá comida para todos nessa altu-
de tomate do país. A nível nacional, mais de 350 ra?”, interroga-se Amara. “Acredito que a Eziaku
agricultores foram raptados ou assassinados en- será excepcional por mais pessoas que existam
tre Junho de 2021 e Junho de 2022. no mundo.” j
36 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
ONDE
~
A POPULACAO
DECRESCE
PACOTINHOS
DE ALEGRIA
Num centro de cuidados
neonatais em Hangzhou,
enfermeiras tratam dos
bebés enquanto as mães
recuperam. Estes centros
privados proporcionam
às mães com dinheiro o
tempo de recuperação
necessário, chamado
zuo yuezi pela medicina
tradicional chinesa.
O custo de criar filhos
na China contemporânea
é um factor que
contribui de forma
decisiva para o declínio
demográfico do país.
MILHÕES EM
MOVIMENTO
Chongqing, uma cidade
em expansão no
Sudoeste da China,
registou um cresci-
mento rápido durante
décadas, mas manteve
a tradição de comer
sopa quente em
espaços lotados ao ar
livre. Calcula-se que a
população desta área
urbana seja superior a
17 milhões de habitan-
tes. À medida que a
região se desenvolveu,
foram construídas
linhas de metropoli-
tano, acima e abaixo do
solo, para aliviar os
engarrafamentos.
COMEÇOU O OUTONO
E AS RUAS DA ALDEIA
DE DING QINGZI
VÃO ADQUIRINDO
TONS DOURADOS.
Milhares de maçarocas de milho desfolhadas ja-
zem no chão, em rectângulos ordenados diante
das casas, enquanto os grãos secam ao sol. A co-
lheita é um dos acontecimentos mais marcantes
da vida rural na província de Anhui, uma cons-
tante que Ding, de 35 anos, conhece desde a in-
fância. No entanto, já restam poucas destas tra-
dições. Há casas abandonadas. A algazarra das
crianças desvaneceu-se. E, durante vários anos,
Ding teve de esforçar-se para encontrar mulher.
Poucas jovens vivem na aldeia agora e menos ain-
da estão dispostas a casar-se com um soldador
incapaz de comprar uma casa ou pagar o dote da
mulher. “A minha família não é rica”, diz Ding.
FILHA E
De pé na eira, desfolhando as maçarocas, a tia NETA ÚNICA
de Ding queixa-se da triste sorte daqueles a que
chama “os homens que sobram”. Na aldeia, vivem Kong Niling, de 5 anos,
visita o bisavô Lu Jinfu
dezenas de solteirões com 30 a 50 anos, explica. e a bisavó Yafen em
São homens solitários como Ding, cujas esperan- Xangai. O casal teve
ças de amor e família colidiram com uma força três filhos e cada um
teve um filho, cum-
inexorável: a convulsão demográfica da China. prindo a política de
Após décadas de uma taxa de natalidade em filho único. Niling
baixa acentuada, o país iniciou um declínio de- é o seu único bisneto.
42 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
filhos, exacerbada pela política de filho único de Humilhado pelo fracasso, Ding começou a evi-
Pequim, agora abandonada. A China tem agora tar reuniões de família. “Eram insuportáveis”,
um excesso de cerca de trinta milhões de homens, diz. Os parentes só falavam da sua situação de
mais de metade dos quais em idade casadoira. “ramo nu”, o termo local para o homem que não
Esta aritmética brutal ameaçava expulsar Ding acrescenta frutos à árvore genealógica da família.
do mercado matrimonial. Quando ele pediu em
casamento a sua primeira namorada, os pais dela
P
recusaram porque ele não tinha dinheiro para ODE PARECER um paradoxo
comprar uma casa nova. Os pais de Ding solici- falar em escassez demográfica num
taram créditos para comprar um carro e remo- país com mais de 1.400 milhões de
delar um apartamento numa cidade vizinha com habitantes. Ao longo da história, a identidade e a
o único objectivo de atrair uma esposa. O preço força da China têm estado associados ao tamanho
da noiva, o dote pago à família da mulher, seria da sua população. A emergência do país como
de aproximadamente 27 mil euros. Ao longo dos potência do século XXI tem sido alimentada pela
anos, uma casamenteira só conseguiu convencer sua aparentemente inesgotável disponibilidade
um punhado de mulheres a aceitarem um encon- de trabalhadores, centenas de milhões dos quais
tro às cegas com Ding. têm migrado para as cidades.
46 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
A China não é o único país à beira do precipí-
cio demográfico. A diminuição das taxas de na-
talidade e o aumento da esperança de vida têm
sido marcas inquestionáveis das economias ur-
banas industrializadas, uma interacção que re-
sultou numa inversão da pirâmide demográfica
na Ásia Oriental e na Europa Ocidental. A China
desce velozmente pelo caminho aberto pelos
seus vizinhos envelhecidos, o Japão e a Coreia
do Sul. Em 2021, a Coreia do Sul apresentava a
mais baixa taxa de fertilidade do mundo: 0,81 fi-
lhos por mulher. A China não estava muito atrás,
com 1,16 e isso não chega a metade da “taxa de
substituição” necessária para a manutenção de
uma população estável.
