Você está na página 1de 27
as belas-artes reduzidas a um mesmo principio charles batteux copyright © da edigao brasileira humanitas 2009 titulo original ‘les beaux-arts réduits 4 un méme principe’ colegao a formacao da estética diregdo marco aurélio werle imagem da capa 0 juramento dos Hordcios, 1784, éleo sobre tela, detalhe. Jacques Louis David (1748-1825). Acervo: Louvre, Paris, Franca — Giraudon — The Bridgeman Art Library associagdo editorial humanitas av prof. luciano gualberto 315 cidade universitaria 05508 010 so paulo sp brasil tel (55 11) 3034 2733 fax (55 11) 3091 4593 editoraffich@usp.br www.editorahumanitas.com.br imprensa oficial do estado de so paulo tua da mooca 1921 mooca 03103 902 sao paulo sp brasil sac grande sao paulo tels (55 11) 5013 5108/5109 sac demais localidades 0800 0123 401 livros@imprensaoficial.com.br www.imprensaoficial.com.br {oi feito 0 depésito legal na biblioteca nacional (lei n® 10.994, de 14.12.2004) Proibida a reprodugéo total ou parcial sem a autorizagao prévia dos editores direitos reservados e protegidos (lei n® 9.610, de 19.02.98) impresso no brasil 2009 Servigo de Biblioteca e Documentagéo da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas da Universidade de S40 Paulo EE 8335 Batteux, Charles, 1713-1780 As belas-artes reduzidas a um mesmo principio / Charles Batteux; tradugao de Natalia Maruyama, Adriano Ribeiro; (aa0 de Vitor Knoll; apresentagao e notas de Marco Aurélio lerle — So Paulo: Humanitas; S40 Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2009.) 468 p.(A formacéo da estétca, v. 3) Thu Original: Les beaux arts réduits 4 un méme principe radugao de: Schriften zur Kunst [SEN 978-85-7732-106-3 (Humanitas) ‘BN 978-85-7060-697-6 (Imprensa Oficial) 5 Mes — principios 2, ctiagso artstica — interpreta. Gosto— estética. I. Titulo ena at 0D 700, apresentacgao O tratado Les beaux-arts réduits a un méme principe, publicado em 1746 pelo abade Charles Batteux (1713-1780), professor de ret6rica e de poesia grega e latina no Collége Royal de Paris, constitui um importante documento nao apenas para o desenvolvimento da estética no século xvim, mas também como contribuigao his- torica para o projeto iluminista de totalizagao e unificagao do sa- ber humano. Na proposta de instituir uma lei tinica como base abrangente de todas as regras poéticas, seu esforgo intelectual de sintese se coloca ao lado de outras tendéncias da época, aplicadas aos mais variados domfnios do saber, como atestam o empreen- dimento da Enciclopédia (Discours préliminaire de d’Alembert), de 1751, ¢ o Ensaio sobre a origem dos conhecimentos humanos, de Condillac, publicado também no ano de 1746". Como expoente da estética classica francesa, Batteux procura estabelecer critérios racionais leis simples capazes de dar conta de todo o universo artistico. Ernst Cassirer considera que nessa épo- ca se buscava um paralelismo entre as artes e as ciéncias, pensado nos seguintes termos: “A natureza est4 submetida a leis universais ¢ invioldveis; devem existir para a ‘imitagdo da arte’ leis da mesma espécie e de igual dignidade. E todas essas leis parciais devem, em definitivo, harmonizar-se e estar subordinadas a um principio Unico e simples, a um axioma da imitagdo em geral. E. essa convic- ¢40 fundamental que Batteux exprime pelo simples titulo de sua obra principal, Les beaux-arts réduits a un méme principe, a qual parece proclamar o cumprimento vitorioso de todo o esforgo dos sé- culos xvii e xvii em matéria de método”. Aplicada ao dominio das regras poéticas e das normas articuladoras das artes plasticas, essa atitude metodolégica fez com que a obra de Batteux fosse também uma das dltimas formulagées de poética, na esteira da tradigéio inaugurada pela Poética de Arist6teles e que se manteve viva como modelo-padrao desde a Antiguidade até meados do século xvin. Depois disso comegaram a emergir outras formas de apreciacio do fendmeno artistico, a saber, a critica e a hist6ria da arte, as estéticas do génio ¢ os sistemas estéticos (embora esses somente vingassem décadas mais tarde). A importancia de Batteux consiste, assim, em estar situado num momento de transigao. De um lado, sua abordagem se liga ao discurso tradicional e ao grande racionalismo do século xvu1, no apelo ao conceito de imitacio da bela natureza [belle nature], na filiagdo as poéticas e na valorizago dos modelos da retérica. De outro lado, porém, ao postular a necessidade de uma unificagio, ao insistir na idéia de um principio tinico, pautado no conceito de imitagdo, que estaria na base de toda produgao artfstica e poética, Batteux pode ser tido como precursor de novas formas de pensar a arte, que gradativamente vao deslocando 0 foco de atengao de uma objetividade racional para uma subjetividade intimista. Em seu tratado ja se insinua a passagem entre uma poética que esta- belece somente regras objetivas de produgiio artfstica e 0 dominio de uma filosofia da poesia e da arte, que nao se contentard apenas com a fixagao dessas regras, mas questionard seu principio espe- culativo e interno. ae Nas trés partes que constituem seu tratado se espelha a origi- nalidade de seu enfoque, enquanto solidificagao de uma ponte entre a tradigdo da retérica e as formas emergentes de apreciagao do objeto artistico. Na primeira parte trata-se do critério tradicio- nal e por assim dizer objetivo