Você está na página 1de 119
O TORTURADOR EM ROMARIA Atormentado por suas lembrancas, persegui- do pelo fantasma de seus atos, 0 torturador busca o refligio e a santidade. Mas 0s corpos dilaceradés das vitimas assombram sua per- sonalidade esfacelada; ele pode as vezes agir como um cao raivoso, outras como um meni- no carente. Ao procurar o caminho da entre- ga eda devocao, ele consegue apenas aumen- tar a distancia que o separa do resto dos ho- mens. Na humilhagdo e na revolta; na reli- sido ou no amor; das praias cariocas ao ser- to nordestino, encontra sempre e por toda parte 0 sofrimento, fruto da opressao, Narrando a historia com crueza ¢ paixao, Heloneida Studart langa um olhar critico 2 sociedade, explorando, ao mesmo tempo, 0 tom introspectivo e a psicologia complexa das personagens. Técnica e estilo literarios e © engajamento politico e pessoal da autora na luta contra 0 arbitrio sao a marca deste ro- mance impressionante, que resgata um pas- sado recente tocando fundo nas feridas ainda abertas de nossa histéria. eeeor Copyright © by Heloneidla Studart, 1986 Printed in Brasil/Impresso no Brasil expe ANA MARIA DUARTE, foto de capa JOKO A. NETO ARGEMIRO DE FIGUEIREDO WENDELL SETOBAL VIRGINIA ARAGAO Brasil. Catalogagionna-fonte, mal das Editores de Livros, RJ. 1, Literetura brasileirs — Romance. 1. Titulo. 86-0951 DD — 869.95 HELONEIDA STUDART O TORTURADOR EM ROMARIA ievven Rio de Janeiro — 1986 CAPITULO 1 ‘A PRIMEIRA vez que vi Dotinha, diante de um arquivo da biblioteca pablica de Fortaleza, achei que podia ter encontrado minha miie. Apesar dos meus 35 anos, sempre imagine! minha ile quase com a idade de ser minha filha. Nos iltimos meses, sonhava-a assim: yestida de branco, os cabelos pesados, a pele clara, de papel guardado. Na minha meninice, eu acreditara que minha mae era uma loura platineda, de seios grandes, como as heroinas das revistas em quadrinhos. Entte 15 e 18 anos, julguei que devia ser mulata. Para essa yersto, colaboravam as palavras irvitadas de madrinha Conceigio, que me criou com 4 ajuda de uma palmat6ria de cedro: “Ela chegou e pediu em. prego de cozinheira, Trazia vocé no colo, Era azinhavrada, ca. belinho de banda, ¢ accitava trabalhar pela metade do salétio. © que nunca pensei é que largesse o filho na érea de servigo, feito gato vagabund Na minha adolescéncia, eu ndo saia da casa da Chica Fa: rinha, atrds de mulatas. A Chica era pessoa bonissima, Devote de Sio Judas Tadeu, nunca deixou de comemorar o aniversério das suas meninas com um bolo confeitado e garrafas de gu Se algum cliente nio tinha dinheiro, anotava-lhe a divida num cadero de contas de papel almaco, Passei mais de dois anos usando mulher a crédito. Major Femendo ria-se as garga- Ihadas dessas hist6rias: “Se voo8 nfo achou sua mie num pu ito, no vai mais achar em parte algume.” Um dia me lefonou, tindo: “Prendemos uma nisei que parece um cana- rinho. Vem ver, € capaz de ser tua mie’ Na tortura, ela se comportou como um cordeiro: gemia, sem nunca gritar. Corteislhe @ orelha direita com’ uma tesoura: cai sobre © meu sapato como uma borboleta disforme. Achei que devia alargar-the os olhinhos amendoados com uma gilete: Oriental 56 Ela sangrou “Nao gosto de | me disse major Ferman em novela de mistério ou em filme de Kur demais. Morzeu cega. Em carta enviada a Anistia Internacional, dona Maria Yamasaki declarava: “ ia Yamasaki, resi i, 140, case 2, Rio de Janeiro, acuso 0 desze arecimento da minha filha Masuko, 18 anos, uni ; moradora no mesmo enderego, que se encontra em cova desco- nhecida ¢ enderego nio sabido, depois de torturada até a morte pelas Forgas de Seguranga.” Major Fernando, de vez em xerox dessas cartas nha casa, na Vila Rosali, Rio de Janeiro, levara mado, um homem de 65 anos, grilico de pro! sempre “a para a familia, Foi torturado com choques elétricos, no de um certo Dr. Pédua, morreu de parada cardiaca, ‘no ibemos onde est 0 corpo. Major Fernando agitava os papéis diante de si: “Vocé esté me saindo melhor do que es encomendas, Carmélio! Anda exa- gerando na mortandade! Lembra daquele puto que nés atran- camos os colhdes, 1d no teu sitio? O pai era um Coronel Epaminondas mandou me chamar: fal ‘um corrupiao cantador, péssaro de vor m: quis que eu cegasse a ave com minha mio, para melhorar-lhe © canto (“Que € que tem? Voce nfo cegou 0 advogado Ca nho Ferraz, depois de deixé-lo dois dias no pa ‘mas nfo faco isso com os animais, ci dou tratamento de mimo ¢ fart malhada, a0 cachorro Bila, apesar de obtuto © roncolho, is por uma rdoei madrinha Conceicéo ter doado os tha auséncia, ao seu chefe de seco, ne repatticao cobigava uma promocio, que do burocrata jé tinha um vivei grande dos meus curiés. Vivi Conceigio — "Para redigir um repleto, mas nao tirava 0 olho arrastando a asa a madrinhe caprichado, nfo hé como é & senhora” — mas s6 visava os meus péssaros, N3o desejava a solteirona. Nunca ninguém a desejou ¢ ela foi excrcendo suas paixdes 56 em cima de mim, menino en; chocando um ovo do ew me demorava na da aula. Tinka um desvio na coluna que a fazia ligeiramente torta e explicava precisar atrair a atengdo das pee- f048 para o seu rosto. Mas nesse rosto murcho ¢ muito maqui: lado nada havia de bonito, a néo ser os olhos grandes, pesta, nudes. Quando eu the perguntava se minha mae era formosa, ficava irvitada: “Ea gente repara em empregada doméstica? Disse que se chamaya Jurema, mas devia ser nome inventado, No dia em que entrou por essa porta, ainda fez o jantar, Mes ‘Ro outro, 36 encontrei yocé, largado.., Sumiu, sem deixar rast. madrinha Con , palmatéria a quem chamava Maricota, Justificava sua sev. Gade com religifo: “Casa em que erianga nfo chora, os adultos chorardo, E a lei de Deus.” Todas as vezes que safa em busca de liquidasées, na cl dade, ela me trancava no poréo do sobrado em que mordvamos a rua do Livramento. Nao queria que eu convivesse com inguilinos do andar de cima: a jovem tecela, dona M: alugava a parte da frente com quatro janclas abertas para a dos dois quartos pe- incansével_méquina mpedir de ganhar a calgada e me misturar com os moleques do morro da Providéncia, madinha Concei. go astustavarme com assombragdes ¢ castigos. Desde menino, Conheci monstros. Bebiam o sangue dos vivos. Com stias unhas infinitas, despedagavam carétidas. Tinham colecées de ossos de recém-nascidos em seus surrées de estopa. E todos eram im. Punes, porque duendes, fantasmas. Eu no ousava janela, enquanto madri busca de um guardachuva remarcado ou de uma blusa de [a 7 em, liguidagto, Ao voltar, ainda me censurava: “Se derem comida na boca, vocé morte de fome.” Mas ma quem morreu de fome, anos depois. Demorou a ico © quando jé nio f ther de mel, dios bobos: magnésia bisurada, bolinhas de homeopatia, Olhava ara mim com olhos espavoridos e, 2 noite, eu @ ouvia uivar de dor. Mas néo me levantava da cama, nem safa do meu quar. to, derreado, cansado do meu novo emprego e das caricias das tulherés. ‘De manhé, & mesa do café onde. ela est6mago uma te: “Vooé néo me viu patsar a noite de luz acesa? Podia ter se oferecido para-eaquentar gua e botar no saco de borracha para a minha dor de estémago.” que nfo era enfermeiro, Nem enfermeito, olhava, cheia de ressentimento, com vont de preguejar, de me amaldigoar, mas se acovardava. Medo de i que a prostrava, tes todas as “Medo de comesar a. yomitar sangue, pois sabia que estava para se desfazer, As vézes, andando pela casa, grotesca em. seu penhoar comprado numa remarcagGo da rua da Alfaindega, tropecando nos méveis em busca de uma xicara desemparelhada para o ché que jé néo conseguia engolir, ela gemia: “O que foi que eu fiz a Deus?" Bemfeito para néo andar Salvador © rezando, todas as segundasfe almas. A noite, quando "eu voltava Ime antigo na tev8, Nfo disse que gosta de filme antigo? Talver, nfo fui hoa mae para voce, Carmélio. Eu no sabia, nunca lidei com ctianca, ‘nunca tive homem... Mas sempre the dei Nescau para vooé engordar, vitamina, farinha @ marca azul da barba no queixo (marca que no sai, por mais que eu me barbei meiro as meiss escuras, depois a cueca bege, a camisa ci 8 Verinha me ensinou a vestir bem. E a comer, com talher pro- prio, © peixe ou o marisco, a jogar péquer, a conhecer cavalos de corrida, Um gato nos separou, mas nao gosto de pensar pois quando me lembro de Veludo, esganado por ela, trans, formado num punhado de pélos sanguinolentos, tenho vontade de ir procuré-la no fim do mundo e coloc as ordens de major Fernando, Enquanto eu me enfeitava, sabia que a velha estava sen: tada na sala, cheia de medo e de rancor, sem sultava ou se cafa aos meus pés, suplicante: Carmélio! Eu posso morrer esta Vocé e eu sabemos que é cancer, Mas, toda trémula, ela reunia uns restos de dignidade e eu Sentia 0 peso das suas olheiras, sentia o esgotamento de sua vyo2, quando dizia: ~;, Pro café da manha, dona Fétima mandou um bolo de fubé. Cuidado com o sereno, Carmélio, rer, todos morrem sozinhos. Até m ‘Um dia, nés também vamos morrer que nos melhores se me in- -@ um poUco, ite. Que colite, que nada. Fernando sabia mas cu espero Nenhum de ouviu, Carmélio? E um compromisso tum pacto sagrado, Nunca seremos punido @ encontrar vaga no as até o ambulatério, . Nido sei para que i minha vida descontando pro Instituto. Funciondrio pc. blico ¢ um enjeitado! Trinta anos de contribuigao!” Por fim, conseguiu que a vizinha, a tecela, a acompanhasse a0 tratamento, Malvina era da seita pentecostal. NAo gosto de erentes, mas aquela tina uns bragos que pareciam de lana, A idade fizera-a mais bonita. Ela estava sempre anuncian, do “‘curas, milagres, salvagio ", mas com uma yor tio doce como, se cochichasse num travesseiro. Quando vo para 4 cama, certas mulheres parecem péssaros trinando, Malvina devia ser dessas, mas eu nio'a imaginava indo para a cama com ninguém, Estava sempre abotoada, empertigada, Revelow. me qe, @ caminho do ambulatério, madvinha Conceigho la custaya a reconhecer o itinerério. Num domingo, Malvina me chamou fa uma conversa patticular, Eu me lembro do s wando em todos os azulejos lusos da rua do Livramento. © morro da Providéncia estava embandeiiado 9 de _pipas. A mesma brisa que empinava as pipas agitava os ‘tapos pendurados nos gradis de ferro das janelas. E um vas- soureiro passava na calgada, anunciando “espanadoires”. L& no ‘nosso porio, madrinha Conceigéo gemia baixo. Tinha renun- ciado A sua dentadura, parecia estar com 70 anos — Seu Carmélio — disse a pentecostal, agitando suas ‘mos de louga —, preciso dizer a verdade: dona Conceigéo esté mal, muito mal, O médico falou em metéstase, disse que ja apareceu, outro tumor, no eérebro. Nao quer internar porque 08 Ieitos sfio poucos ¢ existe o critério de nfo ocupar as camas com, doentes desenganados, sem esperance. Eu respondi que concordava com 0 médico; hos; € hotel, hospital ¢ lugar de cura, e se o doente nfo tem Para que ocupar cama, lengol, enfermeiro? E como em nosso oficio, na tortura. Se 0 preso esté des- finado 2 morrer — como aguele Fonseca que empalamos —, nninguém deve gastar com ele esparadrapo, mercurocromo ou doutor, Médico s6 para quem se quer manter vivo, evitando a parada cardfaca eo conseqiiente bate-boca dos intro “porque os direitos imanos, porque os tratados de Genebra, wa minha opinifio. Sacudiuse toda, santamente indignad — Dona Conceigao precisa de so Ela esté com. os beigos estalados de dot, tratando a dor do cincer com aspirina. [ss0 ¢ uma bar Contraria a Divina Miserie6rdia, com os militares — Eu? A tinica farda que conhego 6 a do guarda da es quina. Um pobre-diabo. Dispensa multa por qualquer trocedo, Ela cruzou os bragos claros e suspirou fundo. — Onde anda seu Ovidio, dona Malvina? inda esperava um marido que Ihe tha cinco anos. 1@ dormido com uma vidva. Fiz planos para conquistar a pentecostal quarentona, mas Malvina s6 pensava fem exercer sua piedade sobre ma interné-la ‘no hospital, numa sexte-feira. No domingo, recebi telefonema seco de um funcionério, comunicando 0 que ele 10 chamaya “o 6bito”. Cai nova para it