No entanto, a situação da China é singular-
mente assustadora, não só por força da sua di-
mensão e influência global, mas também devido
a uma particularidade indesejável: será prova-
velmente o primeiro país a envelhecer antes de
50 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
que frustraram Ding. Segundo os cientistas so-
ciais, reflecte também os níveis crescentes de
formação, riqueza e urbanização, juntamente
com a afirmação dos direitos e a autonomia das
mulheres, como no caso de Yu. A pandemia de
COVID-19 e os confinamentos sucessivos reduzi-
ram ainda mais os números.
Em finais de 2021, a União da Juventude Co-
munista da China fez um inquérito a pessoas com
18 a 26 anos e descobriu que 44% das mulheres e
25% dos homens não tinham a certeza se queriam
casar-se. Essas percentagens revelaram-se mais
elevadas entre as mulheres jovens como Yu, que
vivem nas cidades modernas da China. Os núme-
ros foram tão desconcertantes para a liderança
que a Juventude Comunista assumiu o papel de
Cupido, organizando jornadas para quebrar o gelo
e “viagens no comboio do amor” para ajudar os
camaradas solteiros a encontrarem cônjuge.
A PRÁTICA Yu quase se casou por duas vezes. Agora, aos
P
ARA COMPREENDER a enor-
me velocidade da inversão populacio-
nal na China, vale a pena recuar à
Terminou o namoro, arrendou e remodelou um década de 1970, quando o mundo era dominado
apartamento e agora vive sozinha. A ideia de se ca- por um pânico malthusiano relativamente à
sar e ter filhos deixara de parecer inevitável e pare- iminente explosão demográfica. O sentimento
cia-lhe agora uma barreira à liberdade. “Olho para de perigo era mais intenso na China, onde
o casamento dos meus pais e dos amigos e não vejo Mao exortara o povo durante anos a fio a produ-
nada para invejar”, diz com secura. zir mais bebés para tornar a pátria forte. A nova
Shasha Yu e Ding Qingzi encontram-se em ex- administração chinesa, sob liderança de Deng
tremos opostos do espectro socioeconómico da Xiaoping, temeu que o rápido crescimento
China. Juntos, porém, ajudam a perceber a razão da população destruísse os recursos necessários
pela qual as taxas de natalidade e de matrimónio ao crescimento económico e que isso conduzis-
da China caíram para os níveis mais baixos em se a outra crise de fome. “A China era tão pobre
décadas. Em 2021, a China registou 7,6 milhões na década de 1970 que os líderes temeram
de casamentos, uma queda de 43% relativamen- não conseguir alimentar as massas. A obsessão
te ao pico de 2013 e o oitavo ano consecutivo de era conduzir a economia a crescimentos de 7%
declínio. A mudança é parcialmente motivada ao ano”, diz Yong Cai. “A maneira mais rápida
pelo desequilíbrio de género e pelo aumento consistiu em reduzir o número de bocas
galopante dos custos do casamento, os factores a alimentar.” (Continua na pg. 56)
OS DEMÓGRAFOS FAZEM
para acelerar a queda, “acrescentando
neve à geada” na expressão de Yong Cai.
Em 2021, poucas semanas depois
OUTRA PERGUNTA:
de os números do censo mais recente
revelarem nova queda na taxa de na-
talidade, Pequim anunciou uma nova
S
número excessivo de homens e de adultos idosos CARLETT CAI e o marido pode-
e um número insuficiente de jovens. riam ser candidatos perfeitos para a
Os demógrafos fazem outra pergunta: a po- próxima explosão de nascimentos. No
lítica de filho único terá sido necessária? A taxa seu elegante apartamento de Xangai, o jovem
de fertilidade da China já começara a baixar – de casal já conta com três dependentes – da varieda-
quase seis filhos por mulher em 1970 para menos de felina – enquanto vai debatendo a questão dos
de três em 1980, ano em que a política foi imple- filhos. Ao longo dos anos, a mãe dela tem-na avi-
mentada. “Quase 75% do declínio da fertilidade sado sobre os casais com dois rendimentos e sem
na China aconteceu antes de a política do filho filhos que tentaram ter filhos demasiado tarde.
único ser posta em prática,” afirma Wang Feng. Da última vez que a mãe lhe massacrou o juízo,
Além disso, a explosão económica seria inevi- Scarlett, agora com 36 anos, explodiu: “Não ando
tável assim que a China se abrisse ao mundo. Im- a viver só para parir um filho!”
pulsionado por uma jovem força de trabalho, um Mesmo assim, o casal tem ponderado os bene-
dividendo do surto demográfico dos tempos de fícios e inconvenientes. O aumento vertiginoso
Mao, o país transformou-se na fábrica do mundo dos custos constitui um obstáculo num ambiente
numa única geração. Segundo Wang Feng, mes- competitivo em que os pais se sentem pressiona-
mo sem a política de filho único, o crescimento dos a gastar rios de dinheiro com os filhos. Uma
económico explosivo e o declínio demográfico estimativa de 2019 fixa em 71.500 euros o custo de
teriam acontecido. A liderança chinesa, porém, criar um filho, sete vezes o PIB per capita da Chi-
insistiu em manter o programa depois de os sinais na. Em Xangai, o custo é duas vezes superior. As
de alerta começarem a piscar. “A China atingiu despesas não perturbam tanto Scarlett Cai como
taxas de fertilidade inferiores aos níveis de subs- o investimento em tempo e energia e a invasão da
tituição no início da década de 1990,” explica o de- privacidade. “Não consigo adaptar-me a um espa-
mógrafo. “E a situação continuou a piorar.” ço de habitação com mais uma pessoa”, diz ela.