da imitagao da natureza, que regula 0 ato produtivo em todas as artes e permite uma ligagdo intima e uma espécie de fraternidade. Jé na segunda parte entra em cena o momento “subjetivo”, tipicamente moderno, do julgamento das obras de arte, ou seja, do bom gosto e suas regras. Considerando as regras do gosto como consequéncias do principio da imitagao, atinge-se, assim, como diz Batteux, um novo grau de certeza e de evidéncia nas artes, de modo que na terceira parte trata-se de aplicar o princfpio geral as espécies artisticas particulares. Passa-se da teoria para a pratica. Nesse percurso expositivo podemos perceber também uma an- tecipagao da passagem do paradigma da imitagao para o da cria- do, que tanto marcou a estética de todo o século xvimt. Na nova articulagao proposta das artes j4 comega a se impor o coletivo “arte”. E no lugar do binémio, de origem renascentista, das artes mecAnicas e das artes liberais, articula-se agora a dialética entre artes titeis ou aplicadas e artes aut6nomas. A recepgio das idéias de Batteux, porém, nem sempre foi amis- tosa. A geracdo posterior a 1750 nao deixou de criticd-lo fortemen- te, considerando-o abstrato, estéril e inimigo do livre desdobra- mento da criatividade. Dois exemplos de oposigées virulentas ao seu projeto. Diderot afirma no Tratado sobre o belo, em 1752, que “o senhor Abade Batteux lembra todos os principios das belas-artes a imitagio da bela natureza; mas ele nao nos ensina de nenhum modo o que é a bela natureza”3. J4 0 jovem Goethe, anos mais tarde, aos se referir 4 recepcdo alema da obra de Batteux, dir4 que esse tipo de reflexao se destina apenas “ao estudante que procura elementos e ao frivolo diletante segundo a moda”. Tais depoimentos tém de ser localizados nas discusses e nos combates do calor da hora, embora de alguma maneira ressoem ainda em nossa €poca como critérios de julgamento do legado de Batteux, quando se esquece que seu pensamento se insere numa rica tradigao de reflexao artistica e est4 comprometido com uma ul visio de mundo do Antigo Regime, portanto, anterior 4 revolu- gdo burguesa nas artes. Na defesa que faz dos antigos, no inte- rior da “Querela dos antigos e dos modernos”, a sensibilidade de Batteux esta identificada com aspiragdes heréicas da época Aurea do reinado de Luiz xiv (1643-1715) € com ressonancias da literatura desse momento: a época classica do drama francés, quando brilharam Corneille e Racine, a renovagao da fabula (La Fontaine), da comédia (Moliére) e do estilo do aforismo (La Rochefoucauld). Além disso, também nfo se deve esquecer que, ao estabelecer um nexo com a estética classica, a poética de Batteux recoloca a Franga num lugar de destaque no cendrio da reflexdo européia, dominada naquele momento do fim do século xvit e inicio do xvi pela Inglaterra. Retrospectivamente, podemos entio dizer que, por mais que tenha sido combatido pela. nova geragio, a qual se apoiaré em parametros antropolégicos novos, como o da investigacao da sensibilidade humana e da origem das linguas, muitos dos impulsos dessa mesma geracdo s6 puderam se afirmar gragas ao seu gesto, mesmo enquanto reag4o e oposi¢ao. Seja como for, a perspectiva de Batteux se nos mostra hoje de dificil assimilagdo e gera uma sensacio de estranheza, afeitos que estamos a heranga romantica e idealista, isto €, desacostuma- dos ao rigor classico e A concepgao de um mundo hierarquizado. Com efeito, embora escrito numa linguagem simples, limpida e clara, o texto de Batteux se afigura de dificil leitura, porque requer familiaridade com 0 decoro e o registro tradicional da ret6rica. Entretanto, antes de nos entregarmos a julgamentos imediatos sobre essa maneira de pensar, nao seria antes 0 caso de suspendermos nossos preconceitos e procurarmos nos inserir em seu Ambito de abrangéncia? Talvez assim possamos perceber algo do que um dia ja foros ou que ainda somos, mesmo sem 0 saber, do que faz parte de nosso devir hist6rico. Talvez possamos perceber que, por exemplo, nem sempre a originalidade livre genial constituiu o padrdo de medida para a produgao artistica... 12 Nesse sentido,.a reflexdo de Batteux € um convite para uma visita A tradigdo e também para a frequentag’o de um momento de constituigao do nosso mundo moderno, com todos os seus im- passes € contradigées. marco aurélio werle professor de estética no departamento de filosofia da usp “As citagées em latim de Batteux no sio as mesmas das passagens originais loca- lizadas por Adriano Ribeiro, segundo edigdes hoje consagradas ¢ reproduzidas nas notas. Isso se deve ao fato de que Batteux provavelmente utilizou outras edigdes, hoje desconhecidas, bem como deve ter feito, em alguns momentos, citagdes de meméria ou utilizado fontes de terceiros, que jé tinham por vezes imprecisdes. Cabe destacar que na época de Batteux no havia ainda o hébito de citar segundo padrées filol6gicos aos quais estamos hoje acostumados e que se estabeleceram ape- nas a partir do século XIX” prologo HA quem reclame todos os dias do grande niimero de regras: elas embaragam tanto o autor que quer compor quanto o amante que quer julgar. Nao tenho de modo algum a intengao de aumen- tarlhes aqui o ntmero. Meu designio é inteiramente diferente: quero tornar o fardo mais leve e o caminho mais simples. As re- gras multiplicaram-se pelas observagées feitas sobre as obras; elas devem ser