a0 hospital pil a detergente me levou até 0 leit ‘A cama estava vazia, — Morreu esta madrugada — informou uma enfermeira gorda. — Botamos na geladeira porque, o senhor sabe, cada é disputada. O préximo doente, af do leito 25, ja -huva fina ¢ estreei minha capa ico, Uma servente que cheirava ito 25 de uma enfermaria pobre. inha em maca, coberto por um ide sangue © gemia: “Ai, mamie.” Como seria minha © deveria so parecer em nada com o despojo que ret raram da prateleira gelada ¢ que velei no cemitétio do. Caju, scompanhade de Malvina. A chuya tinka aumentado, Era gros. sa, encordoada, pegajosa, Mal fra 0 rosto da defunta Fag, Um, teste horrivel, seu Carmélio" — com um retalho ve fil6. Mas as duas funcionéties aposentadas que trouxeram flo, res amarclas para a morta Jevantaram a ponta do véu impro. visado. Uma delas dew um grit Eu contemplava os belos joelhos de Malvina, Naquele dia, esquecido de calgar Afastei também 0 retalho fave de madrinha Coneeigio, Um poder oculto a tor. minuciosamente como nés costumévamos fazer. sto contorcido, cheio de treva, Se major Fernando visso pressio, poderia dizer: “Missio cumprida,” Foi por causa da obstinagio dele que acabei diante do oslo suave @ eléstico de Dorinhe, na biblioteca publica de Fortaleza. O rosto que poderia ser o da minha verdaceira mé Major Fernando resolveu me mandar a Fortaleza, n de um certo Célio, gravurista que no se cont desenhando suas renc @ ordem com reuniées piblicas, icar aceiros © retirantes, Perturbava inventava manifestos, remetia absixo-assinados para o exterior, com a intengio de denegrit . Na esperanea de escapar da viagem indesejada, ‘om major Fernando que bem podiam liquidar o 4 mesmo, sem minha interferéneia. Devia haver mais de ‘rio de interrog — Naguela érea, quem manda, tanto no grupo eivil, como + € um pessoal com fumagas de mod Todos chegando a um leguleio, Carmélio. Pedem provas, rem certezas. Nostélgicos da época dos encrencar, infernizar. Melhor voce © servigo. Respondi que no gostava do Nordeste. Ele riu — Bobagem. Come-se, muita pata de caranguejo a0 vina- grete, muita casquinha de siti. As mulheres de familia so como devem ser: debaixo do cabresto. As da vida, conhecem o né da pela, nfo sto atrevidas como as daqui. E é capaz até de yoo’ descobrir sua mie por 16! Para minha viagem, major Fernando separou pessoalm: uma Magnum, um 38 com silenciador, ume pistola Boretta, E me dew um punhal de cabo de prata, cheio de arabescos. Foi olhar o britho da ldmina perto da j — B de primeira, Se quer me fazer um favor, use esta arma, Nao gosto de inaugurar minhes armas brancas... Cisma Além de tudo, a tradigiio no Nordeste é esta mesma: ferro. Sé atiram em cachorro Riu — © homem nfo deve dar um grito. Se apresente em Fortaleza como vendedor. Seis documentos jé estiio prontos Nao se meta com mulher, lembre do que acontece. com a tal ozinho € calado e fazer Vera. Quase sai um escandalo. Verinha tinha cabelos longos, ruivos (56 por isso nfio podia se parecer com i pontudo, olhos siamés. jente eu me lembrar de comprar 0 saco dele do que suas garrafas de fgua mineral esconder-se quando cla entrava no apartamento, arqueava 0 he @ voz © me negava seu miado gutural, As trocevam: prometiam-se a morte e, mais do qi nato. Depois da nossa ltima briga, ela pés sua Ganhou a tltima batalha, mas teve ta, Ainda hei de colocar 0 seu escalpo do sitio, por cima da larcire, perto das samam! — Voeé teré todas as suas contas pagas, natural disse: major Fernando. 2 » vencido. Fomos tomar juntos uma yodea com 10 dia seguinte eu estava diante de Dorinha, na sala empoeirada da biblioteca ptiblica de Fortaleza, Gosto de mulheres pequenas ¢ ela era mitida, suave como uma améndoa. Estou farto de peles grelhadas de sol e ela era el tinba uma argola lecote. Nao se balangava ao andar, the subisse dos tornozelos aos seios, hava, Enguanto viver, me lembratei da sua bluse banca, longa até os quacris, de cambraia transparente, — Estou falando com dona Dorinha Vasconcelos Alen- car, « bibliotecéria? — perguntei, tolamente. jardim — corzigiu, — A biblioteca é um jardim, ingua E contou que o acervo era de 80 mil volumes, Costumava sonhar com indo estava em casa, fe, perdia 0 sono, femendo que a biblioteca pegasse fogo. ‘Temia que se incendias, se antes que ela lesse até o dltimo livro, leza hé 24 horas e dona Bonina, pro- do pequeno em que cu me hospedara, disse: tem a familia Vasconcelos, a far Pontes. © resto é gente sem con tencia a uma daquelas fami desmandavam, faziam os deputados, escolhiam os governadores, nomeavam os funcionétios. Por algum motivo mister s° tomado assalariada © passava a maior parte do seu tempo entregando-se a0 cupim dos livros. Cupim. Devoravamlhe’ a carne e, por isso, tinha aquele corpo delicado, Estou procurando 0 gravutista Cél quei. — Soube qi i amigo meu, ind Ela olhou para mim, esquivandose, Eu ia aprender @ co- nhecer esse jeito de olhar que, de repente, fugia para outro 15 ie sua exprossio mudava, pensei ne carta de da rapidamente por um escamoteador. Um homem vinha andando em nossa dirego e passou rente & mim, como se nio me visse. Mais tarde, eu me acostumaria com esse dado: Dr. Maurflio Bessa nao via, ou fingia néo ver ninguém, nos arredores de Dorinha. Pequeno, muito moreno, vestido fore malmente num terno cor de nécar. Usava paleté e gravata na- quele calor. Olhava para Dorinha com paixéo e reveréncia. Parou diante dela, esperando comportadamente que Ihe estendesse a mdo. Ou tinha asma, como os gatos, ou estava com a respiracdo alterada pela ansiedade, — Chegaram meus jornais franceses, Adoradinha? — Chegaram. O Time também. Falam de jogos olim- picos. Era como se dissesse: nfo falam de nés. Nem a minima noticia sobre a orelha de Masuko, cortada a tesourinha, Ne- nhuma referéncia aos sujeitos torturados em casas clai Estamos no lado da sombra do planeta. No lado do si Foi buscar os jornais. Aproveitei para perguntar a M lio se ele conhecia Célio Moniz, um gravurista que desenhava peixes fantésticos de um aquério de outro mundo. Ele respon- dou que um advogado atarefado nfo se relaciona muito com artistas, Mas achava que eu estave enganado: 0 tema constante dos trabalhos de Célio era o padre Cicero, 0 milagreiro de Tun iro. Certamente eu jé tinha ouvido falar nese padre vene- rado em todo 0 sertio. Todo ano, em 20 de junho, data da morte dele, 0 Vale do Cariri'recebia 50, 40 08. Confessei a minha ignorin Um vendedor de material de construgio, ctiado no bairro da Satie (assim smo sertanejo. Mau- tilio era vaidoso © no perdeu a oportunidade de detramar missionério costumava rimar com revol era diferente. Tinha alianga com os coro: 1 fortalecer o oligarca Nogueira Acio! 14 sou um conservador”, repetia, j4 nonagendrio, Apesar da sta bondade angélice, na prética tinha ficado ao lado dos latifun- didrios que arrancavam dos lavradores a meia ¢ o cambio, Ha- vie concedido @ patente de capitio a Lampio, para que este combatesse a Coluna Prestes. No entanto, multidées o amavam, acreditavam que ele tinha o dom da profecia e vivia em odor de santidade, Durante 0 tempo de sua vida, milhares de pes soas invadiam 0 Vale do Cariri para pedi béngio. Depois da sua morte, devotos que nunca iam em romaria 4 Juazeiro, cantando hinos. A Casa de Milagres, instalada na yrava missa quando vivo, estava abarro- % que Ihe comprovavam o poder sobrenatural. 10s esperavam a sua ressurteicdo. um resto do re- iat se devia se 8¢, no fichdrio de Fes © consulentes, figurava o ntimero do telefone ou o en- derego de Célio Moniz. Ela negou. Estava mentindo, Hé anos, 48 pessoas se esguivavam, evitavam dar o enderego dos seus amigos, tornavam-se reticentes © alertas, — Ele ndo é freqiientador dessa biblioteca? — insist Agitou a cabega, negando. O aro de ouro da sua orelha mexeuse. Esperei ver uma gota de perfume rolar. Lembrei-me da orelha da pequena nisei, cafda aos meus pés. As orelhas de Verinha ficavam pélidas ¢ geladas na hora do orgasmo. Uma vez, ela me escreveu uma carta de amor: “Por que me fez tantas perguntas? dizia. Voce quer saber os meus minimos pen- samentos, até as minhas intengSes mais escondidas. Nao faz isso para me conhecer, mas para calar alguma coisa dentro de mim. Voc€ quer me silenciar para sempre, selar alguma ver- dade que detest Deménio de mulher, No fim da carta, escteveu: “Voce quer me esfolar viva.” Mas foi ela que esfolou Veludo, estra- goulhe © pélo de sede, apagou a chama verde dos seus olhos. — Me enganei. Tinham-me dito que esse Célio vinha to- das as noites & biblioteca. De qualquer jeito, agradeso 5 Sai, com dificuldade. Onde comeca o desejo? O que teré desencadeado minha atrago por ela? Sem duivida, alguma ni- aharia, Aquelas orelhas suaves como pétalas, ‘que se escondia. Ninguém sabe qual 0 grfo 4) causa a avalanche. Pensei em major Femando: ““Néo se meta CAPITULO 2 tel e perguntei a dona B la me indicow trés EU COMPREENDIA. No bar do Julinho, perto do baleéo dos fundos, vi logo um desses homens que mentiam ao corpo. Ex tava sentado numa mesa, diante de uma pilha de rodeles de apelio de chope. Néo tinha nada em comum com os rapazes 5 bamboleantes que eu costumaya encontrar em alguns baree do : Rio, batendo muito as pélpebras ¢ esganigando a voz. Tratava. se de um senhor gordo, discretamente vestido numa camiseta clara — ¢ 36 se notaria sua peculiaridade por certo cante ¢ pelas mesas vazias em torno da sua, Ful até o balodo © pedi uma calpirinba e um tire-gosto de caju azedo. Julinho, 0 dono, magro, a boca cheia de dentes de Ouro, perguntou se eu era turista, Se fosse, poderia me fornecer tum roteiro de bordéis e, de quebra, 0 enderego de algumas casas onde eu poderia comprar rendas e bordados da Respondi que cu estava na cidade de passagem, pata fechar i negécio. Levava naquela mochila o fichério dos fornecedores da minha firma, Ele teve um olhar desconfiado, — Nao quer deixar no balefo, para eu guardar? Parece pesada. lei, Precisava tet a mochila A mio, porque ali guar los contra enxaqueca. Ele ento me contou que éncia, quando trabalhava como guia de cego, costumava sofrer de insuuportavel dor de cabega, {ado com remédios caros, depois com homeopatia, finalmente com chés de ervas ¢ benzeduras de pajé. Um dia resolveu aban. donar o cego Francelino sozinho em sua treva e fazer romaria a padre Cicero. — 0 senhor me ereia, Juazeiro mudou muito. Esté cheia de postes de i e de antenas de televisio. Nao ‘ Se parece em nada com 0 arraial em que o padre Cicero viveu. 