56 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Durante muito tempo, ela encarou a decisão da taxa de natalidade, há cada vez menos jovens
de não ter filhos como uma espécie de rebelião trabalhadores para substituírem pessoas como
feminista. Enquanto crescia, viu muitas mulhe- Dong, que se reformou aos 50 anos. A força de
res a casarem-se novas, deixarem os empregos e trabalho da China começou a diminuir há cerca
perderem a sua identidade devido aos filhos e às de uma década e, segundo as previsões, perderá
tarefas domésticas. “Desde miúda que vejo dema- quase 150 milhões de trabalhadores até 2040.
siadas mulheres invisíveis”, afirma. “Sempre me Entretanto, prevê-se que as fileiras dos idosos
interroguei por que razão teria de ser assim” Leu venham a engrossar em mais de 200 milhões: de
Simone de Beauvoir, estudou filosofia e desco- 13% da população na actualidade para quase um
briu no marido um espírito gémeo. “Ao longo dos terço em 2050. E não é apenas a bolha dos nas-
anos, o meu marido e eu chegámos a um consen- cidos durante a época do surto demográfico que
so”, diz. “Os seres humanos não têm necessidade atinge a idade da reforma: os adultos mais velhos,
imperiosa de se reproduzirem.” como se vê pelos que passeiam no parque de Xan-
No Outono passado, porém, Scarlett sentiu de gai, estão a ficar mais saudáveis e a viver mais
repente um vago desejo de ter um filho. Afectada tempo. A esperança de vida na China elevou-se
pelos efeitos dos longos confinamentos nos ido- de 55 anos em 1970 para cerca de 78 na actualida-
sos, sentiu-se reconfortada pela ideia de envelhe- de. É um sinal de progresso, mas gera um dilema:
cer junto de um filho ou de uma filha, “uma pes- como será a China capaz de sustentar uma socie-
soa próxima de nós”. Essa sensação desapareceu dade em estado de “superenvelhecimento”?
em Dezembro, porém, quando a suspensão re- As famílias chinesas, outrora muito extensas,
pentina da política de confinamento pelo gover- reduzem-se agora a estruturas “4-2-1”: quatro
no desencadeou uma propagação veloz da COVID avós, dois progenitores e um filho. Embora ade-
e instalou o caos nos hospitais. “Se tentarmos ter quado à criação de uma criança e à acumulação
um bebé agora, o risco será demasiado elevado e de riqueza, este esquema transforma-se num far-
a pressão demasiado forte”, afirma. “Para bem da do para os mais idosos, à medida que os membros
criança, é melhor não a trazer a este mundo.” da família envelhecem. Os filhos únicos da China,
calculados em 150 milhões, criados por seis cui-
dadores, encontrar-se-ão de súbito na situação de
O
S REFORMADOS juntam-se serem responsáveis por cuidar de alguns deles ou
todas as manhãs sob os plátanos, num de todos. Esta dinâmica arrasta a economia para
parque de Xangai. Um círculo de o fundo, à medida que uma força de trabalho cada
mulheres de cabelo grisalho dança frequente- vez mais pequena se esforça por financiar os sis-
mente em uníssono, ao som de uma canção de temas de pensões e os cuidados de saúde necessá-
tons agudos que emana de uma coluna portátil. rios a uma crescente população envelhecida.
Outro grupo desloca-se silenciosamente através Segundo uma estimativa da Academia Chi-
dos movimentos fluidos do tai chi. nesa das Ciências Sociais, a pensão social para
Certo dia, há pouco tempo, uma reformada de empregados urbanos poderá esgotar-se em 2035.
69 anos sentou-se num banco de jardim obser- Mesmo que as políticas públicas mudem, o défi-
vando os colegas reformados a terminarem os ce demográfico “acarretará seguramente conse-
seus exercícios. A mulher, que revelou o apelido, quências económicas muito desfavoráveis”.
Dong, mas não quis dizer o nome próprio, traba-
lhara duramente durante décadas numa fábrica
O
de produtos plásticos. Foi uma das trabalhadoras QUE PODE A CHINA fazer?
que impulsionaram os primeiros anos da expan- Considerando as forças demográficas
são industrial da China. Passa agora a maior parte já existentes, não será possível impe-
do tempo a cuidar da neta: vai levá-la e buscá-la à dir uma quebra demográfica acentuada. Isso não
escola e cozinha-lhe o jantar todos os dias. “Se eu é de todo mau para o planeta: pode contribuir
não ajudar a minha filha a cuidar da criança, ela para combater as alterações climáticas e para ali-
não conseguirá trabalhar”, diz Dong. viar a pressão sobre o ambiente e as cidades lota-
Dong representa a convergência de duas das das da China. Mesmo assim, Pequim mostra-se
mais perturbadoras tendências da China de hoje: desesperada por mitigar as repercussões econó-
a redução da força de trabalho e o crescimento micas que impeçam a China de alcançar a meta
explosivo da população idosa. Devido ao declínio da “prosperidade comum” proposta por Xi.
58 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
bonificações em numerário. Até ao momento,
nenhum destes incentivos parece ter resultado.
A quebra da taxa de natalidade agravou-se ainda
mais no ano passado. A pandemia e a recessão
económica dificultaram a elaboração de planos
para o futuro. Condicionadas pela política de fi-
lho único e confrontadas com a subida constan-
te dos custos, as famílias parecem indisponíveis
para terem mais do que um filho, se é que querem
ter algum. “A pressão financeira é demasiada”,
afirma Dong, a reformada que toma conta da sua
neta. “É suficiente criar bem um filho.”