simplificadas, remetendo essas mesmas observacdes a prinefpios comuns. Imitemos os verdadeiros fisicos, que recolhem experiéncias e fundam em seguida sobre elas um sistema que as reduz a um princfpio. Somos muito ricos em observagGes. Trata-se de um fundamen- to que cresceu dia apés dia desde o nascimento das artes até nés. Mas esse fundamento tao rico nos incomoda mais do que nos serve. Lemos, estudamos, queremos saber; tudo escapa, pois ha um ntimero infinito de partes que, ndo estando de modo algum ligadas entre si, formam apenas uma massa informe em lugar de um corpo regular. Todas as regras sfio ramos que partem de um mesmo tronco. Se remontdssemos a sua fonte, encontrarfamos um principio bastan- te simples para ser apreendido prontamente ¢ bastante amplo para 15 absorver todas essas pequenas regras de detalhe que conhecemos suficientemente pelo sentimento e cuja teoria nae faz sendo inco- modar o espfrito sem esclarecé-lo. Esse princfpio fixaria de uma s6 vez os verdadeiros génios, e os libertaria de mil escrépulos vaos para submeté-los apenas a uma tinica lei soberana que, bem compreen- dida, seria a base, o compéndio e a explicagao de todas as outras. Eu ficaria muito feliz se esse desfgnio estivesse ao menos esbo- cado nesta pequena obra, a qual, de inicio, s6 empreendi para es- clarecer minhas proprias idéias. Foi a poesia que a fez nascer. Eu havia estudado os poetas como os estudamos ordinariamente, nas edigdes em que eles vem acompanhados de notas. Acreditava-me suficientemente instrufdo nessa parte das belas-artes para que pas- sasse logo a outras matérias, Entretanto, antes de mudar de objeto, acreditei dever colocar em ordem os conhecimentos que eu tinha adquirido, e prestar contas a mim mesmo. Para comegar com uma idéia clara e distinta, perguntava-me: © que é a poesia? em que ela difere da prosa? Eu acreditava ser a resposta facil, pois € tdo facil sentir essa diferenga. Mas nao era absolutamente suficiente sentir, eu queria uma definigio_exata. Logo reconheci, entao, que quando eu havia julgado os autores, 0 que havia me guiado era antes um tipo de instinto e nao a razao. Senti os riscos que havia corrido, e os erros nos quais poderia ter caido por nao ter reunido a luz do espirito com o sentimento. Reprovava-me ainda mais quando imaginava que essa luz e es- ses princfpios deveriam encontrar-se em todas as obras nas quais se tenha falado de poética, e que era por distrag3o que eu nao os tinha notado mil vezes. Retorno sobre meus passos. Abro o livro de Rollin, encontro no artigo sobre poesia um discurso muito sensato sobre sua origem e¢ sobre sua destinagdo, a qual deve estar voltada inteiramente para o proveito da virtude. LA sio citadas belas passa- gens de Homero, é dada a idéia mais justa da sublime poesia dos livros santos, mas o que eu pedia era uma definigao. Recorramos aos Daciers,5 aos Bossus, aos d’Aubignacs,® consultemos de novo as notas, as reflexdes e as dissertagdes dos escritores célebres. Mas em 16 todo lugar sé encontramos idéias semelhantes as respostas dos ord- culos: obscuris vera involvens. Fala-sé de fogo divino, de entusias- mo, de arrebatamentos, de delirios venturosos, todas essas grandes palavras que surpreendem 0 ouvido e nada dizem ao espfrito. Apés tantas buscas intiteis e nao ousando entrar sozinho em uma matéria que, vista de perto, parecia tao obscura, atrevia-me a abrir Aristételes, do qual eu havia escutado exaltarem a Poética. Eu acreditava que ele tinha sido consultado e copiado por todos os mestres da arte, mas varios nem mesmo o haviam lido, e quase nin- guém tinha tirado algo dele, com excegao de alguns comentadores que, tendo constitufdo em doutrina somente o que era necessdtio para esclarecer mais ou menos 0 texto, s6 me deram comegos de idéias; e essas idéias eram tao sombrias, tao encobertas, tao obscu- ras que eu quase me desesperava de encontrar em algum lugar a resposta precisa & questdo que eu me propusera, e cuja solugdo me parecera inicialmente tao facil de resolver. Entretanto, ofprincipio da imitacao) que o filésofo grego estabe- lece para as belas-artes, me atingira. Eu_havia sentido sua justeza para a pintura, que é uma poesia muda. Aproximava-o das idéias de Horacio, de Boileau e de alguns outros grandes mestres. Acrescen- tei-lhe varios tracos extrafdos de outros autores sobre essa matéria. A maxima de Hordcio se achou verificada pelo exame:{ut pictura poesisf Constatou-se que a poesia era em tudo uma imitacao, assim como a pintura. Eu ia mais longe: tentava aplicar o mesmo princi- pio a miisica e a arte do gesto, e espantou-me a justeza com a qual ele lhes convinha. Foi isso que produziu esta pequena obra, onde se pressente que a poesia deve ocupar a posigao principal, tanto por causa de sua dignidade, quanto por ter sido sua ocasiao. Ela est4 dividida em trés partes. Na primeira, examina-se qual pode ser a natureza das artes, quais sfio as suas partes € as suas di- ferengas essenciais, e mostra-se pela qualidade mesma do espfrito humano que a imitago da natureza deve ser seu objeto comum, e que elas s6 diferem entre si pelo meio que empregam pata executar essa imitacao, Os meios da pintura, da musica e da danga sao as 7 cores, os sons e os gestos; o da poesia é 0 discurso. De modo que se vé, de um lado, a ligagdo intima e uma espécie de fraternidade que une todas as artes, todas