16 7 © que ndo mudou foi a fartura dos milagres. Fui lé, visitei a igreja, depois dobrei o joetho diante da estétua de padre ero. Deixei de presente meu trancelim de ouro. E nunca mais tive dor de cabega, — Conhece, aqui nesta cidade, um gravurista chamado Célio? ‘Sonso, respondeu que talvez conhecesse, mas, pelo nome, ‘nfo se lembrava. ‘conhecia ben todos os artistas era o gordo que mesa do fundo, tomando chope. inha uma farmécia e ainda sabia aviar re }0 08 boticérios antigos. Ultimamente andava bebendo, da tristeza de ter sido abandonado por um certo rapaz tocador de violao. — Se o seithor nfo tem muito preconceito com essa his- ‘ria de macheza, va no queixo, Quando descobri que no era mulher, deilhe uma surra que Ihe quebrou trés costes. Encaminhei-me a mesa, pedi licenga ao gordo. Acolheu- me com brandura, sem desmunhecar. Seu rosto balofo estava marcado pelo sofrimento. Eu me tomei experiente em reco- nhecer a dor humana, Naquele momento, seu Beto softia como (0s presos quando sio postos no paurde-arara: faltave-he o at, as costelas estalavam. — Tem dia que a bebida niio cai bem — explicou, Eu pedi uma cerveja ¢ contei dois ou trés pileques desas- trados que tinha enfrentado’ em Num deles, ima- inci que madrinha Conceigao ma de um morcego. Em outro, despedacei minha moto ver- metha em:cima de um poste, Era a primeira moto de um rapaz que sempre havia sido pobre. Nao uma simples méquina, uum grande brinquedo faiscante, a precéria posse da velocidade @ da liberdade. Eu a comprei a crédito, com meu primeito salé- tio, pago pelas forcas de seguranca. engorda — suspirou seu Beto ora, seu Belo, 0 que o engorda que 0 senhor come, acompanhando o chope. B a ova de tainha, 0 marisco acebolado. . Interrompi aquela conversa irritante, Vera go de tagarelar sobre regime, a0 telefone: “Hoje, querida, come- 18 cei minha dieta de maga ¢ iogurte.” Ela nunca precisou rezar Para conseguir pagar um prato feito, tinica releiséo do d; vVivia tentando ser mais sedutora do que Veludo, Esbelta, sic auosa. Afundava 0 olhar nos ollios do gato, para roubar-he o segredo do encanto. = Seu Beto, 0 senhor conhece um gravuris Célio? Preciso comprar umas telas dele. Um sujeito de Sio Paulo encomendou. = Olhe, quem é amigo desse rapaz — um rapaz lindo! — é seu Valdir Petro. Seu Valdir € pessoa étima, bom no copo ¢ ainda melhor no taco da sinuca, Mas ele sé sai de casa depois das 11 da noite, quando consegue se livrar da bruaca, E nfo vem aqui, vai ao Bi i Sugeri que fs ilher Continental. Ble vacilou, © bilhar era reduto do machismo da terra, Falavam em honra, todos se consideravam paisd’égua, Usavam faca de ponia, cuspiam no chio, me garanto ¢ Ihe garanto — observei, — Eta 36 u_eu, que consegui mie, E atrayessei — inteiro! riar sem saber o nome — um mar de sangue macho como eu, sé 0 jue me esgolou nas sessSes da tortura, morreu lavra, ¢ ainda hoje esta colado a mim, como sombra a0 corpo, Chegamos so Bithar Continent exato momento, Valdir Petro estaria sai ia Vasconcelos, terceira filha de dona Bela Alencar Vascon, celos, matriarea poderosa que, apesar de mal enxergar e defecay Por um falso anus, um anus de platina, mandava em sua nume. seu forte patriménio, aldir tem 0 apelido de Petro porque em sua mock dade trabalhava ce iro da Petrobras, no Rio de Ja- neiro, Mas dona Anténia, que tinha, entio, 18 anos usava inca se acostumou a morar longe da mie, Todo dia, Quero comer tapioca com leite de coco, quero tomar inha terra.” Mas 0 que 19 tem querer? Aqui no Nordeste, se diz que mulher nao pode nada, mas, nia verdade, Valdir acabou arrumando as trouxas, largando Vila Isabel. .. Ele era nascido e criado na Vila! Aban. donou um futuro brilhante na Petrobrés, s6 para néo ser apor- rinhado. Agora, tem um emprego sem graga no Departamento de Obras Contra as Secas. Mas continua firme na bebida ¢ timo no taco. — Bu nfo sou ruim na sinuquinha — comentei, estirando as pernas por debaixo da mesa em que me tinha aboletado, no fundo do Bithar Continental, E me lembrei do tempo amargo em que, apesar de ndo ter ado, precisave ter mfos fitmes no taco, para garantir 0 ir, Estava disposto a esperar Valdir 0 tempo que fosse preciso. Pois nosso" oficio ¢ assim: as vezes rastreamios e is vezes ficamos na to imobilizado a olhar a gaiola do canério do vizinho. Mandei vir mais chope. Na mesa de sinuca mais proxima, uum grandalhio de bigodes untava a cabega do taco com vase. lina, Estava de olho na bola branca — Faz tempo que seu amigo foi embora? — perguntei a Beto, 86 por perguntar. i que tinhs feito uma pergunta indtil, das que am ser inclufdas num interrogatério. As perguntas teis dao, as vezes, a0 preso, tempo para se recompor. Eles ficam alertas ¢ Ageis, prontos para con Beto langou-se sobre o meu ‘uma migatha, : — Ouviu falar nele? — perguntou, — Tinha um je indio. J4 co em paginas de revistas colo- ridas. Mas jd tinha lido muitas reportagens mentirosas sobre eles. — Mério deslizava pela casa com passos de camurga, igual a um selvagem. Quando eu chegava da farmécia, me preparava © banho. Gosto de uma banheira com égua bem esperta, quase fervente, Nao agiiento mais dgua fria, estou ficando reumético. Depois, me fritava uma posta de peixe e comesava a co ia de telenovela das seis. — Via novelas de tev? — indaguei, espantado. — Todas. Sabia tudo sobre a vida dos artistas. Era 56 0 que ele sabia, além de tocar um pouco de violio. Nos sabadas 20 © domingos, vestiase de palhago, alugave-se pare di stir cxian- as em festas infantis. Ele adorava ser 0 palhaco Joli, Joli. Um falso nome, Ea também us 8 vezes, um nome inventado, Em algumas areas, chamavam-me nao Cermé lio, mas Dr. Pédua. Faltavam-me, no entanto, a fantasia, o rosto Pintado, o nariz. postigo. Nao usava sequer barbs. Nada me defendia do olhar dos torturados. Major Fernando dizia que et gostava de criangas — explicou seu Beto. — E-eu também, Muitissimo. © senhor, nilo? — Nio. Parecem lesmas, Gosto muito de animais, A té- bua suarenta do pescogo de um cavalo. A erista de fogo de um lo. Jé tive um gato sidmés, um migico. Me apeguel tanto a ele que até parecia que minha mie tinha reencanado em sett corpo. As ovas fritas chegavam. Espete brando as recomendagies de maj la, nfo fale em sua vida particular — Que fim levou seu gato? — quis Desconversei. Gatos desaparecem. Nao so como os ca- chorros, bichos obsessivos, capazes de ficar nos caleanheres dos donos mesmo depois que eles viram defuntos, Lembrei-me do cachorro de Murilo, um professor que se maiou quando eu —A frente de uma turma decidida — arroml apartamento @ pontapés. locou 0 cano da 8 com um palito, Jem- Fernando: “Feche a trame- ber Beto, fosse pelo cachorro, qualquer hhavido nada. Os vizinhos havi rasio, atrafdos pelo barulho — “Que € iss0? Cade o sindica?” — mas, quando notaram do que se tratava, reflufram para dene tro dos seus apartamentos, encofheram-se em seus roupées mal jambrados, passaram tranca nas portas, afundaram no silén. cio. $6 0 cachorro insistia em testemunker. Ficou uivando, lam. bbendo as mios do morto. Uivou dois dias seguidos, mesmo de. pois do cadaver endurecet e ser levado pelo rabecio, En. revistavam 0 apartament, antes de Ineréo, gemia pelos © peito arfando, os olhos ge 21 2 — disse ele, — — Com pena do virelata, Dr. Pédi Parece coisa de solteirona. Nao era verdade, Madrinha Conceigo nunca se afeigoou 4 bicho nenhum, nem mesmo = mim. Preocupava-se em remo- gar — comptava dizias de para rejuyenescimento — ¢ em pesquisar ninharias, em liquidagées longinquas, — Se eu algum dia ficar rico e tiver sossego — confessei a Beto —, criarei vérios gatos siameses. E um cachotro daque- Jes que tém grandes serdas, um délmata, © farmacéutico contou que, um dia, Mario tinha trazido para casa um melro. Beto Ihe censurou a despesa instil, depois pediu perdfo, pois ele era muito econémico. Passava a ferro, pessoalment achavi jeito de pechinchar com o peixeiro da car- rocinha da esquina. O peixeiro aproveitava para desebafar a "V4 perturbar no caixe-pregos, rapaz. Regateie no fiofé do Judas! Pensa que eu sou baitolo como yoo8, ¢ niio tenho iho para criar?” Ao falar em filho, seu Beto suspirou fundo. era, de certo modo, um filho seu. Uma criangs. Além das telenovelas, 86 tinha informagdes sobre amores de principes de Ménaco ou de estrelas de cinema. Ficava muito tempo sentado numa esteira de palha na cozinha, descascando mangas ou cajus eléia, — Sai muito mais barato do que comprar em supermer- ado. Tanta economia ¢ tantos guidados permitiram que seu Beto Ihe comprasse um violo precioso, com o g 08 vizinhos. B presa que plantada em fortes quadris, sobran- celhas espessas ¢ um jeito de rir coma quem se engecga — vol tando o pescogo para trés, gargarejando, Anamaria sebie cantar as cangées da moda, Uma tarde, ficou apés a sesso de misica, para fazer um bolo de carima. E depois ensinou Métio a fazer biscoitos de goma, pastéis de nata, bem-casados, massa folhada, toucinhodo-céu. Seu Beto reclamou da presenga constante. Mério house, — Que 6 que tem? Vocé precisa de uma cozinheira e ela ‘do tem para onde ir, brigou com os pais. Estou farto de bancar empregado de todo servigo. Ainda no passei por baixo do arco- 22 ‘do, meu filho! Prociso ensaiar minhes palhagadas, € como jue ganho a vida. Além disso, voc é cheio de luxos, che- gado a quitutes. Eu, néo, Posso passar o dia com um punhado de farinha secal Anamaria ficou, Uma dor confusa foi se apossando de Beto, resistindo as pogées de boldo, camomila e sal amargo que cle aviava para si mesmo. Olhava-se no espelho redondo do banheiro, achava que a dor ¢ 0 citime no combinavam com sua idade ¢ peso. Mario andava arredio e lerdo. Seu Beto echa- a que, no jogo do amor, as pessoas maduras podem ter cartes to boas quanto as jovens, por disporem de exp capazes de.gentileza. Mas Mirio afastava-ce dele e, 5, seguravaclhe 0 chapéu-coco, a cheia de mags de plistico e de flores de papel. Num sibado, ao voltar mais cedo para casa, Beto viu os dois dangando na sala, ao som de um radiozinho de pilha, Dan- gavam bem, quase sem mexerse. A misica escotria pelo corpo esbelto de Mirio, subia dos seus pés escuros, de Beto foi se peda um ca Consol de madrugada, nio en- contrave Mério mas achava 0 eafé quente que ele tinha dei. xado na garrafa térmica, Tentava animarse, dizendo a si mes. 0 que 0 rapaz era incapaz de paixGes: amor ou dio, ressen- imento ou culpa. Um passero, um animalzinho, sem fantasmas, sem lembrangas, Mas ao Ihe trazer 0 remédio para as crises de figedo, cada vex mais freqiientes, Mério tinha na pele um cheiro morno de mulher e a boca fortemente vincada. Comesava a parecer com os rufides que na casa de dona Mocinha faziam suas prediletas se vestirem de Anamatia contemplava-o com ar passivo e feroz. Pabricava flores amarelas e enfeitava 03, tsava uma papoula nos cabelos, cochilava pelos can- tos. Tornavase cada yez menos esbelta, e jd estava definitiva. nte gorda, quando Mério desapareceu. Beto correu a0 quarto do amigo. Faltavam as camisas de linho, os ténis da moda, os frascos de xampu ¢ de logo. Preci dos onde Anamaria dormia e ond ver — 0 violo do amigo. — Deixou © melro, mas levou o violio — disse a moga. — Saiu com 0s sapatos na méo ¢ stltou 0 muro, como se fosse um gatuno, J4 estava ameagando, faz tempo, aceitar um con- ato para a rédio da cidade de Ipueiras. Nao manifestava desolaco. Parecia lutar (uma ruga de esforgo na testa) para refazer seus planos. Uma gota branca the escorria pela blusa do vestido, A bolsa de palha estava 20 Jado, com suas roupas. — Também vai embora? — Vou parir meu filho onde puder. Ele baixou a cabega e The pediu que ficasse, Tinha sido tudo uma fatalidade, Artes do Nao‘Sei-Que Diga, 0 Cio, 0 Sa tands. Mas, & nojte, depois que ela lavou os pratos e se sen- taram 0s dois nas cadeiras de vime da calgada, ouvindo 0 tido dos cachorros do bairro e sentindo o cheiro do jasmim da latada, Beto pensou em seguir o ingrato até Ipu uma peixeira de lmina denteada. Encontrando-o, le corpo delgado, de cima abaixo. A fatalidade, como um porco pelo outro anormal.’ Interrompi a histéria de seu Beto. Tinha visto uma aranha na parede do bar e no gosto de aranhas. Tenho sempre a im pressio de que estio a minha espera. Esmaguei 0 bicharoco « voltei ao meu lugar. — Vood também podia torturé-lo — disse eu. — Ele me- recia. Quem 6 torturado tem espasmos como no amor. Se des- fez em liquidos. Pede mas @ morte no vem ‘a um frouxo, Nao se se queixar diante de Anamaria. Ela tinha ficado extraordi riamente poderosa, de repente. Sentava-se, com as mios nc sangrado seu Beto, parecem bolinhas de gude se deslocando. Era uma entidade mégica e rotunda, tura na mAo, Beto estava certo de que era por jue havia aquele estrondo de chuva no telhado, em plena da seca, Subitamente, entrou em trabalho de parto ¢, por uma vizinha, dew & Juz um menino mofino a quem ram Daniel. Beto, padrinho da crianga, considerou de ‘que 0 batistétio estivesse cheio de morcegos. Um 20s pés, com um rumor frouxo de bofetada, Quis brulhasse sua asa mem- nas padre Agenor o imped -gr0sso, suas miozinhas fincavam-se no peito — E frugivero — explicou. — & uma criatura de Deus. Basta de mortandade, ida a sua cintura fina, bria.. Beto, fascinado, engasgay thando-o. Anamaria tinha um ar suntuoso Parecia prodigiosa a Beto. Viera em sua s “quem pode o que elas podem? desarrumado, se no dia em que, ao acordar, no fresco ou da goma dos beijus que ela Ihe prepara. ya eada manha. Foi ptocuré-la no quarto dos fundos. $6 encom trou neném em sua redinha mijada, chorando um choro fra- co, um miado. = Abandonado pelos dois — comentei, tentando rir, — ‘Que sina, sew Bet Mas, na realidade, s6 um episédio do duplo abandono me abalava: 0 da mie, que largara o filho, O meu abandono, — Ela aprendeu hipocrisia com Mario. Aquele com 0 Capiroto, o Pai da Mentira, — Hipocrisia € coisa de comunista — comentei, jé afrou- xado pelo chope. — Uma vez, conheci um em Realengo, no Rio, © ele me mostrou seus documentos de padre. Até o dia lene, sua forca de f =e ia chorar iu 0 chei- acto — Quer dize im que © Laudelino, um Iouro que es- ctevia peca de teatro, tinka assunto com cles. Hé uns dois anos, Laudelino se matou, passou uma corda no pescogo. Ele amigo de Célio Moniz, o gravutista, e dessa Alencar ia Fiquei atento. Ela me mentira, sem que The tremessem os s do pétala. Scm que escurecessem seus olhos castanhos, Nio 36 conhecia o gravurista, como ele era seu amigo, talvez seit namorado ou amant — E 0 fedelho? — perguntei. — Vocé fez 0 qué com cle? Deixou na roda de algum asilo? Botou na lata de lixo? 25 — Nao pude — disse seu Beto. — Meu afilhadinho. Se fa com as duas mios nas minhas bochechas, como se agar- peito daquela vagebund: vontade de espancé-lo, Bicha idiota. Além de explo- rado ¢ traido pela dupla, ainda ficara no papel de pai e mie — rava morresse na rede mitida, nem precisava esganar. Bastava fechar a porta da casa, passar dois ou trés dias na farra e, quando voltasse, s6 encontraria um bonequinho de cera, com algumas formigas na boca. Anjinho. pobre ndo chorava morte de crienga. Qualquer doutor di ‘ido datia o atestado de dbito. Nflo era como no Rio de Ja- le médico torcia o nariz, falava em juramento de Hi- ipécrates? Quem é esse cara?” perguntava mejor tado de ébito para Aslindo, tive que ir a Sio Paulo, falar com o legis- naka, Verdade que ao cadéver faltavam um isso qualquer um pode perder por Padua, disse o Tanaka, carrancudo, Laudo pode complicar, Complicava coisa nenhuma. Os outro: fas fugaram A vontade, inclinados a intriga e A caltinia, Mas a imprensa es- tava sob ferrolho, os editores se mijavam de medo ¢ Arlindo foi enterrado com nome falso, em cova rasa e anénima, Os testiculos e 0 olho jé tinham descido como fezes pelo cano da privada da minha casa de sitig, em Petrépolis. Major Fernando até cuspiu de nojo pela janela: “Que chateagio, Carmélio! Ti- vyemos de ir duas vezes a Sio Paulo, por causa desse malan- dro. Eu odeio Séo Paulo: m jada, muito quibe frito, ‘muita puta na rua, muito mafué. — Entéio voc€ ficou sozinho com o pirratho? — indaguei @ Beto, notando que a freqiiéncia do bar estava aumentando. Jé havia torcida ao lado da mesa verde do — Sozinho. Me apeguei muitissimo ao ga: devo ter praga de me. Agora, o neném esté muito doente. Tem parpura, — Piirpura? — retruquei, apalermado. — Que diabo é isso? A mesma coisa que purpurina? — Piirpura € uma doenca em que o padecente bota san- ‘gue por todos os buracos do corpo. Nio sei explicar. $6 sei 26 que € grave. — Calou-se. O sofrimento fazia-o arfar e pensei numa arraia que havia pescado, certo vero, em Cabo Frio, Ela arquejava naguele mesmo ritmo, estendida na praia. Encaro- gada de conchas. Devia ter conches incrustadas até dentro da boca. A morte proxima lhe seria um Eu conhecia a si- tuaso. O sofredor pedindo a morte, como quem ped ficio: “Me mate logo, por amor de Deus!” Os padi zo quando dizem que a morte 6 descanso. Mi segurar nas pontas dos de- té 0 fim com arte, emparcei- jonante, Um homem pode so- if go20 nfo dura mais que um relim- vi entrar no bar um homem ntava a esquerda © a di- reila, com yor roues. — £ Valdir — disse Beto, com satisfagio. — Ja se livrow da megera ¢ da familia da megera, Decerto por ser més de maio, teve de rezar novena no oratério de dona B Valdir saudou alguns jogadores de sinuca e vi que era respeitado entre eles. Certa isava se associer a tiras e var dios em partidas intermindveis que duravam semanas. Podia irmeza das mios e passar, com ar soberano, o giz amanteigado na cabeya do taco. Um homem independente, Nao dependia dos caprichos da branca — a rainha de todas as bo- Jas — para comer. Pensei no tempo em que eu mesmo circulara nas espelun- enturmado com outros jogadores de sinuca, Tuca ¢ Milito me empresavam. Eu andava roda da mesa noites in- feiras, como um condenado, De vez em quando, olhava para as mifos, femendo que tremessern, De repente, Valdir viu Beto na mesa do fundo e foi cum- nenté-o. — Vooé engordou, Beto — disse ele. — Com toda essa gordurinha, ia fazer um sucesso enorme la no Baile dos En- xutos, no Rio. a7 colhou com apreenstio em torno, Depois de notar que nninguém tinha percebido a pinda, resolveu devolver a brinca- deira, io, Valdit? De joethos? — De joelhos. Dona Bela puxa a ladainha, instalada em sua cadeira de rodas, o saco de merda apoiado na barriga. As filhas reviram os olhos. Eu, criado em Vila Isabel, da ladainha 10 Cam. po de Santana? E ainda era linda a rua Augusto Severo, na Gléria? E 0 Boulevard? Comia-se uma maravilhosa carne-seca no Boulevard. Para ele, a Zona inha valor. © verdadeiro Rio de Janeiro sobrevivia em Vila Isabel, em Sé0 Cristévéo, na Gamboa, na Sade. Em alguns retalhos do Rio Comprido também, — Nio acha bonita a Baixada Fluminense? — perguntei, provocativo, tocando com o pé minha mochila cheia de m quinas — Ave Marial — clamou o baixinho, como se estivesse na ladainha de dona Bela. lembrei do dia em que tinha me enturmado com Caxies, para largar dois presuntos politicos eamento, em Nova Iguagu, A trinea vacilou abe, Dr. Padua, a gente faz isso com vagabundo, por- que a familia néo procura, os conhecidos fingem que nunca vicam. Mas esse pessoal é diférente. Pra largar assim no meio do mundo, tem que cortar as maos fora e amassar a cara. Fa- zer de um jeito que nem a mie reconhes é pela mie, foram colocados num helicép- ido antes naquela méquina, Besoura- va pelo céu estrelado, de um azul manso, aquoso. Noite tho bela que talvez, em sua luz, minha mie aparecesse. Noite de milagres. Largamos os dois num descampado, num Jocal em is costumavam abandonar os corpos dos bandi- dos executados pelos diversos esquadrées da morte, A Assos ga0 de Moradores do loteamento préximo foi se queixar a de- legacia de Xerém: “Seu delegado, alguém tem que reclamar os dois defuntos, porque as criangas passam pra escola e vem os urubus puxando pedagos da came dos falecidos.” 28 Major Fernando resolveu interferir. Mandou fechar a as- sociago, porque povinho, quando se retine, acaba perturban- do a ordem. Providenciou o sepultamento. Comentou que, um dia, ainda mandaria levantar estétua dos urubus: “‘verdadeiros gris da periferia dessa metrépole.” E eu imaginei o monumen. ‘0: 0 Bicho enorme, © pescoso descamado, 0 pretume, a lingua pendurada. No Nordeste, afirmam que turubu néo pode ver gente: vomita logo, Porguntei a Valdir se ele conhecia Célio Moniz, gravuista Que desenhava peixes fantésticos. Respondeu que néo s6 co- nhecia como Célio freqiientava a casa de dona Bela, Era muito amigo de Dorinha ¢ os dois haviam parti iado a convivéncia do misterioso, con- teatrélogo Laudelino, que se suicidara, Sui 0s, Laudelino 174 0 sertfo, lava, vestido em camisola de madapoldo, uma cruz de madeira pendurada no pescoso, pregendo 0 arrepen- dimento dos pecados ¢ distribuindo gragas, como o Beato da Cruz — Nunca ouviu falar no Beato da Cruz? Foi outro santo, da colegio dos que s ta de cadargos & i © nosso Beto pode the contar melhor. Ele estd pensando em fazer uma romaria a Juazeiro, — Nao brinca — 10 se gabava de trocar tiros até com Nosso Senhor Jesus Ci E Beto, que estudou pra farmacéutico ¢ até fala francés, qi ser romeiro do padre! —A Igceja tem mui los. — Por causa da caridade, tem 0 era um anjo de caridade. No de- sespero em que me encontro — Frescuras — censurou Valdir, sacudindo-se todo, E me contou que a propria Igreja tinha se colocado con- tra os prodigios do padre Cicero e contra os milagres de sua protegida, a beata Maria de Aratjo, — A Dorinha tem 14 nos arquivos da biblioteca pablica tum papel amarelado com a cépia do pronunciamento da Santa Sé, de 4 de abril de 1894, Esta escrito naquela linguagem em- pombada deles: “Os Eminentissimos ¢ Reverendissimos Padres da Santa Igreja Romana, Cardeais Inquisidores Gerais, conde- lagre, © em nome da Sagrada Inquisigio Romana Universal smaldigoam as medalhas que jé se haviam estampe- do com a eligie da beata. Fazem mais. Dio prazo de dex dias para o padre Cicero se ausentar de Juszeiro, sob pena de ex- comunhio.” # yerdade ou nio é, Beio? Beto concordou, melancélico, Convidei Val nar a0 assunto de Célio Moniz ¢ seu ida, Ele me deu uma palmada nas costas, — Isso € quase um caso de familia e eu conto mais tar- de, quando formos os dois a casa de dona Mocinha vadias. Apareceu por lé uma moreninha dos seus 14 a do promotor, Dr. Teodoro. Ela se perdeu e 0 pai botou pra fora de casa. Ainda se usa disso, por aqui. E tostadinha e man sa como uma fogo-pagou. Fogo-pagou é 0 péssaro que ld no Sul nés chamamos de rolinha! featrOlogo sui 30 CAPITULO 3 MADRINHA Conceigio costumava dizer que mulher & 0 lti- mo bicho da criacdo: “Fazem as necessidades n fosse penico. Por isso, preferi evitar rastro de home Lembrei-me de madrinha Conceigio quando entrei brado de dona Mocinha, em companhia de Valdir, os dois jé meio bébados. A cafetina usava a,mesma marca de talco da solteirona. A tinta dos seus cabelos avermelhava-se nas raizes e ela me estendeu a méo mimosa, de longas unhas, — Amigo de Valdir manda nesta casa, Em que posso Ihe servir, meu filho? Seus pés, calgados em sapatos finos, cados ¢ formosos. Em alguma época remo! fambém eram del da sua inhas de ouro. na menina que parecia uma fogo-pagou. Pediu des- fava num dos quartos da casa, com o velho desembar- 10 Vieira, Mas todo velho tem pavio eurto. Espe- rasse um pouco ¢ a garota logo se desocuparia Valdir e eu nos aboletamos numa mesa da sala ¢ pedimos vodea com limfo, E enquanto mordiamos unis mexilhdes: oo ide er6- talar das solas dos rufides, subindo as escadas. Além de tudo, sua esposa, dona Anténia, nfo apreciava acocho de macho. Dona Bela criata essa sua filha ¢ as outras duas, Dondon ¢ Neném, para serem o que chamava “virgens eristés no mun- do”. Tinham sido consagradas a Nossa Senhora, no dia da sua comunhGo, Vestiam-se de branco, usavam a medalha milagrosa no pescogo, confessavam-se as sextas-feiras com 0 at ‘magro padre Severi , que ensinava: “Mesmo dentro do sacra- uss tinbam casedo, mas nfo falavam em sexo e quando se referiam ao amor, toreiam o nariz € suas bocas se vincavam de nojo. Dondon sé havia se empertigado e engordado depois de varridas as flores do funeral do seu marido, Guardava ainda am {que era obtigada a se poluir com as ias de seu Chichico. As tis mulheres tinham se tornado devotas da mae e vigiavam insayelmente Dorinha, para que nfo aderisse a0 was masculinas, Eu cert em alguma paixéo secreta, vivia um perigo des- ‘conhecido, tinha uma espécie de aura, "As megeras notam isso e tremem! Riu e eu senti uma pontada no coracdo. Uma espécie de ‘aura. Ela tinha essa radidincia e também sentia medo. De qué? Bu conheco muitos tipos de medo, — Voot precisava ver a case da minha sogra, Carmélio — dizia Valdir. — Tudo continua como no séeulo passado: se pila no piléo. © coco é ralado em ralo de mai Tha néo quer saber de nada modemo... Nem bem o de bruxa, Nunca me deu um beijo chupado. Tem nojo de tudo, mas pensa que se importa com o fato da mie defecat por um buraco cirdrgico na barriga? Nao, Nem sente o cheiro da merda. Blas sfo todas assim. Descreveu, com minécia, a rotina do casardo de sua sogra. Dondon, que apés a viuvez morava em companhia da mie, aten- dia Togo cedo os telefonemas das duas irmis, informando-se so- bre a satide da mactobia, Depois, ia tomar eafé com bolo mi- soso na copa, contando as empregadas que dona: Bela tinha lotmido como um anjo”, Recomendava os caldos, os succs, aus da velha, E ela, pessoalmente, levavalhe » bandeje cama, Desereveu 0 dilogo de Dondon com sua mic, Invariavel mente, a velha perguntava: 