D
ING QINGZI já tinha praticamente
desistido de se casar quando recebeu
um telefonema da sua casamenteira
em finais de 2021. Ela descobrira uma mulher na
província de Anhui que estava disposta a encon-
TRÊS SÃO trar-se com ele. Havia apenas dois problemas: a
60
O
Futuro
desdobra-se
H Á́ M U I T O Q U E O O R I G A M I I N S P I R A O S A R T I S T A S . A G O R A , A B R E N O V O S
^ NCIA E NA TECNOLOGIA .
CAMINHOS NA CIÊ
T E X T O D E M AYA ő E I - H A A S
64 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
EXPLORAR
Este disco expansível para bloquear a luz, a
ocupa o centro de um sombra estelar pode
protótipo à escala de ajudar os cientistas a
'ŗ(Z[kcWiecXhW verem melhor. A es-
estelar no Laboratório trutura da sombra
de Propulsão a Jacto da estelar baseia-se num
NASA, que poderá ser padrão intermitente,
uma peça essencial na que lhe permite
busca de mundos enrolar-se num cilindro
habitáveis. A nossa para o lançamento.
galáxia tem quase Uma vez instalada, a
tantos planetas sombra (parcialmente
como estrelas, mas os aberta na imagem
cientistas ofuscados anterior) desdobrar-se-
pelas segundas não os -ia, assumindo a forma
conseguem detectar de um disco plano
directamente. Voando à com pétalas, seme-
frente de um telescópio lhante a uma flor.
EXPLORAÇÃO
SECTORES QUE ESPACIAL
UTILIZAM
ORIGAMI As missões espaciais requerem estruturas
leves e versáteis, compactas durante o
transporte e grandes depois de instaladas.
As ferramentas espaciais inspiradas em origami
evoluíram e incluem agora antenas, sistemas
fotovoltaicos, escudos solares e velas solares.
D E S D O B R A N D O A C I Ê^ N C I A
ORIGAMI
Dobrada Desdobrada
ESTRUTURA
DE ORIGAMI
SUBJACENTE
OMNIPRESENTE
Os engenheiros concentram-se
COMO
FUNCIONA
Após a instalação, o disco interior parece-se muito
com uma roda de bicicleta: uma armação exterior
é suportada por raios esticados contra um eixo
central. Um motor desdobra um escudo óptico
com 20 metros de diâmetro.
cada vez mais na multissecular arte
de dobrar papel em modelos
Telescópio
tridimensionais para dar forma a com sombra Estrela
alguns dos desenhos mais estelar
Implantes Fachadas
vertebrais fotossensíveis
“Implantes instaláveis” das Torres Al Bahar
permitem a colocação Para combater o calor
de formas compactas intenso e tempestades
dentro de um osso de areia, duas torres
fracturado antes de construídas nos
se desdobrarem e se Emirados Árabes
tornarem estruturas de Unidos em 2012 incluem
sustentação de maiores 1.049 dispositivos
dimensões. O fabrico de sombreamento
de implantes em estado inspirados em origami.
plano permite desenhar Os ecrãs reagem à
superfícies que exposição solar,
podem promover abrindo-se durante o
a regeneração óssea dia para dar sombra e
e matar bactérias. conservar energia.
Uma forma plana composta por seis painéis Cada dispositivo de sombreamento é feito de
é dobrada como um cubo compacto que depois, malha de fibra óptica e pesa cerca de 1,7 toneladas.
com uma cirurgia minimamente invasiva, é O software que acompanha a posição do Sol
colocado no interior da vértebra fracturada. controla a sequência de abertura e fecho,
consoante o sítio onde este se encontra.
Cateter
do balão
Os painéis
reduzem a
absorção
de luz solar
em mais de 50%
Fluxo O sistema
aéreo pode ser
contornado para
controlar painéis
individuais.
Sensores solares
e de vento abrem
automaticamente
os painéis quando
há vendavais e
fecham-nos
durante períodos
prolongados de
céu encoberto.
ROBÓTICA ENGENHARIA
MICROSCÓPICA
Comparados com a robótica convencional Robots minúsculos poderiam ser injectados na
e quando fabricados em duas dimensões ponta de uma agulha. Seriam um auxílio em
e depois montados em três, os designs microcirurgias, limpando bactérias ou explo-
de origami podem ser mais fáceis de armaze- rando mundos a uma nova escala. Invisíveis a
nar e são mais eficientes, suportando meca- olho nu, alguns podem transformar-se em
nismos informáticos e sensores complexos. formas 3D capazes de caminhar ou nadar.
A pinça tem um esqueleto dobrável em borracha de Membros robóticos são construídos em redor de
silicone baseado num padrão de origami que pode um microchip plano que funciona como cérebro.
alternar entre a forma esférica e a cilíndrica. Apresen- Alimentadas pela luz, reacções electroquímicas
ta-se envolto em pele de borracha hermética. criam tensão e curvam a camada de base das
pernas.
Painéis
solares
Pele
Perna
extensível
Microchip
Esqueleto
Corte o modelo da
Lin
sombra estelar
vale
has
pelas linhas
de
pontilhadas.
