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Os folhetins clássicos pela primeira

vez reunidos em livro!

Sangue em Pastópolis
&

Pato ao Molho Pardo

Por Salomão Gladstone


Sangue em Pastópolis e Pato ao Molho Pardo
 Copyright 2004 by Salomão Gladstone. Todos os
direitos reservados. Proibida a reprodução total ou
parcial desta obra, por qualquer meio ou sistema, sem
o prévio consentimento do autor (ver abaixo).

*Versão 1.1 – 12 de abril de 2004*

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software. Neste caso, o regime é um pouco diferente.
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editora favorita dizendo por que Sangue em
Pastópolis e Pato ao Molho Pardo merece ser
publicado. Aproveite e indique aos editores como e
onde eles podem encontrar este livro para avaliação.

Nem eu preciso relacionar centenas de editoras neste


espaço, nem você precisa consultar a lista telefônica:
pegue um de seus bons livros e anote o endereço para
correspondência da editora, que está estampado logo
nas primeiras páginas. Envie um cartão da sua cidade,
sua região, seu país (quanto mais distante, melhor)
para mostrar até onde chegou a popularidade desta
obra.

Este livro eletrônico não tem etiqueta de preço. Mas se


você acha que a obra vale mais que um cartão e um
selo, cabe a você prestigiar o autor!
Introdução
Quanto tempo, hein? Para que tenham idéia, a
maior parte de Sangue em Pastópolis foi editada
alternadamente no QEdit e no Word 5.0. Os dois editores
de texto rodavam em DOS. Ninguém mais lembra do
QEdit, do Word 5.0 ou do próprio DOS. Ainda bem.
Este livro é o resultado de uma experiência
pioneira em folhetins distribuídos eletronicamente. Em
1995, pouco antes da Internet comercial brasileira e num
tempo em que supermercados ainda não costumavam
vender computadores, os capítulos de Sangue em Pastópolis já
eram distribuídos por todo o país entre micros ligados por
linhas telefônicas: eram as heróicas redes de BBSs (bulletin
board systems). E os leitores compartilhavam suas opiniões
pelo mesmo caminho. Desta forma, o folhetim, pai das
radionovelas, avô das telenovelas, se transformou em algo
bem mais próximo de uma experiência interativa do que se
poderia pensar.
A idéia original de Sangue começou a crescer em
minha mente ainda nos primeiros dias de 1994. Na época,
eu já acessava BBS a sério (leia-se: com um modem digno
do nome) há quase um ano: juntava cada centavinho para
manter meu equipamento de informática minimamente
atualizado, freqüentava encontros de usuários e participava
de todas as discussões que apareciam no monitor
monocromático. Destaque para as conferências não-sérias:
eram assembléias nacionais de piadistas, espaços naturais
para uma consulta pública que confirmou tudo que eu
imaginava. Descrevi o projeto em poucas palavras e
emendei com uma série de questões de múltipla escolha: as
respostas diriam o que os leitores-usuários, naturalmente
inclinados a receber de bom grado um texto satírico,
esperavam de um folhetim sobre a saga dos patos.
iv SALOMÃO GLADSTONE

Nenhuma surpresa: queriam sexo, sacanagem e devassidão


em alta escala. Fiz o oposto do que esperavam. Foi um
sucesso.
Novos capítulos eram lançados sempre que o
tempo permitia, o que explica em parte os tamanhos
irregulares dos capítulos (mas o que você esperava de um
trabalho voluntário?). Muitas vezes as publicações via BBS
eram diárias, e o feedback dos leitores também. Prometi
aos leitores que não haveria um número predeterminado
de capítulos: publicaria enquanto a demanda justificasse a
continuidade do folhetim. No entanto, consumido por
afazeres profissionais, tive que interromper Sangue em
meados de 1995. Em fins daquele ano retomei a série por
breve período, apenas até o capítulo 30, conta redonda,
porém mantendo no rodapé o sinistro “Continua...”.
Nada mais foi como antes. Os programas em DOS
sumiram do mapa, a Internet tomou conta do cenário e
quase todos os BBSs saíram do ar. Não havia mais uma
comunidade BBSiana a apoiar a publicação de novos
capítulos; enquanto isso, recursos de publicação na
Internet que hoje estão ao alcance das massas (páginas
pessoais, blogs, listas de discussão) eram precários ou
difíceis de usar — quando existiam. Ainda assim, heróicos
usuários redistribuíam espontaneamente os capítulos
antigos de Sangue em Pastópolis no subsolo da Rede. Foi o
que me levou a dar um novo sopro de vida ao projeto.
Entre 2000 e 2001, a primeira versão do site Rumor
do amigo Flávio de Almeida, republicou os capítulos
antigos de Sangue em intervalos regulares. Logo se seguiram
os capítulos novinhos que faltavam, escritos para a ocasião.
Poderia ter arrastado Sangue até hoje (ou até o quanto
sobrevivessem personagens suficientes para dar algum
sentido à história), mas tive que cumprir uma obrigação
maior: não esgotar a paciência do leitor, um recurso que,
INTRODUÇÃO v

nota-se, é escasso na rede mundial de computadores. O


Rumor também deu ao folhetim o apoio das ilustrações de
Marcelo Martinez, um recurso inimaginável em tempos de
tela preta (e, pior ainda, preta com letras verdes).

*****
Pato ao Molho Pardo, por sua vez, foi escrito
especialmente para a segunda encarnação do site Rumor. O
relato, publicado ao longo de 2002 em capítulos semanais,
é uma preqüência de Sangue, escrita para dar algum sentido
ao que se passou no folhetim anterior. Ou teria sido Sangue
que forneceu a Pato o barbante para criar sua própria cama
de gato? (Chega de referências animais por hoje.) Os dois
folhetins podem ser lidos separadamente ou em seqüência,
como desejar. Para ler os capítulos na ordem em que foram
escritos, siga a numeração das páginas. Para seguir a ordem
cronológica dos acontecimentos, comece pelo Livro II,
Pato ao Molho Pardo, na página 115, e rebobine a fita até o
primeiro capítulo do Livro I, Sangue em Pastópolis. De
qualquer forma, nem tudo está explicado. Preencha as
lacunas com sua imaginação.

Salomão Gladstone
salomaogladstone@hotmail.com
A toda essa gente bronzeada pela luz dos monitores que se meteu a
besta de dar palpite numa obra em andamento.
Livro I

Sangue em Pastópolis
Capítulo 1

A PRIMEIRA MISSÃO NÃO-AUTORIZADA


DE HUMANOS À CIDADE DE PASTÓPOLIS

Meus dedos molhados de suor deslizavam em


torno do volante naquela manhã sombria. Numa das
centenas de freeways da Califórnia, em meio aos mil
atalhos, desvios e entroncamentos, ninguém parecia notar
que uma das placas sinalizava com todas as letras:
“PASTÓPOLIS”. Respirei fundo e virei à direita. Era lá
mesmo!
Mesmo naquelas horas de grande movimento, a
saída para Pastópolis parecia ser o trecho mais deserto do
sistema rodoviário. Em cinco minutos não encontrei um
único veículo indo ou voltando. Mais estranho era o céu,
que mudava de cor a cada minuto. E quando passei entre
duas colinas, a música no rádio desapareceu sob forte
estática. Em seu lugar, uma voz grave e rouca:
— Isto é uma gravação. Meus parabéns, Alvin. Se
chegou até aqui, pelo menos você sabe seguir setas. Rê, rê,
rê... Preste atenção: passar pela alfândega será moleza, pois
só há um guarda. Suborne-o com a mala de dinheiro do
Banco de Pastópolis. Você terá que trocar seu carro
“normal” por um modelo pastopolense que já estará à sua
espera. Este é nosso último contato. Nem pense em voltar
ao mundo dos humanos sem o serviço cumprido. Siga em
frente e boa sorte...
Novo calafrio: finalmente senti que “eles” falavam
sério sobre a gravidade da questão pastopolense. Era um
ponto sem volta. A qualquer momento os patos poderiam
se vingar de nós, invasores humanos. E se eu desistisse, a
Organização me mataria.
4 SALOMÃO GLADSTONE

Bem, ninguém me disse que seria fácil romper o


monopólio das empresas Petinhas O’Pato na distribuição
dos misteriosos vasos sanitários pastopolenses —
utensílios tão vergonhosos que só são usados na
clandestinidade, motivo pelo qual nunca aparecem diante
das câmeras.
Pois saibam os leitores que, apesar das aparências,
todos os patos, cães, ratos, vacas, cavalos e demais espécies
de Pastópolis precisam fazer suas necessidades, ainda que
muito de vez em quando. É o mais duradouro dos tabus:
impera a lei do silêncio, em que todo mundo finge que não
usa privadas e todo mundo finge que não sabe que todos
os outros usam.
Ninguém admite lucrar com a fabricação dos vasos
— atividade que motivou Petinhas a empreender suas
expedições internacionais em busca de tesouros, a fim de
“lavar” com um pingo de dignidade os lucros sanitários
que já alcançavam 15% do rendimento das Empresas
Petinhas.
Chegamos à alfândega. Como combinado,
entreguei a mala de dinheiro ao guarda, um dos
onipresentes cães caucasianos que desempenham trabalhos
de segunda em Pastópolis. Quando ele abriu a mala para
conferir o dinheiro, saiu um gás cor-de-rosa que se
espalhou rapidamente; enquanto eu nada senti, o guarda
desabou inconsciente sobre o asfalto. Passada a cortina de
fumaça, tomei coragem e fui conferir o pulso do guarda.
Estava morto. Não havia um centavo na mala. Certamente
havia muita coisa que a Organização não podia me contar...
Mas segui o roteiro à risca. Esperava-me um
carrinho tipo anos 50, com a chave na ignição, na garagem
ao lado da alfândega. O mais difícil foi carregar a Esther,
que os homens da Organização já me entregaram amarrada
e sedada — e certamente continuaria nesse estado até que
SANGUE EM PASTÓPOLIS 5

eu a deixasse no gabinete da presidência da Fatalôncio


Enterprises.
É claro que seria impossível quebrar o monopólio
de Petinhas sem algum tipo de aliança local. Esther não
queria ir a Pastópolis. Mas sua presença certamente
interessaria muito a Fatalôncio. Pato de inteligência
privilegiada, doutor em física aos 17 anos, gênio financeiro,
chefe de um conglomerado gigante — não comparável às
Empresas Petinhas, porém um grupo mais moderno e
eficiente — Fatalôncio era o empresário certo para liquidar
com Petinhas nesta cartada decisiva.
Enquanto me aproximava do centro de Pastópolis,
pensei seriamente: por que justamente eu fui escalado para
tarefa tão esquisita? Talvez a Organização pudesse se livrar
de mim facilmente quando achassem que eu sei demais.
Quem sabe eu tenha uma facilidade inata para lidar com a
raça dos irascíveis patos herdeiros de Cordélio Flatus. Ou
pensem que eu entendo muito de sanitários...
Perdido em meus pensamentos, mal notei um
garoto (um patinho) de patinete descendo a ladeira da
transversal direita. Numa fração de segundo, desviei para a
esquerda. O carro subiu na calçada e derrubou um
hidrante. O jorro subiu ao terceiro andar do prédio em
frente, atingindo em cheio uma das janelas voltadas para a
Caixa-forte do Petinhas. Dez segundos depois, exceto pelo
grande helicóptero, toda Pastópolis estremecia com a
explosão sob a Caixa-forte.
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Capítulo 2

O SENSACIONAL ROUBO DA
CAIXA-FORTE

Quem seria essa tal de Esther? Eu sabia tanto na


época quanto sabem vocês hoje. As instruções da missão
eram obscuras. O vice-presidente da Organização me dera
uma fita de cinco minutos, onde uma voz distorcida
eletronicamente fornecia o básico do básico da orientação.
Quando ia deixar o quartel-general, um sujeito que eu
nunca tinha visto me entregou “tudo que eu precisava”. O
decadente Buick preto que troquei pelo carro “made in
Pastópolis” na alfândega. Três valises no bagageiro: uma
fortuna em dinheiro pastopolense, o tal gás venenoso que
matou o guarda, e um tal “material de sobrevivência” que
incluía contratos pastopolenses e vários disfarces. E a
Esther amarrada e adormecida, acomodada no banco
traseiro. Uma última ordem:
— Entregue-a com vida ao Fatalôncio.
Bem, eu não escolhi aquela situação. Entrei na
Organização sem saber no que estava me metendo; bem
que me disseram que anúncio de emprego para “jovens
ambiciosos” é a maior furada... Quando pensaram que eu
sabia demais, arranjaram esta missão maluca. E eu nem
acreditava que Pastópolis existia. Tudo fazia crer que
Esther conhecia muita coisa de Pastópolis e não estava
nem um pouco a fim de encontrar certos “amigos”
emplumados.
O que me consolou no desastre da Caixa-forte foi
ver o povo tão perplexo quanto eu. Foi algo como uma
implosão do Monte Petinhas: o sopé da colina
desmoronou como um castelo de areia; a Caixa, inteira
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como um cofrinho, cedeu uns dez metros para dentro do


solo. Poucos prédios nos arredores foram atingidos, mas as
ondas de choque estilhaçaram todas as vidraças num raio
de 200 metros.
E do sombrio prédio em frente ao qual meu carro
estava amassado e o hidrante esguichava, de cada uma das
50 janelas quebradas saltou a cabeça de um Patralha
curioso. Estava tudo armado.
Enquanto a cidade mergulhava no caos, o heli-
cóptero gigante pairava sobre a Caixa-forte. Quatro
Patralhas-ninjas desceram por cabos ao telhado da Caixa,
abrindo fogo contra os seguranças de Petinhas. Numa
operação rápida, engancharam as janelinhas dos escritórios
ao helicóptero. A um sinal de um dos ninjas, o impossível
aconteceu: o helicóptero desligou as hélices e continuou
flutuando no ar, vencendo a gravidade, cada vez mais alto e
mais alto.
Os quatro ninjas subiram de volta ao helicóptero
pelos cabos, já esticados ao máximo. Quando a Caixa-forte
começou a se erguer do solo, surgiu pela clarabóia o último
recurso para a defesa dos bens quaquilionários: o próprio
Petinhas e sua velha espingarda.
— Voltem aqui! Soltem já minha Caixa-forte!
Soltem meu rico dinheirinho! — grasnava o pão-duro aos
Patralhas que nada ouviam.
Os tiros não tiveram o menor efeito contra o
helicóptero blindado, que continuava subindo em
velocidade crescente levando consigo a Caixa-forte.
De repente, quando a Caixa-forte já estava a dez
metros do solo, o helicóptero religou os motores e tomou
rumo ao norte. Suspensa com relativa facilidade, a
incomensurável carga esbarrava nos edifícios do centro
financeiro enquanto era conduzida a local incerto. Uma
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rachadura lateral espalhava um rastro de dinheiro, o que


ajudava a distrair a população.
Petinhas, desesperado, via sua munição chegar ao
fim junto com suas esperanças. Mas continuou na luta.
Determinado a escalar um dos cabos e alcançar os ladrões
no helicóptero, o velho pato correu a um dos cantos do
telhado — sem contar com um vento lateral que tirou seu
equilíbrio.
Os Patralhas vibravam com o desespero de
Petinhas. O quaquilionário foi derrubado pelo vento e
deslizou para a beira do telhado de sua querida Caixa-forte.
Pendurado por uma só mão, Petinhas gritava por socorro.
Mas erguer-se de volta ao telhado naquela posição era de-
mais para um nonagenário. Bastou que a Caixa colidisse
com um edifício mais alto para que Petinhas se soltasse e
despencasse duzentos metros. Num grito lancinante.
Esperava mais coragem do velho.
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Capítulo 3

TÁ LÁ O PATO ESTENDIDO NO CHÃO

— Irmãos, este é o dia da vitória definitiva! —


bradou o Patralha 176-761 enquanto manobrava
habilmente o helicóptero entre os arranha-céus da Avenida
Cordélio Flatus. Os irmãos — ou nem tão irmãos assim —
que o acompanhavam não continham sua curiosidade pelo
que tinham deixado para trás.
Mas agora não era o momento mais adequado para
especular se o bico de Petinhas entalou no asfalto, pois
finalmente a Força Aérea mostrou algum esforço para
defender a fortuna do pato mais rico do mundo.
Três caças supersônicos abriram fogo contra o
helicóptero. Mostrando incrível habilidade, mesmo com a
carga de três acres cúbicos de dinheiro, o helicóptero se
desvencilhou dos tiros. Mas o revide não tardou. O co-
piloto 176-671 sacou uma espécie de controle remoto do
bolso, apontou para os aviões, pressionou um botão
vermelho e explodiu os caças. As três bolas de fogo caíram
no estádio municipal de beisebol.
O pânico era geral. Sirenes soavam por todos os
lados; multidões corriam a esmo como se fosse o fim do
mundo. Mas naquele momento pouco importava a
explosão no subsolo da Caixa, os edifícios semidestruídos,
o rastro de dinheiro, o fracasso da investida militar contra
os ladrões. O que todos queriam conferir era o destino
final do velho Petinhas.
— Onde estooooou...?
Finalmente Esther abriu os olhos. A dose de
sedativo foi trabalho de profissional: nenhum efeito
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colateral observável. Ela ainda estava amarrada, escondida


atrás dos bancos dianteiros do apertado carro pastopolense
por medida de segurança. Para me proteger do esguicho do
hidrante quebrado, eu me sentava no banco dianteiro
direito.
— Bem-vinda a Pastópolis, Esther.
— O quê?????
Em cinco segundos Esther se remexeu um pouco,
e de alguma forma misteriosa, conseguiu escapar das
cordas e saltar para o banco traseiro. Ela rosnou:
— Quem é você? Como você chegou aqui? Quem
te indicou o caminho de Pastópolis? O que veio fazer aqui?
— Ei, um momento, Esther! Sou eu que faço as
perguntas por aqui.
Quando viu que eu levei a mão direita à tranca da
porta, Esther segurou meu pescoço e encostou uma gélida
Magnum 44 na minha nuca.
— E como é que você descobriu o meu nome
verdadeiro, seu canalha?
Enquanto a histeria tomava Pastópolis, lá estava eu
sob a mira de um trabuco que eu não sabia se era de amiga
ou de inimiga. Mas o que me preocupava é que a
Organização me incumbiu de entregar Esther com vida ao
Fatalôncio. Se ela não estourasse meus miolos naquele
exato momento, meu chefe o faria mais tarde.
Mantive o sangue frio, pensando no que dizer,
quando de repente ouvi um forte ruído de passos. Do
prédio misterioso saíram rapidamente uns 150 Patralhas,
que corriam o mais que podiam rumo à Avenida Cordélio
Flatus.
— Ei, o que é aquilo? Parece que armaram uma
festinha para a nossa chegada... — Esther apertou a arma
contra a minha nuca — Vamos ver o que é. Abra a porta
SANGUE EM PASTÓPOLIS 11

lentamente, mantenha as mãos onde eu possa vê-las, não


tente nenhum truque, e vamos saindo.
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Capítulo 4

O DIA MAIS NEGRO DA HISTÓRIA DE


PASTÓPOLIS

— Hoje Pastópolis voltou a ser nossa!!!!! Glória


aos cães caucasianos!!!!! Pato bom é pato morto!!!!! —
bradava o Patralha Intelectual, empoleirado na cabeça da
estátua do fundador Cordélio Flatus.
— Pato bom é pato morto!!!!! — repetia a mul-
tidão de Patralhas, engrossada por centenas e centenas de
“populares”, todos legítimos cães caucasianos.
Muitos séculos antes da ocupação dos patos, as
terras da atual Pastópolis eram ocupadas por tribos de cães
caucasianos — aqueles cachorros antropomorfos de
focinho preto e pele “cor da pele” que compõem 80% da
população local. A invasão dos patos do Norte foi lenta e
gradual: começou com os campos de pousada dos clãs
nômades, mas uma série de golpes determinou o
assentamento definitivo dos patos liderados por Cordélio
Flatus.
— Era só o que faltava: insurreição dos Patralhas
— resmungou Esther enquanto me puxava para o local
onde se estendia o corpo de Petinhas.
A fundação de Pastópolis dissolveu a identidade
política dos cães na margem sul da Baía de Pastópolis. Os
cães, acuados, se reuniram em torno da aldeia que viria a se
tornar Cinópolis (a cidade dos cães). Temeroso do
explosivo desenvolvimento econômico de seus rivais, o
Exército de Pastópolis comandado por Cordélio Flatus III
promoveu a invasão e saque de Cinópolis, operação
financiada pelo então jovem comerciante Petinhas O’Pato.
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— Só acredito vendo! — Esther, ainda segurando


meu braço, abria caminho entre os repórteres (por
coincidência, Petinhas caíra exatamente em frente à sede de
seu próprio jornal A Pastada) e a multidão perplexa e
angustiada. Nenhuma ambulância, bombeiro ou policial à
vista.
Com o fim de Cinópolis, milhares de cães cau-
casianos emigraram para Pastópolis, onde começaram a ser
explorados como mão de obra barata enquanto a família
Pato assumia postos de comando. Os partidos
nacionalistas caninos são proscritos, poucos cães aceitam
participar da política oficial dos patos, a imprensa acoberta
uma série de conspirações envolvendo cães e patos
dissidentes, caem no esquecimento vários atentados contra
os líderes caninos clandestinos.
Chegamos a dois metros do corpo. Quando Esther
se certificou de que Petinhas se encontrava sem vida, caiu
de joelhos num pranto convulsivo. Por um momento ela
me largou. Mas naquela cena, Esther não disfarçava que era
fortemente ligada ao Petinhas.
Entre soluços, Esther finalmente notou alguém na
multidão, do outro lado do círculo em torno do defunto.
Num salto, ela me puxou e saímos correndo, atropelando a
todos. Em desabalada carreira no meio da Avenida
Cordélio Flatus interditada, um sujeito gordo nos perse-
guia. Ele sacou uma espécie de pistola de ficção científica e
acertou um raio laser incandescente na perna direita de
Esther. Ela caiu, desabando seu corpo sobre o meu.
Olhamos para trás. Coronel Contra à paisana brandia a
pistola:
— Alvin Blake, Esther Altman, vocês estão presos
em nome da lei!
14 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 5