32 — Voos jf rezou verainhas, quantas jacul ‘Ao ouvir o relaté = Vocé esti no pre para me tomar a bénglo? Dondon explicava que Antinia era dona-de-casa, ocupa: da em seus afazeres. A religiosa também tinha suas tarefas, mas dopressa chegariam, arrastedas por aquela voragem materna. Dona Bela exguia a voz, ot minha saiide, Dondon? Quantas sal- ins? das rezas, suspirava, alivinda, . E quando suas irmis chegam, iam a8 irmas — corria ao telefone para ix que nifo podia usar calga comprida na presenga de Dona Bela — Bev fu perto do Ponto de CemRéis! — ex plicava Val wando-se pata mim até que the vi as obtu- rages dos dentes. — J ‘Teatro Catlos Gomes. Na Lapa, oda-ob fogo-pagou. Res- pondeu que a menina havia sofrido uma indisposicio, estava vomitando no banheiro, mas logo chegaria. E enquanto espe- rdvamos, renovando a vodea nos copos, Valdir me contou que sua cunhada, Dondon, dedicavase 20 officio de ser santa. ‘To- mava tés banhos de assento por dia, esfregava as mfos com limfo, ia a missa todas as manhds. Era presidente das Maes Cristas, chefe da Associagdo das Senhoras de Caridade. Trico- tava intermindveis sapatinhos de 18 para os pobres, Preparava enxovais para bebés prestes a nascer de barrigis miserdveis ¢ que morreriam dentro de duas semanas, mas calgados. Favorecia casamentos de mogas que tinham dado um “mau passo”. E es- wva sempre fentando criar-afilhadas pobres a quem, segundo vdizia, dave tratemento de filhas, mas que punha a comer na winha em prato: de-pléstico ¢ ndo apresentava As visitas, Elas logo iam embora, cefdas na vida ou retornadas & pentiria dos seus casebres. Dona Dondon passeva semanas contando a padre Severino — comensal da casa de dona Bela, aos sibados — os lances da ingratidio, Exibia 0 enxoval das afilhadas: “Othe, padre, para ninguém dizer que eu estou mentindo: quatro ves- 33 tidos cortados em costureira, sapatos de Pois foi embora, com roupa do corpo. Padre Severino respondia nao ter medida a maldade hu- mana, E proclamava que, no livrocaixa divino, todas aquelas dédivas seriam anotadas no crédito de dona Dondon. Ela ado- gava, dizia nfo querer mal as mal-agradecidas. St-mais-uma afilhada-aparecesse, anémica ¢ piolhenta, ofereceria a sua-pro- ‘esdo, “Nunca me conformei em s6 ter essa filha, na 4gua ¢ no ja, frasco de cheiro, Finalmente, Veldir yoltava 20 ascunto que eu queria. Fale- va na Dorinha reticente, de pele iluminada sob os cabelos ne- ros, tensa com seu segredo ameagador. Revi sua blusa brance, transparente, Trouxe-a em pensamento até meus bragos, bei Ihe 08 labios silenciosos, — E ela? — perguntei. — f fria que nem as tias? Tem uum sinal de nascenca entre as sobrancelhas, como aqueles sinais forjados das hindus. Hé certos sinais, nas mutheres, que me deixam Iouco. 30 onde redemoinhavam os_pé do seu corpo, pois ela era toda penugenta. Gateada Valdir sorriu, tamborilando na mesa 0 copo vazio. Se con- tinuassemos a beber, jé nao desejarfamos mulher nenhuma, Nem a fogo-pagou que estava enfurnada, tomando sal de fi qualquer outra, Dorinha fora mimada pela pelas tias, mas eram todas meninas brincando de boneca. Vestiamna com vestidinhos bordados, experimentavam-lhe penteados, conside- ravam cada tombo, em casa ou na calcada, um perigo grave (boneca pode quebrar). Deixavam a menina sentadinha numa cadeira baixa no quarto de dona Bela, acreditando que seria da volta de Jesus Cristo ao mundo.” Mas dona Bela, vestida em seu penhoer bordado, s6 fa va dos homens ¢ sua maldade: “Primeiro mandamento, Do- inha: se precatar contra carioca. No casamento da Antonia, O vivente fala chia dos bilhares, Gosta de negra, néo se impor Temi Bessa. Para 34 to, ele mesmo se defi E gostava de dizei Ihe os retratos, depois que a familia enriqueceu e branqueot Com ar de zombaria, sublinhava seu sangue african dian- te de Dorinha: “Ainda bem que sou-um’ eaftizd tivo, Adora nha, Se vocé quiser, lhe dou uma casa com escadas de prata © lumma garagem forrada com pele de onga. Vit gente de Ieé, Ca- nindé, Itapipoca, Juazciro do Norte, para ver a escadaria re- lumeando.” — De Juazeiro do padre Cicero néo viré, néo — resp Dorinka, sorrindo Para vé-la, ele ia todas as tardes & biblioteca, depois das audigncias do Foro. Com 0 tempo, as pessoas 0 chamavam, simplesmente, 0 Advogado. Era 0, tinico que parecia nio ter sido acometido pelo medo. Os camburées da policia passavam fem sua ronda, ¢ ele nfo mudava de calgada, As historias de episédios acontecidos no Quartel Central percorriam as casas como arrepios, e ele no tremia, no siléncio geral. Seguia de- fendendo indus lia pre com ele © 0 transf num consumidor de aspi Costumava confessar impetos de escrever o nome dela cal dos muros inflamados de papoulas. Se fizesse isso, 0 talvez fosse considerado uma senha e ele mesmo acabas- se preso, como qualquer ativista vagebundo. Quando alguém © procurava em seu tetrago, mantinha-se carrancudo e sobran- ceiro = Qual € 0 seu caso? Estow aqui para servic. Puxava invariavelmente 0 talio de cheques para atender 4 obras de caridade, listas de adesio, + mifo-aberta, um per tanto, eram poucos. A 708 que, no ene ia das pessoas 0 tinha por secat- tra cle em sua paixo por ia que prezava a brancura, sa-) negro quando nio suja na entrada, fez. vergonhe] Dona Bela, além disso, nutria a esperanca de qud se conservasse donzela, 35 — Todo homem tem pauta com o cdo. E este nunca foi visto na igreja, venceu uma empresa de gringos numa pendenga — 56 pode ser sécio de Satands! — e mora s6, que nem enjei- tado de mée, Tereeito mandamento, Dorinha: impio e magom no setvem para esposo, vizinho ou compadre. ‘Apesar da dona Dondon © Valdir haviam acompanhado pelos jornais a Jonga questio em qi patrocinara Mendes provocava Se ele ganhar a causa, yoo? pode ser a noiva mais sun- da Praga da Sé até o mer- cado velho. Ek 10 topo do mundo! —E onde € 0 topo do mundo, tio Valdir? Por galhofa, Valdir insistia, no almogo dos sdbados, que 0 | advogado poderia patrocinar grandes obras de caridade, Era | 86 dona Dondon decidir. Um orfanato? Mes j@ havia milhares | de meninos 6rfaos vendendo is ruas, de di } dormindo nas calgadas, de para recolhe vam ab na primeira instincia da cause, ‘uma orquidea vara. A flor chegou Iso orvalho nas pétalas cremosas, dentro de uma caixa de papel celofane. — Mande’ buscar em Ge ida, obtida por uma fada b Voe®, em vez. de se cham porque € tao clara! — Nio 80 morenez. — Negritude, Qual ra? Bu te trago uma tra com incenso, Adoradinha. ando ganhow a questo no Superior Tribunal, sem mais pos ide de recurso, Maurilio apareceu em todos os jor- nais da cidade, Ele mandou buscar uma tulipa da Holanda para Dorinha. # da espécie alba, Uma hi- ja ¢ que Ieva o nome del ora, devia se chamar Al 36 — Dorinha vem de Dora? — De Maria das Dores. — Tinha de ser. Dorinha ¢ uma dor minha, dor sem re- médiot ie de tanta dedicagao, Dorinha achou que poderia Ihe pedir atuagGo firme para descobrir se Laudelino — encontra do enforeado em casa — se matara realmente. Nenhum suicf- dio podia ser confirmado com facilidade e jé tinham sido en- contrados suicidas com o rosto tumefato ¢ os dentes quebrados. Célio parecia enlouquecer aos poucos desde a morte do seu amigo, © dizia que lhe encontrava a sombra dentto das gavetas © atrés das portas. Maurilio tentou negacear. —8 Adoradinha, Ble pode ter tido uma crise psicética © se pendurado pelo pescogo, Mas também pode... Garanto que néo notei a rpnda dos camburdes, aque- Ja noi — Eu peco esse obséquio a voc8, Maurflio, Falava com a yoz cheia de légrimas ¢ evitando bater os eflfos, para que o pranto nfo Ihe corresse dos olhas. — Pede nada, Adoradinha. Voc8 manda. Desenha e corta. Poe e dispée. 20 seu gabinete, — Vou nao. Cri dem 4 presenga de qualquer autoridade. El falar con 0 € que é chamado debaixo de or se quiser, venha ferecer uma pata O chefe de polit Hse todo de branco nacarado, mi dou passar verniz. nas unhas e compareceu ao terrago do hot Baixinho, eabega chata, olhos saltados, ficou constrangido ante de Mauriio, — Doutor, venho the dizer que nfo estou & favor desses aleives, desses barbarismos. Peco-lhe que apresente quel — Me-poupe desse: desfrute, Canuto, Torturador ni vestige terturador, bandido nfo julga bandido, Quando .0 1e- 7 ‘volver “dos“eapangas saiu’ dos-coldres,-a. impunidade-jé estave garantiday — Vou mandar at sindicdncta, — Mas ndo me chame para testemunha, Nego depoimen- to, vou ter que ir arrastado, E arrastado quem vai € negro pobre, Canuto retirouse, sem acabar 0 atentadi il acabou sendo E » apesar dos esforgos, apesar dos subornos, no con- saber nada sobre a morte de Laudelino, cujo cadéver in- fora encontrado por seu amigo Célio, pendurado no bas- culante da janela. — Parece que esse Maurilio € metido a macho — comen- tei para Valdir. valente aqui pelo Nordest. Mas tem ocasioes em que a maior macheza se acaba do terror de homens muito corajosos quan- ava o fio elétrico na tomada e colocava-se a ponta de- sencapada dentro da sua boca, Bobagem ter medo. Quando @ hora € chegada, no adianta negacear 0 corpo a morte. Até aquele Luis que suportow tudo — e nés Ihe cortamos as pélpe- bras, em verdadeiro trabalho de artesanato —, aquele Luis que nnunca entregou ninguém, acabou morrendo como qualquer um. Suportou impos Engoliu & forga sal grosso por dia para que os contraiu as mos sem inca procurou o cadéver dele, Foi Tanaka, com o nome de Al ico nisei reclamou: “‘Vocés acabam me en- crencando. Um dia, ainda posso ter problemas com 0 Conse- Tho Nacional de Medicina...” © malandro pensava no futuro, sem acreditar totalmente ‘nas promessas do major Fernando: “Isso toda a vide, passa do ano 2000, chega ao ano 2100. Dona Moi estava a eaiado e vi a adolescente sentada a beira da cama, esperando, Tinha seios mitidos, um tanto pendentes. Pensei em Verinha, Quando me enterrava em sua came, podia imaginar o odor de ‘outros homens que, em passado recente, se haviam misturado @ 38 cle, Eu no podia me impedir de desejar que a minha mie fos- se mulher recatada, Altiva como Dorinha, com seu sinal mo- reno entre as sobrancelhas, Virgem-mae. A fogo-pagou comegou a geier, mas aquilo era estudado, — Nao precisa fingir — ie tristemente, — Nao perca seu tempo, Sou homem tarimbado, conkego essas comé- dias, Ela se calou e voltow o rosto para 0 lado da parede, onde havia a foto do cantor Roberto Carlos. 39 CAPITULO 4 ANTES que Valdir Petro me viesse buscer para a festa de ani- versirio de dona Bela, lembrei-me das comidas que ele descre- vera, lambendo os beigos: “Serio servidas vinte galinhas gor- das, estofadas de farofa © castanha torrada, Came-de-sol de Caicé, com a gordura amarelando e aromando. Pencas de ca- ranguejo da Barra de Mecejana, Lagostas em moqueca. Mais de irés dos gordos, a guelra einda botando sangue, @ nas escamas. todo dia que eu comparecia ao aniversério de luma velha de 87 anos, mas precisava ver de perto Célio Moniz. Avaliar sua altura, peso © temperamento. Eu quer vor. do homem que pretendia matar. Desejeva estudarhe a jor Fernando, Nao que correr o risco de que a Mimina errasse seu caminho, resvalando todas esas preocupa- es, poderia usar a pistola com silenciador. Mas agora, que uum confuso citime me motdia, sentia 0 desejo de atender 0 pe- dido de major Fernando e operar com a arma branca. Chegatia ‘Go perto de Célio Moniz com ele, por um curto momento, a meus presos. A maior de todas. Ao tomar banho de chuveiro — no hotel tornava verdadeiramente fria —, comecei a ‘di cidade do convite de Valdir Petro. Dona Bonina j tara o quanto eram fechadas as familias tra cidade: “Homem estranho s6 convidam o padre, o prefe © juiz. Guardam 0 sangue. F tudo Vasconcelos batendo chifte com Vasconcelos,” 40 Eu deveria aproximar de Célio Moniz. Na festa do aniversério da velha, certamente reencontraria Dorinha, seus Iébios tenros, sua ar- sinal de beleza, ¢ isso me per- sido categsrico: "Nao se meta , Valdir chegou pontualmente as sete, jé com dois conhaques na cachola, — Levei Beto para casa — disse. — Ele estava num porre de fazer gosto. vestido de pierrete, me enganou. de pessoa — cont Seu Beto é uma dir, olhando com admiragao prepara. Depois, me perguntou que tal era a menina nova do bordel de dona Mocinha. Ainds nao encontrara oportunidade de dor- mir com ela, Tinha paixfo por garotinhas. Pos 14 anos, uma pele de seda que logo desaparecia, Jo ¢ pelo sol violento da cidade. E os — Uma vez me disseram que sou pedéfilo — queix se Valdir Petro. — Que & que tem gostar de meninas? Minha bisavé casou com 13 anos... Ea sua? Eu nunea cuvira falar da minha bisavé, Andava ateés da minha mie. Quase uma virgem, pflpebras nacaradas, talvez uma argola na orelha, : — Meu carro esté no conserto, mas chamei um téxi — disse Valdir Petro. — Jé esta nos esperando. Descemos. Dona Bonina nos aguardava na sala de espera decorada com cadeiras vestidas de morim bordado. Restava-l , a curiosidade. Tinha me crivado de perguntas. 