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UMA ALIANGA OU DUAS? SPN ep ae wie oom erenp ees , arene enenemmensies yt soaps luaed om odo : roy rome gah pote tab aah 2 WR Ap bao ama ce ae See er Pain iiny tae a se t 7 Fraps Be e “mena ve ay Jesus e Israel © 2005 Editora Cultura Crista. Originalmente publicado em inglés com o titulo Jesus & Israel: One Covenant or Two? © 1995 by David E. Holwerda pela Wm. B. Eerdmans Publishing Co, ‘Todos os dit itos so reservados. I" edigaio ~ 2005 ~ 3.000 exemplares Traducdo Odayr Olivetti Revisdio Elia Queiroz Vagner Barbosa Editoragao OM Designer Capa Magno Paganelli Holwetda, David E, (David £ 1) 1932 - 759} Jesus e Israel J David Earl Holwerda; [tradugdo Odayr Olivet. Crista. 2005, io Paulo: Cultura 160p. ; 16x23x0,83 em. Tradugdo de Jesus & Israel: One Covenant or Two? ISBN 85-7622-074-1 1. Teologia Biblica. 2. Alianga, 3. Cristologia. 1. Holwerds, D-E, tt. Titulo. CDD 2led. ~ 231.76 PublicagZo autorizada pelo Conselho Editorial, Claudio Marra (Presidente), Alex Barbosa Vieira, André Luiz Ramos, Francisco Baptista de Mello, Mauro Fernando Meister, Otévio Henrique , Ricardo Agreste, Sebastiio Bueno Olinto, Valdeci da Silva Santos. Editora Cultura Cristi + Rua Miguel Teles Jinior, 394 ~ Cambuci ~ 01540-040 - Sao Paulo ~ SP Brasil Caixa Postal 15.136 ~ So Paulo ~SP —01599-970 + Fone (11) 3207-7099 + Fax (11) 3209-1255 www.ceporg.br cep @cep.org.br Superintendente: Haveraldo Ferreira Vargas Editor: Cléudio Ant6nio Batista Marra SUMARIO Preficio .. I. Jesus e Israel no Século 20 ...... Mudanga dramatica . Desafios presentes no didlogo judaico-cristio Trés respostas teolégica: Questdes surgidas na teologia pés-holocausto IJ. Jesus e Israel: Uma Questio de Identidade.. Uma resposta genealdgica Uma resposta geografica Uma resposta vinda do céu Uma resposta do deserto .... Promessas cumpridas Rejeigiioe eleigaio Epilogo.... IIL. Jesus e o Templo: Uma Questio de Esséncia ..... Otemplo no Antigo Testamento e no Judafsmo Jesus e o templo Jesus e 0 templo de gloria, de Ezequiel O templo como comunidade Os dois podem ser verdadeiros? IV. Jesus e a Terra: Uma Questiio de Tempo e de Lugar A terra: promessa irrevogivel A terra: posse condicional .. A terra: perdida ¢ novamente prometida A terra de Israel, a cidade e toda a terra A terra: depois doexitio Aterra: uma perspectiva do Novo Testamento Acidade: cumprimento no Novo Testamento ... V. Jesus e a Lei: Uma Questiio de Cumprimento... A leiea graca no Evangelho segundo Mateus ... Estruturas da graga em Mateus .. As bem-aventurangas e a justiga: dom ou exigéncia? . 92 A lei naerado cumprimento . O jovem rico e a lei. A lei no Serméio do Monte... As Antiteses: Mateus 5.21-48 .. Pronunciamentos de Jesus sobre a lei As chaves do reino e a lei: Mateus 16.18s. . Os fundamentos do mundo: a lei como impeto para a missao . Uma justiga singular e universal: ensino do Antigo Testamento Uma justiga singular e universal: ensino em Mateus. 108 VI. Um Futuro para o Israel Judaico? ..... Uma variedade de respostas..... Os Evangelhos e Paulo . A atitude da Igreja, passada e presente Entendendo a angiistia de Paulo Pode-se confiar em Deu. Tendo em vista a conclusdo de Paulo..... 116 8 VII. Cumprimento Universal e Particular? Notas... Indice de Autores Indice de Referénci Entendendo a resposta de Paulo: Romanos 9 ¢ 10 A fidelidade de Deu A soberania de Deus e a desobediéncia de Israel Salvagao pela fé, néo pelas obras Entendendo a resposta de Paulo: Romanos 11 O remanescente e o resto: eleigdo e desobediéncia ... 124 O mistério de uma plenitude final Da tristeza para a doxologia.. PREFACIO Mev interesse pelo t6pico deste livro retrocede aos anos da minha juventu- de. Minha mie, criada na Igreja Reformada da América, estava comprometida com uma posi¢ao premilenista na questo de Israel, ao passo que meu pai, um pastor da Igreja Crista Reformada, sustentava a posigdo amilenista, comum a essa tradi¢ao. Nossas discussdes sobre os temas envolvidos ocorreram duran- te os dias da Segunda Guerra Mundial, quando certos cientistas seculares acer- taram o reldgio da histéria da humanidade faltando dois minutos para a meia- noite, por seu temor de que a bomba atémica desse cabo de tudo, e essas discuss6es continuaram nos anos imediatamente posteriores, quando o Estado de Israel foi restabelecido. Nessa atmosfera apocaliptica, minha mae via nu- merosas confirmagées “divinas” da sua posi¢ao premilenista. Todavia, nas dis- cussdes da familia ao redor da mesa de jantar, discuss6es que envolviam meus pais e seus scis filhos, sempre achei que os argumentos em favor da posigao amilenista eram mais convincentes. Contudo, restavam algumas diividas. Anos mais tarde, quando fui convidado para ministrar alguns cursos sobre Novo ‘Testamento no Calvin Seminary, tive que criar um curso opcional. Decidi ensinar sobre “Promessa e Cumprimento”, tépico que me dava liberdade para vagar por toda parte no Novo Testamento e de checar minhas vacilantes diividas sobre se a posig¢ao amilenista era adequada ou nao. Desde aquele tempo, passados mais de vinte anos, tive o privilégio de ministrar um curso sobre Promessa e Cumprimento muitas vezes. Com uma grande variedade de alunos, examinamos numerosos tex- tos de “promessa e cumprimento”, ¢ alguns dos resultados desse esforgo acham-se neste livro. Eu pude discutir muitos mais textos sob esse titulo, mas os que escolhi para inserir aqui sao suficientes para estabelecer os contomos teolégicos de uma resposta & questio de Jesus e Israel. A posicao que eu tinhaem minha mocidade foi modificada ligeiramente, mas a resposta basica continua mais a vontade entre as posig6es amilenistas do que coma maioria das posi¢Ges premilenistas. 