ENCERRAMENTO DA OPERAÇÃO CAIXA-


FORTE

Indiferentes ao pranto de uma cidade, os Patralhas


seguem seu rumo, flutuando no ar com sua carga
quaquilionária. Sentiam-se autores da suprema vingança de
um povo.
Dizem os militantes da causa canina-caucasiana
que tudo começou com os primeiros assentamentos
permanentes de patos no território então dominado pelos
cães; naquele tempo ainda havia algum entendimento entre
os dois povos. O explorador Cordélio Flatus teria se
apaixonado por Begônia Beagle — uma paixão proibida,
pois pelos costumes de cães e patos o acasalamento entre
espécies diferentes tem sido castigado com execuções
cruéis.
O caso é descoberto pelos cães. Impossibilitado de
consumar sua relação com Begônia, Cordélio reúne seus
companheiros para golpear a conspiração dos conselheiros
caninos: Begônia toma conhecimento de que trinta anciãos
da comunidade dos cães se reuniriam secretamente num
barco para decidir o que fazer com aquele “pato
inoportuno”.
A pequena tropa de Cordélio Flatus invade o barco
e massacra todos os ocupantes. No retorno, enterra seu
troféu de guerra — a cabeça de Apolônio Beagle, pai de
Begônia — no pátio da aldeia dos patos e toma posse do
território: naquele momento é fundada a cidade de
Pastópolis.
Chocada com o assassinato de seu pai, Begônia se
separa de Cordélio e toma rumo desconhecido; o resto da
SANGUE EM PASTÓPOLIS 15

família Beagle parte para o contra-ataque. No entanto, a


defesa dos patos é muito forte: cerca de 50 mil cães
caucasianos morrem na Guerra de Independência de
Pastópolis. Os cães fogem para as terras menos férteis na
margem norte da Baía, onde fundam a cidade de Cinópolis.
Passam os séculos; Cinópolis se torna um im-
portante centro econômico sob o comando da família
Beagle. Os patos mal contêm sua inveja. A confusão
causada por uma série de governos tímidos e corruptos
diminui seu ímpeto expansionista, até que uma jogada polí-
tica dos nacionalistas pastopolenses conduz o velho
Cordélio Flatus III (neto do fundador) ao Ministério da
Defesa.
Cães caucasianos remexem velhas feridas,
prometendo vingança contra os patos invasores. Pastópolis
fica de mãos atadas. O jovem comerciante Petinhas O’Pato
se estabelece na cidade e propõe a Cordélio III financiar a
invasão e pilhagem de Cinópolis.
Num ataque-surpresa, Cinópolis é arrasada em
apenas cinco dias. Pastopolenses agora ocupam a totalidade
do lado norte da Baía de Pastópolis; os lucros de Petinhas
são astronômicos. A família Beagle, dominante em
Cinópolis, perde seus bens e suas ramificações se espalham
pelo mundo. Um grupo toma o caminho do crime, dando
origem aos famosos Irmãos Patralha.
Enfim, para muitos cães caucasianos, o tesouro de
Petinhas reunia tudo que lhes fora roubado por séculos de
ocupação dos patos. Sim, o roubo tinha motivação política:
ninguém teria como gastar tanto dinheiro sem levantar
suspeitas. Mas o que mais chocou os patos foi finalmente
se dar conta de que o ouro da Caixa-forte era tudo em que
Pastópolis se apoiava. Quando o helicóptero ergueu o
velho prédio blindado do solo, era como se a cidade fosse
arrancada pela raiz...
16 SALOMÃO GLADSTONE

Por isso, foram em vão os últimos esforços mili-


tares para deter o helicóptero dos Patralhas. Com a morte
de Petinhas, ninguém arriscava especular quem seria o
legítimo dono da fortuna. Nenhum dos enferrujados
mísseis do Exército pastopolense acertou o alvo. E o
contra-ataque dos Patralhas, com o controle remoto mis-
terioso, era sempre fulminante.
Em alto mar as Forças Armadas nada poderiam
tentar. Se a Caixa fosse atingida, o dinheiro não seria
facilmente recuperado. Mas não foi para fugir dos mísseis
que os Patralhas saíram pelo oceano. Eles tinham um
destino certíssimo: uma ilha deserta fora dos limites de
Pastópolis.
O helicóptero baixou suavemente as toneladas da
Caixa-forte numa clareira de área suficiente. Mas a ilha não
era exatamente deserta. Lá um rosto conhecido já os
esperava:
— Bom trabalho, rapazes — disse Maga
Magalógica.
SANGUE EM PASTÓPOLIS 17

Capítulo 6

REI MORTO, REI POSTO

Detidos na delegacia central de Pastópolis,


esperamos o fim do luto oficial para sermos interrogados
por Muckey. Muito a contragosto, o famoso dublê de pop-
star e investigador aceitou o convite para comparecer ao
funeral de Petinhas — mesmo sabendo que o falecido
quaquilionário nunca lhe dera a menor pelota.
Quem sabe aquele interrogatório nos esclarecesse
alguns mistérios: o que tinha Esther a ver com Petinhas?
Por que realmente fomos presos enquanto os Patralhas
estão à solta? Por que Esther não usou sua Magnum 44
contra Coronel Contra? O que fizeram com meu carro
amassado no hidrante? Por que o Coronel nos conhecia de
nome e sobrenome?
É claro que Esther tinha muitas destas respostas,
mas sua situação era semelhante à minha: se abrisse o bico,
morreria.
— Não me fale em bico — resmungou Esther,
tentando dormir na cela vizinha.
Naquela noite, quase toda a família Pato já estava
mobilizada em torno dos ritos mortuários. Muitos parentes
distantes e autoridades estrangeiras se deslocavam a
Pastópolis para assistir ao enterro. No entanto, o pranto
convulsivo dos cidadãos comuns não era acompanhado
por todos os sobrinhos de Petinhas. Especialmente em se
tratando da Vagarida.
Pilotando seu carrinho cor-de-rosa, Vagarida se
dispusera a atravessar a Cordilheira Negra e dar a má
18 SALOMÃO GLADSTONE

notícia a Dinho, Binho e Quinho no acampamento dos


campistas juniores. Seus planos eram outros:
— É chegado o momento de tirar aqueles três
pentelhinhos da jogada. Em Pastópolis, até os postes
sabem que Ronald é o primeiro na linha sucessória do
Petinhas, e receberá a maior parte da fortuna. E eu não
tenho direito a um níquel sequer! Eu simulo um acidente,
mato os três sobrinhos, me caso com Ronald e serei esposa
de um quaquilionário! Rá, rá, rá, rá, rá!
E na Rádio Pastópolis seguia com a melodia fúne-
bre enquanto o sarcófago de Petinhas não descia ao solo.
Três horas da manhã. Morriam as últimas chamas
da fogueira dos campistas juniores naquela madrugada
morna. Sob a escassa luz do luar, Vagarida estacionou no
alto de uma colina e examinou o terreno:
— Esses campistas escolheram o pior lugar
possível para acampamento. Basta que eu desprenda uma
daquelas pedras do alto da montanha e a pedra acertará o
acampamento como uma bola de boliche...
Vagarida desceu a colina em ponto morto para não
chamar a atenção, pegou uma pá no banco de trás do carro
e subiu a montanha a pé, caminhando entre as árvores. Ela
mal enxergava um palmo diante do nariz e não se dava
conta dos riscos, mas a febre do ouro a tudo superava.
Menos aquele enorme urso cinzento que se pôs no meio
do caminho.
O urso deu um urro macabro. Vagarida tentou
espantá-lo usando a pá, mas só conseguiu enfurecê-lo mais
ainda. Apavorada, Vagarida saiu correndo montanha
abaixo. O urso a perseguiu com fúria. A pá escorregou das
mãos da namorada de Ronald; ela tropeçou e rolou pelo
penhasco.
O urso continuou a perseguição. Os escoteiros
ouviram os urros e foram ver o que era. O chefe dos
SANGUE EM PASTÓPOLIS 19

campistas juniores espantou o urso com uma tocha e


encontrou Vagarida com as penas ensangüentadas e se
contorcendo de dor:
— Vagarida, o que você está fazendo aqui?
Um helicóptero da polícia Montada, chamado por
um foguete sinalizador, levou Vagarida para o Hospital
Memorial Cordélio Flatus III. Resultado dos exames: duas
costelas fraturadas e escoriações nas pernas. Desconfiado,
o cirurgião-chefe Romeu Pato pediu novos exames e
descobriu o que ninguém esperava:
— Vagarida, a senhorita teve algum encontro
íntimo recentemente?
— Claro que não — ela mentiu.
— De qualquer forma, eu lamento informar que a
senhorita abortou um ovo fecundado. Meus pêsames.
20 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 7

RIGOR MORTIS

Até Ayrton Senna teria inveja da fila de populares


que se formou para as últimas homenagens a Petinhas.
Dentre os 600 mil habitantes de Pastópolis, compareceram
ao velório justamente os 95% que tinham alguma homena-
gem a prestar. A oposição não aparecia nem para fazer
média. Muito menos agora que o império Petinhas
apodrecia junto com o corpo do velho pato.
Mas na ala da Família Pato no salão do Conselho
Municipal, onde o corpo era velado, ouvia-se um
murmúrio incômodo: não se sabe como, mas a notícia de
que Vagarida abortara ovo de pai desconhecido já era
comentada à boca pequena entre uma crise de choro e
outra especulação sobre o destino do testamento de
Petinhas.
Ninguém se arriscava a pôr em julgamento a
envergadura moral de Vagarida — ainda. Bem conceituada
como agregada da família Pato, a única que a odiava
secretamente era Vovó Ronalda. Todos sentiam que a
matriarca da família julgava que Vagarida lhe roubara seu
querido enteado Ronald.
Centenária, senil e doente das pernas, Ronalda foi
das últimas a comparecer ao velório. A cadeira de rodas era
mal e mal empurrada pelo decrépito Gastolino.
— O que aquela velhota aleijada tá fazendo aqui?
— perguntaram Naná, Nené e Nini, que já nem
reconheciam Ronalda.
SANGUE EM PASTÓPOLIS 21

— Calem-se! Respeitem a Vovó Ronalda —


resmungou Winie, que tomava conta das garotinhas
enquanto Vagarida permanecia no hospital.
Ao mesmo tempo, todos silenciaram seus palpites
maledicentes em consideração à dor da velha fazendeira.
Ronald cumprimentou sua querida vovó calorosamente,
mas em seu íntimo só tinha em vista um objetivo:
recuperar a fortuna de Petinhas, custasse o que custasse.
22 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 8

O PACTO SATÂNICO DA MOEDINHA

— Excelente trabalho, Patralhas! Juntos


conquistaremos o mundo! — disse Maga Magalógica,
montada em sua vassoura voadora, contornando a Caixa-
forte.
— Obrigado, Maga — completou, modesto, 176-
761 — Na verdade, nem nós imaginávamos que seria assim
tão fácil...
— Nós já tínhamos dentro da Caixa-forte um
comando pronto para neutralizar o Petinhas e os guardas
— explicou 176-671 — Mas quando aqueles humanos
invasores derrubaram o hidrante, o jato d'água pressionou
o detonador e tivemos que antecipar a operação em meia
hora.
Os corvos de estimação pousaram nos ombros da
Maga. Já em terra firme, ao lado do helicóptero, ela
perguntou, desconfiada:
— E foi muito difícil se livrar do velhote? Há
muitos anos eu já teria dado cabo da vida do
quaquilionário, se ao menos pudesse... Para onde foi a lenda
do corpo fechado de Petinhas?
— Deve ser das coisas estranhas que vêm acon-
tecendo em Pastópolis... — filosofou 176-167 — Mas
vamos ao que interessa: como fica nosso acordo?
— Ah, é claro, queridos Patralhas. Eu prometo
que vocês terão lugar de honra na Nova Ordem
pastopolense. Para isso, só preciso da Moedinha da Sorte.
Vamos, rapazes...
SANGUE EM PASTÓPOLIS 23

Maga entrou em transe. Olhos fechados, braços


esticados para frente, começou a caminhar pelos
corredores do setor administrativo da Caixa-forte,
ignorando os arquivos e bebedouros caídos pelo caminho.
Ela já sabia onde encontrar a preciosa Moedinha. Cinco
Patralhas foram atrás.
Ao se deparar com a porta blindada da sala da
Presidência, Magalógica não recuou: passou através da
porta como um fantasma. Enquanto isso, os Patralhas
tiveram um bom trabalho para arrombar a porta. Quando
conseguiram entrar, encontraram a Maga fazendo passes
mágicos diante do grande quadro de Cordélio Flatus.
Um brilho estranho emanava do corpo da Maga.
Num gesto ríspido, ela abriu a mão direita e soltou uma
bola de fogo contra o quadro. A explosão abriu um buraco
na parede, revelando um pequeno “cofre anti-magas”.
— Vamos lá arrombar o cofre, manos! — exaltou-
se o Patralha Azarado.
— Cale-se, idiota — resmungou o provecto Primo
001.
O brilho aumentou, em ondas coloridas, e uma
contorcida Maga começou a soltar raios para todos os
lados. Os Patralhas se encolheram atrás da mesa executiva
de Petinhas. Com seu enorme poder despertado, Maga
introduziu lentamente o braço dentro do cofre, pegou a
moeda e tirou de volta o braço. Os raios baixaram, Maga
saiu do transe.
— Patralhas, aqui estamos finalmente todos
juntos: vocês, eu, a fortuna de Petinhas... — abriu a mão
lentamente, para que todos vissem — E a Moedinha da
Sorte!
Na mão de Maga, a moeda era envolvida por uma
crescente aura luminosa. Os Patralhas se aproximaram.
24 SALOMÃO GLADSTONE

— Dêem uma boa olhada. Dentro em breve esta


moeda dissolver-se-á nas lavas do Vesúvio. Terei poderes
supremos sobre o céu e a terra. Serei a pata mais poderosa
do Universo! Rá, rá, rá, rá, rá!
Dito isso, a moeda começou a soltar ofuscantes
raios multicoloridos que atravessaram as paredes da Caixa-
forte, cortando a escuridão do céu. O fenômeno mágico
foi observado a milhares de quilômetros. Em Pastópolis,
alguns notaram, mas poucos interpretaram. Muckey, muito
contrariado por ter que comparecer ao velório, nada perce-
beu. Ronald notou os lampejos azuis, amarelos e púrpuras
que se refletiam no caixão laqueado de Petinhas.
“Maga Magalógica!”, ele pensou. Suas penas se
eriçaram. Ronald sabia o que deveria fazer.
— Com licença, com licença...
Ronald tentava manter a calma enquanto abria
caminho na ala dos parentes rumo à saída. Ele não se
importava mais em ficar queimado diante da família por
abandonar o velório de seu tio. Para ele, nada mais tinha
sentido, pois o dinheiro, a família e Pastópolis estavam à
beira do buraco negro.
SANGUE EM PASTÓPOLIS 25

Capítulo 9

O VINGADOR ESTÁ DE VOLTA

— Até que enfim você chegou, Muckey. Já


estávamos preocupados com sua demora — disse Coronel
Contra, à porta da sala de interrogatório.
— Não foi fácil enfrentar a fila do velório do
Petinhas. Será que esse povo não tem nada melhor a fazer?
— reclamou Muckey — E o pior de tudo foi passar pela
ala VIP e tomar a maior vaia da Família Pato, como se eu
tivesse algo a ver com isso. Nunca fui tão humilhado em
toda a minha vida...
— Já imagino a cena, Muckey. Mas deixa pra lá.
Os patos vão ver só uma coisa.
Ao ouvir o diálogo insólito, pensei com meus
botões: “Há algo de podre...”
— Bem, vejo que a caça de ontem foi boa.
Lamento não ter interrogado esse lindo casalzinho antes —
Muckey riu entre os dentes.
— Alvin Blake, Esther Altman — Contra passou
nossos relatórios a Muckey — vocês já devem conhecer
nosso investigador Muckey Mouse. Vou deixar vocês três a
sós até o fim do interrogatório.
— E acho bom falarem tudo, pois já sabemos o
suficiente para fazê-los mofar na cadeia!
O Muckey ou a Esther, um dos dois estava ble-
fando. Aquelas algemas esmagavam meus pulsos...
— Primeiro de tudo — disse eu — exigimos o
básico: o direito a um advogado e saber exatamente do que
estamos sendo acus...
26 SALOMÃO GLADSTONE

— Cale-se, seu verme! — Muckey acertou uma


coronhada em meu maxilar — Se bancar o engraçadinho,
vai ter tempo de sobra para fazer perguntas na cadeira
elétrica. Mas como você é novo por aqui, é preciso explicar
que ninguém tem direito a coisa alguma nesta delegacia
quando não se paga a devida fiança...
Pastopolenses desgraçados! O que fizeram então
com a mala de dinheiro no meu carro batido? O que eu
estava fazendo na delegacia? O que Esther sabia que eu
não sabia? O que fez a polícia diante do roubo da Caixa-
forte? O quê? O quê? O quê?
— ...e já estávamos procurando sua amiguinha...
“Amiguinha?” Nunca vi Esther mais gorda!
— ...desde que enquadramos seu contato Fred
Gallus, também conhecido por Honório “Kentucky”
Bastos, que não hesitou em colaborar com a polícia.
— Vocês pegaram o Kentucky????? — estrilou
Esther.
— Parece que só você é que não sabia, Esther.
Que a terra seja leve ao Fred...
Comecei a pensar que abrir o bico (se bem que
pegava mal falar em “bico”) seria um péssimo negócio.

*****
Enquanto isso, o carro de Ronald — adaptado
secretamente para as operações de Superbicudo —
disparava pelas estradas a 350 por hora. Ao longo da
Rodovia Litorânea ele procurava, mas já não via os raios
multicoloridos de Maga Magalógica.
— Eles só podem estar numa ilha em alto mar.
Usando o mapa de seu computador de bordo e seu
nariz farejador eletrônico, ele rapidamente localizou a ilha
SANGUE EM PASTÓPOLIS 27

onde se encontravam Maga, os Patralhas e o tesouro de


Petinhas. Ninguém notou quando Ronald vestiu seu
uniforme de Superbicudo e ativou os Pneus Hiperinflantes
em seu carro. Com os balões ativados sob o chassi, o carro
pôde dirigir sobre as águas.
Duzentos quilômetros depois, Superbicudo avistou
a Caixa-forte no centro da pequena ilha. Mas os Patralhas
também tinham binóculos infravermelhos e estavam
montando guarda sobre a fortuna de Petinhas. Não sem
estranhar a presença de um carrinho flutuando sobre as
águas, 176-176 exclamou:
— O pentelho do Superbicudo nos encontrou!
Fogo nele!
A bala de canhão atingiu o alvo com precisão
absoluta. Os Patralhas comemoraram quando o carro
começou a afundar, levando consigo o heróico
Superbicudo.
28 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 10

UMA FUGA HUMANAMENTE POSSÍVEL

— Como disse? O prefeito foi seqüestrado? Não


admito seqüestros sob minha jurisdição! Vou mandar meus
melhores agentes resolver já esse caso.
Coronel Contra rosnava ao telefone como um cão
danado: ele considerava a maior das afrontas que o prefeito
Omar Suíno tivesse acabado de ser seqüestrado em pleno
centro de Pastópolis. Justamente o Omar Suíno, que a
polícia apoiava incondicionalmente — ou algo muito
próximo disso.
Na verdade, depois de trinta anos de reeleições
sucessivas como candidato oficial de Petinhas, Suíno fez
uma ou duas declarações consideradas simpáticas ao
movimento dos cães caucasianos (a maioria oprimida de
Pastópolis) e ficou desprestigiado diante do velho pato.
Como o partido já tinha fechado questão em torno de mais
uma candidatura à reeleição, Petinhas saiu com um saco de
dinheiro, fundou um novo partido e lançou a si mesmo
como candidato.
Com esta virada de mesa, o prefeito ganhou a
simpatia silenciosa da polícia — 85% de cães caucasianos
— insatisfeita com o absoluto desprezo de Petinhas pela
corporação, apesar de o magnata ter sido o cidadão mais
bem protegido de Pastópolis. Agora que Petinhas estava
prestes a ser enterrado, Suíno bem poderia rasgar a fantasia
e garantir alguns direitos aos cães vilipendiados.
Contra abriu a porta da sala, interrompendo o
interrogatório. Trocou meia dúzia de palavras com
Muckey; logo dois carcereiros estavam nos jogando de
volta ao fundo das celas.
SANGUE EM PASTÓPOLIS 29

— Alvin, Esther — explicou Muckey — agora


vamos resolver outro caso; quando voltarmos,
reiniciaremos o interrogatório. E acho bom vocês
começarem a cooperar conosco e entregar toda a verdade,
se é que sabem o que é bom pra vocês...
Quando Contra e Muckey nos viraram as costas,
Esther comentou por trás da grade que nos separava:
— Eu sabia que esse Muckey não passa de um
sanguinário. Não importa que a gente fale a verdade; de
qualquer jeito, vamos ser torturados até a morte, como foi
o pobre Fred Gallus.
— Não sei se devo acreditar no que você diz.
Afinal, eles perseguiam a você, não a mim... Alguém está
me escondendo muita coisa.
— Você não percebe, Alvin, que estamos no
mesmo barco? Somos dois alienígenas presos ilegalmente.
A polícia não tem o menor interesse em assumir o ônus de
nos entregar à Justiça, pois nossa presença está desestabili-
zando toda a ordem de Pastópolis.
— Ora, que bobagem!
— Veja tudo que aconteceu desde que chegamos!
O acidente de carro, o roubo da Caixa-forte, a morte do
Petinhas, o aborto da Vagarida, e agora este seqüestro... O
que vem depois? Nada disso poderia acontecer se não
fosse por nossa simples presença em Pastópolis!
Ao notar minha expressão incrédula, Esther
encontrou uma folha de jornal num canto da cela, tirou um
pedaço do tamanho de um cartão postal, amassou-o e
atirou a bolinha em minha direção.
— Alvin, guarde essa bolinha em sua mão por dez
segundos.
30 SALOMÃO GLADSTONE

Não sei por que segui uma instrução tão biruta.