7 vvez eu devesse me mudar. Mas me lembrei de que aferrolhara iminhas armas no guarda-oupa e tinha a chave no bolso. Se- tui Valdir Petro até a caleada. ‘A noite chegara cedo, como acontece no Nordeste, © era negra, com aroma de mangueires. Nem a nova iluminagio elé- 4a {rica da rua conseguia encobrit 0 brilho das estrelas préximas Uma carroga passou por nés, cheia de capim, e 0 corpo do carroceiro adormecido pendia, ora para um lado ora para o ou- ‘ro. Cachorr0s latiam, ao longe. Valdir comentou que nunca tinha se acostumado aquela cidade, Sentia falta do odor do asfalto, dos oitis poeirentos de Vila Isabel. Dofathe a saudade dos andnimos compositores de samba, biscateiros, apontadores de jogo do bicho, funcioné- ios aposentados, que jogavam dominé no bar da esquina da as buganvilias incendiando os muros brancos? Como em Da- car. Eu até pergunto: o que eram os coronéis do tempo de Lam. ido @ nio ser bardes feudais? Com a ajuda dos: fanéticos de Padte Cicero, chegaram até a cercar esta capital. Jagungos en courados, cheios de escapulirios, encostaram seus cavalos de baixo das mangueiras de Mecejana, de Parangaba, a poucos qui- Tometros daqui. Perguntei para qué. Ele me olhou com algu Desdenhava a terra, mas desprezo, bairro, teria saudades S como aquela, em que as es tuelas pareciam ir cair em nossa cabeca. — Em 1915, os jagungos de Juszeiro © 08 exéreitos pare ticulares dos donos dé terra foram convocados para derrubar © goverr ir de Franco Rabelo — contou Valdir. istrai. Passava por nés uma moca alourada, sévia, evando no brago, fechado, um guarda-chuva completament sem l6gica — Pois os jagungos conseguiram derrubar Franco Rabelo, A sedicio dos fandticos do padre Cfeero, unidos aos capangas dos latifundiérios, arrasou tudo, sertio afora.., Muitos ba- talhées exam comandados fem um livro com uma foto do beato Ricardo, Coisa de as- sustar: um caboclo travestido de frade, batina de algodio, tine {a com infusto de semente coragio de negro, cordio francisce. to amarrado na cintura, dex rosérios no pescogo, cruz nes cos. tas. Sorri, Major Fernando saberia como lidar com esses re- bbeldes. Imaginem um padre matuto destituir o governador, de. 42 nomear um vigarista baiano chamado le macho?) presidente de pulso. sarmar a Forga Pil Floro Bartolomeu (Floro! Isso é nome do Estado e ficar por isso mesmo. Fa Olhei para Val a0. — Eo povo ainda venera esse tal de padre Cicero? — Como se fosse o maior dos santos. Pergunte & Dorinha, Pergunte 4 — Aqui, lavamos a boca, antes de chamar pelo nome de meu padim, Eu podia darlhe uma ligdo, mas nfo devia me meter em encrencas, Segui Valdix, sem comentérios, Ele foi repreendi- do logo a entrada do terrago de pedrinhas réscas e brancas por tuma senhora de coque ¢ boca es duas vezes por voeé. Esté atrasad Era sua mulher, dona AntOnia, ¢ ele me apresentou sem olhar para ela he ress cheada © vestida numa camisola branca, janela. Nao queria descruzar os bragos de ios arrepiados de medo, nem conseguia descerrar mules. Um fio grosso de légrimas Ihe escorria dos olhos, como das ovelhas que vio morrer. Os anos <6 tinham Petro. Por causa dela, a obrigado a deixar o Rio de Janeiro ¢ mudar de emprego, de cavalo @ burro”. A aversio produzialhe um que na pélpebra direita, Achei que Valdir Petro podia matar sua esposa a qualquer momento, como Verinha matara o gato. Conhego esses dios sufocados. Era assim que eu odiava ma. drinha Conceigao. . i a Neném ja chegou para cumprimentar mame — insistiu dona Ant6nia, — Trouxe quatro novigas, Foram elas que fizeram os doces. Desconfiei que as quatro comeriam na cozinha, durante a festa, Estavam juntas num canto, vestidas com roupas igui ss. A mais jovern era desejével, apeser de dentadura, O-que-faz: uma religiosa-virgem, com-sua dentadura, se for violentadaspor um: homem disposto? Dona Dondon estendeu-me as pontas dos dedinhos esfre- gedos © frios (certamente os lavaria depois). Tinha qualquer 8 coisa de 18, Uma ra que se virara em princesa, mas guardava 0 pegadio, o jeito molhado, a fala borbulhenta. Disse que os amigos de Valdir eram bem-vindos naquela casa, Busquei com 0s olhos @ sua fi vum sujeito alourado, pera engessada, tha uma das suas blusas claras, com bo- ys de madrepérola, Os dois de cima estavam desabo- lia se ver 0 comego do seu seio cor de agticar mas- cavo. Quis abotoar aqueles dois botGes, severamente, Mas se ela olhava para o rapaz ele ‘néo olhava para nin- 0 essas-pupilas de louco: ainda’ quando parecem tocar os estio voltadas para dentro, vendo.se, O cortesmente, — Foi fratura si ileta — respondeu o rapaz, enfastiado, Nunea poderia fugir de wando-a de todos os Angulos, como a um istal. E naquele momento via-o, na cotrida de bi- fo claro dos seus cabelos, o tilintar da maquina con- camisa aberta que a brisa tocava, acariciando, ‘Via seus pés na ginéstica alternada dos pedais, E a queda. = Soube que o senhor pinta telas com motivos de peixes. Se puder, quero ir a0 seu estiidio, Ele acendeu um cigarro. Fumava mt que quase imos meses, Bu tinha lido em algum io de um certo Leudelino? znem nos jornais daqui, Célio — observou Do- rinha, — A imprensa esté censurada, Eu podia reconhecer a ternuta fluindo em sua fala, trans- formando-a: a voz parecia rolar no céncavo penugento do cé- lice de uma flor. Endo era s6 @ ele que ela amava, mas a tudo 44 que the pertencia: a velha bicicleta agora amarrotada, as car- iras de cigarro espalhadas em seus bolsos, a correntinha de io — declarou Dr. Mauriio também mata os amigos. evidente que Laudelino tinha se s Moniz, alertado por estava. cor Jo de que a morte do amigo fora assassinio. O press mento existe. Veludo pressentia a chuva, as trovoad momento, fiquet convencido de que apenas @ dor p: Célio o Ievava a empreender campanhas pelos di hos, a convocar reunides, a pedir assinatura em estava certo de que ele precisava telefonar para Dorinha, todos 08 dias, a fim de certificarse da propria existéncia. Nao o-porte nem a yocagdo dos que se:preocupam com a human! dade, Ao aceitar 0 cigarro que me ofereceu, achei que minha missio nfo tinha sentido, Pensei em telefonar para major Fer- nando; “Cometemos um engano. Esse otf igo para ele mesmo ¢ para Dorinha,” — 0 suicidio € um hor burocraci em alguma gaveta oficisl. Major Femando figarin indign do se cu tentasse interromper o-fluxo da-operige.) Uma empregada miéda como uma menina, coroada de ot- sandi, oferecia uma bandeja de salgadinhos, de camaro — comentou Dr, Maur Icineide, que o mundo nfo merece, adora pas- — Tem mae viva? — indaguei, invejoso, a boce cheia dégua, — Oh, ela nfo tem um cabelo branco — respondeu ele. — Vive na cidade do Crato, na casa mais bonita de todo o ‘Vale do Cariti, e se corresponde com o Papa, — O senhor também tem mie viva? — indaguei, sequioso, a Cd E ele respondew que mulher nenhuma resistiria ao convi- vio de seu pai, um tirano, 45 — Bla ficou mui tumava diz sete anos, doente dos vos, morreu nova, Cos- arrasco.” Mas eu s6 tinha — Fantasia, Seu a. Toca piano nas nfo a ouvisse, se obstinava em acusar 0 pai. izia: “Célio, por que entregam uma menina a um desses monstros, s6 porque eles se cansaram dos bordéis da ci- dade?” De 4 cabega, negando 0 que ele contava, S6 ‘muito mais tarde vim a saber que ela se atormentava com a meméria do préprio pai, morto quando era menina, Ainda ima- ginava que sua mie o matara, Casta medusa, dona Dondon chocalhava pela casa suas numerosas caudas de serpe tribuindo enxovais para meninos pobres, rifas filantrépicas, pre- sentes natalinos. Fulminara 0 marido com seus olhos desbotados, — Quero the apresentar a dona Bela — aviscu Valdir, Cautelosamente, andei até o terrago de pedras réseas brancas, onde tinham colocado a eadeira de rodas da aniver sariante perto de uma latada de saman — Dona Bela, este € um amigo met que velo cumpr la pelo seu aniversério, to um rosto tio branco em toda a lo Rio de Janeiro, gum pequeno derrame, mas extremamente inteligentes, A ‘me fez. uma careta, estendendo a mio mitda, de mico deer — Nito sei para que fazem festa para uma pessoa da minha de. Estou um caco. Jé fiz seis operagSes,: Parafusos de pla- a © enxertos, jé tenho vérios. Pode? E uma falta de respeito, Surpreendeu-se porque concordei com ela, Havendo muito softimento, € melhor morrer, Nada de soros, tubos de oxigénio piblico? Os mé- vam a dor terrivel. Fizeram tal le morrer, Carmélio. Nfo gue © méximo, Tem que Jamaldigoar a hora em que nasce 46 — 0 senor € pessoa sensata — comentou a velha. — Car- mélio de Siqueira € seu nome? Conheci um Siqueira, em Qui- xeramobim, Gente séria, tudo do partido do governo. Os ho- mens morriam novos, por causa das brigas de terra. Jé as mu- theres, ficaram para semente, feito eu. Tudo velhfssima. Quero the , molha as andguas, as saias brancas. O corpo se torna ex- (8 outros manuseiam. Padre Severino, por set sonso, diz — Valdir, chame padre Severino. Ele vive chocado por- ‘que no morrerei em odor de santidade, mas em odor de merda, — 0 padre esté na copa — respondpu Valdir Petro incli- nando-se para a cadeira de rodas. — Esté conversando com ‘uma ex-colega de Dondon e Anténia, no col senhora que chegou do Rio de Janei surda, Cogn pode ser © podre, mas surda nfo. Ougo tudo 0 que acontece nesta casa. Ougo 0 que se passa por tras das por- te. (Caeaed gos ent dann eo do Rio de Fae para fazer ‘ume peregrinagio a padre Cicero, do uazeiro,] — Que que tem, dona Bele? Dona-Aguvenaresté: desos: wpered. vr" — Um pecado — comentou a velha, — © desespero é coisa inspirada pelo Maligno.