elas rebentos da natureza Propondo- se 0 mesmo fim, regrando-se pelos mesmos principios e, de outro lado, suas diferengas particulares, o que as separa e as distingue umas das outras. Apés ter estabelecido a natureza das artes pela do génio do homem que as produziu, era natural pensar nas provas que poderiam ser tiradas do sentimento, sobretudo porque 0 juiz nato de todas as belas-artes é o gosto, e porque a razdo mesma nao estabelece suas regras sendo em relagao a ele e para lhe agradar. Se ocorresse que 0 gosto estivesse de acordo com 0 génio e concorresse a prescrever as mesmas regras para todas as artes em geral e para cada uma delas em particular, tratar-se-ia de um novo grau de cer- teza e de evidéncia acrescentado as primeiras provas. Foi isso que formou a matéria de uma segunda parte, onde se prova que o bom gosto nas artes estd absolutamente conforme as idéias estabelecidas na primeira parte, e que as regras do gosto so apenas consequén- cias do princfpio da imitacio pois, se as artes sfio essencialmente imitadoras da bela natureza, segue-se que o gosto da bela natureza deve ser essencialmente o bom gosto nas artes. Essa consequéncia se desenvolve em varios artigos onde se trata de expor o que é 0 gosto, do que ele depende, como ele se corrompe etc. E todos esses artigos sempre se tornaram prova do princfpio geral da imitacao, que abarca tudo. Essas duas partes contém as provas do raciocinio. Acrescentamos a elas uma terceira, que inclui aquelas que sao tiradas do exemplo e da prépria conduta dos artistas: € a teoria ve- tificada pela pratica. O principio geral é aplicado as espécies parti- culares, e a maior parte das regras conhecidas sao remetidas a imi- tacdo e formam um tipo de cadeia, pela qual o espfrito apreende ao mesmo tempo as consequéncias e 0 principio como um todo perfei- tamente ligado e cujas partes se sustentam todas mutuamente. Foi assim que, buscando apenas uma definigao da poesia, esta obra se formou quase sem designio por uma progressio de idéias, dentre as quais a primeira foi o germe de todas as outras. 18 parte | cap.1 divisao e origem das artes Nao € necessdrio comegarmos aqui pelo elogio das artes em ge- ral. Seus beneffcios anunciam-se o bastante por eles mesmos: todo o universo estd repleto deles. Foram elas que construfram as cidades, que reuniram os homens dispersos, que os tornaram polidos, os suavizaram, os tornaram capazes de sociedade. Desti- adas, umas a NOS servir, outras a nos encantar, algumas Aa fazer ambos ao mesmo tempo, elas se tornaram de certo modo para ndés uma segunda ordem de elementos, cuja criagdo a natureza havia reservado para nossa industria.» Podemos dividi-las em trés espécies, em relacdo aos fins a que elas se propdem, Algumas tém como objeto as necessidades do homem, o qual a natureza parece abandonar a prépria sorte tao logo tenha nasci- do: exposto ao frio, 4 fome, a mil males, ela quis que os remédios € os preservativos que lhe sao necessdrios fossem o prego de sua indistria e de seu trabalho. Entao nasceram as[artes mecanicas] Outras tem como objeto o prazer. Estas s6 puderam nascer no seio da alegria e dos sentimentos que produzem a abun- dancia e a tranquilidade. Chamam-nas[belas-artes| por exce- léncia. Tais séo a mtisica, a poesia, a pintura, a escultura e a arte do gesto ou a danga. 23 oy Ady A terceira espécie contém as artes que tém como objeto a utili- dade e 0 encanto juntos: tais sao a eloquéncia ¢ a arquitetura, Foi anecessidade que as fez eclodir, ¢ 0 gosto que as aperieico erfeicoou. Elas mantém-se como que entre as outras duas espécies, partilhando com elas o encanto e a utilidadg. As artes da primetta Specie empregam a natureza tal como ela é, unicamente para 0 uso. As da terceira a empregam polin- do-a, para 0 uso e para 0 encanto. As belas-artes nado a empregam, mas somente a imitam, cada uma A sua maneira. Isso precisa ser explicado, 0 que serd feito no proximo capitulo. Assim, apenas a natureza € 0 objeto de todas as artes. Ela contém todas as nossas necessidades e todos os nossos prazeres; ¢ as artes mecdnicas e liberais so feitas apenas para dela extraf-los. Falaremos aqui apenas das belas-artes, isto é, daquelas cujo prtimeiro objeto é agradar. Para melhor conhecé-las, remontemos A causa que as produziu. Foram os homens que fizeram as artes, e foi para eles mesmos que as fizeram. Entediados com o deleite demasiado uniforme dos objetos que, sozinha, a natureza lhes ofe- recia, e encontrando-se, alias, em uma situagdo propria para rece- ber o prazer, eles recorreram ao seu génio para se proporcionarem uma nova ordem de idéias e de sentimentos, que despertasse seu espfrito ¢ reanimasse seu gosto. Mas o que podia fazer esse génio, limitado em sua fecundidade_¢ em suas visdes, as quais nao po- diam ser conduzidas além da natureza? e tendo, de outro lado, que trabalhar para homens cujas faculdades estavam confinadas nos mesmos]imites} Todos os seus esforcos reduziam-se necessa- riamente a fazer uma escolha das partes mais belas da natureza ara formar com elas um todo requintado que era mais perfeito do que a prépria natureza, sem, contudo, deixar de ser natural. Eis 0 principio sobre o qual se erguia necessariamente o plano funda- mental das artes, e que os grandes artistas seguiram em todos 0s séculos. Donde eu concluo. Primeiramente, que 0 génio, que € 0 pai das artes, deve imitat a natureza. Segundo, que ele nao deve imité-la tal como ela & 24 Terceiro, que o gosto, para o qual as artes so feitas e que é 0 juiz delas, deve ser satisfeito quando a natureza € bem escolhida e bem jmitada pelas artes. Assim, todas as nossas provas devem tender a estabelecer a_imitagao da bela natureza: 1) pela natureza e pela conduta do génio que as produz; 2) pela do gosto, que é seu arbi- tro. Essa € a matéria das duas primeiras partes. Acrescentaremos uma terceira, na qual seré feita a aplicagao do princfpio as diferen- tes espécies de arte, 4 poesia, a pintura, 4 miisica e a danga. 