Linhas de
mo
nta
nha
H cesso de atribuição de
números aos padrões com-
plexos do origami motiva o
trabalho do matemático
Thomas Hull, da Universi-
dade de Nova Inglaterra Ocidental. Quando entro
Quando tocadas, as células contraem-se, trans-
formando estruturas planas em “peças de Lego”
celulares, como ela lhes chama, que um dia po-
derão ajudar a desenvolver órgãos.
Apesar da actual popularidade do origami na
ciência e na tecnologia, as primeiras incursões
no Departamento de Matemática da sua facul- dos investigadores nos domínios das dobragens
dade, percebo logo qual é o seu gabinete. A porta encontraram resistência. Thomas Hull ainda se
ao fundo do corredor está entreaberta, revelando lembra de uma discussão em 1997 com um gestor
papel de cores garridas dobrado em todo o tipo de de programa da Fundação Nacional de Ciência
formas geométricas. Os modelos preenchem cada (NSF, na sigla anglófona), a agência governamen-
canto da divisão: pendem do tecto, enfeitam as tal dos EUA que apoia a investigação e o ensino.
estantes e ilustram o desktop do computador. Tho- Thomas apresentava então os contornos gerais
mas sente-se fascinado há muito por padrões e de um potencial projecto quando o gestor de pro-
ainda se lembra de ter dobrado uma garça de grama o interrompeu para dizer que a NSF nunca
papel aos 10 anos, maravilhando-se com os vincos financiaria “uma proposta de investigação com
ordenados na folha lisa. origami no título”. (Continua na pg. 80)
74 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
76 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
FLUTUAR
;c(&&-"7djedM_bb_i" revista, deu-lhe a ideia papel para ver onde ele
que acabara de concluir de resolver o seu se dobrava sozinho e
a sua pós-graduação em problema: um caiaque depois refinava o
arquitectura, mudou-se que se dobrasse. processo a partir daí”,
para um apartamento Começou a fazer diz Anton, que acabou
em São Francisco. O imó- modelos em papel, por por fundar a Oru Kayak.
vel era tão atravancado vezes sorrateiramente A empresa tem agora
que ele teve de guardar no escritório, com uma uma gama completa de
o seu adorado caiaque única folha para garantir embarcações dobráveis
num armazém. Um que a embarcação seria que se compacta em
artigo sobre Lang, o estanque. “Durante minutos, disponível ao
artista de origami e algum tempo, era quase mesmo preço dos
físico, publicado numa como se amarrotasse o caiaques tradicionais.
O FUTURO DESDOBRA-SE 77
IÇAR
Shuguang Li estava a
brincar com um cilindro
desdobrável em origami
quando, num impulso, o
pôs no saco do aspira-
dor. Shuguang, então
bolseiro de pós-douto-
ramento em Harvard e
no MIT, sugou o ar e
ficou surpreendido por
ver a forma contrair-se
como se estivesse a
pressioná-la com a mão.
Ao testar outras formas,
apercebeu-se de que os
padrões de dobragem
e a rigidez dos materiais
controlavam os seus
movimentos, uma
descoberta que levou
à criação destes braços
robóticos fortes,
suaves e leves. Cada
braço funciona como
um músculo artificial,
envolto numa “pele”
de saco de vácuo com
um esqueleto interno
inspirado por dobra-
gens de origami.
Variando a pressão
do aspirador, Shuguang
consegue que os braços
executem tarefas úteis,
como levantar e
segurar objectos.
Este cepticismo não foi exclusivo dos Estados
Unidos. Tomohiro Tachi, um famoso engenheiro
de origami da Universidade de Tóquio, baixa os
olhos e sorri quando lhe pergunto se enfrentou re-
sistência ao seu trabalho. Conta que os japoneses
vêem com frequência o origami como uma brin-
cadeira para crianças. No entanto, essa percepção
tem mudado nas últimas décadas e a NSF liderou
grande parte da mudança.
Quando ocupou um cargo temporário na or-
ganização, a partir de 2009, Glaucio Paulino in-
sistiu em financiar investigação com origami.
“O processo foi brutal”, conta este professor de en-
genharia em Princeton. “Estávamos sempre pres-
sionados a defender a ideia.” Em contrapartida, os
esforços compensaram. Em 2011, a NSF publicou
o primeiro de dois concursos combinando origa-
mi e ciência e equipas de investigadores apresen-
taram as suas ideias. Esta acção deu legitimidade
ao campo emergente e o uso do origami na ciência
floresceu. “Muitos começaram a trabalhar em ori-
gami”, diz Robert J. Lang. “Chegara o seu tempo.”
A ultrapassar os limites
daquilo que os cientistas
consideram possível, em par-
ticular nas mais ínfimas
escalas. Num dia escaldante
de Verão, encontro-me com Marc Miskin, enge-
nheiro electrotécnico da Universidade da Pensilvâ-
nia. No átrio do Centro Singh de Nanotecnologia da
Universidade da Pensilvânia, espreitamos através
de uma parede cor de laranja vivo para o interior
das salas onde pessoas vestidas com Tyvek dos pés
à cabeça trabalham atrás de microscópios ou sob
exaustores de ventilação. Parece que estamos a um É aqui que o origami entra em cena. Os padrões
mundo de distância do caos colorido do gabinete de dobragem curvam-se e deslocam-se da mesma
de Thomas Hull, mas o origami poderá ser igual- forma em qualquer dimensão, pelo menos em
mente essencial aqui. teoria. Criados com as mesmas tecnologias utili-
Marc Miskin e os seus alunos têm utilizado zadas na indústria dos chips informáticos, os ro-
a sala limpa para fabricar um exército de robots bots de Marc Miskin parecerão flocos planos com
pouco maiores do que um grão de poeira. Estes ro- braços e pernas. Accionados por uma corrente
bots minúsculos requerem muita criatividade. As eléctrica, os seus membros curvam-se, ajudan-
engrenagens e a maioria dos outros mecanismos do-os a caminhar numa gota de um escorrega de
com peças móveis funcionam melhor no mundo vidro ou a acenar a uma ameba de passagem.