8 — Jesus e Israel Conquanto o meu interesse pela relago de Jesus com Israel tenha surgido das questdes associadas ao debate amilenista-premilenista, este livro nao visa diretamente a questo do milénio.' Uma explicaciio dessa omissio também ser- vird para explicar o modelo desse livro: Por tras dos diversos pontos de vista escatolégicos rotulados de milenistas h4 algumas pressuposigdes teolégicas fun- damentais que modelam a perspectiva completa. A maneira como se respondem certas questGes basicas inevitavelmente determina 0 modelo de tudo o mais. Uma vez que a pessoa esteja comprometida com um certo conjunto de respostas basicas, a interpretagdo de muitos textos de promessa ¢ cumprimento parece evidente. Conseqiientemente, a discordancia entre conceitos escatolégicos concernentes & posigdo e ao papel de Israel ndo é tanto uma questdo desse ou daquele texto isolado, como, sim, uma questao de discordancia concernente a perspectivas fundamentais. Por isso cada capitulo deste livro visa uma questdo basica concernente a relagdo de Jesus com Israel, e as respostas a que chega- mos constituem as pressuposigées basicas de um ponto de vista teolégico refor- mado. As respostas nao sao exaustivas, restringindo-sc, em muitos casos, ao material encontrado nos Evangelhos, com excegao do Capitulo VI, que é prima- riamente um estudo de Romanos 9-11. Estou esperangoso de que a apresenta- go biblico-teolégica de respostas basicas ilumine o presente debate e demonstre em parte a base biblica para uma interpretagao reformada das Escrituras. Apesar de meu interesse pelo debate sobre Jesus e Israel ter surgido em tem- pos incomuns, a forma das minhas questées era entao inteiramente tradicional. Subseqiientemente, 0 Holocausto e 0 estabelecimento do Estado de Israel exerce- ram um impacto radical sobre a forma das questées durante o andamento do deba- te sobre Jesus e Israel. Vozes judaicas, silenciadas durante séculos, reclamam 0 direito de ser ouvidas. A Igreja cristi ndio deve ignorar tais vozes e deve refletir sobre 0 que ela fala sobre a relagao de Jesus e Israel e sobre 0 que ela alega concemente a essa relagio. Nas pdginas que se seguem ouviremos, com reflexo, € examinaremos cuidadosamente as declaragdes do Novo Testamento. Sio muitos os que contribuiram para a formagdo deste livro. Quero expres- sar meu reconhecimento especialmente a muitos alunos que examinaram tex- tos biblicos complexos com tanto prazer e que tornaram o curso sobre Promes- sa e Cumprimento tao estimulante que sempre foi uma alegria ensinar. Desejo agradecer também ao Calvin Seminary e a sua Junta de Curadores pelas licen- gas sabéticas que tornaram possfvel este livro. Devo uma palavra especial de agradecimento A secretdria do nosso corpo docente, Jylene Baas, por sua indis- pensdvel assisténcia. Sem o incentivo e a ajuda de muitos, minha familia inclu- sive, este livro nao teria sido escrito. Os livros siio publicados e langados a um futuro desconhecido. Nao se deve esperar unanimidade de opiniao sobre o tema de Jesus e Israel. Na melhor das hipéteses, os que lerem, concordando ou nao, terdo esclarecida a sua perspectiva. Quanto a plena concordancia sobre todos os pontos em discussao, devemos aguar- dar o prometido futuro de Deus. Deus tem seu modo de surpreender-nos. CAPITULOI Jesus £ ISRAEL No SECULO 20 O tema de Jesus e Israel abrange uma realidade carregada de tristeza. Desde a lamentagao de Jesus sobre Jerusalém até a angtistia do apéstolo Paulo diante da incredulidade do Israel judaico, a tristeza continuou, mesmo muito além dos limites do século primeiro. Acresce que o tema paralelo da relagao da Igreja com o Israel judaico acumulou muitas tragédias. O século vinte testemu- nhou um grau extraordindrio de tristeza e de indescritivel tragédia. Em conse- qiiéncia, essa realidade veio a constituir um divisor de 4guas no pensamento cristo acerca da relaco de Jesus com o Israel judaico. Nunca, desde 0 século segundo, os tedlogos devotaram tanta energia 4 reconsideragao dessa questao como no presente século. O impeto para esse renovado interesse surgiu ndo simplesmente dentro da Igreja, mas também da terrivel realidade do Holocausto. Essa horrivel tentativa do Terceiro Reich de apagar os judeus da face da terra compeliu nao sé as nagées ocidentais, mas também a Igreja, a refletir sobre sua responsabilidade pelo que aconteceu e a reconsiderar a sua atitude para com o Israel judaico. O estabelecimento do Estado de Israel, em 1948, tornou possfvel as vozes judaicas, silenciadas durante séculos, reclamarem que sejam ouvidas. O Holocausto con- tinua a proporcionar urgéncia e sensibilidade as suas exigéncias. A Igreja precisa estar ciente dessas vozes e refletir sobre como haverd de falar sobre a relaciio de Jesus ¢ Israel e sobre 0 que ela pode declarar no que se refere a essa relagio. Mudanga dramatica Para se poder apreciar as significativas mudangas ocorridas no século vin- te, € importante ter alguma familiaridade com as posigdes teoldgicas tradicio- 10 Jesus e Israel nais concernentes a Israel. Desde os primeiros dias da Igreja tem sido ampla- mente sustentada a opinidio de que 0s judeus foram deserdados em conseqiién- cia da sua incredulidade. Muitos acreditavam que o papel dos judeus na histéria da redengo tinha chegado ao fim. Jé em meados do século segundo, Justino Martir, em seu famoso Didlogo com Trifo, afirmava que os cristdos, nao os judeus, eram os filhos de Abraao, os quais formaram uma nova nagdo que habitaria na Terra Santa durante 0 reino milenar de Cristo. A alianga com Abraao foi, com efeito, estabelecida com os cristdos gentios, no com os judeus. Os judeus tinham sido excluidos dos propésitos de Deus." Esse conceito tomou-se predominante durante séculos na Igreja, e a Refor- ma nao fez nenhuma mudanga significativa nele. Inicialmente, Lutero defen- deu uma mudanga na maneira como os cristaos tratavam os judeus. Em vez de trat4-los como cies e proibi-los de trabalhar ou de associarem-se com cristaos, forcando-os, assim, a dedicarem-se a emprestar dinheiro e a se tornarem agio- tas ou usurdrios, Lutero sugeria: Se queremos ajudé-los, néio devemos exercer sobre eles a lei papal, mas, antes, a lei cristé do amor, ¢ aceitd-los de modo amigavel, permitindo-lhes que trabalhem e obtenham sustento, e assim consigam motivo e oportu- nidade para estarem conosco e entre nés e verem e ouvirem 0 nosso ensino e a nossa vida crista.