25 Ez cap.2 o génio apenas pode produzir as artes pela imitagao: o que é imitar O espirito humano s6 _pode criar impropriamente: todas as suas produgdes carregam a marca de um modelo. Mesmo os monstros que uma imagina¢ao desregrada desenha em seus delirios, nao podem ser compostos senio de partes tomadas na natureza. Se o genio, por capricho, faz dessas partes um conjunto contrario as leis naturais, degradando a natureza, ele degrada-se a si mesmo e vira uma espécie de loucura. OsGimitedxstio marcados e assim que os ultrapassamos, perdemo-nos. Fazemos, antes, um caos ¢ nao um mundo, e causamos horror mais do que prazer. O génio que trabalha para agradar nao deve, portanto, nem - — a t 2 pode, sair dos limites da prépria natureza. Sua fungiio consiste N40 4, ah em imaginar 0 que nao pode ser, mas em encontrar 0 que é. Inven: 7 tar nas artes nao é dar existéncia a um objeto, mas reconhecé-lo onde ele estd e como ele é. Os homens de génio que mais investi- gam descobrem apenas aquilo que j4 existia anteriormente. Eles s6 so criadores por terem observado e, reciprocamente, s6 sao observa- dores por estarem em condigao de criar. Os menores objetos os inci- tam, e eles entregam-se a eles pois lhes proporcionam sempre novos conhecimentos, ampliando o cabedal de seu espfrito ¢ prepara lo sua fecundidade. O génio é como a terra que roduz nada de 26 9 Konr 2 que nao tenha recebido a semente. Essa comparagio, muito longe de empobrecer os artistas, serve apenas para fazé-los conhecer a fonte e a extensao de suas verdadeiras riquezas que, por isso, so imensas. J4 que todos os conhecimentos que o espfrito pode adqui- rit na natureza tornam-se o germe de suas produces nas artes, 0 génio nao tem outros limites, do lado de seu objeto, sendo daqueles do universo. O génio deve, entao, ter um apoio para se elevar e se sustentar, € esse apoio é a natureza. Ele nao pode crid-la e nao deve destruf-la, ele s6 pode, ento, segui-la e imitd-la e, consequente- mente, tudo o que ele produz s6 pode ser imitagao. Gita] é copiar modelo. Esse termo contém duas idéias. 1) O protétipo que traz os tragos que se quer imitar. 2) A cépia que os representa. A natureza, isto é, tudo o que existe, ou 0 que nés concebemos facilmente como possivel, eis o_protétipo ou o modelo das artes. I preciso, como acabamos de dizer, que o in- dustrioso imitador tenha sempre os olhos pregados nela, que ele acontemple incessantemente: por qué? Porque ela abrange todos os planos das obras regulares ¢ os desfgnios de todos os ornamen- tos que podem nos agradar._As artes ndo criam suas regras: elas sao independentes de seu capricho e invariavelmente tragadas a exemplo da natureza. Qual é ento a fungfio das artes? Ea de transportar os tragos que esto na natureza e apresenté-los em objetos que nao siio na- turais. F assim que o cinzel do escultor mostra um heréi em um bloco de marmore. O pintor, com suas cores, faz sobressair da tela todos os objetos visiveis. O miisico, com sons artificiais, faz bramir a tempestade, embora tudo esteja calmo; € 0 poeta, enfim, com sua invengdo e com a harmonia de seus versos, preenche nosso espfrito de imagens fingidas e nosso coracao de sentimentos artifi- ciais frequentemente mais encantadores do que seriam se fossem verdadeiros e naturais. Donde concluo que as artes, naquilo que € propriamente arte, sao apenas imitagdes. semelhangas que nao sdo a natureza, mas que parecem sé-lo; e que, assim, a matéria das elas-artes nao € 0 verdadeiro, mas somente o verossimil. 27 Essa consequéncia € bastante importante para ser desenvol- vida e provada prontamente pela aplicacao. O que é a pintura? Uma imitagio dos objetos visfveis. Ela nada tem de real, nada tem de verdadeiro. Tudo nela é€ aparéncia, e sua perfeicao sé de- pende de sua verossimilhanga com a realidade. A miisica e a danca podem até regrar os tons e os gestos do ora- dor na catedra e do cidadao que relata em uma conversa,.mas nao é ainda por isso que as chamamos propriamente de artes. Elas podem perder-se também, uma em caprichos, onde os sons se entrecho- cam sem desfgnio, a outra em tremores ¢ saltos de fantasia; con- tudo, nenhuma delas se encontra ainda em seus limites legitimos. Para que sejam o que devem ser, € preciso, portanto, que elas re- tornem a imitagio, que elas sejam o quadro artificial das paixdes humanas. E somente entdo que as reconhecemos com prazer e que elas nos dao a espécie e 0 grau de sentimento que nos satisfaz. Enfim, a poesia vive apenas de ficgdo. O lobo, nela, traz os tragos do homem poderoso e injusto; 0 cordeiro, os do inocente oprimido. A écloga’® nos oferece poemas pastoris que sao apenas semelhangas, imagens. A comédia faz o quadro de um Harpagio ideal|que s6 por empréstimo possui os tragos