à escala humana, governado pelo impulso e pela Segundo o cientista, há inúmeras possibilida-
inércia, explica o investigador. Porém, isso não se des para a utilização destes minúsculos robots –
aplica em escalas minúsculas, onde forças como a da indústria de manufactura à medicina. Por ora,
fricção são enormes, provocando constantes pro- porém, é mais importante ultrapassar os limites.
blemas. As engrenagens não funcionam. As rodas “Se perseguirmos problemas difíceis, seremos re-
não giram. As correias não correm. compensados com tecnologia interessante”, diz.
80 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
CURAR
As dobras giratórias
deste robot minúsculo
permitem-lhe girar
enquanto colapsa ou se
expande. Este padrão
Kresling homenageia a
arquitecta e especialista
em design Biruta
Kresling. As dobras
inspiraram a invenção
de estruturas cilíndricas
pequenas e grandes,
incluindo esta minúscula
ferramenta médica.
Elaborado por uma
equipa chefiada pela
engenheira mecânica
Ruike Renee Zhao, da
Universidade de
Stanford, o dispositivo
poderá um dia ser
essencial para a
administração localizada
de fármacos. Campos
magnéticos podem
conduzir o robot,
deslocando-o pelo
organismo de diversas
formas. Por exemplo, é
propulsionado pela
rotação graças à geome-
tria das suas dobras.
Ímanes emparelhados,
colocados em extremi-
dades opostas do
cilindro, obrigam as
dobras a comprimir-se,
bombeando medica-
mentos líquidos no
local desejado.
O origami é particularmente promissor na bio- É neste tipo de sonhos grandiosos que o origa-
medicina. Uma equipa liderada por Daniela Rus, mi parece ajudar mais a ciência. Esta forma de
directora do Laboratório de Ciência Informática e arte forneceu um novo conjunto de ferramentas
Inteligência Artificial do Instituto de Tecnologia para activar a imaginação e criar tecnologias
do Massachusetts, desenvolveu um robot capaz consideradas impossíveis, incluindo um caia-
de se dobrar para caber numa cápsula. Quando que que se dobra e fica suficientemente pequeno
a cápsula é ingerida, o robot desdobra-se e pode para caber no porta-bagagens de um automóvel.
ser dirigido dentro do sistema digestivo, usando Numa tarde luminosa de Outono, levo o meu
campos magnéticos programáveis. Um teste ini- caiaque para o lago Accotink, na Virgínia. A mala
cial demonstrou uma utilização possível: a remo- de plástico atrai olhares curiosos dos transeun-
ção do estômago de pilhas-botão potencialmen- tes quando a desdobro. Talvez um dia as formas
te mortais e engolidas por milhares de crianças dobradas pareçam prosaicas. Agora, porém, o
anualmente. “Imagine embutir-lhe medicamen- origami vai continuar a provocar excitação à
tos ou utilizá-la para tratar um ferimento”, pede medida que impulsiona a ciência, a medicina e a
Daniela. “Imagine um futuro de cirurgias sem in- tecnologia para o futuro – e me mantém à super-
cisões, sem dor e sem risco de infecção.” fície enquanto me afasto da margem do lago. j
O FUTURO DESDOBRA-SE 81
LIGAR
Este coelho foi dobrado (repare na aparência
a partir de um de mosaico do coelho).
padrão gerado pelo O programa ajudou a
Origamizer, um desencadear a recente
programa informático explosão de modelos
concebido por de origami. Estas
Tomohiro Tachi da formas dobradas
Universidade de Tóquio são como “uma
para criar formas língua comum”, diz
facetadas complexas o investigador.
A L E B R E -A L P I N A P RO S P E RA E M C L I M A S F R I O S .
A S UA S I T UAÇ ÃO P O D E RÁ M U DA R N U M M U N D O C A DA V E Z M A I S Q U E N T E .
T E X T O D E C A L F LY N F OTO G R A F I A S D E ANDY PARKINSON
85
Três lebres-alpinas
adultas esperam que
um nevão passe num
campo de gelo da
montanha. As lebres
procuram abrigo
sempre que podem:
aqui, a cumeeira
protege-as do vento.
Também costumam
descansar em peque-
nas reentrâncias no
solo ou na vegetação.
PÁ G I N A S A N T E R I O R E S
88 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Uma fêmea (em baixo)
rejeita os avanços
amorosos de um
macho durante o
vigoroso ritual de
corte da espécie.
As fêmeas testam a
determinação e a
resistência dos machos,
esmurrando-os antes
de os atraírem a uma
longa perseguição no
meio da urze. Este
episódio animado
terminou numa cópula.
LEBRES RESISTENTES
Concentradas nas regiões escocesas das
Terras Altas do Noroeste e das Terras
Altas do Sul, as lebres-alpinas adaptaram-
-se aos climas frios. Noutras zonas do seu
território, fora da Escócia, os resilientes
mamíferos podem ser encontrados em
altitudes até 3.700 metros.