* Naquele tempo Lutero acreditava que os judeus nunca tinham se convertido porque nunca tinham ouvido o verdadeiro evangelho, mas, agora, a redescoberta do evangelho na Reforma deu-lhe novas esperangas da conversio deles. Mas, quando nem os seus argumentos nem a sua Mensagem convenceram os judeus, Lutero considerou-os abandonados por Deus e alterou o seu tolerante conselho anterior. Apesar de achar que a sua época estava As portas do retorno de Cristo, Lutero perdeu toda a esperanga quanto & conversao dos judeus. Em vez de amor e amizade, ele defendeu dura repressio por parte dos principes ¢ magistrados cristéos, com a expressa esperanga de que essa disciplina severa talvez salvasse alguns. Os judeus eram colocados na categoria dos turcos, dos fandticos e dos Ppapistas como agentes de Satands no assalto final 4 Igreja antes da volta de Cristo. Embora muitos participantes da Reforma discordassem da dura polémica de Lutero, ele propugnou aeliminagao completa do culto judaico dos territ6rios cristios,? Calvino foi mais semelhante ao Lutero dos primeiros tempos em sua atitude para com os judeus. Conquanto pudesse criticar prontamente os intérpretes judeus da Escritura, acusando-os de loucura, tolice e blasfémia, e até de fanta- sia em sua visdo materialista da era messianica, ele geralmente mostrava mais misericérdia pelos judeus do que pelas heresias cristas.* Parte da razdo disso era o uso positivo que Calvino fazia do Antigo Testamentoe sua lei, o que levou Jesus e Israel no Século 20° 11 alguns a acusarem Calvino de tendéncia judaizante. Mas a maior raziio de Calvino para nao privar os judeus da sua dignidade tinha suas raizes em seu entendimento de Romanos 11.26: Contudo, apesar da grande obstinagio com que eles continuam em guer- ra contra 0 evangelho, ndo devemos desprezi-los, considerando que, por causa da promessa, a béngdo de Deus ainda repousa entre eles.‘ A propria apreciagao da elei¢do por parte de Calvino impedia-o de defender contra os judeus as medidas extremas comuns no Cristianismo medieval. Ba- seado em seu estudo dos profetas do Antigo Testamento, Calvino estava ciente de que, mesmo quando Israel estava sob 0 juizo de Deus no exilio, “a eleigao permanece inviolavel, embora os seus sinais nem sempre aparegam”.® Assim, baseado na eleigo de Israel, Calvino continuou a sustentar a tese de uma futura conversao do Israel judaico. Quando os gentios forem admitidos, ao mesmo tempo os judeus retornarao da sua apostasia A obediéncia da fé. A salvagdo de todo o Israel de Deus, que deve ser tirado de ambos, estard assim completa, e, todavia, de tal maneira que os judeus, como o primogénito da familia de Deus, obteraoo primeiro lugar.” Aatitude mais moderada de Calvino para com os judeus estava claramente enraizada em suas convicgGes teolégicas, mas a sua crenga na futura conver- so do Israel judaico nunca recebeu muita énfase em sua teologia, nem da dos seus seguidores. A 6nfase maior era dada A Igreja como o novo Israel. Além disso, dentro dessa énfase foi possivel a alguns dos seguidores de Calvino de- senvolver uma teologia da eleigdo que nfio mais deixa lugar para algum uso significativo da “eleigdo” quanto ao Israel judaico. Conquanto o conceito da maioria dentro da Igreja tenha sido que a Igreja é o novo Israel e que os judeus perderam 0 direito a essa reivindicagio, sempre tem sido presente na Igreja uma minoria crente num reino premilenar de Cristo sobre um Israel judaico convertido. Calvino e outros consideravam essa crenga uma capitulagao as concepgdes materialistas judaicas da era messifinica, mas essa visio premilenista recebeu do dispensacionalismo* um consideravel im- pulso no século vinte. Em distingdo ao premilenismo tradicional, os dispensacionalistas acreditam que 0 titulo “Israel” nao deve ser aplicado a Igreja, mas unicamente ao Israel judaico. A Igreja cristae 0 Israel judaico sio vistos como dois povos de Deus inteiramente distintos e separados. Quando o Israel judaico nao aceitou Jesus como o Messias, o cumprimento da profecia do An- tigo Testamento foi interrompido. Durante essa interrupgio, o evangelho foi 12 Jesus e Israel para os gentios e a Igreja foi formada, mas os dispensacionalistas afirmam que nao foi esse o propésito original de Deus e que isso nao cumpre as promessas do Antigo Testamento, pela simples razio de que a Igreja no é Israel. $6 depois que a Igreja for removida da hist6ria pelo arrebatamento e Jesus voltar para governar uma nacdo judaica convertida, o rel6gio da profecia recomegard amover-se rumo ao cumprimento. Esse cumprimento seré literal, na Palestina, e serd experimentado pela nagao de Israel. A promessa basica, segundo essa perspectiva dispensacional, € que, desde que as promessas foram feitas aos descendentes literais de Abrado, as promessas terdo que se cumprir nos des- cendentes literais de Abraaio. Com o restabelecimento do Estado de Israel em 1948, esse conceito se tornou muito popular entre os fundamentalistas e alguns cristéos evangélicos biblicos.? A venda de livros que promove essa perspectiva as vezes chega literalmente a milhdes de exemplares."” O ponto de vista premilenista, quer dispensacional quer classico, sempre este- ve em posi¢ao minoritaria na Igreja crist. O significativo desafio atual, nas Igre- jas protestantes de primeira linha e no Catolicismo romano vem nao do premilenismo, mas do Holocausto. Desde 