de uma avareza real. A tragédia é poesia apenas naquilo que ela finge por imitagao. Cé- sar teve uma desavenca com Pompeu: isso nao é poesia, € histéria. Mas, que se inventem discursos, motivos, intrigas, tudo segundo as idéias que conferem a histéria do cardter e da fortuna de César e de Pompeu; eis 0 que se chama poesia, pois somente isso € obra do génio e da arte. A epopéia, enfim, é apenas um relato de agGes possiveis, apre- sentadas com todos os caracteres da existéncia. Juno e Enéias nun- ca disseram nem fizeram o que Virgilio lhes atribui; mas pode- tiam té-lo feito ou dito, isso basta para a poesia. Trata-se de uma eterna ilusdo, que tem todos os caracteres da verdade. Assim, todas as artes, em tudo o que tém de verdadeiramente artificial, so apenas coisas imagindrias, seres fingidos, copiados € imitados segundo os verdadeiros. E5 por isso que se coloca inces- 28 santemente a arte em oposigao a natureza, que se escuta em todo lugar apenas este grito, que € a natureza que é preciso imitar, que aarte € perfeita quando a representa perfeitamente, enfim, que as obras-primas da arte siio aquelas que imitam to bem a natureza que as tomamos pela natureza mesma. ce E essa imitagao para a qual nés todos temos uma disposicao-p Anke* tao natural, pois é o exemplo que instrui e que pauta o género hu- mano, vivimus ad exempla,” essa imitagao, dizia, € uma das princi- pais fontes do prazer que as artes causam. O espirito se exerce na comparaco do modelo com o quadro; ¢ seu jufzo a esse respeito The provoca uma impressao ainda mais agradavel, j4 que lhe serve como testemunho de sua penetracao e de sua inteligéncia. Essa doutrina nao é nova. Encontramo-la por toda parte nos an- tigos. Aristételes comeca sua poética com este princfpio: que a mt- sica, a danga, a poesia e a pintura so artes imitativas. E af que todas as regras de sua poética se encontram. Segundo Platao, para ser po- eta nao basta relatar, € preciso fingir e criar a agdo que se relata. Em sua Republica, ele condena a poesia porque, sendo essencialmente uma imitagiio, os objetos que ela imita podem comprometer os cos- tumes. Hordcio tem o mesmo princfpio em sua arte poética: si fautoris eges aulaea manenti: aetatis cujusque notandi sunt tibi mores, mobilibusque decor maturis dandus et annis.* Por que observar os costumes, por que estuda-los? Nao € com intuito de copid-los? respicere exemplar morum vitaeque jubebo doctum imitatorem, et vivas hine ducere voces. vivas voces ducere,' E 0 que chamamos pintar segundo a natureza. E nem tudo foi dito com essas palavras: ex noto fictum carmen sequar.'+ Eu forja- tei, e imaginarei, segundo o que € conhecido dos homens. Enganar-se-4, acreditar-se-4 ver a prépria natureza, e que nada € tio facil quanto pintar desse modo: mas ser uma ficgo, uma 29 qualquer espirito mediocre, obra de génio, acima das forgas de sudet multi frustraque laboret.* Os préprios termos dos quais se serviram os antigos ao falarem da poesia provarn que eles a consideravam uma imitaco: os gregos diziam poiein. Os latinos traduziam o primeiro termo por facere; os bons autores dizem facere poema, isto é, forjar, fabricar, criar. E 9 segundo, eles 0 deram ora por singere, ora por imitari, que significa tanto uma imitagao artificial, tal como aparece nas artes, quanto uma imitagio real e moral, tal como aparece na sociedade. Mas como a significagao dessas palavras foi, na passagem dos tempos, estendida, desviada, restringida, ela deu lugar a mal-en- tendidos e obscureceu princfpios que eram claros por eles mesmos nos primeiros autores que os estabeleceram. Entendeu-se por fic- ¢ao as fabulas que fazem intervir 0 ministério dos deuses, e que os fazem agit em uma agdo; porque essa parte da ficgfo € a mais nobre..7 Por imitagdo, entendeu-se, nao uma cépia artificial da na- tureza, que consiste precisamente em representé-la, em arremedd- la [...]; mas toda espécie de imitagdo em geral. De modo que esses termos, ndo tendo mais a mesma significagao que outrora, deixaram de ser apropriados para caracterizar a poesia, e tornaram a lingua- gem dos antigos ininteligtvel para a maior parte dos leitores. De tudo o que acabamos de dizer, resulta que a poesia s6 subsiste por imitagdo. O mesmo ocorre com a pintura, a danga, a mtisica: nada é real em suas obras, tudo € imaginado, forjado, copiado, artifi cial. Eo que faz seu cardter essencial em contraposi¢do a natureza. 8 cap.3 o génio nao deve imitar a natureza tal como ela é O génio e 0 gosto tém uma ligagao to intima nas artes que ha casos em que nao se pode uni-los sem que paregam confundir-se, nem separé-los sem quase lhes subtrair suas fungées. E o que se experimenta aqui, onde nao € possfvel dizer 0 que deve fazer o génio, ao imitar a natureza, sem supor o gosto que o guia. Fomos obrigados a tocar aqui ao menos levemente nessa matéria, para preparar o que se segue; mas reservamos falar sobre isso de modo mais demorado na segunda parte. Aristételes compara a poesia com a histéria: sua diferenga, se- gundo ele, no est4 na forma nem no estilo, mas no contetido das coisas."8 Mas como assim? A histéria pinta o fato, a poesia pinta o que poderia ter sido fato. Uma est ligada ao verdadero, ela nao cria nem agdes nem atores. A outra sé se atém ao verossimil: ela in- venta, imagina como quer, ela pinta de meméria. O historiador da 0s exemplos tais como