(Sei que ela tinha um filh € perdeu, Mas precisa se resighar com a yontade di —Se-a-senhorg tivesse um filho-‘inico — comentou Vs dir. — Um filho de 18 anos e ele oss seqiiestrado © depois turado até-i' morte; a senhora-se-resignava? Ouvi a respiragdo da velha se alterar. O édio tenebro- so das mies feridas fez ranger a méquina decrépita ¢ remen- dada do seu corpo. Se ainda tinha ‘itero — um sobejo calei- nado —, deve ter experimentado algum tipo-de golpe, Enco- Thew-se e gemeu, enquanto eu comegava a tremer. -Sempre-tive plinico-de=encarar-mdes. Evitava olhar para elas quando iem a porta das delegacias e quartéis procurat sous filhos. an — Nesse caso eu no me resignaria, ni ‘um pano grosso@ Virgem do meu ora finganga até" dia da minha morte. genga. Major Fernando garantira que nunea encon- 10 prazo das nossas vidas, essa-visagem que-enxerga . Manidava cobrir rio © procuraria: « ir Petro © eu, rumo & copa. Ele ‘ava impressionado, Nunca tinha visto sentimentos assim extremados se expressarem no boteco que freqllentava, em Vila Isabel — Vocé jé conheceu velha poderosa igual a essa? Velha que eu conheci, a familia botava para comer na copa, censura- x com barulho, por derramar leite na toalha,.. Dona Bela é mais do que uma rainha, é uma entidade. Chegamos 3 sala de jantar, Sobre a mesa forrada com toalha de Tinbo rendada e em cima dos pesados guarda-lougas de jacarandé, estavam bandejas com bebidas que eu nunca tina visto antes: cajuadas translicidas, aluds de arroz e milho fer- mentado, vinhos casciros. Faiscavam compoteiras cheias de do- ces de caju, de coco ralado com mamfo verde, de goiaba perdi- da numa calda escura, Diante da mesa, isolada apesar das pes- soas que citeulavam em torno, igeiramente trin- cada pela idade, os olhos pestanudos embutides em olheiras, lado de Aquiraz? Querie provar quindins e bons-bocados feitos pelas novigas? A mulher recusava tudo e afasteva, também, as lembran- gas que The queriam impor. — Agueena, yoo’ se lembra do nosso colégio da Tmacula- da Conceigio? — perguntava AntGnis,, sGfrega, — Lembra-se de irma Filomena, que foi transferida para Madagéscar e nds todas choramos, abracadas a ela? Lembra aquela sexta‘feira de aio quando 2 Neném coroou Nossa Senhora? Ela nGo se lembrava. Descreveram- mente, a rou- pa de Neném: tinica de cetim, guirlanda na cabega, faixa cor- de-tosa na cintura, Um an; Mas me reeordo de-um cinema chemadofandsie, Ti nha sessio dupla. O cinema ainda Dondon admitiu -que existia, mas tinha se transformado ‘num cinema vagabundo, chinfrim. S6 estudantes e vadios ainda 48 ~ do padre 6 freqiientavam, sem se importar com 0 chiado das baratas © odor de urina. — Ainda se vende rolete-de-cans-em tabuleiros; nas ruas? — quis saber a visitante, ; — Ainda — disse Valdit. — Costume antichigiénico. Atrai moseas, promove infecgGes. — Se quer — ofereceu AntOnia — eu posso mandar bus- ‘em algum lugar, vo doces — respondlew Agucena, ¢ seus olhos percorreram, com uma espécie de pudor, as numerosas traves- sas de porcelana onde amarelayam 0s bolos de carimé e massa Notei ie com atengGo apaixonada, filha diniea — disse Dondon. —O meu filho énico, Germano, era mais jovem do ela — disse dona Agucena, — S6 tinha 18 anos. Nao pude en-| contear seu cadéver em parte alguma. Eu podia dizer alguma coisa sobre sumigo de cadéveres. Mas apenas olhava, fascinado, para Dorinha, Ela patecia de- que tratava de conter. Tinha ficado ja até nas pontas das orelhas mitdas, onde havia, naquela tarde, duas contas de coral. Foi até onde estava dona Acucena segurotrlhe a mio. — E terrivel perder o que smamos — disse baixo. —-A: perda do amor é uma sentenga para o inferno, A visitante explicou que ia partir em roitiaria a cero, da-pedirovingenger Sabia que Deus podia ser sua meninicé com as histé- um delegado de uma cida- penitente que estava mar Soro, & veia espe |. © delegado anoitecera so e acordara |, um coronel herege do sertio, ao ver um —, em ver de tirar depois, tinha mor- \gem. EFa~uMne-vingencarassim-terrivel-e-prontay Yue ela queria-suplicar-apathre-Cteero“Romfo, vastada por uma ang vingador. Sua ama, *Meméi rias da vinganga de Deus-“Um dezinha perto de Ipu 49 Tinham-the dito que Juazeiro se transformara numa cidade de mascates e Iunéticos, mas nfo se importaya, Achava natu- ral que os mascates enchessem as ruas, com seu tréfico mes- quinho: estampas, medalhas, reliquias, amuletos, pedras grava- das. E compreendia que os lunéticos se vestissem de luto a cada sniversétio da morte de padre Cicero e estivessem a espera de sua ressurreiglo, — O milagre existe — suspirou dona Acucena, — Ouvi menina? Tem de existir. Eu preciso saber que os que ram meu filho esto na mio do deménio, Olhow para done Dondon, que um dia tinka usado o mes- ido uniforme azul-e-branco do u preciso ter £6 na punigdo, Dondon — explicot, com brandura. — Porque ew tinhe meu filho, meigo como um . E agora s6 tenko um braseiro diante dos olhos. Como se visse, abertas, as portas do inferno, Comovida, Dondon ofereceu 0 carro da familia a visitan- la 9 cidade santa, — Siio 56 oito horas de viagem. Voc8 ditige o carro, Val ir? — Eu? Para beber ggua de cacimba pelo caminho todo & pegar dosnca? E os potés? Onde mordem, fazem ferida, Arranje outro, Por que nfo manda o motorista da familia? Seu Alta miro vive por af, palitando os dent Dona Dondon recusou, lembrando que dona Bela — to adoentada, coitadinha — de uma hora para outra poderia pre- cisar ser levada A casa de satide. Agucena, altaneira, recusou ajuda de carro e de chofer. — Fico muito agradecida, Dondon. Mas promessa é pro- messa, Devo ir asJuazeiro-a-pé-e-com-uma>pedra na-cabes. chamava perto da janela, Colo- de ouvir 0 didlogo estapatt ivide contigo alguma coisa de que eu estou exclufda. Deve ser a crueldade”) 50 Com os olhos ansiosos fitos em Dorinhs, Célio murmu- telefonema, Comunicavam que mi- fa entrando na Igreja do Rosétio e se ajoethando diante do altar-mor. — Acabard por voltar ao teu corpo, meu bem. — Por que 0 Advogado veio a esta festa, Dorinha? — Nio sei. Valdir deve ter convidado, — Eu soube que ele comprou uma motocieleta Bla o encarava, sobressaltada, — Certamente tem esperanga de te levar na garupa da moto. Coxa com coxa, teus seios apoiados nas costas dele Dorinha coro se importa com meus sei disse baixo, — "Teus Lindos seios florentinos”, mas é s6 uma tocow neles A medida que a discussio se acalorava, baixava mais a vor ¢ acabei por deixar de ouvilos. Mais tarde, na copa, be- bericando se que, no seu enten- der, Cél io do amigo, Costumava arrastar Doi © aeroporto e ficava horas vendo os avides cchegarem ¢ partitem, Parecia fascinado pelo faiscar da fusela- gem das aeronaves sob 0 sol violento, 0 brilho dos quepes dos aeronautas, 0 ronco dos m testes. Um dia, quando 0 procurasse om sua casa de porta-e-janela, Dorinha en- contratia os quartos vazios, 8 lavados, as telas a donadas. Ele, m a0 aeroporto, acabaria por pegar um avii astarse dela, — O sujeito esta de miolo mole. A mée também era assim. Eu j@ estava empanturrado de selgedinhos, quando Valdir mandou que me servissem patas de caranguojo 2 milancsa, — Melhor do que isso s6 0 corpo de ume menininha de 12 anos, com aquela penugem de péssego nas costas © nas coxas. Pessoas que eu nunca vira antes e que, provavelmente, reencontrar, circulavam em torno da mesa en. feitada, provando os doces. As senhoras observavam disfarga- damente os vestidos umas das outras, todos um tanto elabora- dos demais, Sempte gostei de mulheres maquiladas e perfu- madas e no vi ali nenhuma moga de sandélias, rosto lavado e calgas de brim, como costumave encontrar no Rio e em Sio Paulo, Embonecadas, pintedas, as garotas pareciam safdas das ye 51 is de ume revista dos anos 50. Quase todas deviam ser gens ¢ parcciam quase to reprimidas quanto as sas que estavam num aquela noviga mais magrinha, Valdi se pela dentadura postica, seria linda. Ele riu e me contou que, em seu tempo de estudante, em A superiora descobrira 0 vento. Queriam que a freira explicasse por que nio twegue © bilhete & madre, ou ao padre confessor, — Confessor — interrompi. — Ainda existe esse persona- gem? \ Eu préprio fora 0 confessor de muitos. “Melhor confessar tudo, antes que eu te afogue num balde de bosta.”” Lima, em Sto Paulo, cetta vez torturou um bebé de seis meses, para fazer falar a mie. Os gritos do bebé s6 duravam enquanto durava a chama do cigarro. Depois, ele queria brincar com os dedos de Lima:| io sei se eu scila devotado a esse ponto, Major Fernan- do dizia que Lima era de todos nés, paisanos enga jados na guerra sagrada. num apartamento de subsirbio, rnunea accitou suborno de pai desesperado, é um sacerdot Tinka 16 @ sua sombria pureza, que o tomava capaz de apagar seu Hollywood sem filtro na came de um neném, Eu no me alinho entre os iqueceram nas operacées de re- pressio, mas sempre exigi uma paga honesta. O sftio de Pe- esté em meu nome, crio meus bichos de es Dona Ant6nia declareva que estava na hora de cantarem parabéns para a macrébia e de a induzirem a apegar o enxe- me de velas que iluminavam 0 bolo confeitado. A maioria dos idos refluiu. dos terragos, das lcovas, da copa, do es io e ocupou a imensa sala’ de Dona Bela surgit em sua cadeira de rodas, protestando, Dizia que ia mandar requerimento ao juiz para que a deixas. sem motrer em paz. 52. de pinos e rolimls, pe- 0, padre Severino? As pessoas a olhavam, com ar reverente. Fingiam nfo ver gotas de baba nos centos da sua boca. Valdir, meio bébado, saudou-a com um discurso hipécrita — “exemplo de virtudes cristds, modelo de mae amar —e as filhas the supli- caram que respondesse 2 saudacdo, antes de apagar as velas. A velha teve um riso stbito e recitou uma quadrinha: to fazer uma pe rafusos € pontes m A mulher e a galinha Nao se deixa passear. A galinka, 0 bicho come, A mulher dé.o que falar. Soprou as velas, sem conseguir -apagar_nenhuma. Dori- nha sorria, Seu rubor tinha desaparecido e, pél ‘mego de olheiras, era tio desejavel que senti a garganta seca. Valdir Petro estava indignado. jou as filhas com medo de dar o que falar. Tudo fria, com mania de limpeza, Tudo rondando a mie. Nao € 36 a Neném que 6 freira. As quatro irmiis so freiras. — S6 espero que a neta seja diferente — comentei. D ava, desolada, para Célio. Tinha o ar de quem © comunicado de uma guetra per todos os pontos, rapaz. A — Adivinhou que estou com enxaqueca, Adoradinha? Meu pai sempre dizia: enxaqueca e morte morrida no sfo coisa de macho. ‘O-machismo. Isso ¢ uma fébtila que-se- acabou em noseas shoram que nem bezerrinhos desma- papel entre um homem e 0 poder de outro er, de tum passeporte para alcangar 0 ‘até levar uns trompagos numa delegacia, ou uma sessio-de “‘telefone”. Mas estava sempre espera de um papel. De uma hora para outra, surgiam rébulas 53 intrometidos. Até delinglientes-de-favela, de pé no chio, da- queles que sempre forem torturados (e seus pais antes deles seus avés), ousavam dizer me aparecer um habeas corpus da Justiga gratuite.” Habeas corpus agora s6 se for para limpar © rabo. Nao resta mais um farelo de papel em que um preso ossa’se agarrarj:para exorcizar nosso poder absoluto, Por isso, x tinha vontade de rir diante do machismo de Dr. Mautlio, Idir Petro foi buscar um licor estrangeiro para reba! © muito que haviamos bebido. Agradeci — Nio gosto, cupincha. Prefiro bebidas secas, machas, como diria © Advogado. Uisque, rum ou cana pura E olhei com desprezo Célio, que estava tomando agua mic neral. Talvez para nfio estragar a pele acetinada, quase imber. be © que eu furaria com o punhal de prata do major Fernando, 54 CAPITULO 5 em seu atelid de fotografia, Na rua ensolarada, eu pensava numa explicagdo para a minha visita, Ndo poderia encomendar fotos. Isso era expres- samente proibido. Mesmo no Rio de Janeiro, quando levava Ve- rinha a passar um fim de semana em Cabo Frio ou Buzios, re- cusava os fot6grafos amadores que circuldvam na praia, Minha face néo podia aparecer em parte alguma. Devia ser tio s0- creia como a dos monges das ordens mais severas da Idade a cogula dos seus mantos, Seu rosto s6 perten- cia a Deus, O meu... talvez pertencesse as forgas que ins- piravam major Fernando, -mal também tem seus ‘dogmas-e, principalmente, sua v a...a] — que nada mais era do que a expresso de um orgasmo. Jee Passou por mim uma muther alta, branca, cor de marfim ‘Nao devia ser da cidade. As mulheres de boa familia da cidade am sempre de automével — a marca e © ano do carro atestavam @ prosperidade de pais e maridos — e tinham a pele dourada do sol das praias, lo, — Nao tem pé- fética. As tinicas mulheres brancas sio as inha mulher. Néo vao & praia, por pudor. Evitei olher para as nédegas da transeunte — sob o leve vestido de algodao, deviam ser como louga — ¢ aproximei-me do sobrado velho onde seu Venincio trabalhava, Eu jf encon- trara o pretexto — ditia que desejava comprar postais da ci- dade. 5 © sobrado lembrava vérios da minha meninice, na rua do Livramento. As altas portas interigas com bandeitolas traba- Ihadas, as janel ¢ descolando da fachada. Numa das por- lara 0 baledo do seu improvaivel negécio. Com a mao no queixo, ouvia um canério cantador preso numa velha gai tum offcio sem futuro, Quem perderia 48 chaves dos casardes antigos ou das pretensiosas casas novas? i ne mostrado a chave do seu hotel 1é no sobrado, também fez prego. Mas nfo troco, nfo vendo, nem dou. Subi as escndas rangentes, Na sale do atelié, havia uma fila de cadeiras para os clientes. Eles estavam sentados, & espera de serem fotografados, com ar preocupado e tenso. Esperayam como se estivessem na ante-sala de um hospital, na