1945, muitas denominagdes, como tam- bém 0 Concilio Mundial de Igrejas, tém publicado declaragées e documentos de estudo sobre a relago entre os cristdos e os judeus.'' Muitas dessas declara- Ges advertem contra o anti-semitismo que contaminou a Igreja, incentivam apoio ao presente Estado de Israel (embora haja divergéncias concernentes as razies para esse apoio), salientam as ratzes comuns do Judafsmo e do Cristianismo, e afirmam a ininterrupta eleicdo do Israel judaico. Conquanto todas afirmem essa continuidade da eleigao do Israel judaico baseadas em Romanos 11, nao ha una- nimidade quanto &s conseqtiéncias teolégicas que devem decorrer dessa eleigtio ininterrupta. Significaria que existem duas aliangas distintas e que, conseqiiente- mente, nao se deve fazer nenhum proselitismo entre os judeus? Deveria a Igreja concluir que ela no tem nenhuma obrigagao de evangelizar os judeus, visto que a conversdo e o futuro deles esto unicamente nas maos de Deus? Eevidente que o pensamento teolégico de muitas Igrejas crist’s passou por mudancas dramaticas, ¢ estas tém levantado significativas questdes con- cernentes a Jesus ¢ ao Israel judaico, questées as quais vamos nos dedicar nos capitulos subseqiientes. Aqui é importante observar que essa significativa alte- ragio no foi causada meramente pelo debate travado dentro dos muros da Igreja, mas também pelo didlogo judaico-cristdio pés-Holocausto. A forma des- se didlogo pode ser inquietante, e apresenta numerosos desafios. Desafios presentes no didlogo judaico-cristao Agora a pergunta quanto a Igreja do século vinte é: 0 que se deve escrever ou falar sobre Jesus e Israel apds o Holocausto? A inesquecivelmente assom- Jesus e Israel no Século 20 13 brosa lembranga do Holocausto desenha-se sobre todas as discussdes e reivin- dicagées. Israel é agora Israel-pés-Holocausto, e a Igreja contempordnea se defronta com Israel tendo a consciéncia culpada. Embora a Igreja no o tenha perpetrado” diretamente e cristdos individuais muitas vezes tenham prestado assisténcia aos judeus, o Holocausto nao teria acontecido, nao fosse a histéria pregressa da perseguicdo crista dos judeus. Diversas pessoas tém argumentado que a Igreja nao deveria ser acusada de culpa pelo Holocausto porque o anti-semitismo é um fenémeno puramente moderno, divorciado dos mundos antigo e medieval. O anti-semitismo moderno tem suas raizes no nacionalismo ¢ no racismo, e seu cardter é essencialmente anticristdo." Mas muitos autores, tanto cristdos como judeus, nao concordam com isso. Houve de fato uma pré-histéria crist em ago no Holocausto.'* Tanto as praticas passadas da Igreja como suas atitudes criaram circunstancias que puderam ser utilizadas pelos propagandistas nazistas. Frank Littell representa muitos quando declara que “aqueles que fizeram do anti-semitismo uma arma politica puderam monté-lo sobre grandes barreiras do anti-semitismo teoldgico e cultural construfdas pelas Igrejas” e que o Terceiro Reich e seus campos de morte “nao apareceram acidentalmente no corago da cristandade”.'> Hans Kiing expressa o julgamento comum: O anti-semitismo nazista foi obra de criminosos {mpios e anticristdos... mas sem a pré-histéria de quase dois mil anos de antijudaismo “cris- to”... ele nao teria sido possivel... Nenhuma das medidas antijudaicas dos nazistas — vestudrio caracteristico, exclusdo de profissées... proibi- de casamentos mistos, expulsdes, campos de concentrago, massa- cres, horrendas piras funerarias — foi nova. Tudo isso jé existia na Idade Média crista, assim chamada... ¢ no periodo da reforma “crista”. O que foi novo foi a fundamentagao racial dessas medidas...!° Essa longa histéria da opressao civil e religiosa dos judeus, vistos como “matadores de Deus”, culpados do indescritfvel crime de deicfdio, significava que os judeus nao eram considerados dignos nem de respeito nem de direitos civis. Nao é, pois, de admirar que o artista judeu Asher Ley, no romance de Chaim Potok,"” embora fascinado pela cruz como objeto de compulsao artisti- ca, ache quase impossivel satisfazer a essa compulsio porque a cruz é, para o judeu, ndo um simbolo de redengéio, mas um horrendo simbolo de opressio. Essa trdgica hist6ria da relacdo igreja-sinagoga, judaico-crista, complica enor- memente qualquer coisa que se escreva sobre o tema Jesus e Israel. Seré entio possivel, hoje, alguém alegar que hd uma conexio essencial entre Jesus e Israel sem ser acusado de anti-semitismo ou de antijudaismo? Pode al- guém sustentar, como faz 0 Novo Testamento, que a relagdo entre Israel e Jesus 14 Jesus e Israel 6 uma relagio de promessa e cumprimento, sem ser acusado de ressuscitar ale- gagGes que inevitavelmente produzem sentimentos antijudaicos e até provocam homicfdio contra os judeus? Conquanto muitos leitores possam pensar que tais quest6es so grosseiramente exageradas, aqueles que estao familiarizados com 0 didlogo judaico-cristao na Europa e nos Estados Unidos percebem que nao sio. Atualmente, na maioria das sociedades democraticas ocidentais, os direitos civis e politicos de uma religiio manter-se sem coagao externa esto assegura- dos. Geralmente se concorda que ninguém, em particular nenhum governo, tem 0 direito de constranger ou oprimir uma religido com a qual nao concorda. Conseqiientemente, os cristdos que vivem em tais sociedades descobrem que a pré-moderna opressao crista sobre os judeus é um escndalo intoleravel, uma nédoa em sua consciéncia. Contudo, seré ainda permissivel —a luz do referido consenso sobre os direitos civis de todas as religiées — a uma religido fazer reivindicagGes que, por sua prépria natureza, implicita ou explicitamente, conte- nham criticas as alegagSes ou ao status de outra religiio? Ou o pluralismo religioso, como direito civil, profbe um desafio tao direto concernente A veraci- dade de alegag6es