Mas quando abri a mão, quase caí de costas: como que por
mágica, o papel tinha virado pó!
— Essa é apenas uma pequena amostra do estrago
que nossa estrutura molecular humana pode fazer em
Pastópolis. Da mesma forma que o papel se transforma em
pó, tudo em nossa volta é sutilmente submetido a uma
reação em cadeia conduzindo ao desequilíbrio crescente.
Em resumo: estamos ferrados!
— E o que espera que eu faça?
— Nós dois temos que fugir desta carceragem e
voltar para o mundo dos humanos.
— Você está brincando. Minha missão não está
cumprida! A Organização vai me matar se eu voltar de
mãos vazias.
— Pelo menos vai ser uma morte um tanto menos
cruel que a de Pastópolis... Ei, tive uma idéia. Você está
com vontade de fazer xixi?
— Hein?
— É, Alvin! Experimente fazer xixi na parede para
ver o que acontece.
Sem alternativas, esperei um cochilo do carcereiro
para urinar sobre a parede que nos separava da rua.
Inacreditável. Alguns respingos de xixi foram suficientes
para abrir um enorme buraco na parede, como se fosse
ácido sulfúrico sobre papelão!
Com o resto do xixi, dissolvi uma parte da grade
que me separava de Esther. Ainda estava perplexo, mas foi
a fuga mais fácil da História... Quando pusemos os pés na
rua, deparamo-nos com uma limusine de dez metros de
comprimento em frente à qual se postavam quatro granda-
lhões impecavelmente vestidos, e no meio da fila, seu
maximilionário patrão:
SANGUE EM PASTÓPOLIS 31

— Bem-vindos à Pastópolis verdadeira, amigos —


disse Fatalôncio.
32 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 11

A SETE PALMOS

— Onde diabos está o Pato Ronald? — grasnou


Odorico von Pato, o parente mais idoso a manter sanidade
mental para o comando dos ritos fúnebres.
— Sei lá; acho que ele foi comprar cigarros e não
voltou — disse a secretária de Petinhas.
— São cinco da manhã; se Ronald não aparecer de
volta em cinco minutos, vamos enterrar o Petinhas sem ele,
às sete em ponto.
— Que pena. Justo o sobrinho preferido do
Petinhas — lamentou um agregado da família.
— Cadê a Vagarida?
Vovó Ronalda, que quase não falara com os
parentes durante o velório, de repente levantou a voz para
lembrar um detalhe altamente inconveniente: a velhinha
não poderia saber que sua querida Vagarida estava
internada, em lenta recuperação depois da perda do ovo.
— Eu estou perguntando, gente: cadê a Vagarida?
Não me digam que ela sumiu para sair dando por aí como
sempre.
Toda a família Pato ficou vermelha de vergonha;
não tiveram outra alternativa senão mandar Gastolino
empurrar a cadeira de rodas e tirar a provecta matriarca de
cena para algumas “explicações particulares”.
Uma coisa era certa: ninguém deixaria barata a
ausência de Ronald no enterro. Especialmente por se tratar
do principal candidato à herança de Petinhas. A mesma
herança que Ronald, digo, Superbicudo, naquele exato
momento, lutava para recuperar.
SANGUE EM PASTÓPOLIS 33

O tiro dos Patralhas acertou em cheio o carro


flutuante, mas Superbicudo teve apenas o tempo
necessário para vestir a máscara de mergulho e descer às
profundezas do oceano. De fato, foi uma pena que o
tradicional carrinho de Ronald tivesse aquele fim.
— Grandes coisas — pensou Ronald. — Daqui a
pouco eu serei o dono de vinte fábricas de automóveis.
Com seu minifoguete de mão, Superbicudo venceu
com facilidade os dois quilômetros submarinos que o
separavam da ilha dos Patralhas. Ninguém notou quando
Superbicudo se esgueirou entre a vegetação e começou a
escalar a parede da Caixa-forte com suas botas de
hipersucção.
Foi simples para Superbicudo neutralizar com sua
pistola de gás paralisante o Patralha que vigiava no telhado.
Superbicudo abriu a clarabóia do salão de convenções,
entrou na Caixa-forte e começou a caminhar pé ante pé
nos corredores que ele tão bem conhecia. No gabinete de
Petinhas o super-herói finalmente encontrou Maga
Magalógica, fazendo passes mágicos diante de seu caldeirão
fumegante, ainda envolvida no transe dos rituais de
conexão astral que precederiam a fusão definitiva da
Moedinha da Sorte.

*****
Quando Esther se deparou com Fatalôncio, deu
um passo para trás e pensou em fugir. Não teve tempo: os
quatro seguranças do zilionário conseguiram agarrá-la a
tempo e carregá-la pelos braços e pernas. De alguma
forma, Fatalôncio sabia que eu não fugiria.
— Então é você a famigerada Esther Altman,
também conhecida como Cassandra King ou Joanne
34 SALOMÃO GLADSTONE

Townshend ou Florence Mackey... Encantado em


encontrá-la, minha cara.
— Você não vai conseguir coisa alguma de mim,
Fatalôncio! — esbravejou Esther.
— Ainda bem que vocês fugiram a tempo da
delegacia. Tenho grandes planos para vocês dois. Queiram
entrar em meu humilde automóvel; vocês precisam ver
algumas coisas...
— Só por cima do meu cadáver!
Fatalôncio, mantendo a calma habitual enquanto
os seguranças continham Esther, sacou um papel do bolso,
desdobrou-o e o segurou à altura dos olhos da humana
invasora. Só consegui perceber que era o testamento
desaparecido de Petinhas.
Imediatamente Esther se acalmou e, cabisbaixa,
entrou no carro; depois entramos eu e os quatro
seguranças. Em cinco minutos estávamos no edifício-sede
do conglomerado empresarial de Fatalôncio.
— Meus caros humanos, eu tenho que admitir:
minhas empresas são a maior lavanderia de Pastobônus do
Universo!
Talvez Esther estivesse certa a respeito da bagunça
que se criava à nossa volta. Pensei com meus botões que
muito ainda faltava a ser esclarecido...
SANGUE EM PASTÓPOLIS 35

Capítulo 12

NAS ENTRANHAS DO IMPÉRIO DE


FATALÔNCIO

— Explique-nos tudo de novo, Fatalôncio —


interrompi o discurso do magnata — Quero ver se entendi
a transação.
— Pois bem, Alvin: você sabe por que o falecido
Petinhas guardava todo o seu dinheiro num lugar só?
Porque toda aquela fortuna simplesmente não tinha curso
legal em Pastópolis.
Notei que Esther mal acreditava que tivesse sido
enganada por Petinhas por todo aquele tempo. Não só ela,
por sinal... Fatalôncio prosseguiu:
— Tudo começou quando Petinhas financiou a
invasão de Cinópolis e embolsou o espólio de guerra,
tendo lucros fabulosos. Sem ter como converter legalmente
seu tesouro em dinheiro de Pastópolis, Petinhas virou a
mesa e começou a emitir moedas de ouro com sua própria
efígie. Para que esse dinheiro pudesse circular sem que o
velhote perdesse seus famosos mergulhos na Caixa-forte, o
império Petinhas começou a fazer seus pagamentos em
Pastobônus, títulos com taxa flutuante que logo se
tornaram moeda corrente na cidade. Em 1957 o Banco
Central de Pastópolis, preocupado com a privatização da
moeda, fez uma operação enorme e comprou todos os
Pastobônus.
— Mas isso deve ter feito disparar o valor dos
títulos, beneficiando o Petinhas... O governo aceitou isso
numa boa?
— Tem razão, Esther; Petinhas continuou
emitindo seus Pastobônus, que passaram a valer o triplo no
36 SALOMÃO GLADSTONE

mercado. Nada teria sido possível se Petinhas não tivesse


seus amiguinhos no poder...
Dito isso, Fatalôncio pegou um controle remoto e
apontou para a parede. Uma porta secreta se abriu: diante
de nossos olhos se encontrava, amordaçado e envolto em
correntes, ninguém menos que o recém-seqüestrado
prefeito Omar Suíno!
— Vamos, excelência — ordenou Fatalôncio
enquanto tirava a mordaça do prefeito — Explique para
nossos “convidados” humanos o que você tinha com o
Petinhas.
— Desde o primeiro mandato eu fui eleito para
defender os interesses do Petinhas. Para aprovar a compra
dos Pastobônus, eu tive que dissolver o Conselho
Municipal duas vezes, até que Petinhas comprou os votos
dos conselheiros um por um. Sem que entrasse um centavo
na Caixa-forte, o valor real da fortuna do Petinhas disparou
da noite para o dia!
Fatalôncio continuou:
— Só que com a operação toda, Pastópolis ficou
de caixa baixo. Sem alternativas, o Banco Central revendeu
todos os Pastobônus a quem pagasse mais... sem querer
saber de onde vinha o dinheiro. Então, através de meus
operadores financeiros, usei os lucros de minhas operações
clandestinas e comprei tudo a preço de banana. Foi a maior
lavagem de dinheiro já vista!
— E os Pastobônus recuperaram seu valor?
— Claro, depois que o Petinhas emitiu 200% de
sua fortuna em Pastobônus...
Eu e Esther só não estávamos mais boquiabertos
com a revelação-bomba que o próprio Omar Suíno.
— Em outras palavras, minhas indústrias só têm
um objetivo: a conversão de dinheiro sujo em Pastobônus
SANGUE EM PASTÓPOLIS 37

e daí em dinheiro limpo que comprará mais Pastobônus e


assim por diante... Virtualmente todos os Pastobônus
acabam sendo lavados pelo meu conglomerado empresarial
e o Petinhas não tinha mais controle sobre o próprio
dinheiro. Enfim, Petinhas morreu me devendo até as
calças... se ele as usasse, claro. Rê, rê, rê, rê, rê...
— Mas se o Petinhas soubesse — perguntei — ele
simplesmente daria um calote e os Pastobônus virariam
lixo...
— Por que é que você acha que os Patralhas
roubaram a Caixa-forte?
Eu e Esther nos olhamos com aquela expressão
“ah, entendi tudo...” Fatalôncio prosseguiu:
— Já trabalhei muito com os Patralhas, mas eles
não passam de um bando de trapalhões. Eles só teriam
uma possibilidade de gastar a grana do Petinhas livremente:
reconstruindo sua tão querida Cinópolis.
— Mas você não apóia a reconstrução de
Cinópolis?
— Nunca botei a menor fé nisso. Afinal, eu sou
um pato. Só não quero me meter com aquela gentalha
insuportável da família Pato... Eu já tinha pronto com os
humanos da Organização um esquema infalível para tomar
o mercado clandestino de vasos sanitários, virar o jogo e
me apossar de vez do ouro da Caixa-forte. Mas a Esther
quase estragou tudo! Eu ia matá-la com minhas próprias
mãos, mas sem a ameaça do Petinhas, tenho outros planos.
Fatalôncio tomou fôlego:
— Alvin e Esther, a cidade está mergulhada no
caos, os serviços públicos funcionam mal e mal, os
Patralhas estão cada vez mais exaltados, e a estas alturas já
há um anel de guardas em torno da fronteira só esperando
que vocês apareçam. Não adianta fugir. Eu lhes ofereço a
38 SALOMÃO GLADSTONE

única saída: quando eu for o dono de Pastópolis, poderei


comprar toda a Polícia para que vocês possam voltar com
segurança ao mundo dos humanos... e quem quer que se
oponha aos meus desígnios será sumariamente eliminado.
SANGUE EM PASTÓPOLIS 39

Capítulo 13

TEMPORADA DE CAÇA AO PATO

Nova ausência inesperada no enterro de Petinhas:


aproveitando-se de uma distração dos parentes, Vovó
Ronalda reuniu forças e empurrou sua própria cadeira de
rodas a um ônibus adaptado para deficientes que passaria
justamente em frente ao Hospital Memorial Cordélio
Flatus III. A velhota deu entrada como paciente, despistou
a todos, e de alguma forma conseguiu acesso ao quarto
particular de Vagarida.
— Então é verdade, sua rameira! Você estava para
botar um ovo!
Vagarida, com a cabeça enfaixada e as duas pernas
engessadas, não acreditava no que via.
— Vovó, não é nada disso que a senhora está
pensando...
— Pois então o que você está fazendo aqui? Vá lá
aos meus parentes no enterro do Petinhas! Alguma coisa
você fez, Vagarida! Justo você não podia me decepcionar, a
noiva de meu patinho preferido...
Num acesso de cólera, Ronalda conseguiu com
dificuldade se levantar da cadeira de rodas e partir para
cima de Vagarida.
— Agora você vai ver qual é o castigo da Família
Pato para agregadas vagabundas!
— Calma, vovó!
Dito isso, Ronalda ergueu seu guarda-chuva como
uma espada, deu um longo suspiro e desabou sobre a
barriga de Vagarida. Mais um sarcófago para o mausoléu
da Família Pato.
40 SALOMÃO GLADSTONE

*****
— Então, como íamos dizendo — continuou
Fatalôncio — a única alternativa para que os Patralhas
gastem a fortuna da Caixa-forte é cobrar um resgate que só
pode ser pago em Pastobônus.
— Quer dizer, como você tem os Pastobônus, o
tesouro vai parar nas suas mãos automaticamente...
— Ainda não. A operação não pode ser feita por
outros que não os legítimos donos da Caixa-forte, a saber,
os herdeiros do Petinhas. — Fatalôncio pegou o
testamento outra vez — Pois eu usei meus agentes secretos
e encontrei a única cópia do testamento. Interessante, não?
— Isto é um absurdo. O velho estava caduco! A
única herdeira é...
— Flora Senteantes, sua eterna paixão dos tempos
da Corrida do Ouro. Aposto que nenhum parente esperava
por isto...
— Todos pensavam que o herdeiro era o Ronald.
— E vão continuar pensando, meus caros!
Dito isto, Fatalôncio acendeu um fósforo e pôs
fogo no testamento. Enquanto o papel ardia, o discurso
continuava:
— Agora que dei fim ao único exemplar do
testamento, Ronald é o primeiro na linha sucessória; em
seguida, em iguais condições, estão Dinho, Binho, Quinho,
Gastoso e Pendinha. Meu objetivo é fazer a família Pato
brigar entre si até que os negócios das empresas do
Petinhas fiquem desgovernados. Nesse ponto, eles não
terão outra saída senão receber umas migalhas em
Pastobônus para que eu seja autorizado a resgatar dos
Patralhas o dinheiro da Caixa-forte.
SANGUE EM PASTÓPOLIS 41

Fatalôncio acendeu um charuto e concluiu


satisfeito:
— Mas quando eu tiver a Caixa-forte, sou eu que
vou dar um calote colossal nos Pastobônus! Os Patralhas e
a Família Pato ficarão pobres, eu tenho o governo em
minhas mãos e Pastópolis será minha!!!!!
— Mas e quanto ao Ronald? — eu e Esther per-
guntamos em uníssono.
— Esta é a sua missão. Matem-no.
42 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 14

A BATALHA DA MOEDINHA

Primeiro, uma explicação sobre o seqüestro do


prefeito Omar Suíno: apesar de não ter muito que fazer no
enterro de Petinhas, o chefe do executivo municipal não
poderia recusar o convite assinado por metade da Família
Pato. Precavendo-se da desordem em que Pastópolis
mergulhava, foi elaborada uma meticulosa operação. Omar
Suíno sairia de sua mansão antes do sol nascer; sua
limusine seria acompanhada por seis viaturas da Polícia
cheias de homens (homens?) armados até os dentes. Na
verdade, a limusine transportava um manequim e o
verdadeiro prefeito estava escondido num fundo falso no
banco de trás de um dos outros carros.
Mas o Fatalôncio parecia saber de tudo na cidade.
Quando o comboio desceu a arrasada Avenida Cordélio
Flatus a meros 50 por hora, uma viatura falsa, idêntica às
outras, esperava na esquina da Avenida Patal. Enquanto o
carro verdadeiro — exatamente aquele onde o prefeito se
escondia — virou à esquerda, o carro falso entrou em seu
lugar. Todos notaram; todos fingiram que não viram nada.
Pelo menos essa era a versão do Fatalôncio.
Pessoalmente, eu já não estava em condições de questionar
coisa alguma, porque o Ronald estava com a cabeça a
prêmio e nós dois fomos incumbidos de executá-lo.
Fatalôncio desenrolou um mapa e espetou um alfinete num
certo ponto:
— Ninguém imaginava que Pato Ronald e a Caixa-
forte estão juntos nesta ilha deserta.
— Como?
SANGUE EM PASTÓPOLIS 43

— Enquanto a cidade inteira só pensava no velório


do Petinhas, pus meus agentes para trabalhar e descobri
que a Caixa-forte foi levada para uma ilhota fora dos
limites marítimos de Pastópolis. Sem querer, os Patralhas
até facilitaram meu plano: aquela ilha já é minha proprie-
dade há muitos anos.
— E como descobriram que o Ronald está lá
mesmo?
— Durante o velório, meus detetives acoplaram
um dispositivo rastreador no Ronald. Eu sei que ele está na
ilha. Não sei onde. Vocês estarão lá em poucas horas.
Fatalôncio abriu outra porta secreta, revelando um
compartimento cheio de armas pesadas, e continuou sua
explicação:
— Se encontrarem Patralhas pelo caminho, usem
estas armas. Não tenham medo. Vocês humanos são
imunes às armas de fogo de Pastópolis e vice-versa. É por
isso que Esther não tinha como usar sua Magnum contra o
Coronel Contra.
Então era por isso que Fatalôncio estava tão
interessado em nossa participação no plano! Mas era de se
desconfiar que nossa missão não seria assim tão fácil.