iminéncia de uma radiografia temida. Um vel Jaleco branca e de linho, mexia tha comentado Dorinka, No- ‘ci na parede a foto de uma mulher de eabelo curto e boca em fo. to de coracio, extraordinariamente parecida com Célio, ira oval estava ornamentada com um ctavo fresco, crayo sem diivida colhido naquela manha, Eu me perguntava sobre o mistério daquela fl seu Vendincio tratava de convencer uma velhinha encarquilha. da, que estava com medo de tirar foto para os papéis da apo- sentad uum grande perigo, seu Venincid. Dar retrato a des- conhecido pode causar toda qualidade de desastre. Enterram em terra de sepultura, costuram na boca de sapo. . Ele sorria, explicando que o Inamps no usa poderes mé- sicos contra seus pensionistas, e ela provavelmente nao tinha inimigo na burocracia do Estado. Quando a velha consolada € levando suas fotos, ele se yoltou para mim, sorrindo. — Ba religiio dos pobres, O bem e o mal so decretados de outro mundo, Neste mundo aqui 56 Sentiu que estava cometendo uma imprudéncia ¢ calou-se. Todas as conversas deviam ser apoliticas. — Conheco seu filho Célio — disse, para trang — Encontrei-o na casa de dona Bela Vasconcelos. © velho sorriu, outta yez. Dai a pouco, contou que nfo se dava muito bem com 0 filho. Célio se envergonhava dele perdido seu escasso patrimOnio se tornara fot6- Ao. io dos clubes mais conceitua- fera casado com uma Alencar. me ofereceu café. Vi que ele se esforgava para me seter, Disse que seus clientes podiam esperar ¢ me convidouw para ir a sala vizinha, Sua solidao levavaco a transformar um desconhecido em confidente. Pensei nas histérias dos etemitas do deserio a quem o isolamento fazia com que tomassem quel- quer deménio por um anjo consolador, « ha de jantar de seu Venincio, vi a mesa posta: 1m abafador de bule de 0 que madrinha Cos gosto de Pedi para ve i zendo que seu ma iferente do que podia ser encon- ‘rado nas bancas dos iros. Nao concordei. Eram fotos semelhantes 3 que fascinavam turistas moradores em fugares brumosos. As palmas dos coqueiros riseando 0 oéu de um azul naereditével, Jangadas, E 0 mar ve Seu Venincio ten- algumas fotos de igrejas, mas todas eram pobres demeis, © do estidio — um feio cfreulo de cimento, — Temos de nos contentar com o que existe — suspirou seu Venineio. — Muita cor ¢ nenhuma arquitetura que preste Impossivel mudar as palsagens. Eos viventes mudam? Penso her, Ana, cuja fotografia ele ainda perfu- cravo. Tinha tentado mu ferente, deserto de desejo ou de ternura."Ele — tio iano — nunca conseguira tirer uma nota daquele instrumento emperrado, Ela 0 detestava e costumava lancar 0 iho menino contra ele: ra me maltrata, Gente de indé nao presta, Tudo jagungo ¢ fant 7 Seu Vendncio contou que Canindé, como Juazeiro, tam- bém era uma cidade santa, Inumeréveis romeiros iam, anual- mente, 2 sua cidade natal, em peregrinacéo a Seo Francisco de As chamavam Sio Francisco das Chagas. Para seu Venincio, as chagas eram deles mesmos, Esmolambados, ‘comiam semente de macund, e, nos tempos de seca mais brava, nem isso. — Eo senhor também acredita em milagre, seu Venincio? J6 fez promessa a0 padre Cfcero Romio? Ele negou, sério, Nao venerava a meméria do padre"Os fandticos do padre Cicero finham ajudado a sufocar # insurrei- Gao popular-comandada-fior Franco Rabelo. — Meu pai era rabelista... Me criei na raiya contra 0 coronel Acioli, aqui arca safado, € 05 aliados dele. Padre Cicero ajudou o aciolismo, 0 atraso, a banda conservadora Olhe, eu nda nego que padre Cicero promoveu muito progresso em Juazeiro, Por causa dele a cidade cresceu, virou centro a cola, 0 comércio prosperou, apareceram os bancos, a eletrif caso. Mas também Juazeiro se afundou no barbarismo, No fim, os beatos chegaram a adorar um boivsanto, Gente vendia nas ruas vidrinhos com a urina do boi. Seu Venincio me ofereceu um pedago de tapioca molhada em Ieite de coco, Se eu quisesse, ele também tinha sequilhos Resolvi falar na mulher da foto da sala de espera, impressio- nado com 0 seu rosto um pouco ‘to parecidos com os eilios do seu filho. E impressionado prin. cipalmente com a flor trazida ainda aquela manhd, um cravo chefo de orvalho para uma mulher morta hé tantos anos e que nunca tinhe amedo a seu Veniincio. — Sua mulher era bonita — comentei. — Cabelo lindo, — No fim da vida, ficou ruiva. Aderiu a extrevagincia, se enchia de colares e pulseiras. Dizia me odiar, mas vinha sempre aqui, nos dois iitimos anos antes de morrer. Eu comen- tava: vem para o bortalho. Eu néo sabia o que era borralho, — So as cinzas quentes, depois que um fogo de lenha apagou. Ela vinha aquecer aqui a sua vida falsa. Q amor, quan- | | do 6 muito grande, deixa um rescaldo de cinza quente, Os | desamorosos estendemi as mios, para esquentar as palmas. Viu © cravo? Eu adorava a minha falecida mulher. 58 «pha feito com a mulher a Eu estaya abalado, Acho que nunca at Tinha fascinio pelo corpo esbelto, pelos seios duros de Verinha. Por suas longas unhas pintadas que me atranhavam as costes, A voz pastosa, quando ela estava no auige do desejo, Mas tudo isso acabava, assim que eu me vestia. Eu-gostava-de-me-sentir senhor-do-seu-corpo;"do" mesmo jeito-que major. Fernando apre- ciava ter-poder total sobre o-corpo dos: torturados. Bu gritava de alegria e vitoria quando me enterrava na carne clara de Vera, mas logo esquecia. Nao pensava nela, quando se ausen- tava. Veludo me bastava, No fim da noite, depois do tiltimo filme de tev2, sonhivamos os dois, ele com seu passado (quem sabe tinha algum antepassado que fora deus, na As ew com minha mic desconhecida. Mae, talvez a gente ame perdi- damente. Seu seio, seu cabelo, sua pele ni as gotas do seu suor. Dorinha me veio a lembranga e meu corago comegou a bater. rece com Ana — disse seu Venfincio, — is um pedago de tapioca? fo se interessava por nada, S6 vivie no espelho, A casa suja, o garotinho mijado. Nunca abriu um jornal para sa ber o que se passava no mundo, Nao gostava de viajar. Ta, vol tava, nfo tinha visto nada, 6 via 9 si mesma no espel bolsa. Repeti o café, Ele me con a de Ubajara. Orv: uma poalha prateada. Lé dentro, estava tudo rosa tes. Ela tinha se queixado de que aquilo perda de tempo. Nao tirava os sapatos de Ito. Ele havia composto para ela uma modinha ao piano acordeom, Ana queixava-se de dor de cabega, quan. do ele comegava a tocar. — Depois, eu quis que meu fitho aprendesse um instru- mento, mas nfo deu certo, Ele sempre preferiu a pintura. Vo- cago, sabe como é, Tem quem tenha natureza até pra ser ja- gunco... Célio € um bom gravurista. Mas passa temporada sem Pegar num pincel, por mais que Dorinha se esforce. E comentou qi tia 0 seu comportamento: obstinavase numa protelava sempre para o semestre seguinte a data da sua total desilusdo, O amor, den- 59 a que se reouseva a morrer: mentaya-se a madrugada inteira. Mais de uma vez, vol suas festas familiares — “Toque Fascinagao, seu Vendnci iam a3 meninas —, vira a luz acesa na janela do quarto de Dorinha, no casaréo de dona Bela. Espiava, Por entre as frestas do postigo: a moga lia, sentada numa cadeira de balango, vesti- da numa cindida camisola branca. Lia, A ‘espera de que a an- ia afastasse seu YerJhe uma carta, dizendo: “Voeé pintou uma obra-prima para ‘um cego, Esculpiu uma escuftura para um homem sem bragos Pare enquanto € tempo, antes que se Depois do rompi- mento com a mulher, seguiraa por toda a parte, tentando a sao, Uma vez, ela 0 esbofeteara, Na outra, arrancara do deco a alianca de casada e atirara longe, Entio, ele tinha escrito uma carta cheia de gritos de dor ¢ de protestos de ter- nura, Dez anos depois, apés a morte dela, dew com a carta fe- chada numa gaveta, Ela nunca tinha querido saber 0 quanto era amada. Em voz mansa, baixando os olhos, seu Vendne revelou que Ana temia o amor dele mais do que tudo no niun- do. Mas, como um cio doente, voltava sempre a0 local da sede, tho tem uma sede horrivel, mas nao pode beber. Ana ¢ o filho dela sio assim. Néo podem se apos- sar do amor, nem se afastar dele. Coitada da D Era uma conversa estranha, na sa meio ao aroma do café e da tapioca, sob o olhar pesado da moga io 0 enderego de Cél le me dew o endereso ¢ Wio-postal com a fotografia de pa- receu, como presente, um dre Cfcero, — £ 56 uma reprodugio. Essa foto foi que os jagungos, todos afilhados dele, derrotars do coronel Ladislau Lourengo. Foi em 1914. — Tinha outra guerra por a, no meio do mundo — res- pondi — Tinh, Mas era longe, no havia televisio pra mos- trar a sang € © estripamento, A nossa guerra aqui era bra- ba. O coronel Ladislau Lourengo defendia o governo de Franco 60 Rabelo € quis invadir Juazeiro com um canhio fabricado por um padcizo chamado Emflio Sé. Imagine, um canhao fabricado numa fundieéo que no fazia nem panela! Uma piada. O ca nao funcionow, Tiveram de abandoné-lo diante da ca- deia da cidadezinha de Barbalha. O povo espalhou poder sobrenatural de padre funciona na ta de meu padim,’ fotografia do padre, impressionado, — E dessa beata, a Maria'de*Aragjo, 0 senhor tem algum retrato? Venineio nfo tinha, $6 podia descrevé-la: 29 anos, feiosa, enchia a boca de sangue cada vez que ia co- ‘a piamente em seus mic enfrentarem a seca, comendo mandacaru, Ensineva a lavar em sete 4guas, para nAo intoxi Despedime, O padre milagroso, Um canhfo feito por um padeiro. Uma beata que botava sangue pela boca na hora da comunhao. Um gravurista que rejeitava o amor de uma como Dorinha. Eram coisas complicadas demais para u ‘mem como eu, cr nna tua do to, endurecido no of las de tudo isso, seu Vendncio, ‘me admire € 0 boi santo. Adorarem um animal em pleno século XX! — Bu queria era ter a vida que cle teve. Uma manjedoura cheia de flores. Comendo do bom e do melhor e sinda ganhando de um povo que ndo tem onde cair mortos sas por dizer. Desconfiei que nunca dese- ida a nao ser o amor da mulher da fotografia. os postais. Na rua, vi um homem de pele encou- rada pelo sol, montado num jumento, levando os cagués cheios de coc0s. Seguia sonolento absorto, o corpo balangando a0 ue, entre automéveis reluzentes. Os transeuntes pa- mento € 08 carros. Bu temia que, como Valdir Petro, nunca mais viesse a pertencer |. A tarde, a hora de maiot ranco em diregio atropelo do trifego, descendo a 61 as drvores do aterro do Flamengo, embebidas no lacre do cre- piiscul no vendedor de cocos e seu corpo gingado, em Dorinha e seus Idbios de pétala, no boi santo e sua man: jedoura florida, B, prineipalmente, no eravo fresco colocado, to- dos os dias, na foto de uma mulher indiferente 62 CAPITULO 6 CUSTEI a dormir naquela noite. Sonhei com 0 Disbo, Um diabo bem-comportado, vestido com uma camisa Lacoste e usan- do o anel de ouro, com duas ci nando, |O Diabo existe? Madri da dessa “pacto com 0 por exemplo. Cansado de amargar a vida de ‘no Rio Comprido, tinha assinado trato com o Inimigo ¢ ganhara ne loteria, Comprara casa assobradada, com maganetas das portas de cristal lapida- do, um carro do ano. Mas nfo tirava os olhos do calendétio. A cada dia que passava, mais préximo esteva o momento em que devia entregar a sua paga: a propria alma, Incapaz de resistir a0 payor, fora ao encontro dele. A mulher 0 tinha achado morto, afogado na banheira, Um cheiro de enxofze empestava a casa toda, Na hora do enterro, 0 gato de estimagio comegou a Ie- como se fosse cachorro. Madrinha Conceigio dizia que o iabo propiciava esses desealabros. Galinhas chocavam cobras. ‘A mulher do ambulante que vendia aguihas e canetas vagabun- das na Central tivere um leitdozinho, em vez de um bebé. Pautada com 0 Diabo. Quando se zangava ca io dizia que eu era filho do Tinhoso: “Teu pai devia ser um belzebu, Quem pode informar, de verdade, é tua mie, les.” Juca, aleagiete nosso, gostava de dizer e eu era um deles. Sem- pre tive enjéo de Juca, antipatia, Nunca vi alcagiicte que pres- tasse. Gostei de acabar com aquele pdstul “Que € isso, seu Carmélio, vira essa sm i880, nem mais isso, 0 caso & que major Fernando mandou te epagar do mapa!” Encostei 0 ferro 63

Você também pode gostar