AMÉRICA N.
Distribuição ÁSIA
da lebre-alpina
ESCÓCIA
EUROPA
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I N G L AT E R R A
40km
Abundância expectável
da lebre-alpina
Lepus timidus
Reduzida Elevada
Este comportamento é uma de várias adapta- apenas 21 espécies de aves e mamíferos que conse-
ções que permitem a este animal (a única lebre guem mudar de pelagem ou plumagem. Quase todas
ou coelho autóctone do Reino Unido) sobreviver vivem em regiões frias e com neve, explica Marketa
em condições tão duras. A mais impressionante Zimova, professora assistente de biologia na Univer-
é possivelmente a sua mudança sazonal, quando sidade Estadual dos Apalaches. Na Escócia, as
92 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
únicas outras espécies que mudam de cor desta Jogos de
forma são o arminho e o lagópode-cinzento. acasalamento
Esta pelagem de Inverno também oferece uma Uma sequência de
fotografias capta os
valiosa camuflagem às lebres-alpinas, manten- momentos anteriores
do-as a salvo de predadores como as raposas, os a um raro momento
arminhos ou as águias-reais que planam no alto. de afecto em que os
focinhos de um casal
No entanto, em condições tão variáveis como es- de lebres se tocam.
tas, a pelagem também pode ser uma maldição. As fêmeas costumam
Nas montanhas escocesas, não é invulgar as ser maiores do que os
machos e as de maiores
temperaturas subirem e descerem dramatica- dimensões tendem
mente de um dia para o outro. Nos dias mais ame- a gerar juvenis
nos, quando as turfeiras estão negras, encharca- (os láparos) em
várias ninhadas ao
das e marmoreadas com gelo, as lebres chamam longo de cada ano.
a atenção: as suas figuras brilhantes destacam-se
entre a urze escura.
Isto sempre foi um perigo, mas estudos re-
centes conduzidos por Marketa Zimova con-
cluíram que as lebres-alpinas escocesas estão
dessincronizadas das condições locais porque
as alterações climáticas causaram um declínio
acentuado do número de dias com cobertura
de neve. As primeiras neves de Outono cobri-
ram o solo, em média, quatro dias mais cedo
na década de 2010 do que na década de 1960.
LEBRES-ALPINAS 93
Uma lebre-alpina e o
seu minúsculo predador
carnívoro, o arminho,
destacam-se contra a
charneca escura com as
suas pelagens brancas.
Nesta situação, a lebre
teve sorte: o arminho
não reparou que a presa
estava tão perto.
As temperaturas médias na região subiram mais
de 0,1ºC por década, produzindo períodos mais
longos sem cobertura de neve. No geral, os re-
gistos revelam que as lebres passam mais 35 dias
por ano desfasadas da paisagem.
As consequências desta discrepância não são
evidentes, explica Scott Newey, um biólogo que
estuda lebres-alpinas no Trust de Caça e Conser-
vação de Vida Selvagem da Escócia. É uma espé-
cie difícil de monitorizar, diz. A lebre-alpina tem
ciclos populacionais durante os quais um cientis-
ta pode encontrar poucas lebres num quilóme-
tro quadrado num ano e mais de cem na mesma
área vários anos mais tarde, ou vice-versa. Esses
ciclos, possivelmente associados à disponibilida-
de de alimento e à prevalência de determinados
parasitas, variam tanto que é difícil avaliar o im-
pacte de factores como as alterações climáticas.
No entanto, censos das populações de lebres-
-americanas da América do Norte permitiram
obter algumas pistas sobre possíveis tendências
de longo prazo. Conhece-se “o custo exacto” dos
desfasamentos de camuflagem para essa es-
pécie, diz Marketa Zimova: a probabilidade de
uma lebre-americana ser caçada e morta por um
predador numa determinada semana aumenta
7 a 14% quando a lebre tem a sua pelagem de
Inverno numa paisagem sem neve. “Não parece
muito importante”, mas, quando extrapolamos
a percentagem para o ano inteiro, “pode ter con-
sequências graves”.
À semelhança do que acontece em tantas
questões relacionadas com a vida selvagem nes-
te planeta em aquecimento, o desafio parece ser
a adaptação ou a morte. E no que diz respeito
às lebres-alpinas da Escócia, não há ainda qual-
quer evidência de adaptação.
96 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Uma lebre rebola
para retirar pedaços
de gelo do pêlo depois
de ficar coberta por
neve soprada pelo
vento nas montanhas
Monadhliath.
conduzida em 2018, argumentou que as popula- tificar a melhor forma de monitorizar o efectivo
ções de lebre-alpina nos locais de caça de lagópo- deste enigmático animal.