*****
Enquanto o caixão de Petinhas descia a sete
palmos, cumprimos todos os detalhes do plano: vestimos
perfeitos disfarces de cães caucasianos, pegamos um
ônibus para o cais de Pastópolis Norte, embarcamos num
velho barco de pesca, seguimos a rota estabelecida e
encontramos a ilha.
— Enfim, lá está a velha Caixa-forte...
Os Patralhas nos dispensaram sua habitual
“calorosa” recepção. Fatalôncio falara a verdade: as balas
44 SALOMÃO GLADSTONE

passavam pelo meu corpo como se eu não existisse, não


havia ferimentos, eu nada sentia! O mesmo ocorria com
Esther. Desembarcamos já abrindo fogo, abatendo todos
os Patralhas que se punham em nosso caminho.
Eu tinha no bolso um receptor direcional sin-
tonizado no rastreador do Ronald; o aparelho apitava com
mais força na medida em que nos aproximávamos da
Caixa-forte. Por um segundo cheguei a cogitar que Ronald
tivesse armado todo o roubo apenas para provocar a morte
de seu tio Petinhas e tomar a grana para si. Mas quando
passei pela porta principal da Caixa-forte, tive a intuição de
que a história não era bem essa.
Estava certo. O sinal do receptor estava ficando
fortíssimo; sem Patralhas pelo caminho, usamos lanternas
para procurar Ronald de sala em sala. Enquanto isso, na
sala da presidência, Maga Magalógica conferenciava com
três Patralhas de primeiro escalão:
— Meus queridos, estou de partida para o apogeu
de minha carreira de feiticeira. Nas lavas vulcânicas
derreterei a Moedinha da Sorte e farei o amuleto mais
poderoso deste mundo.
Perguntou um Patralha não identificado:
— E assim poderá cumprir sua parte no contrato?
Maga exibia orgulhosa a moedinha:
— Claro! Trarei Begônia Beagle de volta ao
mundo dos vivos assim que tiver o completo domínio das
forças do Universo. Rá, rá, rá, rá, rá!
Dito isso, Superbicudo saltou de trás de uma es-
tante, brandindo sua pistola de raios:
— Não tão rápido, Maga!
— Hein?
Ouvimos as vozes. O receptor nos indicava que
Ronald estava ali mesmo. Superbicudo fez um disparo
SANGUE EM PASTÓPOLIS 45

certeiro na moeda, exatamente no momento em que


irrompemos à porta da sala. Esther, disposta a matar todos
à sua frente e boquiaberta com as duas presenças
inesperadas, mal notou quando a Moedinha da Sorte foi
projetada em sua direção, caiu em sua boca e desceu
garganta abaixo.
46 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 15

BAIXA NO MUNDO ESOTÉRICO

— Parados aí! Onde está o Ronald? Sabemos que


ele está aqui perto! Se querem continuar vivos, não
banquem os engraçadinhos e confessem!
Superbicudo, consciente de sua verdadeira iden-
tidade, ficou acuado. Maga Magalógica ignorou minha
ameaça:
— Não sei quem é você, mas por todos os diabos,
devolva minha moedinha!
Quando Maga sacou uma daquelas inúteis bombas
de gás e partiu para cima de Esther, abri fogo. Os tiros
rasgavam o peito e trituravam os ossos da Maga. Não
houve magia negra que a salvasse.
O cadáver jazia ainda fumegante no centro da sala
da presidência quando os Patralhas tomaram as dores da
patroa. Apareceram uns quarenta, fortemente armados,
vindos de todos os cantos. Perfilados como num pelotão
de fuzilamento, os Patralhas atiraram e atiraram com todas
as armas que tinham.
Puxei Esther, que ainda sentia a Moedinha da
Sorte caindo em seu estômago, e lentamente nos
aproximamos dos Patralhas. As balas passavam através do
nosso corpo, como se não existíssemos. Intrigados com
nossa imunidade às armas de fogo pastopolenses, os
estúpidos Patralhas continuavam descarregando suas balas
até que sua munição acabasse.
— Agora chegou a nossa vez, Alvin. A bomba! A
bomba!
Superbicudo, antevendo a tragédia, saltou pela
janela e desceu a parede pendurado por uma corda. Na
SANGUE EM PASTÓPOLIS 47

medida que Superbicudo descia, o sinal do receptor ficava


mais fraco, sem que eu entendesse o motivo.
— Afinal, Patralhas, cadê o Ronald?
Ninguém sabia. Só podiam estar escondendo a
verdade, pensei. Tirei do bolso um saquinho cheio de urina
humana e joguei-o no caldeirão da Maga.
— Vamos sair daqui, Esther, ou vamos nos ferrar!
Abrimos caminho entre a debandada de Patralhas
e saltamos no poço do elevador, à espera da maior das
calamidades.

*****
O juiz Décio Coruja não suportava o falecido
Petinhas. Talvez fosse a única autoridade pastopolense que
o rico pato não tivesse no bolso. Debaixo de sua fama de
durão, não foi sem uma indisfarçada sensação de revanche
que Décio reuniu a Família Pato para estabelecer a divisão
dos bens — partindo do pressuposto que os bens viessem
a ser recuperados.
— Minhas senhoras, meus senhores, de acordo
com as investigações por mim coordenadas, lamento
concluir que não foi encontrado o testamento de Petinhas
O’Pato.
Um forte “Oooooh” ecoou pelo Tribunal de
Pastópolis.
— Portanto, segundo as leis de Pastópolis, o
herdeiro universal será o parente mais próximo do falecido,
a saber, seu sobrinho, Pato Ronald.
Os parentes se entreolhavam com um misto de
espanto e revolta. Afinal, Ronald estava sumido desde o
velório. Como a Justiça pastopolense poderia permitir
tamanha falta de consideração?
48 SALOMÃO GLADSTONE

— Pato Ronald será chamado três vezes, com


intervalos de trinta segundos, para a assinatura dos papéis.
Se o herdeiro não estiver presente, a herança será dividida
em partes iguais pelos sobrinhos Dinho, Binho, Quinho,
Gastoso e Pendinha. Em seguida, cuidaremos da herança
da Sra. Ronalda Pato. Pato Ronald, queira comparecer.
Nada.
— Pato Ronald, queira comparecer.
Nada. O Tribunal mergulhava no silêncio.
— Pato Ronald, queira comparecer.
— Presente!
Naquele momento, Ronald surgiu na porta do
Tribunal, sob a surpresa de todos e a raiva mal contida dos
primos e dos sobrinhos.
SANGUE EM PASTÓPOLIS 49

Capítulo 16

HERANÇA MALDITA

— Felizmente você chegou a tempo, Ronald.


Venha assinar os papéis.
O juiz Décio Coruja parecia aliviado. Com a
presença de Ronald, a Justiça de Pastópolis estava
desincumbida da iminente briga familiar. Os parentes mal
acreditavam. Ronald avançava pelo corredor sob trezentos
olhos fuzilantes.
Chegando diante do Juiz, Ronald assinou os papéis
e tirou outros do bolso, anunciando a toda a família:
— Como vocês bem sabem, não preciso correr
atrás do dinheiro do meu saudoso tio. Eu já tenho uma
enorme renda pessoal no merchandising da minha imagem.
Por isso, no pleno gozo das minhas faculdades mentais,
transfiro a totalidade da herança de Petinhas à minha
querida noiva Vagarida.
A situação era duplamente revoltante. Além de a
fortuna ter sido herdada por um parente considerado
indigno, ainda foi transferida para uma agregada
fornicadora cujo escândalo teria provocado a morte da
Vovó Ronalda. Os parentes puxaram uma longa vaia —
mas àquela altura os papéis já estavam assinados.
— Quanto a mim, já tirei visto de residência em
Grasnópolis e lá pretendo viver pelos próximos dez anos.
— Também vamos, tio? — perguntaram Dinho,
Binho e Quinho.
— Claro. Façam suas malas e encontrem-me no
aeroporto em três horas.
50 SALOMÃO GLADSTONE

Ronald se despediu do juiz, saiu pela porta lateral


do Tribunal e entrou no veículo voador do Professor
Padral, que já o esperava:
— Então, como foi o plano? — perguntou Padral.
— Nunca pensei que fosse tão fácil enganar a
Família Pato! — Ronald tirou o disfarce: na verdade, era o
Sovina McGrana — Eles caíram literalmente como
patinhos! Ri, ri, ri!
— Parabéns, Sovina.
— E como está a fabricação dos patandróides do
Ronald?
— De vento em popa. Se aqueles malas sem alça
da Família Pato ainda quiserem tirar satisfações com o
Ronald, terão que enfrentar não um, mas vinte Ronalds!
Padral concluiu satisfeito:
— O Ronald merece. Ele nunca me pagou pelo
equipamento de Superbicudo... Afinal, se o senhor já sabe
que Ronald é o Superbicudo, por que não denuncia isso
nos jornais?
— Pouco importa. Sem o Petinhas, Ronald
revelaria isso espontaneamente cedo ou tarde. E depois, a
proliferação dos patandróides chamará a atenção do
Ronald verdadeiro; já tenho centenas de Patralhas
atiradores de elite prontos para liquidá-lo assim que
reaparecer em Pastópolis.

*****
Enquanto isso, eu e Esther nos escondíamos no
poço do elevador da Caixa-forte. Não se enxergava um
palmo. Lá fora os Patralhas se atropelavam em busca da
porta de saída, pressentindo o pior.
SANGUE EM PASTÓPOLIS 51

Ainda havia esperanças em nossa missão: o


receptor indicava que Ronald ainda estava por perto.
Esther tirou sua pesada máscara de cão caucasiano:
— Ufa! Que calor!
Enfim eu enxergava alguma coisa — absoluta-
mente surpreendente!
— Esther, está saindo uma luz da sua boca!
— Hein?
— Eu estou vendo! Quando você abre a boca,
parece que há uma lâmpada lá dentro!
Esther virou de lado, abriu a boca e viu o reflexo
luminoso na parede.
— Credo! A Moedinha da Sorte deve estar criando
uma reação mágica inesperada quando alojada num
organismo humano!
Naquele momento concluiu-se o efeito da bomba
de urina no caldeirão de Maga. Uma explosão estremeceu
as estruturas da Caixa-forte, o vapor subiu e formou um
rosto com voz trovejante:
— Seus malditos! Quem ousou me despertar do
meu sono eterno?
Os Patralhas caíram de costas:
— Begônia Beagle???????
52 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 17

CAÇA À RAMEIRA

Vagarida teve alta e voltou para casa. Seus poros


emanavam apreensão. A cada esquina ela se sentia seguida
pelas paredes de mil olhos, acompanhada de perto pelo
espectro de mil parentes sedentos de vingança.
Não era habitual que uma cidadã pastopolense
abortasse por acidente um ovo fecundado — na pior das
hipóteses, havia a opção de abandonar o ovo na
Chocadeira de Base de Pastópolis — nem que uma
agregada matasse de desgosto uma velhinha decrépita. Na
escala de valores da Família Pato, Vagarida estava abaixo
do Fantasma Manchado.
Abandonada no hospital pelos parentes, Vagarida
ainda não sabia que se tornara a proprietária legal da
herança de Petinhas. E por ora nem queria saber. Tudo que
Vagarida desejava era voltar para casa e reassumir a identi-
dade de Superbicuda que renunciara há cinco anos.
Porém...
— Quaaaaaaaac!!!!!!!
A Família Pato, colérica, invadira a casa de
Vagarida. Estraçalharam as portas a machadadas,
quebraram todas as janelas. Móveis e utensílios foram
revirados. Os objetos de valor desapareceram. A multidão
devorou o conteúdo da geladeira. As paredes cor-de-rosa
estavam lambuzadas com palavrões que lembravam a
imoralidade de Vagarida. Fezes nauseabundas cobriam o
chão.
Perplexa, a noiva de Ronald correu ao sótão, onde
estava o baú com o equipamento de Superbicuda.
SANGUE EM PASTÓPOLIS 53

Saquearam todos os objetos do sótão, menos o baú. Vazio,


com um bilhete irônico: “Vá enganar outro, Vagarida”.
Naquele instante, Vagarida se deu conta de que os
ares de Pastópolis dificilmente fariam bem à sua saúde.

*****
Aeroporto Internacional de Pastópolis.
Exatamente na hora marcada, um Ronald impecavelmente
trajado esperava diante do portão de embarque. Logo
depois chegaram Dinho, Binho e Quinho, pequenos em
comparação com suas mochilas de campistas juniores.
— Olá, meninos!
— Olá, tio Ronald!
— Vejo que já estão com a bagagem pronta. Aqui
estão seus passaportes; acabei de fretar um jatinho para
Grasnópolis e conto com a presença de vocês. Afinal,
somos uma família ou não somos?
Enquanto os patos atravessavam o portão de
embarque, Binho perguntou:
— Onde o senhor esteve durante todo esse tempo
sem nos avisar?
— É uma longa história. Na viagem eu conto.
Absortos em sua curiosidade, os sobrinhos
embarcaram e nem notaram que o piloto era ab-
solutamente idêntico ao próprio Ronald.
54 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 18

O IMPÁVIDO COLOSSO NÃO FOGE À LUTA

— Canalhas! Incompetentes! Cretinos! Idiotas!


Esses humanos boçais não são capazes sequer de matar o
Ronald?
Fatalôncio mastigava seu chapéu enquanto lia
enfurecido a primeira página de seu jornal A Chatada. Era
inacreditável que Ronald estivesse presente no Tribunal de
Pastópolis para tomar posse da herança perdida! Tudo já
estava assinado nas mãos do juiz Décio Coruja. O plano
tinha ido por água abaixo.
Logo a cólera se transformou em determinação. O
magnata pegou o telefone vermelho e chamou seu velho
amigo:
— Professor Urubu? Estou com sérios problemas.
Meus instrumentos de localização indicam que Ronald
continua na ilha com os Patralhas e a Caixa-forte, mas ao
mesmo tempo todos viram Ronald no Tribunal!
— Impossível, Fatalôncio. Eu só roubo inventos
de primeira qualidade.
— Então como o Ronald pôde estar em dois
lugares ao mesmo tempo?
— Sei lá. Alucinação coletiva, fraude, golpe
publicitário... Uma coisa é certa: se você queria o Ronald
morto, não é agora que vai se dar por satisfeito.
— Neste caso, só há uma solução... Você ainda
tem aqueles megadesintegradores sobrando aí?
— M-m-m-mas o que você pretende? — Urubu
vacilou apreensivo.
SANGUE EM PASTÓPOLIS 55

— Aquela ilha é minha, tudo que ela tem me


pertence, e nela eu faço o que quiser. Uns cinco mísseis
serão suficientes.
— Não vá fazer nenhuma besteira, Fatalôncio!
— Não ouse me contrariar, seu gavião subde-
senvolvido! — esbravejou o empresário — Trate de
preparar os mísseis imediatamente. Quero aquela ilha
riscada do mapa até...
Naquele momento, uma visita não autorizada
empurra a porta do escritório. Fatalôncio interrompe a
ligação.
— Flora Senteantes?
— Folgo em saber que você ainda se lembra de
mim, Fatalôncio... Antes de morrer, o velho Petinhas fingia
que não me conhecia.
— Como entrou aqui sem avisar?
— Eu tenho minhas cartas na manga... É
fantástico o que se aprende sobre a vida nas mesas de
pôquer.
— Pouco me importa que você esteja frustrada
sexualmente e que eu seja o único gugolionário de
Pastópolis — revoltou-se — De mim você não tirará um
centavo!
— E quem disse que eu quero o seu dinheiro? Eu
só quero o que me pertence... — Flora se aproximou de
Fatalôncio, langorosa e sorridente — Eu sei que Petinhas
fez um testamento deixando toda a fortuna para mim. E eu
sei que você sabe disso.
— Aquele testamento era uma farsa. Você se
aproveitou de um acesso de senilidade do velhote.
— Isto é mentira, meu querido... — Flora olhava
dentro dos olhos de Fatalôncio — E você também não
acha que foi uma farsa a presença de Ronald no Tribunal?
56 SALOMÃO GLADSTONE

— O que você sabe?


— Eu estava no Tribunal. Aquele não era o
Ronald verdadeiro. Aquele tinha as pernas muito arqueadas
e as penas da cauda eram diferentes. A Família Pato estava
tão irritada que nem notou.
— Então vá contar isso à família, ora!
— Mas só você poderia estar interessado na
desaparição do testamento.
— Você deveria ser morta por sua inconveniênca,
Flora!
Dito isto, a velha pegou Fatalôncio pela cintura e o
puxou para si.
— Duvido que você faça uma crueldade dessas...
Faz tanto calor; por que não tira essa gravata?
— Flora Senteantes, o que você pretende?
— Ora, não diga que você tem medo de patas mais
velhas. Eu não mordo... Relaxe, Fatalôncio.
— Você está me colocando numa posição com-
prometedora...
— Confesse-me: você nunca fez amor com uma
pata?
Àquela altura, Fatalôncio já estava deitado na
escrivaninha sob o peso de Flora, sem controle. Ele
apertou o botão do intercomunicador:
— Secretária, avise que eu estou numa reunião
importante e não posso receber ninguém pelas próximas...
hã... hummm... oh...
SANGUE EM PASTÓPOLIS 57

Capítulo 19

REVELAÇÕES DO ALÉM

— Begônia Beagle, grande matriarca dos cães


caucasianos, concedei tua vasta sabedoria e virtude a estes
Patralhas, vossos reles súditos que há séculos esperaram
por este momento sublime!
O fantasma de Begônia hesitou por alguns se-
gundos e trovejou o que nenhum Patralha queria ouvir:
— Seus idiotas! Eu não sou matriarca de povo
nenhum! Eu fugi para as Montanhas dos Magos para
cuidar da minha vida!
— Mas reza o dogma canino-caucasiano — disse o
Patralha Intelectual — que a senhora voltaria ao mundo
dos vivos para a suprema vingança...
— Quem foi o imbecil que inventou isso? Não há
vingança nenhuma! Os patos venceram uma luta justa! Será
que depois de séculos apanhando e apanhando, vocês não
adquiriram um pingo de honra e dignidade?
— Mas nós tínhamos boa intenção, Begônia.
— E daí? Lá de onde eu vim, estava em com-
panhia de um monte de bem-intencionados... Eu odeio os
cães caucasianos que condenaram meu amor por Cordélio
Flatus! Eu odeio os patos que assassinaram os anciãos
caninos! Cansei de ser uma pária; só minhas amigas bruxas
me compreendiam...
Os Patralhas sobreviventes se entreolharam:
— Irmãos, tenho a leve impressão de que en-
tramos numa fria...
— ...e tenho o ódio dos ódios pelo infeliz que me
arrebatou do descanso eterno!
58 SALOMÃO GLADSTONE

— Q-q-quem, a Maga Magalógica? É melhor


procurá-la no outro mundo...
— Não foi a Magalógica. Eu vou achar o res-
ponsável...
O fantasma de Begônia encolheu até uma estatura
natural e tomou contornos nítidos.
— Eu estou sentindo cheiro de humanos! Esses
amaldiçoados humanos estão por perto! Foram eles os
responsáveis por tudo!

*****
Enquanto isso, eu e Esther nos escondíamos no
poço do elevador. Eu ainda estava abestalhado com a
estranha reação da Moedinha da Sorte que fez o corpo de
Esther brilhar por dentro. Encostei o ouvido na parede:
nada consegui ouvir através daquelas grossas chapas de
aço.
— Acho melhor sairmos daqui, Alvin.
— E se a saída do elevador estiver cercada por
Patralhas?
— Duvido. A explosão deve ter afugentado a
todos. Se aparecer algum, somos imunes às armas dos
Patralhas e ainda temos munição suficiente para as nossas.
— Certo. Vamos escalar o cabo e forçar a porta do
térreo.
Quando Esther tocou o cabo, o inesperado: o
elevador começou a descer!
— Quem ligou o elevador?
— Impossível! A eletricidade foi cortada e o pão-
duro do Petinhas não usava geradores.
— Vamos ser esmagados! Atire no fundo da
cabine!
SANGUE EM PASTÓPOLIS 59

Prontamente abrimos fogo, mas nada conseguimos


a não ser transformar a cabine num queijo suíço recheado
de ferros retorcidos e cortar acidentalmente o cabo do
elevador. Agora a cabine descia em queda livre e seríamos
esmagados em segundos. Esther fazia suas últimas orações.
Por um instante vi um flashback de minha vida passar
diante de meus olhos.

*****
Superbicudo, digo, Ronald estava escondido numa
moita em torno da Caixa-forte. Pressentindo um ambiente
mais calmo, o herói novamente escalou as paredes com
suas botas de sucção. Pé ante pé, Superbicudo chegou à
porta do cofre principal.
— Com Patralhas ou sem Patralhas...
Superbicudo usou seu lápis-maçarico e arrombou
o cofre com facilidade. Foi apenas uma questão de abrir a
porta e saltar na escuridão.
— Finalmente vou poder mergulhar no meu
dinheiro! É meu! Meu! Todinho meu!!!!
O cofre estava completamente vazio.
60 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 20

NO ESPETO

— Nós vamos morrer! Aaaaaaahhh!


Quando o elevador estava a um milímetro de se
esfrangalhar no fundo do poço, um truque de Begônia
Beagle fez com que reaparecêssemos, sãos e salvos, no lado
de fora da Caixa-forte. Olhamos em volta. A situação não
era das melhores: estávamos cercados por uns quinhentos
Patralhas.
— Então são vocês os humanos! — surpreendeu-
se o Vovô Patralha.
A multidão de criminosos partiu para cima de nós.
Begônia fez outro truque e nossas armas não funcionavam
mais. Não tínhamos defesa. Mas os Patralhas nos queriam
vivos.
Sob os gritos de guerra da multidão, fomos
amarrados numa estaca e juntaram lenha para a fogueira.
Uma execução antigamente dedicada às bruxas, quem
diria... Esther estava mais desesperada do que eu. Mas era
ela que tinha a saída nas mãos.

*****
Como que por milagre, Superbicudo se espatifou
no fundo do cofre principal, onde já não havia uma moeda
sequer, mas saiu pouco ferido. O super-herói se recompôs
rapidamente, acendeu sua lanterna e examinou as paredes
mofadas que o cercavam. Uma aberração: para onde os
Patralhas teriam levado a grana?
Então Superbicudo encontrou debaixo de seus pés
uma espécie de porta. Ele apontou a lanterna para o chão:
SANGUE EM PASTÓPOLIS 61

uma placa enferrujada dizia “1931”. Não restavam dúvidas.


Era aquela a entrada do misterioso porão da Caixa-forte,
fora de uso há décadas, que Petinhas freqüentemente
mencionava em suas histórias.
Destemido, Superbicudo abriu a porta e desceu
uma longa escada. Uma ampla câmara escavada na rocha,
semidestruída com a explosão que arrancou a Caixa-forte
do solo, era o ponto de convergência de quatro túneis.
Coisa dos Patralhas, claro. Mas não havia pistas.
Superbicudo escolheu um túnel e seguiu em frente.