religiosas? Especificamente, seré 0 caso de que, se 0 Cris- tianismo continuar fazendo alegagdes acerca de Jesus que implicam ou ocasi- onam critica a validade religiosa de certas posigGes sustentadas pelo Judafsmo, tais alegagdes produziriio inevitavelmente conseqiiéncias que vio infringir ou até negar os direitos politicos e civis do Judaismo? As sensibilidades dos judeus, agugadas por séculos de sofrimento e pelo Holocausto, asseveram que precisamente serd esse 0 resultado, porque sem- pre foi. Embora a critica que 0 Cristianismo faz ao Judafsmo sempre tenha sido fundamentalmente religiosa em sua natureza, geralmente é despejada em are- nas civis e politicas, e muitas vezes tem levado ou a forgar a conversio ou a deserdar e despojar os judeus. Conseqiientemente, depois de fazer uma desa- paixonada dentncia contra a Igreja na qual menciona 0 fato de que “nao menos de 96 concilios eclesidsticos ¢ 114 papas emitiram editos contra os judeus. tratando-os como parias e levando Israel a beira da destruigao”,'* Pinchas Lapide, um erudito judeu e participante do diélogo judaico-cristio, estabelece varias condigées para a continuagio do didlogo. Ele insiste em que hé trés erros que formam as rafzes da animosidade cristé para com os judeus e que, portanto, eles devem ser rejeitados pelos cristios, se € que se ha de tornar possivel o didlogo. Esses trés “erros” siio que Jesus foi o Messias de Israel, que ele foi rejeita- do pelos judeus, e que ele, por sua vez, os repudiou."” Conquanto especialmen- te 0 terceiro esteja reconhecidamente aberto a varias interpretagdes, cada um desses chamados erros tem base no proprio Novo Testamento. Apesar disso e do grau em que sucede, Lapide assevera que o Novo Testamento dé garantia para que tais posigdes sejam repudiadas e de que, se nao forem, o Cristianismo Jesus e Israel no Século 20. 15 continuard a estimular os sentimentos antijudaicos e anti-semitas com todas as suas desastrosas conseqiléncias. Disso decorre que os cristios néo devem mais afirmar que Jesus & o cumprimento da profecia e que, portanto, é 0 Mes- sias de Israel. Em acréscimo, as partes dos Evangelhos segundo Mateus e segundo Jodo que julgam duramente o Israel judaico devem ser repudiad: sendo elas especialmente responsabilizadas pelas tendéncias antijudaicas do Cristianismo. Tal reptidio dos chamados erros significa que Jesus 6 completa- mente remodelado para adequar-se aos contornos religiosos do Judaismo. Embora seja possivel entender simpaticamente a exigéncia do professor Lapide, tendo-se em vista que historicamente essas declaragées por parte do Cristianismo tém produzido édio e desprezo ao povo judeu, nao obstante, a declaragio crista de que Jesus 6 o Messias é obviamente central no testemu- nho do Novo Testamento. Daf, a referida exigéncia impoe uma posi¢do curiosa, pois o que Lapide exige do Cristianismo é, num sentido formal, idéntico ao que ele nao permitiria que fosse exigido do Judaismo, a saber, a imposigao das pretensdes de veracidade de uma religidio sobre outra religidio. O que transparece € que o Cristianismo nao deve asseverar pretensGes de veracidade que sola- pem ou contradigam o Judafsmo nem que, mesmo com base no Antigo Testa- mento, se arrogue o fato de constituir 0 cumprimento das esperangas do Juda- ismo, ao passo que o Judafsmo pode insistir em que a Igreja modifique o seu entendimento de Jesus de modo que ele se encaixe mais confortavelmente na estrutura judaica.” Mas, se aceita o didlogo com outra religido, uma religido nao deve estar disposta a ouvir plenamente as pretensdes de veracidade da outra, no importa quais implicagées resultem para a sua prépria? De que outra forma pode-se obter um verdadeiro entendimento? Claro est que as exigénci- as de Lapide brotam do temor de que as referidas alegagées cristds inevitavel- mente produzam anti-semitismo. Diversas assergdes do professor Lapide sugerem a seguinte posigio: O Cristianismo pode ser visto positivamente pelo Judaismo como o meio que Deus usou para habilitar Israel a tornar-se uma luz para as nacdes por meio do ensino de Jesus, um rabi judeu.?! Mas, sob a influéncia do Helenismo, 0 Novo Testa- mento e o dogma da Igreja interpretaram Jesus de um modo que o Judafsmo nao pode aceitar. H4, com efeito, duas aliangas que estdo sendo utilizadas por Deus e duas religides, o Judafsmo e 0 Cristianismo, mas, em Ultima andlise, o Judaismo possui a verdade final e suprema, cuja validade serd estabelecida quando o Messias vier. Entao, até os cristaos gentios ter’ que reconhecer os mal-entendidos e as heresias contidas no Novo Testamento, pois terao desco- berto que o Messias nao era o Cristo da fé crist — embora talvez pudesse ser o “Jesus da histéria”, contanto que se entenda como um Jesus que se adapta confortavelmente dentro dos contornos do Judafsmo normativo. Naturalmente, desde que para o Judafsmo o Messias é totalmente desconhecido, o Messias 16 Jesus e Israel poderd vir a evidenciar-se como alguém totalmente diferente. Visto que Lapide é um convencionado representante do Judaismo, sé se poderia esperar que ele sustentasse as pretensdes de veracidade da sua religiio. Mas como um cristo haverd de dialogar com ele respondendo? Trés respostas teolégicas Antes de examinar a fundo as questées especificas de tal didlogo, vamos descrever brevemente os contornos das trés respostas completamente diferen- tes A questiio de Jesus e Israel. Ficaré 6bvio que o Holocausto e 0 subseqiiente didlogo judaico-cristéo nado deixaram de afetar a teologia crista. O conceito tradicional segundo o qual a Igreja crista substituiu o Israel judaico, o qual, segundo esse conceito, nao tem mais nenhum papel a desempenhar no plano de redengio de Deus, nao é mais dominante. Contudo, nao se desenvolveu ne- nhum consenso sobre como avaliar a situagao presente e futura do Israel