sao, frequentemente imperfeitos. O poeta os da tais como deveriam ser. E é por isso que, segundo o mesmo filé- sofo, a poesia é uma lig&io muito mais instrutiva do que a histéria. Sobre esse principio, é preciso concluir que, se as artes so imi- tadoras da natureza, deve ser uma imitagao sabia ¢ esclarecida que nao a copia servilmente; mas que, escolhendo os objetos € os 31 Af tracos, apresenta-os com toda a perfeicaio da ual so suscetiveis. Em uma palavra, uma imitagao onde se vé a natureza, no tal como ela é em si mesma, mas tal como ela pode ser, e tal como “pode ser, concebida pelo espirito. O que fez Zéuxis quando quis pintar uma beleza perfeita? Fez 0 quadro de alguma beleza particular, da qual sua pintura fosse a histéria? Nao. Ele reuniu os tracos separados de varias belezas existentes. Ele formou em seu espfrito uma imagem artificial que Tesultou de todos esses tragos reunidos, e essa imagem foi o pro- tétipo ou o modelo de seu quadro, que foi verossimil e poético em sua totalidade, e s6 foi verdadeiro e histérico em suas partes tomadas separadamente.’? Eis o exemplo dado a todos os artistas: eis 0 caminho que eles devem seguir, e essa € a pratica de todos os grandes mestres sem excegao. Quando Moliére quis pintar a misantropia’®, nao buscou em Paris um original do qual sua pega fosse uma cépia exata. Ele fez apenas uma histéria, um retrato; ele apenas em parte a tomou como ligao. Mas ele recolheu todos os tragos de humor negro que péde notar nos homens: acrescentou a isso tudo o que 0 esforco de seu génio péde lhe fornecer no mesmo género; e de todos esses tragos aproximados e irmanados ele figurou um cardter tinico, que no foi a representagao do verdadeiro, mas do verossimil. Sua comédia nao foi a histéria de Alceste, mas a pin- tura de Alceste foi a histéria da misantropia tomada em geral.” E desse modo ele fez algo muito melhor do que teria feito um historiador escrupuloso que tivesse contado alguns tragos verda- deiros de um misantropo real. Esses dois exemplos bastam, por enquanto, para dar uma idéia clara e distinta do que se chama bela natureza Nao se trata do verdadeiro que é, mas do verdadeiro que pode ser, o belo verdader To, que é representado como se existisse realmente e com todas as perfeigdes que ele pode receber. Isso nao impede que 0 verdadeiro € o real possam ser a matéria das artes. E assim que as musas se explicam em Hesfodo.? 32 Frequentemente por suas cores a astticia de nossa arte sabe dar aparéncia a ilusdo do verdadeiro, mas sabemos também, por esse mesmo dominio, cantar a verdade sem amdlgama e sem disfarce. Se um fato hist6rico se encontrasse de tal modo talhado que pudesse servir como plano para um poema ou para um quadro, a pintura, entao, e a poesia, empregé-lo-iam tal qual e usariam seus direitos, de outro lado, inventando circunstancias, contrastes, situagdes etc. Quando Le Brun pintou as batalhas de Alexandre, havia na histéria o fato, os atores, o local, ga ¢ Entretanto, que invengao! Que poesia em sua obra! Araneae atitudes, a ex- pressiio dos sentimentos, tudo isso estava reservado para a criagao do génio.3 O mesmo com o combate dos Hordcios que, de hist6- tia que era, modificou-se em poema nas maos de Corneille,*4 eo triunfo de Mardoqueu, nas de Racine. A arte constréi entao sobre o fundo da verdade, e deve misturé-la tio habilmente com a ilusao que ambas formam um todo de mesma natureza: atque ita men- titur, sic veris falsa remiscet, primo ne medium, medio ne discrepet imum.5 Eo que se pratica ordinariamente nas epopéias, nas tragé- dias, nos quadros histéricos. Como o fato nao esta mais nas maos da historia, mas esta se encontra livre no poder do artista — a quem € permitido tudo ousar para chegar a sua meta -, o artista molda’o fato novamente, se ouso dizer, para lhe atribuir uma nova forma: ele acrescenta algo, subtrai, inverte. Se € um poema (dramatico), encerra-se a intriga e prepara-se 0 desenlace etc., pois € suposto que o germe de tudo isso esté na historia, e que se trata apenas de o fazer eclodir. Se nela nao estd, aarte entdo goza de todos os seus direitos, em toda a sua extensao, ela cria tudo de que tem necessidade. Trata-se de um privilégio que lhe € conferido, pois ela € obrigada a agradar. 33 cap.4 em que estado deve estar 0 génio para imitar a bela natureza Qs génios mais fecundos nem sempre sentem a presenca das musas. Eles experimentam tempos de secura e de esterilidade Averve de Ronsard,° que havia nascido poeta, repousava durante varios meses. A musa de Milton tinha desigualdades de que sua obra se ressente. Para nao se falar de Estacio,?” de Claudiano,* e de tantos outros, que experimentaram refluxos de languidez e de fraqueza, o grande Homero nao dormitava algumas vezes no meio de todos os seus herdis e de seus deuses? HA, portanto, momentos felizes para o génio, quando a alma inflamada como por um fogo divino representa toda a natureza e expande sobre todos os objetos esse espirito de vida que os anima, esses tragos tocantes que nos seduzem ou nos arrebatam. Essa situagao da alma chama-se[entustasmo} termo que todo mundo compreende o bastante, e que quase ninguém define. As idéias que dele nos dao a maior parte dos autores parecem sair mais da prépria ima ginagao assombrada e castigada por um entusiasmo do que ee um espirito que tenha pensado ou refletido. Ora se trata de uma visio