*****
Enquanto isso, o ambiente na Delegacia Central de
Pastópolis era de desolação.
— Muckey, nunca passamos por uma crise tão
grave. A polícia estava completamente impotente diante do
roubo da Caixa-forte, mas os jornais caçoam da polícia
como se nós fôssemos os ladrões. — Coronel Contra abre
a edição vespertina de A Pastada — Pastópolis atravessa
uma onda de crimes desde a insurreição dos Patralhas. E
quando tínhamos os dois humanos nas mãos, eles fogem
inexplicavelmente.
— Isto sem falar do seqüestro do prefeito Omar
Suíno. Até agora só encontramos pistas falsas... Acho que
eu vou deixar a polícia.
— Como?
— Sabe como é, Coronel, eu cansei de fazer jogo
duplo. Agora que o Petinhas morreu, já não tenho mais
motivos para acobertar a oposição e fazer bonito diante da
opinião pública. É impossível agradar a todos ao mesmo
tempo...
— Isto é inaceitável, Muckey. Todo mundo aqui
era... hã... “neutro” diante da arrogância da Família Pato,
62 SALOMÃO GLADSTONE

mas você não vê um policial com crises de consciência.


Pelo contrário, este é o momento em que nossos homens
devem resgatar o brio da polícia de Pastópolis...
— Com todo o respeito, isto pode fazer sentido
para você, pois sua vida está nesta delegacia, nesse
uniforme, nesse distintivo. Esta não é minha profissão
verdadeira. Eu entrei aqui de gaiato, estou desgastando
minha imagem, já tenho rendas polpudas e não dependo da
mixaria que a Polícia paga.
Contra ouvia atentamente enquanto tomava seu
café. Muckey continuou:
— E sabe há quanto tempo não vejo a Winie, o
Pluteta e o resto da turma? Você não sabe o que é angústia,
Coronel. De repente eu acordo e vejo a Caixa-forte
flutuando no ar. Depois tenho que fazer teatrinho, interro-
gando dois alienígenas presos ilegalmente. Mais tarde, o
prefeito é seqüestrado e...
De repente, Omar Suíno surge na porta da
delegacia:
— Quem você diz que foi seqüestrado, Muckey?
SANGUE EM PASTÓPOLIS 63

Capítulo 21

LODO, CAOS E ESBÓRNIA

— Omar Suíno! — espantou-se Muckey — Onde


o senhor esteve?
— É uma longa história. Eu tinha que tirar umas
férias em Grasnópolis.
— Mas todos viram a cena do seqüestro — disse
Coronel Contra — Toda a polícia estava à sua procura.
— Eu tinha que inventar algum pretexto. A
confusão gerada com a morte do Petinhas me abalou
profundamente...
Muckey e Contra se entreolharam, desconfiando
de alguma coisa no discurso. Omar continuou:
— Nestes dias conversei com uns amigos de
Grasnópolis que estão muito preocupados com a situação
pastopolense. Eles me convenceram de que agora, sem o
Petinhas, estou preparado para as reformas necessárias em
Pastópolis...
— Hein?
— É chegado o momento de conceder direitos
civis aos cães caucasianos. Aguardem meu pronunciamento
na televisão.
Omar Suíno saiu de cena, sob os olhares perplexos
de Muckey e Coronel Contra.

*****
Enquanto isso, na ante-sala da oficina de inventos
de Professor Padral, crescia o bate-boca entre os Patralhas.
64 SALOMÃO GLADSTONE

— Todo mundo viu! Foi uma revelação espiritual


de Begônia! E tá falado!
— Não acredito! O Patralha Intelectual é um
farsante!
— É verdade!
— É mentira!
— Quaac!!!!! Chega de discussão!!!! — vociferou
Sovina McGrana — Não quero saber de pendengas
religiosas caninas-caucasianas. O que eu quero é destruir a
Família Pato de vez.
167-761 resmungou, desanimado:
— Pois eu estou fora. Begônia Beagle voltou dos
mortos e afirmou que não devemos lutar contra os patos.
Não posso negar a palavra que nos foi revelada.
— O problema é seu — disse 761-761 — Tudo
que nos importa é a verdade absoluta que nossos pais nos
ensinaram. Vá, siga seu caminho; a ira de Begônia se
abaterá contra os infiéis!
Dito isso, 167-761 se retirou, junto com dez
irmãos insatisfeitos. Sovina sorriu. Dirigindo-se aos dez
remanescentes, disse:
— Muito bem, folgo em saber que ainda tenho
muitos fiéis colaboradores para a concretização do meu
plano... Qual é o maior objetivo dos Patralhas na vida?
— Reconstruir Cinópolis! — responderam os
Patralhas em uníssono.
— Quem usurpou os bens acumulados
honestamente pelos cães caucasianos?
— O Petinhas!
— Quem é o herdeiro do Petinhas?
— O Ronald!
— E qual é o dever de todos os cães caucasianos?
SANGUE EM PASTÓPOLIS 65

— Matar Ronald! Matar Ronald!


Os Patralhas, empolgados, carregaram suas armas
e saíram correndo porta afora, prontos para a caça. Sovina
esfregava as mãos:
— Sem o Petinhas, arregimentei a força mais
poderosa de Pastópolis. O Ronald ainda há de reaparecer...
para nunca mais. Rê, rê, rê...
Padral, esbaforido, chamou Sovina ao laboratório.
— Veja isto, chefe! Terminei de montar os novos
dez patandróides do Ronald. Já estão prontos para
funcionar.
No canto da oficina estavam os patandróides,
estáticos, perfilados como soldados. Sovina se aproximou
para examiná-los melhor. Eram absolutamente idênticos ao
Ronald.
— Perfeito. Você está trabalhando muito bem.
Quero mais vinte patandróides para entrega imediata!
— Obrigado, Sovina, mas para isso eu preciso de
verba. O senhor nem pagou pelos patandróides prontos,
não lembra?
Sovina franziu o cenho.
— Depois eu pago. Meu dinheiro está todo no
meu depósito na África do Sul. Eu não me tornei um
zilionário sem protelar um pagamento ou outro... Faça os
patandróides, Padral.
— Não tem jeito. Acabaram-se minhas peças e não
tenho como comprar novas. Estou atolado em dívidas.
Assim não posso mais trabalhar.
— Conversa fiada! E eu que pensei que estava
lidando com um inventor distraído... Já disse: faça os
patandróides. É para ontem!
— Se estiver insatisfeito, vá arranjar outro
inventor.
66 SALOMÃO GLADSTONE

Sovina ficou catatônico por longos dez segundos.


O velho mudou de expressão e caminhou para o canto
oposto da oficina:
— Tudo bem. Vou pegar um adiantamento na
minha bolsa.
Não havia um centavo na bolsa. Apenas uma
pistola com silenciador. Num movimento rápido e preciso,
Sovina acertou o peito de Padral. O corpo semimorto caiu
sobre o controle remoto dos patandróides.
— Vai... se... arre... pen... derrrr... ooooooh...
Sovina se postou diante do cadáver.
— Esse Padral é um perfeito otário. Agora que ele
está morto, ainda posso ter acesso aos seus valiosos planos
e...
De repente os patandróides saíram andando sem
controle, derrubando tudo pela frente, e começaram a
perambular pela rua. Sovina saiu correndo, tentando detê-
los.
— Parem! Parem! Isto é uma ordem!
Os patandróides não ouviram. Mas para os
Patralhas das proximidades não havia diferença entre um
Ronald falso e um verdadeiro:
— Matar Ronald! Matar Ronald!
Cinco ou seis Patralhas abriram fogo contra tudo
que se mexesse. Sovina sentiu o perigo e grasnou:
— Em mim não, idiotas!
Tarde demais. Dois patandróides viraram sucata,
mas um tiro atingiu a perna esquerda de Sovina. Sentindo o
drama do velho pato, os Patralhas foram socorrê-lo.
— Não faça nenhum movimento brusco! Vamos
levá-lo ao hospital!
— Nada disso, seus incompetentes.
SANGUE EM PASTÓPOLIS 67

— Mas a sua perna...


— Eu sei do que estou falando. Se for internado
aqui, os pastopolenses vão acabar me matando. Tenho que
voltar à África do Sul imediatamente.

*****
— Afinal, tio, explique-nos por que o senhor saiu
durante o enterro e demorou tanto a voltar!
Todos os patandróides saíram de controle. Em seu
jatinho fretado para Grasnópolis, os sobrinhos logo
descobriram que o Ronald que os acompanhava era fajuto.
— Negativo. Meu nome é Pato Ronald, herdeiro
de Petinhas O’Pato, meus sobrinhos são Dinho, Binho e
Quinho e eu cedi toda a herança à minha querida Vagarida.
— Mas e daí? — perguntou Binho — Que
estranho...
— Positivo. Quem são vocês? Meu nome é Pato
Ronald, herdeiro de...
— Caramba! Esse não é o Ronald!
Dinho e Quinho saltaram e agarraram as pernas do
patandróide enquanto Binho dava uma cabeçada no peito
de metal. O patandróide tombou e a cabeça saiu do corpo,
mostrando os circuitos elétricos.
Diante da perplexidade dos sobrinhos, o
patandróide-comandante se levantou e saiu da cabine de
comando.
— Negativo. Meu nome é Pato Ronald, herdeiro
de...
— Mais um robô! Pau nele!
O patandróide deu um soco em Dinho, que caiu
nocauteado. Quinho, porém, pensou rápido e jogou uma
jarra de suco de laranja na junta do pescoço. Em trinta
68 SALOMÃO GLADSTONE

segundos o outro falso Ronald estava no chão. E sem


piloto, o avião, muito brevemente, também estaria. Binho e
Quinho começaram a correr como baratas tontas:
— O avião está desgovernado! Chame a torre!
Segure o manche! Consulte o Guia do Campista Júnior!
SANGUE EM PASTÓPOLIS 69

Capítulo 22

MATO SEM CACHORRO

— Controlem o avião! Vamos nos espatifar na


montanha!
Os sobrinhos de Ronald estavam desesperados.
Nenhum capítulo do Guia do Campista Júnior explicava
como funcionava o avião. O rádio não dava resposta.
Binho, alucinado, começou a apertar todos os botões do
painel em busca de algum efeito positivo. Nada.
— Quinho, está encontrando algum pára-quedas?
— Que pára-quedas o quê?
Já era tarde demais. A asa esquerda se chocou com
o rochedo; o avião rodopiou no ar e despencou no coração
da Floresta Negra.

*****
Vagarida não parecia se dar conta que o Expresso
Bicanca era a linha mais sórdida e decadente do sistema
ferroviário. Desde que os aviões dominaram o transporte
entre Pastópolis e Grasnópolis, a viagem nos velhos trens
ficou restrita aos muito pobres, a um punhado de
nostálgicos amantes dos trilhos, e a todo tipo de
punguistas, prostitutas, falsários, vigaristas e picaretas em
geral.
— A senhorita tem fogo?
— Perdão, eu parei de fumar... O senhor... Hã... O
dia não está quente demais para usar esse casaco?
Os funcionários das Ferrovias Petinhas, sob os
reluzentes botões dourados de seus uniformes, ainda
tentavam manter o aplomb e as maneiras polidas de um
70 SALOMÃO GLADSTONE

passado próximo. Mas nada conseguia esconder a


decadência dos terminais, o estado precário dos carros, os
constantes atrasos, o baixo estrato social dos passageiros.
— Eu não me preocupo com o calor, muito antes
pelo contrário... senhorita...
Vagarida ignorou tudo isso. Afinal, ela tinha pavor
de viagens de ônibus. Seu dinheiro não era suficiente para
uma passagem aérea. Seus cartões de crédito dificilmente
seriam aceitos pela Petinhas Airlines sem complicações
posteriores. Pela primeira vez na vida, a pata mais frívola e
superficial de Pastópolis teve que tomar uma atitude séria:
ir a Grasnópolis de qualquer jeito encontrar-se com seu
querido Ronald.
— Altéia. Altéia Marreco. — mentiu Vagarida.
— Olímpio Chipper. Encantado em conhecê-la. O
que a leva a Grasnópolis?

*****
O tempo estava ficando quente para nós. Os
Patralhas brandiam suas tochas, prontos a acender a
fogueira a uma ordem do fantasma de Begônia Beagle.
Esther e eu, amarrados
no poste, esperando o Juízo Final. Eu matutava
um meio de sairmos dali. Quando os Patralhas começaram
a se exaltar, comentei com Esther:
— Temos que fugir. Não dá para dissolver a
corda?
— O quê?
— É como no truque do jornal que você me
ensinou. Como é que funciona? Não estou conseguindo
nada.
SANGUE EM PASTÓPOLIS 71

— Meus pulsos estão amarrados. Não consigo


agarrar a corda!
— Sei lá; tente se concentrar, movimentar os
braços ou...
Naquele momento, Begônia baixou sua varinha de
condão e comandou os Patralhas:
— Acendam a fogueira!
Tarde demais. Fatalmente viraríamos churrasco. O
fogo crescia sob nossos pés. Esther, num átimo, olhou
para Begônia e gritou:
— Nããããããããããão!!!!!!!!!!
Um poderoso raio luminoso se desprendeu de sua
boca, abrindo caminho entre os Patralhas e atingindo
Begônia como um cruzado no peito. Os Patralhas deram
um passo para trás e
fizeram silêncio. Naquele momento desapareceram
as cordas que nos prendiam. Esther marchou, decidida,
para fora da fogueira:
— Agora é entre nós duas, Begônia.
72 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 23

AINDA QUE TARDIA

— Faça suas últimas orações, Begônia Beagle.


Chegou o seu fim!
Diante da ameaça, os Patralhas recuaram e se
esconderam atrás das moitas. Begônia ainda estava caída,
sentindo os efeitos do golpe mágico.
— Nunca, sua humana desgraçada! Ri melhor
quem ri por último!
Begônia, discretamente, apontou para o céu e deu
voltinhas com o indicador direito enquanto murmurava
palavras mágicas numa língua estranha. Os Patralhas se
encolheram ainda mais. Mal percebi o que nos esperava.
Uma chuva de raios caiu aos pés de Esther. A
força da seqüência de golpes lançou a humana a dez
metros. Esther saiu cambaleante, com um lado do corpo
gravemente queimado. Qualquer humano normal estaria
morto, mas ela sequer perdera a consciência. Emanando
um brilho intenso, seu corpo se recompôs dos ferimentos
em poucos segundos. E nisso Esther não percebeu que
Begônia reapareceu às suas costas.
— Tome mais isto, Esther!
Begônia estendeu as mãos para frente e soltou um
jorro de bolas de fogo. Esther caiu novamente.
Controlando a dor, ela rastejou e lançou um olhar fuzilante
para Begônia.
— Não admito ataque pelas costas!
Esther abriu a boca, emitiu a luz ofuscante e
soprou com a força de um furacão. Begônia foi lançada aos
ares. Num grito lancinante, o fantasma se desfez nas
nuvens — para nunca mais.
SANGUE EM PASTÓPOLIS 73

O silêncio era absoluto. Esther ainda estava caída,


lutando para se levantar. Mas logo os ferimentos
desapareceram e tudo voltou ao normal. Os Patralhas se
reaproximaram. Esther anunciou, orgulhosa:
— É o fim de Begônia Beagle.

*****
Enquanto isso, um comboio de Patralhamóveis
corria pelas ruas de Pastópolis levando ao aeroporto o
ferido Sovina McGrana.
— Não se preocupe, chefe! — disse 761-761 —
Nossos homens acabam de seqüestrar um avião comercial.
O comandante está sob nosso poder e levará o senhor de
volta à África do Sul.
O velho zilionário mal parecia sentir a dor da bala
alojada em sua perna.
— Eu sabia que podia contar com vocês. Não
podia dar chances aos açougueiros dos hospitais de
Petinhas.
Quando chegaram ao aeroporto, a pista estava
cercada por duzentos Patralhas armados, liderados por
167-761.
— Aonde pensam que vão, seus pústulas infiéis?
— Do que você está falando? O Sovina está ferido
e tem que ser levado imediatamente para a África do Sul.
— Só por cima do meu cadáver!
— Você disse que ficaríamos à vontade para
apoiar Sovina contra a Família Pato. Não tem palavra?
— Você já devia ter aprendido a não confiar nem
em sua própria sombra. Adeus, 761!
74 SALOMÃO GLADSTONE

A um comando de 167, os Patralhas ergueram suas


armas. 761 e seus homens estavam totalmente cercados.
Não havia para onde fugir.
— Preparar... Apontar...
— Parem! Parem tudo! — gritou o primo 002,
carregando um televisor portátil — Vamos ter novidades!
— Que foi, seu idiota?
— O prefeito vai fazer um discurso decisivo diante
do Conselho Municipal!

*****
Assim como os Patralhas, os conselheiros — quase
todos velhos patos corruptos, desnorteados com a morte
de Petinhas — esperavam qualquer coisa de Suíno. Toda
Pastópolis se acotovelava diante das telas na expectativa
das novidades. Suíno pegou os óculos e abriu uma grande
folha de papel com o texto do discurso:
— Meus concidadãos, este é um dia histórico para
Pastópolis e seus laboriosos habitantes. Até hoje Pastópolis
cresceu e frutificou sob a mácula da empáfia e do
preconceito.
Notando o olhar incrédulo dos interlocutores,
Suíno prosseguiu:
— Proponho ao Conselho Municipal que a partir
desta data sejam abolidas todas as medidas discriminatórias
contra os cães caucasianos, garantindo-lhes anistia total e
concedendo plenos direitos civis a todos os habitantes de
Pastópolis.
— Protesto! — levantou-se o presidente do
Conselho — A fundação desta cidade é fruto da luta dos
patos iluminados e superiores contra os cães caucasianos
SANGUE EM PASTÓPOLIS 75

fedorentos. Nada pode deter a marcha dos patos. Não


aprovaremos essa lei absurda!
— Não há problema. Neste momento, sob os
olhos do Conselho, do povo e das câmeras, converto a
mensagem em decreto-lei.
— Sua excelência enlouqueceu? Não existe
decreto-lei na legislação pastopolense.
— Agora passa a existir.
Naquele momento, a mesa do Conselho estava
cercada por trinta soldados.
— Meus concidadãos, este é o jeito de ser de
Pastópolis. Cedo ou tarde alcançamos a democracia...
Mesmo que seja na base da porrada.
76 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 24

QUADRILIONÁRIOS UNIDOS

Os sobrinhos de Ronald saíram sem grandes


ferimentos depois da queda do avião. Binho e Quinho
carregavam seu irmão pelos braços e pernas. Perdidos no
meio da floresta, eles tinham que procurar ajuda, já que o
rádio do avião não funcionava.
De repente os patinhos ouviram passos e uma voz
rouca. Quando notaram quem era, se esconderam atrás de
uma moita. Era Professor Urubu falando num telefone
sem fio.
— Fatalôncio? Tudo pronto. Quando quiser
disparar o míssil, basta pressionar o botão azul na sua
escrivaninha... Como? Rolando fatos novos em Pastópolis?
Que fatos novos? Anistia? Não estou entendendo,
Fatalôncio. Está bem. Meia hora.
— Manos, aí tem coisa... — cochichou Binho —
Vamos seguir as pegadas do Urubu e ver de onde ele saiu.
O cientista do mal seguiu em frente e encontrou o
avião destruído. Pé ante pé, suspeitando de alguma
armadilha, ele entrou e examinou as pistas:
— Um boné dos sobrinhos do Ronald... Dois
Ronalds mecânicos caídos... Mas não é possível que... Vou
ligar para o Fatalôncio. Ele vai gostar de saber disso.
Urubu tentou, tentou, mas a bateria do telefone
começou a falhar.
— Não funciona! Raios! Tenho que voltar ao
laboratório.
Neste momento, os meninos seguiam habilmente
as pegadas e Dinho recuperara a consciência. Finalmente,
SANGUE EM PASTÓPOLIS 77

chegaram a uma antiga mansão perdida no meio da


floresta.
— O que o Professor Urubu estará fazendo por
aqui? Vamos examinar.
Curioso, Quinho olhou pela janela. No meio da
sala estava montado um enorme míssil cercado de
aparelhos de altíssima tecnologia.
— Vejam isto! Um míssil!
Professor Urubu surgiu às costas dos patinhos:
— Pelo que vejo, vocês me pouparam de dar
maiores explicações, seus pivetes!

*****
A anistia não foi exatamente um acontecimento
jubiloso para os pastopolenses. A cidade recebeu o
autogolpe de Omar Suíno com o mais incrédulo dos
silêncios.
É claro que o reconhecimento de seus direitos
civis era tudo que a maioria oprimida dos cães caucasianos
sempre reivindicou. Entretanto, os cães não acreditavam
que o decreto-lei fosse algo mais que uma tramóia do
prefeito — um emérito pau-mandado dos patos. Enquanto
isso, nada garantia que os patos ortodoxos acatariam a
decisão pacificamente.
Alheios à interrogação que pairava sobre o cidadão
comum, Patralhas de ambos os lados largaram as armas e
marcharam unidos e orgulhosos para fora do aeroporto.
Finalmente qualquer cão caucasiano poderia comparecer a
uma delegacia de polícia e ratificar sua anistia.
Mas o sangue de Sovina McGrana ainda molhava o
banco de trás do Patralhamóvel:
78 SALOMÃO GLADSTONE

— Vão me deixar aqui? Voltem, Patralhas! Voltem!


Não podem abandonar um velho pato ferido!
Longos minutos se passaram; ninguém socorreu
Sovina. De repente, como que surgido do nada, um
motorista assumiu o volante, deu a partida e saiu em
disparada.
— Até que enfim. Para onde estamos indo? Já
disse que não aceito o tratamento dos hospitais de
Pastópolis.
— Não tem problema. O senhor vai receber um
atendimento de primeira.
Sovina reconheceu imediatamente aquela voz:
— Eu sabia que você estava por trás de tudo,
Fatalôncio!