judai- co, sendo que os tons negativos proeminentes no conceito tradicional da Igreja sofreram grande alteracgao. Nossa intengao nessa parte nao é entrar num ex- tenso debate com esses pontos de vista, mas, antes, apresentd-los como uma prova da significativa mudanga e do extraordindrio impacto que o Holocausto, o estabelecimento do Estado de Israel e 0 didlogo judaico-cristdo tiveram sobre alguns tedlogos cristios. A teologia de Karl Barth exerceu um extraordindrio impacto sobre 0 subseqiiente pensamento acerca da relagdo da Igreja com Israel. Conquanto 0 conceito basico de Barth sobre o Israel judaico flua diretamente do seu enten- dimento da elcigdo, sua énfase mais recente ¢ mais positiva também foi influ- enciada pelos eventos que acabamos de mencionar. Ele viu uma unidade es- sencial entre a Igreja c a sinagoga. Jesus Cristo € O Eleito, mas 0 que é eleito em Cristo é uma comunidade com dupla forma, Israel e a Igreja: “Israel é 0 povo dos judeus que resiste a sua eleigao; a Igreja é o conglomerado de judeus e gentios chamados com base em sua eleigao”.? Mesmo que Israel resista & sua vocacao, nem por isso € rejeitado, mas continua a ser eleito. Assim, sob a diferenciagao hist6rica entre Igreja e sinagoga ha uma unidade essencial fun- damentada na eleigaio de ambas em Cristo. Conseqiientemente, Barth declara que a presente separacio é “uma impossibilidade ontolégica, uma ferida, um grande rombo no corpo de Cristo, uma situagdo totalmente intolerdvel”.23 Embora 0 propésito fundamental de Deus seja que Israel aceite a sua elei- ¢4o em Cristo, nado obstante, mesmo agora, em sua desobediéncia, Deus usa Israel em seu servigo. De fato, Barth pode dizer que mesmo agora Israel est4 se desincumbindo “exatamente do servigo para 0 qual € eleito”,” pois, em sua resisténcia, Israel prové um necessério, embora involuntério, testemunho do juizo de Deus, da natureza da humanidade decafda em sua fiitil revolta contra Deus, e, dessa forma, até do fardo que Deus remove em Jesus Cristo.5 Até Jesus e Israel no Século 20. 17 em seu auto-infligido julgamento, Israel dé testemunho da misericérdia do Deus que elege, sendo que ele continua a manter Israel em sua existéncia hist6rica. Essa continuada existéncia, inclusive 0 estabelecimento do Estado de Israel moderno, é para Barth a tinica prova digna de crédito da existéncia de Deus.”* Acresce que esse testemunho involuntério é essencial para a existéncia au- téntica da Igreja. Se a Igreja se alienar de Israel, perderd o seu poder de testemu- nhar da miséria humana e da cruz, porquanto o que custa a Deus fazer-se um com a comunidade eleita fica evidente no desobediente Israel. Além disso, € unicamente o testemunho de Israel que impede a Igreja de reintroduzir na mensa- gem cristi as idéias pagas dos seus préprios antecedentes gentilicos.2” Portanto, se a Igreja se apartar do Israel judaico, inevitavelmente se apartard, também, como aconteceu durante o Terceiro Reich, da sua propria mensagem auténtica. A idéia que Barth tem do Israel judaico é tanto tradicional como nova: tradi- cional na descrigao que faz do Israel judaico como vivendo sob uma maldigéo auto-infligida de Deus, como se vé descrita em Romanos 11; nova no fato de atribuir um papel em ultima instancia necessdrio e positivo ao testemunho involuntario de Israel, e de considerar a incredulidade do Israel judaico j4 so- brepujada na rejeigio ¢ eleig&o de Jesus Cristo. Mesmo em sua incredulidade, Israel ainda é “o povo do seu Messias que veio e foi crucificado, ¢, portanto, 0 povo do secreto (oculto dele como ainda est4) Senhor da igreja”.® do, a responsabilidade da Igreja para com o Israel judaico? A Qual serd, enta Igreja jamais deve esquecer a prioridade de Israel, lembrando-se de que é hés- pede na casa de Israel. E mais, tendo em vista que Israel resiste 4 sua eleigao em Cristo, a Igreja deve compartir com Israel, mediante amigdvel didlogo, a mensagem que ela possui. Porém, isso nao deve ter 0 nome de “missao”, porque uma “missao” é dirigida diretamente aos que cultuam um deus falso, e nao é esse o caso de Israel. Contudo, Barth nao acredita que esse didlogo amigavel venha trazer & luz a unidade oculta, Embora o didlogo possa vir a ocasionar a conversdo de uns poucos individuos, Barth acredita que a real conversio dos verdadeiros judeus exigira, como no caso do apéstolo Paulo, uma intervengao direta do préprio Deus. Barth opina que o real testemunho necessério para fazer Israel sentir citime no € o didlogo, mas uma vida auténtica como comunidade do Rei de Israel e Salvador do mundo, mas ele parece pouco esperangoso de que mesmo por esse meio ocorra a unidade da Igreja com Israel.” Assim é que aconversio do Israel judaico incrédulo nao serd resultado do exemplo cristio ou da proclamagao crista, mas unicamente da volta do Senhor. Markus Barth seguiu os passos do seu pai, Karl. Como ativo participante do didlogo judaico-cristao, ele sustentou a perspectiva teolégica acima descrita. Em trés livros dedicados a esse tdpico, temas familiares sio repetidos: Todos os judeus, mesmo os ateus entre eles, existem numa “indissoltivel unidade com Jesus Cristo”. A fungiio especial de Israel é lembrar aos cristios gentflicos que 18 Jesus e Israel eles existem por pura graca. Israel dé seu testemunho, nao verbalmente, mas por uma existéncia que declara que o “Deus que nos tolera, réprobos e culpa- dos, também receber4 vocés no seio do seu povo”.” Markus Barth usa a parabola do filho prédigo como um paradigma para a relaciio entre a Igreja Israel. Como 0 irmao mais velho, Israel presta um servigo necessério, lembran- do a Igreja, 0 irmao mais novo, seu pecado ¢ sua salvagio pela graca. Mas 0 irmao mais novo nao pode repreender 0 mais velho. Isso é tarefa do pai, que ama ambos 0s filhos e quer ver os dois 4 mesa do banquete.