celeste, uma influéncia divina, um espfrito profético, O° € uma embriaguez, um éxtase, um gozo mesclado de agitaga° admiragio na presenga da divindade. cap.4 em que estado deve estar o génio para imitar a bela natureza Os génios mais fecundos nem sempre sentem a presenga das musas. Eles experimentam te di ilidade. Averve de Ronsard,”® que havia nascido poeta, repousava durante varios meses. A musa de Milton tinha desigualdades de que sua obra se ressente. Para nao se falar de Estdcio,?” de Claudiano,* e de tantos outros, que experimentaram refluxos de languidez e de fraqueza, o grande Homero nao dormitava algumas vezes no meio de todos os seus herdis e de seus deuses? Ha, portanto, momentos felizes para o génio, quando a alma inflamada como por um fogo divino representa toda a natureza e expande sobre todos os objetos esse espfrito de vida que os anima, esses tra¢os tocantes que nos seduzem ou nos arrebatam. Essa situagao da alma chama-se{gntustasmg} termo que todo mundo compreende o bastante, e que quase ninguém define. As idéias que dele nos dao a maior parte dos autores parecem sair mais da propria ima- ginacdo assombrada e castigada por um entusiasmo do que de um espfrito que tenha pensado ou refletido. Ora se trata de uma visdo celeste, uma influéncia divina, um espirito profético, 07 € uma embriaguez, um éxtase, um gozo mesclado de agitacao € admiragao na presenca da divindade. 34 Serd que, com essa linguagem enfatica, eles tinham o designio de enaltecer as artes, e despojar os profanos dos mistérios das musas? Para nés, que buscamos esclarecer nossas idéias, afastemos toda essa pompa alegérica que nos ofusca. Consideremos o[entusiasmo] como um fildsofo considera os grandes, sem nenhum respeito por essa va ostentacdo que 0 rodeia, e que o esconde. A divindade que inspira os autores excelentes quando eles compdem é semelhante aquela que anima os heréis nos combates: sua cuique deus fit dira cupido2? Em alguns, é a auddcia, a intrepidez natural animada pela propria presenga do perigo. Nos outros, é um grande fundo de gé- nio, uma justeza requintada de fespirito} umalimaginagao] fecunda e, sobretudo, um corac3o pleno de umifogd nobre e que se acende facilmente a vista dos objetos. Essas almas privilegiadas apossam-se fortemente da impressio das coisas que concebem, e nunca deixam de reproduzi-las com um novo cardter de prazer e de forga que elas Thes comunicam. Eis a fonte e o principio do entusiasmo. Sente-se j4 quais devem ser seus efeitos em relagdo as artes imitativas da bela natureza. Lembremo-nos do exemplo de Zéuxis. A natureza tem em seus tesouros todos os tragos que as mais belas imitagdes podem ser compostas: sio como esbogos nas pranchetas de um pintor. O artista, que é essencialmente um observador, reconhece-os, tira-os da_vul- garidade e os organiza. Disso ele Fompdelum todo do qual concebe ~> TOR uma idéia viva que o preenche. Logo seu fogo se acende, a vista do has objeto; ele se esquece de si mesmo; sua alma passa para as coisas. ————— que ele cria. Ora ele é Cina, ora Augusto, ora Fedra, ora Hipélito, € se se trata de La Fontaine, ele é 0 lobo e 0 cordeiro, 0 carvalho e 0 canico;° E nesses arrebatamentos que Homero vé os carros € os cavalos dos deuses, que Virgilio ouve os gritos horrfveis de Phlegias nas sombras infernais, e que ambos encontram coisas que nao estado em lugar nenhum e que, entretanto, sao verdadeiras: _ [-] poeta cum tabulas cepit sibi, quaerit quod nusquam est gen- tium, repperit tamen.> E pelo mesmo efeito que tal entusiasmo € necessdrio aos pin- tores e aos muisicos. Eles devem _esquecer seu estado, sair de si 35 os e colocar-se no meio das coisas que queiram representar Se querem pintar uma batalha, eles se transportam, assim como 9 poeta, para o meio da luta: eles ouvem o tumulto das armas, os Brie tos dos agonizantes, eles véem o furor, a carnificina, o sangue. Eles imagii é que se sintam comovidos mesmos excit: | arrebatados, assombrados: entio, deus ecce deus, que eles cantem, {| que pintem, € um deus que os inspira: 1 [...] bela horrida bella, et tibrimmulto spumantem sanguine cerno3 E 0 que Cicero chama mentis viribus excitari, divino spiritu affla- ri34 Eis o furor poético: eis o entusiasmo. Eis 0 deus que o poeta invoca na epopéia, que inspira o herdi na tragédia, que se transforma em simples burgués na comédia, em pastor na égloga, que dé razio e palavra aos animais no apélogo*s. Enfim, o deus que faz os verdadei- tos pintores, musicos e poetas. Acostumados que estamos a exigir 0 entusiasmo somente para 0 grande fogo da lira ou da epopéia, surpreendemo-nos talvez ao ouvir- mos dizer que ele é necess4rio mesmo para 0 apdlogo. Mas o que é yd . | @entusiasmo? Ele s6 contém duas coisas: uma viva representagao do Eas ‘objeto no espiritofe uma emogio do coragao proporcional a esse obje- to.Logo, assim como h4 objetos simples, nobres, sublimes, ha também entusiasmos que lhes correspondem, e que os pintores, os musicos € os poetas partilham segundo os graus que eles atingiram; e nos quais énecessdrio que eles se coloquem todos, sem nenhuma excegio, para chegarem a seu fim, que é a expressao da natureza em sua beleza. E por isso que La Fontaine em suas fabulas e Moliére em suas comé- dias so poetas, como também sido grandes poetas Corneille em suas tragédias e Rousseau*® em suas odes. 36

Você também pode gostar