*****
Muckey assistira em casa, boquiaberto, ao
pronunciamento do prefeito. De volta à delegacia, o
camundongo foi à sala do Coronel Contra comentar as
novidades:
— Viu o que aconteceu, Coronel? A ditadura do
Suíno acabou com a nossa mamata e... Coronel? Coronel?
Era tarde. A corda mal suportava o corpo frio e
lívido do chefe da polícia. Os 115 quilos de adiposidade
pendiam da viga do teto sobre um banquinho tombado e
um envelope pardo recheado de papéis comprometedores.

*****
Vagarida hesitou quando Olímpio Chipper a
convidou para passar a noite em seu apartamento em
Grasnópolis. Mas não teve alternativa. O Serviço de
SANGUE EM PASTÓPOLIS 79

Informações Integrado levaria dois dias para localizar


Ronald, sua amiga Clara Cocó — cidadã grasnopolense há
décadas — não estava em casa, seu dinheiro era
insuficiente para um hotel digno.
Afinal, Olímpio lhe pareceu bastante simpático e
polido, ao contrário do que se poderia esperar de 90% dos
cães caucasianos que conhecia. Não poderia haver riscos.
Ninguém sabia que Altéia Marreco era a Vagarida
disfarçada.
Era um apartamento de 18 cômodos no 78º andar
de um condomínio de alta classe. Olímpio tirou seu
estranho casaco e carregou as malas para a sala. Vagarida
encostou o bico nas amplas vidraças; daquele ponto podia-
se avistar toda a cidade.
— Não quer tomar um drinque, Vagarida?
A pata estremeceu. Como Olímpio descobriu seu
nome? Uma eternidade de milissegundos de silêncio
constrangedor; Vagarida murmurou, sem tirar os olhos da
janela:
— Deve haver algum engano. Meu nome é Altéia.
— Sim, claro... Muito prazer; Papai Noel. Ri, ri, ri,
ri, ri...
— Ficou louco, Olímpio?
Vagarida virou-se. Naquele momento Olímpio
vestia uma ampla camisola preta e um capuz preto. Não
havia dúvidas. Ela nunca poderia imaginar que Olímpio
Chipper era o Fantasma Manchado sem disfarce.
80 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 25

PATOS NO BURACO

O ferido Sovina McGrana desmaiou no meio do


caminho quando era levado à mansão de Fatalôncio, nos
arredores de Pastópolis.
— Felizmente o senhor foi resgatado a tempo,
Sovina — disse o médico particular de Fatalôncio — Não
sei o que seria do senhor com uma bala alojada na perna
por mais horas.
— Ora, deixe pra lá. Eu tenho que voltar
imediatamente à África do Sul e cuidar de meus negócios.
— Ainda não. O senhor precisa de repouso.
Fatalôncio surgiu à porta:
— E depois, eu prefiro que você se estabeleça de
vez em Pastópolis. Sem os Patralhas nem a família Pato
para atrapalhar, a cidade será toda nossa!
— Fatalôncio, seu sem-vergonha!!!! Como um
ordinário como você tem a ousadia de dirigir a palavra a...
— Calminha, Sovina... Temos nossas diferenças
pessoais, mas você não está em condições físicas de ter
ataques de nervos. E sei que não foi desse jeito que Mamãe
McGrana lhe ensinou a agradecer os favores dos outros...
Sovina grunhiu de desprezo. Fatalôncio continuou:
— Na condição de pato mais rico de Pastópolis,
quero ter você, o pato mais rico do mundo, como meu
sócio.
— O quê?
— Sim... Sozinho você não poderá mais conduzir
os tentáculos pastopolenses dos seus negócios. Os
Patralhas não trabalharão mais para nós. Eu já tenho o
SANGUE EM PASTÓPOLIS 81

governo no bolso e submeti Omar Suíno a uma lavagem


cerebral para anistiar os cães caucasianos.
— Você ficou louco, Fatalôncio? Agora que os
Patralhas viraram “cidadãos honestos” de uma hora para
outra, eles vão acabar negociando o dinheiro da Caixa-forte
com a família Pato.
— Não se eu puder impedir... Já tenho um míssil
nuclear apontado para a Caixa-forte. Quando mandarmos
tudo para os ares, a cidade estará em minhas mãos. Você
entra com o dinheiro, eu entro com Pastópolis. Tudo que
eu quero são dez por cento dos seus lucros.
— Definitivamente, a morte de Petinhas não fez
bem à sua cabeça.
— Compreenda, Sovina. Quando você estiver
recuperado da perna, as portas da minha casa estarão
abertas. Você é que escolhe como prefere sair:
quaquilionário provinciano expatriado ou senhor supremo
dos destinos de Pastópolis! Se aceitar minha proposta, faço
questão de lhe conceder tudo que você sempre quis na
vida...
— Ouro? Diamantes? Petróleo?
— Mais, muito mais... Você já está nadando em
dinheiro e não vai ser influenciado por uns trocados a mais.
Quero que você tenha o privilégio de apertar o botão do
míssil e detonar pessoalmente a...
Nesse instante, soou a campainha do telefone
vermelho.
— Urubu? Sim. Sim. Como? Excelente. Você é um
anjo, Urubu. Até mais.
Fatalôncio desligou.
— Que foi?
— Excelentes notícias, Sovina. A festa está apenas
começando!
82 SALOMÃO GLADSTONE

*****
Naquele momento, Superbicudo procurava a
fortuna de Petinhas nos subterrâneos da ilha. Pé ante pé, o
super-herói rastreava as paredes do túnel em busca de
alguma pista. Até que de repente...
— Quaac! Que será aquilo?
Um grande veículo se aproximava. Dois faróis
ofuscantes apareciam no fundo do túnel. As paredes
tremiam; o barulho era ensurdecedor.
— Pare!!!!! Pare!!!!!
O veículo ignorou a presença de Superbicudo e
seguiu em frente. Sentindo sua aceleração, só restou a
Superbicudo correr e correr. Mas não teria chances de
escapar. Quando estava quase sendo atropelado,
Superbicudo acionou as molas de suas botas e saltou para
cima da máquina, pistola de raios em punho:
— Parado aí! Se mexer uma pena eu te... Flora
Senteantes?
SANGUE EM PASTÓPOLIS 83

Capítulo 26

A NOVA ORDEM DE PASTÓPOLIS

— Corra, Superbicudo! — disse Flora Senteantes


— Entre aqui se quiser salvar sua vida! Não temos tempo a
perder!
“Ainda bem que não fui reconhecido”, pensou,
como de costume, o Ronald sob a máscara de
Superbicudo.
— Mas do que a senhora está falando?
— Fatalôncio vai mandar a ilha inteira para os ares!
Nisso, Flora pisou fundo no acelerador, quase
jogando Superbicudo para trás.

*****
— M-m-mas, Fantasma Manchado, você era a
última pessoa que eu esperava encontrar em Grasnópolis...
— Exato, Vagarida. Quando a justiça de Pastópolis
inventou para mim uma pena de 830 anos, sumi da prisão e
vim para esta cidade divina cuidar de meus negócios. Tanto
melhor. Nem preciso usar esta capa preta e sou conhecido
apenas como um empresário respeitável...
— Não me venha com subterfúgios, Manchado. O
que você quer comigo?
— Você está muito nervosa. Sente-se e relaxe.
— Eu vou fazer um escândalo!!!!!
— Ótimo. A Família Pato vai adorar saber onde
está você, a tão “querida” Vagarida...
A noiva de Ronald teve um calafrio.
84 SALOMÃO GLADSTONE

— ... E em segundo lugar, estou tão surpreso


quanto você com todos esses eventos estranhos ocorrendo
em Pastópolis. Eu estava lá, reunido com uns amigos,
quando assisti o roubo da Caixa-forte, a insurreição dos
Patralhas, o aborto acidental e a revolta dos parentes
quando Ronald lhe concedeu a herança.
— E daí...?
— Bem, hoje você está em posição extremamente
vulnerável, mas os negócios das Empresas Petinhas não
podem parar. Praticamente toda a Família Pato vivia às
custas do falecido velhote. Sendo você a proprietária legal
da fortuna, cedo ou tarde a família vai ter que esquecer as
divergências e beijar seus pés.
— Isso é bobagem — esquivou-se Vagarida — A
família vai preferir partir para a vingança. E eu não tenho
como me defender sozinha.
— Por enquanto... Esta é a hora certa para virar a
mesa. Eu quero você na minha chapa na próxima eleição
para a prefeitura de Pastópolis.
SANGUE EM PASTÓPOLIS 85

Capítulo 27

A LISTA CHEIA DE BICHOS

Superbicudo transpirava perplexidade. Numa base


secreta plantada no fundo do oceano, ele tinha diante de si
Flora Senteantes e todo o primeiro escalão sobrevivente da
Família Pato.
— Agora todo o dinheiro de Petinhas — disse
Odorico — está seguramente depositado aqui nas
profundezas, longe dos olhos curiosos e protegido por
tubarões assassinos.
— Isso é uma loucura. Como assim vocês
aproveitam uma distração dos Patralhas, abrem o fundo da
Caixa-forte e roubam todo o dinheiro?
— Roubamos, uma vírgula. A herança de Petinhas
O’Pato nos pertence de fato! Era o único jeito de
salvarmos tudo o que é nosso, pois a qualquer momento o
Fatalôncio pode apertar um botão e varrer a ilha do mapa.
Superbicudo raciocinou:
— Bem, eu não duvido que o Fatalôncio seja
capaz disso. O difícil é descobrir qualquer segredo da máfia
que envolve aquelas empresas.
— É, Superbicudo — Flora Senteantes
interrompeu — Mas o próprio Fatalôncio me confidenciou
todo o plano. Ele disse que precisava dar um fim no ouro
do Petinhas para acabar com o lastro dos Pastobônus e
forçar nossa família a aceitar um acordo humilhante.
— Não acredito que ele tenha entregado o jogo
desse jeito.
— Como eu evitaria saber? Ele fala dormindo.
86 SALOMÃO GLADSTONE

Por um milissegundo Ronald tremeu sob a


máscara de Superbicudo. Tudo estava claro: Flora tinha
dormido com o inimigo, a abominação máxima! Mas os
parentes à sua volta não pareciam se abalar. Os mesmos
que condenaram Vagarida a uma condição humilhante
estavam interessados menos em moral do que em dinheiro.
É uma pena que os parentes não possam ser escolhidos,
como são os amigos.
Mas não era este o único motivo para
preocupação. De repente entra na sala o dono da base
submarina:
— Oi, Superbicudo! Vejo que temos mais um
aliado contra a safadeza da Nova Ordem de Pastópolis —
disse Professor Seligma.

*****
Antes de chamar o rabecão, Muckey escondeu o
envelope de provas comprometedoras sob seu paletó,
deixou uma nota alta entre os dedos do cadáver de Coronel
Contra e um bilhete para os legistas: “Finjam que nada
disto aconteceu”.
Muckey aproveitou uma distração dos colegas da
delegacia e pegou um dos carros de placa fria do
estacionamento. Naquela circunstância, ser reconhecido
poderia fazer muito mal à saúde. Em cinco minutos o
camundongo estava na casa do Pluteta.
— Oi, Muckey... — como de costume, Pluteta
estava deitado diante do sofá, assistindo sua velha televisão
preto-e-branco.
— Ainda bem que você está aqui. Aconteceu uma
coisa terrível! O Coronel Contra não segurou a barra! Ele
deixou estas provas e...
— É, eu já sei de tudo. Leia o jornal de hoje.
SANGUE EM PASTÓPOLIS 87

Pluteta entregou ao amigo uma edição vespertina


amarfanhada de A Pastada. A manchete feriu os olhos de
Muckey: “Patralhas compram polícia”. Abaixo, cópias dos
principais documentos do envelope, fotos de Muckey e
Coronel Contra.
— Isto é uma armação. Contra ousou entregar
tudo aos jornais antes do suicídio!
— Você entrou numa fria, Muckey... Ei, veja
aquilo!
No noticiário de televisão apareciam as imagens de
um “cinegrafista amador” transmitidas algumas horas antes
à redação da emissora. Dinho, Binho e Quinho, amarrados
em camisas de força, choravam pendurados pelo teto
como salames emplumados. Ao fundo, através da porta,
distinguia-se uma cadeira de balanço virada para trás, onde
se sentava uma conhecida pata de saltos altos, vestido rosa
e amplo laço na cabeça.
88 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 28

QUEIMA DE FOGOS

Não apenas Muckey e Pluteta assistiam ao


telejornal.
— Sovina, nosso plano é um sucesso. Visto de
longe, o patandróide do Ronald, vestido e maquiado, é
igualzinho à Vagarida. Agora todos acreditam que Ronald
simulou o acidente na Floresta Negra para seqüestrar os
próprios sobrinhos com a ajuda da Vagarida... e chantagear
o resto da família, claro.
— Família Pato... Aquele bando de boçais não
pode superar talento, criatividade e uma pilha de dinheiro
muito maior que a deles. Bom trabalho, Fatalôncio.
Quando fechamos o negócio?
— Assim que eu lhe conceder o imenso prazer de
apertar o botão, explodir a Caixa-forte e mandar o Ronald
pros quintos dos infernos.
— A ilha... O Ronald ainda não está lá?
— Pouco me importa. O sistema localizador ficou
no meu gabinete. Se por acaso ele se safar dessa, vai chegar
a Pastópolis completamente morto, econômica, moral e
socialmente... O que mais falta para tomarmos conta da
cidade?
— A chegada dos meus navios carregados de
dinheiro, claro! Cinco... Quatro... Três... Dois...
Sovina, na sua cadeira de rodas, deu um sorriso
cínico e pressionou o botão com vontade. Mas àquela
altura a Caixa-forte estava completamente vazia e todos já
estavam longe da ilha — exceto três ou quatro vigilantes
Patralhas que não fariam a menor falta.
SANGUE EM PASTÓPOLIS 89

*****
— Fantasma Manchado, aceito a sua hospitalidade,
mas não posso aceitar uma proposta eleitoral assim de
repente...
— Não há alternativa melhor, Vagarida. É pegar
ou largar.
— Mas você esqueceu que meu filme está
completamente queimado em Pastópolis?
Ninguém vai votar em mim. Eu mesma já perdi
três vezes a eleição para o Clube Feminino. Imagine se eu
concorresse à prefeitura!
— Tire esses pensamentos negativos da sua linda
cabecinha... Especialmente porque logo você será dona da
maior fortuna do mundo e poderá comprar todos os votos
que quiser.
— Hein?
— Segundo meus agentes, os advogados da
Família Pato entraram na Justiça pedindo anulação da
partilha dos bens, pois Flora Senteantes duvida que o
Ronald verdadeiro tenha comparecido ao tribunal.
— Isso não quer dizer nada. Basta conferir as
assinaturas do Ronald.
— Que assinaturas? O prefeito Omar Suíno, com
suas prerrogativas ditatoriais, decretou intervenção no
Poder Judiciário. O juiz Décio Coruja não pode mover um
dedo. Enquanto isso, meus agentes infiltrados na Prefeitura
fazem a festa com os documentos!
Vagarida ouvia tudo, incrédula. Fantasma sentou-
se diante de um computador e pediu para a noiva de
Ronald se aproximar.
— E para quem pensava que isso apenas atrasaria
o processo, veja o que eu faço. Consegui a senha do banco
90 SALOMÃO GLADSTONE

de dados da Justiça de Pastópolis e posso mexer à vontade


nos processos.
— Não entendo nada de computadores, mas...
Isso não é ilegal?
— Sei lá. Mas agora que os originais já viraram
cinza, pouco importa. Neste exato momento — plim! — o
processo de anulação da partilha foi completamente
apagado, e daqui em diante, para todos os efeitos, nunca
existiu na Justiça de Pastópolis.
Ela foi se aproximando, estarrecida, até que quase
encostou o bico no monitor.
— Veja o seu reflexo na tela, Vagarida. Você não
está vendo uma megaquaquilionária instantânea?
Vagarida ficou sem voz, sem saber se grasnava de
raiva ou pulava de alegria.
SANGUE EM PASTÓPOLIS 91

Capítulo 29

A VOLTA DOS QUE NÃO FORAM

— Vamos embora daqui, Pluteta — disse Muckey.


— A barra sujou legal para nós. Temos que fugir de
Pastópolis por um bom tempo!
— “Temos?” Quem está sujo é você. Não tenho
culpa de nada, e não sou eu que fico desfilando em
Pastópolis com carteirinha da Polícia.
— Você não é besta de abandonar o barco agora.
Vamos embora agora mesmo, e ponto final.
— Muckey, quantas vezes tenho que repetir que
não sou a metade do palerma que você imagina? Sempre
fiz vista grossa para todas as falcatruas e nunca levei um
centavo por isso. Agora não me peça para dividir os
prejuízos.
Furioso, Muckey apontou sua arma para a testa de
Pluteta e gritou:
— Tire essa bunda fedorenta desse sofá agora
mesmo e vamos para Grasnópolis! É uma ordem!
— Muckey, você não seria capaz de...
— Vamos andando, já!
Silêncio profundo. Pluteta, acuado, ergueu as mãos
e andou dois passos para trás. Muckey não mexeu um
músculo.
— Tudo bem, Muckey, vamos a Grasnópolis.
Primeiro preciso ir ao banheiro.
Mantido sob a mira da pistola de Muckey, Pluteta
abriu o esconderijo de sua proibidíssima privada: era
preciso arrastar uma velha e pesada estante no centro da
92 SALOMÃO GLADSTONE

sala para tirar uma tábua solta do assoalho e erguer o


diminuto vaso sanitário fabricado no quaquilionário
conglomerado industrial de Fatalôncio. Muckey não
desviou o olhar nem por um segundo. Enquanto abaixava
as calças, Pluteta alcançou no chão, ao lado do vaso, o pote
de vidro que continha seu maior tesouro: os últimos
amendoins mágicos.
— Quer um amendoim, Muckey?
— Como é que você pode pensar em comida
numa situação dessas?
Pluteta engoliu, inteiro, um amendoim. Um
milissegundo depois, voltou a ser o Superpluteta. Muckey
quase caiu de costas.
— Pluteta... Então você é o...
— Sim, Muckey. Agora virou o jogo entre nós,
pois não?
— Tome isto, seu canalha!
Muckey atirou, atirou e atirou no peito de
Superpluteta, até gastar toda sua munição. Nenhum
resultado. Tomado pelo pavor, Muckey jogou a arma no
chão e saiu correndo. Inútil: Superpluteta voou à porta da
casa e conseguiu agarrar Muckey pelas orelhas.
Foi a última coisa de que Muckey se lembrou antes
de levar um supersoco no queixo e acordar no banco de
trás do calhambeque de Pluteta, amarrado, amordaçado e
com os pés presos num bloco de concreto. O velho rato
grunhiu em pânico quando Pluteta parou o carro no meio
da ponte da Baía de Pastópolis.
— Fim da linha. Desculpe, Muckey, mas doeu
mais em mim do que em você. Eu sabia que a máfia me
mataria logo que chegássemos a Grasnópolis, o efeito do
amendoim mágico não duraria mais de meia hora e você
SANGUE EM PASTÓPOLIS 93

não vai sobreviver para entregar o segredo da origem da


superforça...
Pluteta tirou a mordaça de Muckey.
— Você não pode fazer isto comigo! Eu sou o
rato número 1 de Pastópolis! O ídolo da multidão! O
paladino da verdade e da justiça! O que será de Pastópolis
sem mim?
— Nada pior que a bagunça em que está agora...
Mas vamos ao que interessa. Onde está a grana?
— Hein?
— Grana. Tutu, money, argent. Não há outra
explicação. Por que outro motivo você estaria enfiado até o
pescoço nesse mar de lama?
— Não recebi um centavo, Pluteta. Acredite.
— Nem para manter presos ilegalmente os dois
humanos invasores?
— Não sei do que você está falando!
Pluteta carregou Muckey em seu ombro,
preparando-se para jogá-lo ponte abaixo.
— E ainda por cima é mentiroso! Qual é a relação
entre a prisão dos humanos e a negociata dos sanitários? O
que isso tem a ver com o suicídio do Coronel Contra?
Quanto você recebeu do Fatalôncio?
— Você não está fazendo essas perguntas tarde
demais, Pluteta?
— Eu quero respostas. Afinal, você não vai usar
seu dinheirinho quando estiver ancorado no fundo da Baía
de Pastópolis...
Muckey, por cima da cerca enferrujada, viu o
reflexo da lua nas águas salgadas da Baía. Seu destino final
não poderia ser tão inglório.
94 SALOMÃO GLADSTONE

— Você não está falando sério quando diz que vai


me jogar lá embaixo.
— Por que não? E ser otário a vida inteira, eu
posso? Diga logo onde está o dinheiro.
— É uma pena, mas você vai se dar mal.
— Diga logo, seu rato pentelho! — gritou Pluteta.
— Você passou por uma lavagem cerebral. Só
pode ser. Você é meu amigo e vai superar essa fase.
— Está no cofre? No banco? Na conta da Winie?
— Você me solta, leva cinco por cento e eu
prometo nunca mais incomodar. Juro!
— Ora, vá pro inferno, seu... O que é isso?
Cinco viaturas da Polícia frearam ruidosamente em
torno do carro de Pluteta. Com o susto, Pluteta acabou
empurrando Muckey ponte abaixo. Foi apenas o tempo de
apontar um holofote para um Pluteta já acuado e ouvir o
“tchibum” do concreto afundando na Baía de Pastópolis.
SANGUE EM PASTÓPOLIS 95