*! Assim, o didlogo € apropriado, mas néo uma missio dirigida aos judeus, com suas reprimendas implicitas ou explicitas. Todavia, tal didlogo espera o retorno de Cristo para a solugao do presente mistério do duplo povo de Deus.” Ambos os Barth desenvolvem uma avaliagdo positiva do papel ininterrupto de Israel na histéria, mas continuam a manter as reivindicagoes crist’s essen- ciais concernentes a Jesus Cristo. Conquanto o Holocausto seja encarado com seriedade e seja até misteriosamente associado a cruz de Cristo, nao Ihe é atribufda nenhuma posigdo reveladora independente, separada ou mesmo ao lado da cruz. Ademais, 0 Israel judaico, embora eleito junto com a Igrejaem Cristo, recebe, no conceito bartiano, um papel independente na histéria, papel que foi predestinado a desempenhar fora e além do alcance da proclamagao do evangelho de Cristo pela igreja. O Israel judaico permanece numa categoria especial até o retorno do Senhor. Nao obstante, aqui e agora, Israel é conside- rado um parceiro necessério no movimento ecuménico, na medida que este procura restabelecer a unidade do povo de Deus na terra." Dessa forma, a perspectiva bartiana mantém a énfase reformada tradicional sobre uma tinica alianga da graga e um Gnico povo de Deus, mas o faz de maneira bastante néio- tradicional. Nao é de admirar que ambos os Barth tenham adotado uma postura positiva com relag&io ao Estado de Israel, vendo-o como uma expressio da fidelidade de Deus e como merecedor do apoio da Igreja.** Enquanto a revisao bartiana da perspectiva crist sobre Israel mantém as reivindicagées cristas tradicionais concernentes a finalidade da pessoa e obra de Cristo, outros adotaram uma postura muito mais radical. Convictos de que certas assergGes sobre a finalidade de Cristo sao em si mesmas antijudaicas ou mesmo anti-semitas, eles procuram uma reinterpretagio dessas crengas cris- tas centrais. Se faltar 4 Igreja crista a coragem de aceitar uma reinterpretagio radical das crengas basicas, entiio, esses tedlogos acusam, ela nio ter apren- dido a verdadeira li¢do do Holocausto. Um desses tedlogos é a professora Rosemary Ruether. Apés uma visao geral da triste histéria das relagdes igreja-sinagoga através dos séculos, Ruether conclui que a verdadeira raiz do antijudafsmo cristao é sua cristologia. Estes ensinamentos do Novo Testamento criam o problema: Jesus €0 verdadeiro sentido e cumprimento do Antigo Testamento, é 0 Filho de Deus, ¢ € 0 Messias jé surgido na hist6ria. Tais afirmagées, segundo Ruether, neces- Jesus e Israel no Século 20 19 sariamente redundam em antijudaismo, isto é, na negagao da legitimidade das pretensdes do Judafsmo, sendo que este rejeita a cristologia do Novo Testa- mento. Por sua vez, esse antijudaismo, alega-se, produz o anti-semitismo. Seguindo-se nessa diregdo teolégica, o que acontecera com 0 Cristianismo e suas pretensdes? Na esséncia, o Cristianismo vai se transformar numa forma distinta, mas paralela, de Judafsmo. Ruether declara que o cumprimento das esperangas veterotestamentarias no aconteceu e que 0 messianismo cumpri- do ainda nao existe porque a existéncia histérica ainda nao foi redimida. A Igreja nao pode dizer que Jesus era o Mesias, pois isso implicaria que a pers- pectiva final j4 teria ocorrido numa pessoa histérica, e entéo Jesus j4 nao seria uma pessoa plenamente humana. Portanto, nessa reinterpretagao proposta, Jesus € considerado plenamente humano, mas com uma significagao que j4 nao é final. O Jesus humano aponta para a vinda de outro e espera o tempo da reden- ¢do ainda por vir.* Sua ressurreig&o assemelha-se ao éxodo ou 0 repete, mas nao o cumpre. Portanto, embora os cristios entendam a sua historia 4 luz de Jesus, os judeus nao precisam entendé-la assim. Eles tém sua propria historia, que propicia razGes adequadas para a esperanga. Conseqiientemente, a cruz e aressurreigdo de Jesus véma ser, no méximo, um modo particular de visualizar a salvagdio, mas nao sio 0 tinico modo.” A reinterpretagao radical da cristologia proposta pela professora Ruether produz um Cristianismo estruturalmente idéntico ao Judaismo. Ambos sao reli- gides de esperancga, aguardando uma humanidade redimida. Cada um deles tem sua prépria razio para esperanca, sua propria historia, e nenhum dos dois precisa compartir a linguagem do outro. Além disso, o que se diz sobre 0 Juda- {smo e o Cristianismo aplica-se igualmente a todas as demais religides. Confor- me Ruehter, muito embora toda religido seja um meio para se chegar a um contato com o universal, nenhuma religiao ou revelagao particular pode alegar que € universal. O principio filoséfico basico que governa essa revisao radical do ensino cristéo é 0 seguinte: A [religido] universal nao pode estar contida em nenhuma religiao ou pessoa histérica particular porque é transcendente e espe- ra tudo no fim da historia. Essa conhecida objegdio as pretensées cristis de finalidade j se achava no antigo mundo romano. Aceité-la é dizer que nao ha somente um caminho estabelecido para o Pai, nem mesmo dois, mas que ha de fato muitos, tantos quantas sao as religides existentes.