des do Nordeste montanhoso tinham diminuído Não admira que assim seja, já que qualquer ser
para níveis inferiores a 1% dos observados em humano pode caminhar ao lado de uma lebre e
meados da década de 1950. Estima-se que a popu- não a ver. Numa caminhada de Verão há alguns
lação escocesa de lebres-alpinas se resuma agora anos, vi uma lebre saltar entre os arbustos, levan-
a 135 mil animais, embora os cientistas sublinhem tando-se sobre os quartos traseiros antes de saltar
a incerteza desses cálculos: o número real pode com passadas longas e deliberadas: pareceu-me
oscilar entre 81 mil e 526 mil. apenas uma silhueta acastanhada sobre uma
Temendo o declínio do animal, o Parlamento paisagem acastanhada. O animal fez uma pausa
escocês proibiu o abate de lebres-alpinas sem e dissolveu-se novamente, fundindo-se num ar-
licença em Março de 2021. Ainda é demasiado busto a pouca distância de mim. Num minuto es-
cedo para avaliar o resultado dessa norma, diz tava ali e no minuto seguinte desaparecera outra
Scott Newey, que trabalha há 20 anos para iden- vez. Foi como se nunca tivesse existido. j
LEBRES-ALPINAS 97
N OTAS | DIÁRIO DE UM FOTÓGRAFO
PARA LÁ DA COMPANHIA
H Á 3 0 M I L A N O S , UM LO B O AT R E V I D O A P ROX I MO U - S E D E UM
GRUPO DE CAÇADORES-RECOLECTORES E INICIOU-SE UMA
VIAGEM QUE MUDOU PARA SEMPRE AS NOS SAS VIDAS.
FOTOGRAFIAS DE
VA S C O C O E L H O
Beni e o sargento-ajudante
Damas Batista, do Pelotão
Cinotécnico de Tancos,
preparam-se para o seu pri-
meiro salto em equipa. Beni
mostrava-se ansiosa antes
do salto, mas manteve-se
calma e conseguiu executar
bem este desafio.
98 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
PA R A L Á DA C OM PA N H I A 99
Os cães de detecção de droga da PSP desempenham um papel fundamental no controlo do tráfico de estupefacientes nas
bagagens dos aviões. Este pastor belga (no topo) detecta a presença de substâncias ilícitas, ficando imóvel junto da mala
suspeita. Zangão (em cima) é um labrador meigo que ajuda Jorge, invisual, no seu quotidiano a evitar obstáculos difíceis.
100 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Fidel (no topo) prepara-se para imobilizar um “inimigo” que se encontra dentro desta casa, seguido de uma equipa de
pára-quedistas armados. O Pelotão Cinotécnico da GNR (em cima) colabora com um projecto de conservação da águia de Bonelli
nos arredores de Lisboa. Os cães usam o faro apurado para detectar animais mortos ou venenos nos territórios das águias.
PA R A L Á DA C OM PA N H I A 101
Dona Maria vive sozinha e, durante o dia, a sua maior companhia é um pequeno e brincalhão jack russel terrier. Como ela,
muitos idosos que vivem sozinhos têm nos animais de estimação a sua melhor companhia. Investigações recentes sobre
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saúde mental comprovam que o convívio regular com um animal de companhia favorece a saúde dos idosos, estimulando
capacidades cognitivas e emocionais e reduzindo o stress.
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N OTAS | DIÁRIO DE UM FOTÓGRAFO
Equipado com uma coleira de espinhos, este e outros cães de Castro Laboreiro ajudam um pastor em
Trás-os-Montes a manter o rebanho a salvo dos lobos. Um projecto do Grupo Lobo encoraja esta prática
para reduzir a conflitualidade com o predador.
P A R C E I R O D A N O S S A J O R N A D A D E E V O L U Ç Ã O , O C Ã O A D A P TA - S E A T O D O S O S D E S A F I O S .
UM F OTÓ G R A F O D O C UM E N TO U O S N OVO S E V E L H O S PA P É I S D O F I E L C O M PA N H E I RO
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UMA FOTOGRAFIA | B A S T I D O R E S
CRECHE DE LUXO
T E XTO D E ÉMILIE RAUSCHER
e tranqui-
A ATM O S F E R A PA R E C E F E L I Z refeições personalizadas, enquanto as
lizadora. E é, de certa forma, na medida enfermeiras se encarregam dos filhos.
Natural de Hong Kong
em que as enfermeiras dedicadas aos O fotógrafo teve a ideia para esta
e agora a viver em
cuidados dos recém-nascidos promo- fotografia quando o irmão, um quadro Bruxelas, Justin Jin
vem um ambiente aconchegante (ver superior em Xangai, lhe falou sobre o concentra o seu
trabalho em questões
páginas 38-39). No entanto, a fotografia tempo que a sua companheira passara
sociais e nas mudanças
de Justin Jin conta uma realidade com- numa destas unidades. “A maior parte no mundo. As suas
plexa: “Embora mostre muitos bebés, destas mães trabalha em finanças ou reportagens são
regularmente
também destaca o stress e o custo que na indústria. Tem de regressar rapida-
premiadas.
enfrentam as mulheres na China e que mente ao trabalho: estes centros per-
limita o seu desejo de ter filhos.” mitem-no por dez mil a trinta mil euros
Justin não captou a imagem numa por mês. Outras internam-se lá para
maternidade, mas sim num centro pós- evitar a interferência dos pais. Estas
-natal em Hangzhou. O país criou unidades confirmam a rápida evolução
milhares destas unidades, à medida do conceito de parto”, observa Justin.
que a pressão sobre as mulheres A criança tornou-se um bem de
para recuperarem da gravidez o mais luxo. “Como se consegue representar
rapidamente possível aumentava. numa imagem o travão demográfico
Durante quatro semanas, os centros vivido na China?”, interroga-se o foto-
permitem que as mães descansem, jornalista. A resposta: com um berçá-
façam exercício e disponham de rio superprotegido e industrializado.
Primal Survivor:
Aventura nos Andes
ESTREIA :11 DE ABRIL , ÀS 23H
N AT I O N A L G E O G R A P H I C BRENT STIRTON