Capítulo 30

CRIME E CASTIGO

Dez dias se passaram. Descontada a indignação


dos ecologistas com o bombardeio da ilha onde estava a
Caixa-forte — o que julgavam ser uma “simples” manobra
militar do governo de exceção de Omar Suíno — o
ambiente era cada vez mais calmo em Pastópolis. Ninguém
soube de coisa alguma sobre a morte de Muckey (consta
que Winie recebeu uma quantia polpuda para desistir de
procurar seu noivo) e a prisão de Pluteta era dada como
boato até pelos mais esclarecidos. Os cães caucasianos
começaram uma campanha — totalmente legal — de
arrecadação de donativos pela reconstrução de Cinópolis,
sua cidade sagrada. Pouco a pouco, mesmo os austeros
patões de bico largo começavam a ver com melhores olhos
aquela nova movimentação política, e alguns até arriscavam
jogar uma moeda na sacolinha dos cães.
A guarda do cativeiro de Dinho, Binho e Quinho
foi confiada pelo Professor Urubu a Kid Abo e Little Ted
— o que já caracterizava uma alta traição a Fatalôncio,
inimigo da organização criminosa a que pertenciam.
Mesmo sabendo do risco que corria, Urubu tinha que ir a
Passarópolis selar com sangue seu pacto com o chefão da
máfia. Urubu não se abalou: a polícia ainda não tinha
motivos sérios para procurá-lo e seu passaporte
permanecia válido.
No aeroporto de Pastópolis, enquanto esperava na
fila do check-in, Urubu pensava na fortuna que renderiam
suas transações com a nova organização. Uns
megabilhõezinhos que despertariam risadas em Fatalôncio
96 SALOMÃO GLADSTONE

ou Sovina McGrana, mas uma quantia bem superior aos


pequenos golpes dos quais sobrevivera por tantas décadas.
— Nada pode dar errado... Nada pode dar errado...
Os gentis funcionários da Pastópolis Airlines
providenciaram o despacho da bagagem — uma coleção de
armas pesadas e munição, que a alfândega de Passarópolis
não conferiria nunca — carimbaram o passaporte de
Urubu e apontaram o caminho para o portão de embarque.
Urubu alargou os passos e acabou dando um esbarrão com
um cão caucasiano, acompanhado de uma pata de peruca
desalinhada, que vinha em sentido contrário.
— Ei, olhe por onde anda, seu...
Urubu não demorou a identificar o sujeito:
— Fantasma Manchado, seu traidor desgraçado!
— Sujou! O Urubu me descobriu!
Vagarida, com um disfarce ainda mais ridículo que
o da viagem ferroviária, foi puxada por Fantasma
Manchado para fora do aeroporto, onde uma limusine já os
esperava. Urubu tirou uma submetralhadora de sua valise,
correu atrás da dupla e pegou um táxi para persegui-los. De
pé no banco da frente, abrindo fogo através do teto solar,
Urubu transformava a limusine de Fantasma num queijo
suíço, mas o carro não parava. Já perto do centro de
Pastópolis, o motorista de Fantasma, com extrema
habilidade, deu um cavalo de pau, atravessou o carro na
pista e disparou os assentos ejetáveis, lançando a si e aos
dois passageiros a uma distância razoável. O táxi não teve
tempo de se desviar e entrou a 140 quilômetros por hora
no meio da limusine, fazendo explodir os dois carros.
SANGUE EM PASTÓPOLIS 97

Capítulo 31

BATENDO O MARTELO

Os corpos carbonizados e sem identificação de


Vagarida, Fantasma Manchado e Professor Urubu foram
removidos rapidamente e desapareceram nas gavetas do
IML de Pastópolis. Como de costume, os jornais não
disseram uma palavra sobre a tragédia. Mas Fatalôncio
parecia saber de tudo naquela cidade. Ele sabia que Muckey
tinha sido morto por Pluteta, a quem nem todo o dinheiro
do mundo salvaria do pelotão de fuzilamento. Ele conhecia
as mãos sujas que mantinham os sobrinhos de Ronald no
cativeiro. Mas achava que sabia que tinha mandado para os
ares o dinheiro de Petinhas e que seu pacto com Sovina
MacGrana seria um completo sucesso.
E foi com essa confiança que Fatalôncio e Sovina
participaram de uma assembléia muito especial no luxuoso
Teatro Cordélio Flatus: fechando o processo de
emancipação dos cães caucasianos, o prefeito-ditador faria
o leilão das terras históricas tomadas ilegalmente dos cães
caucasianos. Mas a alta sociedade local era mera figurante
no leilão: quem mais, além de Fatalôncio e Sovina, poderia
dispor de tanto dinheiro em Pastópolis?

*****
Estava com muito medo. Não tinha a menor idéia
do que Esther tramava com os Patralhas, a não ser que ela
engoliu uma maldita moedinha, derrotou Begônia Beagle e
passou a ser tratada como semideusa. Pois os Patralhas,
como todos os cães caucasianos, receberam anistia;
Petinhas, o velho inimigo dos Patralhas, estava morto e
98 SALOMÃO GLADSTONE

enterrado, e sua fortuna tinha virado fumaça atômica.


Então, por que é que os sobreviventes do bando
precisavam se armar até os dentes e usar um comboio de
carros blindados para voltar ao centro de Pastópolis? E o
que fazíamos eu e Esther nessa nova megaoperação?
— Desculpe, Alvin. Na verdade, você pode saber,
mas aí eu vou ter que matá-lo... Ordens superiores. A nossa
volta ao mundo dos humanos depende disso.
Seria mais um blefe daquela mulher matreira?
Enquanto isso, as fumacentas viaturas dos Patralhas
avançavam pelo asfalto esburacado. E eu pensava nas
tortas de cereja da mamãe.

*****
Diante da platéia lotada, Omar Suíno tomou o
microfone:
— Meus caros, nós temos a satisfação de mostrar
nosso empenho na reconstrução de Cinópolis, a histórica
metrópole dos cães caucasianos impiedosamente arrasada
por Petinhas e sua malta.
A multidão de antigos aliados de Petinhas soltava
grunhidos de revolta com o inesperado acerto de contas
com o falecido. Suíno prosseguiu:
— Agora que nosso governo, na minha pessoa,
concedeu a cidadania plena aos cães caucasianos, chegou a
hora de reunirmos nossos esforços e nosso capital para
erguer uma nova Cinópolis, uma cidade moderna, orgulho
de todos nós, destinada a ser o maior centro mundial de
finanças e tecnologia.
A platéia, perplexa com a iminente queda de
prestígio de Pastópolis, não dava um pio. Sovina e
Fatalôncio, sentados lado a lado na primeira fila, trocavam
sorrisinhos marotos.
SANGUE EM PASTÓPOLIS 99

— Para isto, o Governo de Pastópolis abre mão


das terras tomadas ilegalmente a quem pagar mais. O lance
inicial é de 50 zaralhões. Alguém?
Fatalôncio levantou a mão, por si e por seu sócio.
— O Consórcio Fatalôncio-McGrana oferece 50
zaralhões. Quem dá mais?
Ninguém se manifestava. Afinal, quase todos
aqueles pseudo-socialites estavam procurando emprego
desde a morte do Petinhas.
— Dou-lhe uma...
— Está no papo, Sovina!
— Dou-lhe duas...
— 200 zaralhões! — ouviu-se uma voz no fundo
do corredor central.
— Superbicudo?
Ato reflexo, todos os presentes engoliram em seco.
— Sim, eu mesmo, Superbicudo, o defensor de
tudo que é de fato e de direito da Família Pato! Se acharem
pouco, eu pago 300, 400, 500 zaralhões!
— Eu vou estrangular esse desgraçado agora
mesmo! — grasnou Fatalôncio, roxo de raiva.
— Calma, Fatalôncio — disse Sovina, apontando a
bengala para a barriga de seu sócio — Deixe para lá. Esse
garoto está delirando. Quem mais tem dinheiro em
Pastópolis, sem o dinheiro do Petinhas?
— Mentira! A Caixa-forte foi para os ares, mas o
dinheiro está a salvo. E é todinho meu!
— Quem é você para dizer isso?
Então Superbicudo tirou a máscara diante da
boquiaberta alta sociedade de Pastópolis.
100 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 32

A HORA DA VERDADE

— Há algo errado aí! — grasnou Fatalôncio ao ver


Superbicudo desmascarado — Ou você não é o Pato
Ronald coisa nenhuma, ou você é o Ronald se fazendo
passar por Superbicudo!
— Nada disso, seu velho corrupto. Eu sou o
Ronald mesmo, e sempre fui o Superbicudo. Não
contavam com minha astúcia...
— Você é um pato morto, Ronald! Eu vou
arrancar suas penas, uma por... Aaaaaargh!
Com um tiro certeiro de sua pistola de raios,
Ronald (digo, Superbicudo) pôs Fatalôncio a nocaute. Em
seguida, acionou suas botas com molas e saltou ao palco,
onde encontrou um Omar Suíno mais assustado que
qualquer pessoa do auditório.
— Como é, excelência? Quem vai levar as terras
dos cães caucasianos?
— E eu vou lá saber se você está blefando,
Ronald?
— Quer saber mesmo? Lá vai bomba, Omar!
Dito isto, um enorme saco de dinheiro despencou
sobre a cabeça do prefeito de Pastópolis como um piano
que cai do vigésimo andar. Sem saber se Omar Suíno
sobrevivera à pancada, Ronald deu outro hiper-salto para o
lado, abrindo espaço para a queda de centenas e centenas
de sacos sobre o palco. Sovina ainda tentava acordar
Fatalôncio. Ao ver a chuva de dinheiro, Sovina é que
precisou de cuidados médicos.
— Pode descer, pessoal!
SANGUE EM PASTÓPOLIS 101

Liderados por Flora Senteantes, os membros


remanescentes da família Pato, um a um, desceram ao
palco por uma corda. Todos, até os menininhos, estavam
armados até os dentes.
— Acho que isto dá e sobra para cobrir qualquer
oferta desses dois ziliardários picaretas — disse Ronald,
truinfante. — E há muito mais de onde veio este dinheiro.
Alguma dúvida?
— Não sei como você conseguiu salvar o dinheiro
do seu tio, mas neste leilão não há lugar para a família Pato!
— Omar Suíno? Como você se salvou?
Quase inteiro, como que renascido das cinzas, o
prefeito-ditador ressurgira no poço da orquestra, sob os
olhos incrédulos de todos.
— Foi um milagre. Com o peso do dinheiro, caí
num fundo falso do palco. Mas o mais importante continua
de pé: minha autoridade de líder supremo de Pastópolis.
— E por que eu não posso participar do leilão?
— Porque não pode, e acabou! Este era para ser
um negócio honesto e transparente, mas se for para dar
fim aos dias de poder da família Pato, tenho que abrir uma
exceção. Guardas! Fogo neles!
Os parentes de Petinhas entraram em posição de
combate quando viram as centenas de soldados da guarda
de honra de Omar Suíno cercando o auditório. Num piscar
de olhos, Ronald sacou uma bomba de fumaça e a atirou
no meio da platéia. O público, desnorteado, começou a
correr para todos os lados em busca da saída do teatro.

*****
Ao menos por fora, o Teatro Cordélio Flatus era
um monumento. De longe, já impressionava. E quanto
102 SALOMÃO GLADSTONE

mais o comboio dos Patralhas se aproximava, menos o


teatro se parecia um local para se pagar dívidas com
sangue.
No entanto, era lá mesmo o ponto final da nova
missão dos Patralhas. Se eles já tinham conseguido arrancar
do chão a Caixa-forte, por que fracassariam agora? No
entanto...
— Ih, pessoal! — gritou Esther. — Acho que
chegamos à festa um pouco tarde demais...
Em desespero, dúzias de velhotes metidos a
aristocratas, de casacas e vestidos longos, desciam aos
tropeções a escadaria do teatro. Rolos de fumaça branca
saíam de todas as janelas; os estrondos dos tiros ecoavam
como trovões.
— E aí, Alvin? Vamos encarar mais essa?
— Vamos na frente, Esther — disse eu. — Nós
somos imunes aos tiros pastopolenses.
— Deixe essa comigo, Alvin. Fique na retaguarda
com os Patralhas enquanto eu faço o serviço. Até logo,
amiguinho...
Então ela me surpreendeu quando se despediu de
mim com um beijo longo, ardente e altamente energético.
E nem mesmo era efeito da Moedinha da Sorte. Que
mulher!
Seguida por uns trinta Patralhas, Esther abriu
caminho entre a debandada do público dando tiros para o
alto. Encolhidos entre as poltronas, os amedrontados
Omar Suíno, Fatalôncio e Sovina assistiam à troca de tiros
entre a família Pato e os soldados de Pastópolis. O sangue
dos mortos dos dois lados da batalha tingia de vermelho o
tapete dos corredores. Até que Esther entrou no auditório,
fechou os olhos e gerou em torno de si uma luz violeta
SANGUE EM PASTÓPOLIS 103

intensa e crescente. Subitamente, todos jogaram suas armas


no chão. Ronald e Esther olharam nos olhos um do outro.
— Não está faltando algo fundamental para a sua
fortuna, Ronald? Venha aqui pegar, se você for homem...
Digo, pato... Digo, ah, sei lá, ora!
104 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 33

TEATRO DE OPERAÇÕES

— Veja só quem temos aqui... A brilhante Esther,


neste caso, literalmente brilhante... O que aconteceu com
você, menina? Engoliu uns vaga-lumes? Rá, rá, rá!
— Pato Ronald, seu pulha! Se você realmente
sentisse o drama, não estaria dando uma de engraçadinho
numa hora tão imprópria... Como é que você vai manter
essa grana toda sem os poderes da Moedinha da Sorte do
seu tio?
— Nem pense em me impressionar com as
superstições do velho muquirana... Aaaaaaaaaaaaargh!
Com um leve supersopro mágico, Esther atirou
Ronald contra o monte de sacos de dinheiro. Apavorados
com o suposto milagre, os guardas de Omar Suíno saíram
correndo. Os Patralhas avançaram e se posicionaram em
formação de combate.
— Viu só? Da mesma forma que fiz isto, posso
usar os poderes da Moedinha para transformar toda a sua
fortuna em pó de traque.
— Pelo menos por enquanto. Humanas mortas
não fazem truques!
Dito isso, Ronald sacou do bolso de trás uma
legítima pistola do mundo dos humanos, a única arma que
poderia ferir Esther.
— Ouse puxar esse gatilho, Ronald! Eu engoli a
Moedinha; agora ela faz parte de cada uma das células do
meu corpo... Se você me matar, a Moedinha vai junto.
Quer dar um fim à galinha dos ovos de ouro?
Ronald deu um passo para trás.
SANGUE EM PASTÓPOLIS 105

— O que você quer com isso, Esther?


— Nada de extraordinário. Alvin e eu queremos
nos livrar desta terra desgraçada e voltar ao nosso
verdadeiro mundo. É claro que assim você ficará sem
Moedinha, e em pouco tempo, sem dinheiro e sem razão
de existir neste mundo. Mas para mim, francamente, isto é
apenas um detalhe sem importância...
— Ah, é, é? E o retorno ao seu mundo, com a
Moedinha dentro de si, não vai causar perturbação
nenhuma? Já pensou nisso? Considerando que não será
surpresa se a Moedinha fritar suas entranhas assim que
você sair de Pastópolis, deixe-me fazer o serviço sujo aqui
mesmo. Eu terei o poder da Moedinha, nem que tenha que
beber todo o seu sangue!
— Nem pensar, Ronald! Você é apenas um
usurpador desprezível, um inútil que passou seus melhores
anos esperando a morte do Petinhas e jamais mereceu um
centavinho sequer de herança. É fácil notar por que o
velho desconfiava tanto da própria família que deixou toda
a grana para Flora Senteantes.
— O testamento desaparecido é uma farsa! Para
nomear Flora como única herdeira, titio só podia estar de
porre...
— Veja lá como fala do meu amado Petinhas! —
grasnou Flora Senteantes, saltando como uma fera sobre o
pescoço de Ronald. Num piscar de7 olhos, Esther se
aproveitou da distração de ambos: um tiro certeiro na testa
de Flora assinalou o ponto final da disputa pela herança de
Petinhas.
106 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 34

GATILHOS RÁPIDOS

— Raios! Errei por pouco! — lamentou Esther,


ainda com os braços rígidos segurando a arma fumegante.
— Mas eu acertei na mosca, digo, na pata... Rê, rê,
rê! Bem que algo me dizia que eu não podia confiar na mira
de uma mulher humana...
— Fatalôncio! Eu pensei que você quisesse matar
o Ronald, não a Flora Senteantes.
— Águas passadas, Esther. Considerando os fatos
novos da disputa de poder em Pastópolis, Ronald vale mais
vivo do que morto.
— É duro admitir, Fatalôncio, mas obrigado pelo
grande favor — disse Ronald. — Pelo menos não teremos
nenhuma velhota esclerosada dizendo ser a única legítima
herdeira da bufunfa de Petinhas...
Esther voltou-se para o acuado Omar Suíno.
— E então, excelência? Como autoridade suprema
de Pastópolis, não vai dar voz de prisão a Fatalôncio?
— Quem, eu? Flora Senteantes nem era cidadã
pastopolense...
— Chega de conversa fiada, seus moleques! —
grasnou Sovina McGrana. — Nós estamos aqui para
decidir o destino de nossa existência e vocês ficam se
preocupando com mesquinharias de herança?
— Cale-se, Sovina! — disse Ronald,
instintivamente apontando a arma para o velho
megazilionário e puxando o gatilho. Naquele momento,
com um pequeno estrondo, os dias de Sovina sobre a Terra
chegavam ao fim.
SANGUE EM PASTÓPOLIS 107

— Ronald! — grasnou de volta Fatalôncio — Viu


o que você fez? Você matou o Sovina! E, pior ainda, sujou
de sangue meu terno novinho! Você me paga, seu pato
desgraçado!
Esther deu um passo para frente, curiosa:
— Espere aí, Ronald... A sua arma não deveria
funcionar só contra humanos?
— É... Algo deu errado, mas não importa. Agora é
a sua vez, Esther!
Ronald disparou contra Esther todas as balas
restantes. Nada aconteceu: as balas passavam pelo peito de
Esther como se atravessassem uma sombra. Num acesso
de fúria, Ronald atirou a arma no chão.
— Malditos! A munição foi trocada!
— Que legal, Ronald! Estão isto muda o equilíbrio
de forças entre nós. Agora você não passa de um patinho
desarmado, cheio de dinheiro inútil, contra uma mulher de
poderes imensos. E como testemunhas, um empresário
picareta, um ditador de araque e os presuntos de dois
bicudos da terceira idade.
— O q-q-que v-v-ocê quer dizer com isso, Esther?
— Você é insignificante. Não me fará a menor
falta. Vou sair deste inferno de Pastópolis levando o poder
da Moedinha comigo, por bem ou por mal.
— Você está blefando...
— Eu sei que, quando voltar ao mundo dos
humanos, posso causar uma desestruturação na ordem das
coisas. Mas não quero nem saber. Por minha liberdade,
vale a pena lutar.
— Não, Esther! Poupe-me! Poupe-me!
Ainda com o dedo no gatilho, Esther caminhou
lentamente em direção a Ronald. O poder da Moedinha
estava elevado como nunca. Um ofuscante halo
108 SALOMÃO GLADSTONE

multicolorido circundava a pistoleira. Assustados com a


cena, os Patralhas bateram em retirada. Atrás dos sacos de
dinheiro, a família Pato assistia, incrédula.
— Você escolhe, seu pato nojento: prefere ter uma
morte limpa e sem dor agora mesmo, ou ser consumido
lentamente pelo desgosto por ter a grana de seu tio sem o
poder da Moedinha?
Ronald estava sem fala. Esther parou de andar,
olhou o branco dos olhos de Ronald, começou uma
angustiante contagem regressiva e puxou o gatilho. Mas
algo desceu arrebentando o telhado e deteve a bala.
SANGUE EM PASTÓPOLIS 109

Capítulo 35

MOÇA FAZ MAL A CACHORRO

— Quem mandou você se meter onde não é


chamado, Superpluteta? — disse Esther. — Isto aqui é
assunto entre mim e o desprezível Ronald.
— Ah, é, é? O Ronald pode ser desprezível, mas
eu ainda tenho que arrancar uma nota preta dele.
— Hein? — espantou-se Ronald.
— Sim, seu patinho fedorento! Eu tenho em
cativeiro os seus três queridos sobrinhos...
Ronald ficou de penas em pé. Superpluteta
prosseguiu:
— Na verdade, eu sempre estive por trás de todo o
plano de seqüestro. O falecido Professor Urubu só fez o
trabalho sujo. Meu único problema era cobrar o resgate
quando ninguém sabia o destino da grana do Petinhas e eu
não tinha como usar meus “meios de pressão” regulares...
Para ressaltar a importância de seus poderes,
Superpluteta arrancou do chão, com uma mão só, uma
fileira inteira de poltronas. Com a facilidade de quem
brinca com uma bolinha de papel, atirou as poltronas pelo
teto, fazendo grande estrondo.
— E como você recuperou seus poderes?
— Sei lá. Só sei que eu estava na cadeia, vi um
grande clarão...
Esther entendeu tudo. Era mais um efeito da
Moedinha da Sorte.
— ...E me transformei de volta em Superpluteta
sem engolir nenhum amendoim mágico. Melhor ainda, até
110 SALOMÃO GLADSTONE

agora o efeito da transformação não passou! Tanto melhor:


os amendoins mágicos têm um gosto horrível...
— Sinto muito, Superpluteta — disse Esther. —
Você não pode cobrar resgate nenhum de Ronald, pois
morrerá antes de ver a cor do dinheiro.
— Olha só quem fala!
Superpluteta encheu os pulmões e usou seu
famoso supersopro contra Esther. A humana acabou
sendo arremessada contra uma coluna próxima. Sem se
abalar, Esther limpou a poeira e bradou:
— Você chama isso de golpe? Realmente, não se
fazem mais super-heróis como antigamente.
Como um touro em fúria, Esther avançou contra
Superpluteta, preparando-se para desintegrá-lo com uma
cusparada sulfúrica. Antes que ela pudesse tentar qualquer
coisa, Superpluteta acertou-lhe um chute certeiro na
barriga, lançando-a ao ar como uma bola de futebol. Esther
acabou pendurada no candelabro do teatro.
— E agora, Esther? Doeu ou não doeu? Desça já
para apanhar de novo!