** Obviamente, tal con- ceito de religiao realiza 0 objetivo de Ruether, de desarraigar o antijudafsmoe o anti-semitismo, mas consegue isso & custa da capitulagao das afirmages cris- ts centrais concernentes ao cardter final da pessoa e da obra de Jesus. Serao necessdrias medidas tao drdsticas para evitar 0 anti-semitismo? Uma terceira resposta A questo da relacio entre a Igreja e Israel propde um paradigma totalmente novo para a leitura dos textos do Novo Testamento referentes ao tema em foco. Enquanto muitos intérpretes admitem que 0 Novo 20 Jesus e Israel Testamento desafia varios ensinos essenciais do Judafsmo, John Gager argu- menta no sentido de que essa leitura tradicional entende erroneamente o con- texto dos escritores do Novo Testamento.” A tese geral de Gager é a de que havia muita simpatia pelo Judafsmo no mundo antigo e que muitos gentios se sentiam atrafdos ao menos por aspectos do Judafsmo. As declaragGes antijudaicas feitas tanto por pagdos como por cristdos surgiram nao de um 6dio geral aos judeus, mas de interesses ligados a indesejada influéncia judaica. Jodo Criséstomo, por exemplo, presbitero em Antioquia, pregou em 386 d.C. uma série de sermées cheios de tiradas contra a sinagoga, mas 0 seu alvo real nao era o Judafsmo, e sima influéncia judaizante exercida sobre os membros de sua igreja, os quais estavam freqiientando as festas judaicas, observando o sabado judaico, sujeitando-se a circuncisao, usando f6rmulas judaicas de encantamento para curar enfermidades e honrando a si- nagoga local como um lugar santo.*” Tais crentes eram gentios cristdos atraf- dos pelas praticas judaicas. A tese geral de Gager sobre os escritores cristaos € que “o antijudafsmo surge em directa reagdo a uma forma de Cristianismo judaizante”.' Naturalmente, mesmo que os judeus nao fossem o alvo especi- fico, os tons hostis das invectivas contra a sinagoga freqiientemente apresenta- vam hostilidade crist& para com os judeus. Essa tese geral de que o verdadeiro alvo do antijudaismo cristo séo os judaizantes é entio aplicada aos escritores do Novo Testamento. Segundo Gager, 0 conflito de Paulo com o Judaismo focaliza-se num Unico ponto: como os gentios se tornam membros do povo da alianga. Paulo ensina que, em Cristo, os gentios obtém posigio igual a dos judeus como membros do povo de Deus, por meio de uma justica independente da lei. Por isso Paulo resiste vigorosamente a qualquer tentativa de sujeitar os crentes gentios as exigéncias da lei, mas ele nao ensina que essa justia independente da lei é para os judeus ou que Cristo 60 fim da lei para os judeus. Esses temas paulinos centrais so dirigidos contra os judaizantes e aplicados somente aos gentios. Paulo difere do Judaismo s6 em sua assergdo de que nao é exigido dos gentios que guardem a Tord (lei).? Assim é que Paulo s6 reage contra o exclusivismo judaico, contra a insisténcia em que a tinica maneira de se unir a Israel é guardar a Tord. A parte essa tinica diferenga, Paulo nao oferece nenhum desafio aos judeus que continuam a se- guir 0 caminho do Judafsmo. O sumério que Gager faz do evangelho de Paulo & que Cristo é 0 “cumprimento das promessas de Deus concernentes aos gen- tios”, mas “nao o climax da hist6ria do trato de Deus com Israel”.* Tomando como hipstese que essa tese é correta, o Novo Testamento ensina duas aliangas, ou ao menos dois caminhos diferentes para uma tnica alianga, um para os judeus e 0 outro para os gentios. Mas sera possfvel restringir as declaragées de Paulo unicamente aos gentios? Muitos nao pensam assim. E interessante que Gager concorda que Paulo explica 0 tropego de Israel como Jesus e Israel no Século 20 21 causado pela sua incapacidade de “ver que a justiga repousa na fé, seja para os circuncisos, seja para os incircuncisos”.* Evidentemente, essa declaragdo tem © aspecto de uma critica a0 Judaismo também, nao sé aos judaizantes que desencaminhavam os crentes gentios. Naturalmente, Gager afirma que Paulo 86 pretende lembrar aos judeus que a fé sempre foi “a resposta apropriada & alianga”, e também que Paulo nao chama os judeus para a fé em Cristo.4* Com a maioria dos intérpretes, porém, afirmamos que 0 ensino de Paulo sobre uma justica baseada na fé implica um entendimento da inter-relagio existente entre pecado, lei e salvagaio muito diferente do que se acha no Judaismo. Segundo esse breve exame, é dbvio que 0 Holocausto e um senso de res- ponsabilidade crista por contribuir para ele tém tido um efeito dramatico no pensamento cristéo acerca de Jesus e Israel. O forte desejo de evitar 0 antijudaismo e 0 anti-semitismo tem levado a ousadas reinterpretagdes da men- sagem crista, reinterpretagdes que por vezes violam os limites do Cristianismo tradicionalmente ortodoxo. Com esses trés exemplos como pano de fundo, va- mos voltar a diversas questdes especificas sobre a teologia pés-holocausto. Questiées surgidas na teologia pés-holocausto Pensadores judeus tais como Pinchas Lapide nao se sentem desconfortaveis com uma teologia de duas aliangas. Se existem duas aliangas distintas, uma para 0s cristdos gentios e uma para os judeus, ¢ se a alianga crist nao implica obrigagdo alguma de fé quanto aos judeus, ento nao hé objegiio do lado do Judafsmo. Vimos que alguns tedlogos cristaos, em didlogo com o Judaismo, comegaram a defender essa teologia de duas aliangas.“° Tendo entendido Auschwitz (isto é, o Holocausto) como um chamamento para outra fé, esses tedlogos tém tentado desenvolver uma teologia crista que nao é mais contra 0 Judaismo. As crengas cristés que contribufram para o Holocausto tém que ser rejeitadas. Os cristdios néio devem mais negar teologicamente o direito do Israel judaico existir como povo de Deus com base na Tord. Os judeus niio devem ser mais acusados de assassinar Deus e, conseqiientemente, de estar sob uma maldigao divina. Em vez disso, o Judaismo e o Cristianismo podem existir teo- logicamente como duas religides diferentes, mas compativeis. Embora os motivos e metas da teologia cristd pés-holocausto sejam louvaveis — quem nao deseja eliminar o anti-semitismo e a hostilidade? — a transformagao sugerida € mais que uma questiio de simplesmente adotar diferentes nuances ou de rejeitar desnecessérias ou errdneas conclus6es tradicionalmente deduzidas do dogma cristo. A teologia do pés-holocausto esta na verdade empenhada em desafiar certas énfases que se acham no proprio Novo Testamento. A obra de Peter von der Osten-Sacken, tedlogo alemao, exemplifica as possibilidades e as dificuldades de tal transformagao da teologia crista.” Consi-

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