*****
Essa batalha de superpoderes não renderia coisa
boa. Todos estavam distraídos esperando o resultado. Até
que eu tive uma idéia brilhante. Sem ser notado, esgueirei-
me pelos cantos do teatro e puxei a perna do acuado
Ronald.
— Ronald? Tenho que fugir para o mundo dos
humanos. Venha comigo.
— Está louco?
— Nenhum de nós dois vai se dar bem com o
resultado dessa luta, qualquer que seja. Superpluteta morre,
SANGUE EM PASTÓPOLIS 111

seus sobrinhos morrem. Esther morre, a Moedinha morre.


O que é melhor do que escapar de tudo isto?
— Hummmmm...
— Vamos, Ronald! Pegue dois sacos de dinheiro
para subornar os guardas pelo caminho. Eu posso dirigir
um dos carros dos Patralhas.
— Vamos! Eu conheço uma saída secreta pelo
esgoto. Logo estaremos na rua. Ninguém vai notar.

*****
Em poucos segundos Esther desembaralhou as
ferragens do candelabro e voltou à ativa, mais enfurecida
do que nunca. Superpluteta olhava Esther com desprezo.
— Vai tentar o quê, sua humana insignificante?
— Tome isto!
Brilhando de energia multicolorida, Esther fechou
os olhos, abriu a boca e soltou uma enorme bola de fogo
que acertou Superpluteta em cheio. O super-herói se
contorceu de dor. Aproveitando a distração momentânea,
Esther soltou mais duas, três, quatro bolas, deixando
Superpluteta caído ao chão.
— Você me paga, Esther!
Com sua visão de calor, Superpluteta derreteu a
corrente que prendia o candelabro. Mas Esther pressentiu a
queda e deu um grito lancinante, saltando sobre o próprio
Superpluteta.
Uma luz ofuscante envolveu os dois. No fim, só se
via o Superpluteta.
— Onde está você, Esther?
Disse uma voz de dentro de Superpluteta:
— Minhas células se misturaram às suas células.
Agora somos um só!
112 SALOMÃO GLADSTONE

— E o que está crescendo deste jeito dentro de


mim?
Envolto numa esfera de luz branca, Superpluteta
começou a inchar como um balão até explodir em um
milhão de pedaços. Os espectadores, incrédulos, se
aproximaram para ver o resultado da luta. Nem sinal de
Esther por entre o cheiro de carne de cachorro queimada.
No chão, a Moedinha da Sorte.

*****
A fuga de Alvin e Ronald para o mundo dos
humanos foi um sucesso. Hoje Ronald trabalha recebendo
turistas num parque temático, o único lugar onde ninguém
acreditaria que ele fosse ele mesmo.
O cativeiro dos sobrinhos de Ronald foi
estourado pela polícia de Pastópolis. Oito bandidos foram
mortos (incluindo peças-chave da máfia) e seis foram
dados como desaparecidos, mas os meninos saíram vivos
para dividir a herança de Petinhas. Depois de brigas e mais
brigas, ninguém mais se fala na Família Pato.
Sovina MacGrana não deixou herdeiros. De
acordo com seu testamento, toda sua fortuna foi destinada
ao Clube dos Criadores de Gatos da África do Sul. E
Sovina sempre detestou gatos.
Fatalôncio continua rico, mas não tanto. O fim
do puritanismo da Era Petinhas foi um golpe de morte no
segredo que envolvia os vasos sanitários de Pastópolis, o
que abriu o mercado para inúmeros outros fabricantes.
Fatalôncio foi obrigado a diversificar ainda mais seus
negócios, incluindo alguns investimentos furados em
empresas de Internet. Mas não foi por isso que ele deixou
de ser o pato mais rico de Pastópolis desde a morte de
Petinhas.
SANGUE EM PASTÓPOLIS 113

Omar Suíno superou as expectativas e cumpriu


seu mandato até o fim. Os cães caucasianos mantiveram os
direitos civis conquistados, mas a ditadura de Omar não
sobreviveu mais que alguns meses. O regime democrático
não garantiu a popularidade do prefeito. Ao entregar a
faixa a seu sucessor, Omar só conseguiu conter as vaias do
povo quando prometeu abandonar definitivamente a vida
política.
Como resultado da divisão da fortuna de Petinhas,
os Patralhas se dividiram em dezenas de facções rivais, em
eterna luta umas contra as outras e todas contra todos
(Fatalôncio, Família Pato, governo de Pastópolis).
Atualmente o maior conflito entre os Patralhas diz respeito
aos direitos autorais da marca “Irmãos Patralha”.
Esther reapareceu milagrosamente na cela
acolchoada de um hospital psiquiátrico em Los Angeles,
aonde já não chegou muito bem da cabeça. Muitas drogas
depois, embirutou de vez. Ninguém parece acreditar que
ela voltou de um mundo de patos e cachorros falantes.
Jamais foi reencontrada pela Organização.
Alvin resolveu viver uma vida honesta. Depois de
entregar todos os chefes da Organização (o que não
adiantou muito, pois já eram figurinhas manjadas do FBI),
Alvin entrou no Programa de Proteção à Testemunha,
trocou de nome, fez uma operação plástica e tornou-se
especialista em criação de galinhas.

*****
*****
*****
Livro II

Pato ao Molho Pardo

Como a pacata e conservadora cidade dos patos chegou à


barafunda que conhecemos em Sangue em Pastópolis? Pato ao
Molho Pardo acompanha o rastro de tragédia dos primeiros
habitantes de Pastópolis que se aventuraram no mundo dos humanos.
No centro de tudo, a indústria que nenhum pastopolense ousava
admitir que existia: um negócio tão lucrativo quanto mortífero,
disputado bico a bico por magnatas sem escrúpulos e mafiosos
sanguinários, todos aparentemente incapazes de reconhecer a fria em
que se metiam.
Como na pirueta cronológica de Guerra nas Estrelas, Pato
ao Molho Pardo conta o que veio antes de Sangue em
Pastópolis. Portanto, considere zerada a contagem de cadáveres do
folhetim anterior. Mas ainda vamos dar muito trabalho ao sindicato
dos coveiros. Pode contar com isso.
Capítulo 1

A noite de Pastópolis era quente e úmida como


não se via desde quando o velho Petinhas ainda tinha
cabelos pretos. Mal passava das dez horas; quase todos os
laboriosos e conservadores pastopolenses já dormiam (ou
pelo menos tentavam) sob o bafo quente dos ventos do
norte. A não ser aqueles que tinham negócios muito
importantes a esconder.
Por exemplo, Vagarida e seu amante no mirante do
Monte Patal.
No interior daquele carrão antiquado, do tipo que
só se vê em histórias em quadrinhos, a cena era triplamente
arriscada. Primeiro, Vagarida era noiva. Segundo, a família
de seu noivo seria capaz de mover até o último quaquilhão
da Caixa-forte para vingar a traição de Vagarida. Terceiro, e
pior de tudo: se em Pastópolis nem o sexo entre indivíduos
da mesma espécie é bem tolerado, imagine um caso
amoroso entre espécies diferentes.
— Já pensou se a polícia nos descobre? —
provocou o amante de Vagarida. — Nós dois vamos parar
no pelotão de fuzilamento.
— Isso não é nada, meu bem... Já pensou se a
família do Ronald nos descobre? Vai ser muito mais cruel
do que qualquer fuzilamento.
— Não se eu passar fogo primeiro na polícia
inteira... Rá, rá, rá! Agora vem, meu docinho... Entregue-se
por inteiro... Hummmmm...
De repente, um forte solavanco quase joga o carro
ladeira abaixo.
— Que foi isso, Vagarida?
— Hein?
118 SALOMÃO GLADSTONE

— Deram o maior porradão na traseira!


— Mas você nem botou ainda...
— O maior porradão na traseira do carro, sua
depravada! Esse barbeiro me paga!
O amante de Vagarida, um cão caucasiano mal-
encarado de uns dois metros de altura, abotoou as calças e
saiu com um revólver na mão para acertar contas com o
motorista desastrado. De dentro do outro carro, uma voz
fina bem familiar:
— Não me mate, patrão! É por uma boa causa!
— Pancrácio Mergulhão! O que você está fazendo
aqui, seu verme?
— Desculpe, patrão, mas eu tinha que encontrá-lo
de qualquer jeito. Descobriram o lance da parada!
— O quê? O lance da parada? Tem certeza?
— Tenho.
O grandalhão guardou a arma e voltou correndo
para seu próprio carro.
— Vagarida, foi mal... Fica pra próxima. Tenho
que cumprir uma operação de emergência. Saia agora
mesmo, pegue um táxi por minha conta e finja que nada
disto aconteceu.
— Que pena... E depois, você me liga?
— Talvez. Com todos esses grampos por aí, todo
cuidado é pouco.
Os dois carros saíram cantando pneus, deixando
Vagarida a xingar as desventuras do destino:
— É por isso que eu odeio sair com esses caras da
Organização!

*****
PATO AO MOLHO PARDO 119

No mundo dos humanos, que os pastopolenses


mal acreditavam que existia, também havia algo de podre
no ar. E não era só o cadáver da velhinha, encontrado num
ônibus da Viação Cosmeta. Acima de tudo: por que é que
surgiu do nada um agente do FBI para investigar um crime
desses no Brasil?
Porém, na rodoviária de Piracicaba, ninguém
parecia estar espantado com a presença do agente Todd
McLay na malcheirosa cena do crime, não só passando o
pente fino no ônibus, como dando ordens à polícia local.
Naquele momento, só McLay e a falecida permaneciam
dentro do cordão de isolamento; o agente repassava
mentalmente as pistas:
— A passageira Elvira dos Prazeres embarcou no
Rio de Janeiro com destino a Piracicaba. Em algum ponto
da viagem, Elvira foi morta com uma facada certeira no
abdome. Nenhum outro passageiro notou qualquer
movimento estranho. Não foi latrocínio; aparentemente,
nenhum dos pertences de Elvira foi mexido. O corpo foi
deixado com a cabeça encostada na janela, coberto por
uma manta, e com um travesseiro sobre o corte abdominal.
Antes do ponto final, ninguém notou nada. A principal
suspeita: uma passageira que desembarcou na parada do
almoço e não apenas não reembarcou, como desapareceu
sem deixar qualquer pist...
Nisso, os olhos do agente McLay brilharam ao
encontrar algo sobre a poltrona ao lado do cadáver. Uma
pena de pato.
Como nos filmes, McLay a recolheu
cuidadosamente com uma pinça e a depositou num
envelope plástico. O agente comentou consigo mesmo:
— E esta é apenas a primeira. Vem um longo
rastro de penas por aí...
120 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 2

O que o agente Todd McLay tinha a ver com o


caso da velhinha morta no ônibus em Piracicaba? Não
havia nada de especial naquele caso que pudesse interessar
à investigação do FBI. No entanto, pela rapidez com que
McLay surgiu na cena do crime, ele parecia estar na hora
certa no lugar certo para... Afinal, qual era a do agente
McLay?
Era tudo que o delegado Seixas queria saber.
Quando McLay desceu do ônibus, sem ter mexido no
cadáver e com a misteriosa pena de pato envelopada no
bolso, o chefe do distrito local o esperava na porta.
— Com licença, cidadão. Quem você pensa que é
para atravessar um cerco da polícia sem autorização prévia?
Imediatamente, o agente mostrou seus
documentos.
— Todd McLay, FBI, Operações Especiais
Criptozoológicas.
— FBI? Meu filho, que é fã de Arquivo X, tem uma
carteira de mentirinha igual à sua! Rá, rá, rá! — disse o
delegado, sem tirar os olhos das letrinhas miúdas da
carteira — Mas vamos deixar de brincadeira, pois esta é a
minha jurisdição e o caso da velhinha morta é meu cas...
Nisso, McLay começou a mover rapidamente em
círculos a mão que segurava a carteira, de modo a distrair o
delegado, Com a outra mão, tirou do bolso do paletó uma
latinha vermelha e lançou um gás sobre o rosto de Seixas,
deixando-o levemente atordoado.
— Delegado, este não é um caso comum. O
futuro da civilização ocidental como a conhecemos está em
perigo! Você precisa nos ajudar nesta investigação, ou será
pior para todos nós.
PATO AO MOLHO PARDO 121

— Sim, senhor.
— Para começar, preciso da lista de passageiros do
ônibus com os dados completos de cada um, e tenho que
chegar o mais rápido possível ao ponto de parada de
almoço onde desapareceu a passageira misteriosa.
— Claro, senhor. É pra já.

*****
Morta de vergonha, Vagarida pegou um táxi de
volta para casa. Todo cuidado era pouco: para despistar os
vizinhos enxeridos, o jeito era dar mil voltas por Pastópolis
antes de chegar ao destino. Tudo bem; era o homem da
Organização que pagava a corrida. Ainda assim, ao virar a
esquina, Vagarida toma um susto:
— Quaaaaaac! Motorista, mudança de planos:
passe direto e me deixe na Avenida Cordélio Flatus
número 200.
— Como quiser, madame.
Encolhida no banco o mais que podia, Vagarida
nem pôde observar detidamente a expressão de ódio de
seu noivo Ronald, andando de um lado para o outro em
frente ao portão de sua casa. Mas Vagarida sabia melhor
que ninguém o que se passava na cabeça de Ronald. O jeito
era se abrigar no apartamento de sua amiga Eugênia Paturi
até achar um jeito de acalmar os ânimos da família Pato.
Vagarida subiu a passos largos os dois andares de
escada e tocou a campainha.
— Quem é?
— Sou eu, a Vagarida! Estou com um problemão.
Posso passar a noite aí?
122 SALOMÃO GLADSTONE

— Claro, amiga — disse Eugênia, em sua voz


inconfundível. — Espere um pouquinho que vou pegar a
chave.
Minutos depois, a porta se abre e revela uma cena
apavorante. Eugênia estava amordaçada e amarrada numa
cadeira. A seu lado, Coronel Contra esperava a entrada de
Vagarida.
PATO AO MOLHO PARDO 123

Capítulo 3

— Coronel Contra, o que você está fazendo aí


com a Eugênia toda amarrada? — grasnou Vagarida,
incrédula e de penas arrepiadas.
— Pois você é quem mais deve explicações aqui.
— o coronel aproximou-se da porta, chegando bem perto
de Vagarida. — O que você estava fazendo com um
criminoso condenado na escuridão do mirante do Monte
Patal?
— Francamente, isso não é da sua cont...
Coronel Contra, irritado com a insolência, ergueu
sua grande mão e deu um forte tapa no bico da noiva de
Ronald.
— Deixe de se fazer de besta, sua vadia!
Desembuche!
— Você vai se arrepender! — choramingou
Vagarida — Tio Petinhas vai saber disso...
— É claro. Foi ele mesmo que me mandou aqui
quando soube o que você andava fazendo.
— Não é possível... Será que até nos campos de
petróleo do Alasca ele sabe da minha infidelidade?
— Rá, rá, rá! Quem falou em infidelidade,
Vagarida? O Petinhas tem muito mais a se preocupar.
Mafiosos armando para dar fim a seu império empresarial,
por exemplo...
Vagarida quase caiu de costas. Coronel Contra se
afastou e começou a desamarrar a inquieta Eugênia.
— Desculpe o mau jeito... Mas eu sabia que
Vagarida viria direto para cá ao menor pressentimento de
ameaça.
124 SALOMÃO GLADSTONE

O telefone tocou. O coronel atendeu com a


convicção de já saber quem estava do outro lado da linha.
— Oi, Muckey. Tudo correu melhor do que o
esperado. Pode vir para cá correndo: a noite promete!
Enquanto isso, Vagarida ficava a pensar como
faziam falta os apetrechos de seu kit de super-heroína.

*****
Como a maioria dos restaurantes de beira de
estrada, aquele também servia uma comida meio sebenta
que custava uma nota preta. Mas nem a comida nem o
preço contribuíram para matar quem quer que fosse... Pelo
menos não neste caso.
Pegando carona numa ambulância cedida pelo
delegado Seixas, Todd McLay conseguiu chegar ao
restaurante em menos de uma hora. E com o acesso às
informações certas, o agente do FBI já tinha na ponta da
língua a descrição da passageira da Viação Cosmeta que
desaparecera naquela mesma parada e tornara-se a suspeita
número 1 do assassinato da passageira da poltrona ao lado.
McLay já foi logo perguntando à mocinha que distribuía na
entrada os cartões de consumação:
— Por acaso você viu entrar aqui na hora do
almoço uma mulher de uns cinqüenta anos usando saltos
altos, saia preta e blusa azul de mangas compridas?
— Que estranho... Foi o mesmo que o outro
sujeito acabou de perguntar.
— Quem?
— Aquele de terno preto que está indo para o
banheiro.
— Hein????? Vou resolver isso já.
PATO AO MOLHO PARDO 125

Num acesso instantâneo de fúria, McLay saiu


correndo rumo ao banheiro, pronto para voar no pescoço
do outro homem, enquanto a mocinha gritava:
— Ei, espere! O senhor se esqueceu de pegar o
cartão de consumação!
126 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 4

— Ei, você! Volte aqui! — gritou Todd McLay,


enquanto corria atrás do estranho homem de preto.
Nem foi necessário. Foi só ouvir os passos rápidos
para o homem sair correndo com um desempenho digno
de um atleta olímpico. McLay ignorou os olhares
incrédulos dos transeuntes e perseguiu o homem banheiro
adentro. Era um daqueles salões enormes com quarenta
mictórios, vinte cabines e lavatórios incontáveis. Bem no
meio, McLay se jogou ao chão e, como um jogador de
futebol americano, agarrou as pernas do homem.
— Quem é você? O que você está fazendo aqui,
seu cachorro?
O sujeito, porém, nada dizia enquanto buscava se
desvencilhar do agente do FBI. A esta altura, os dois
estavam enganchados como lutadores de jiu-jítsu. McLay
não poupava energia para imobilizar o estranho, mas seu
adversário era fortíssimo. De repente, McLay acertou um
soco que entortou o rosto do sujeito. Literalmente. Era
uma máscara.
— Ei, o que é isso?
O agente puxou a máscara. O homem era um pato
disfarçado! Aproveitando-se da surpresa de McLay, o
homem-pato escapou da imobilização, correu para uma das
cabines e mergulhou de cabeça no vaso sanitário,
desaparecendo magicamente sem deixar vestígios.
McLay, de queixo caído e ainda segurando a
máscara, não podia acreditar no que vira. Menos ainda
quando, às suas costas, saiu de outra cabine ninguém
menos que Fatalôncio, o magnata número 2 de Pastópolis,
PATO AO MOLHO PARDO 127

— Todd McLay, agora que você sabe o que não


deve, você tem duas chances: ou morre aqui mesmo, ou
passa para o nosso lado.

*****
De volta a Pastópolis...
— Vagarida, a situação está preta para seu tio
Petinhas — filosofou Muckey, andando de um lado para o
outro na sala do apartamento de Eugênia. — Os Irmãos
Patralhas estão loucos para roubar a grana do velho, e você
e o Ronald babam pelo dia em que herdarem aquela
fortuna. Mas não são só vocês que querem puxar o tapete
do Petinhas.
— Quem mais? — perguntou Vagarida.
— Pensei que você soubesse. Afinal, você tem
uma graaaaande intimidade com alguns importantes nomes
da conspiração mafiosa...
— B-b-bem, eu saio com uns caras por aí só para
me divertir mesmo... Eu nunca misturo negócios com
lazer.
— Talvez eu possa refrescar sua memória. Cerca
de duas horas atrás você estava bem próxima (se é que me
entende) de Otávio “Navalha” Buldogue, peça-chave da
sociedade secreta dos cães caucasianos, condenado cinco
vezes por formação de quadrilha, atualmente investigado
por sérias suspeitas de contato dimensional clandestino.
— Contato o quê?
— Artigo 4897 do Código Penal Pastopolense.
Realizar, ou mesmo tentar, a transferência de pessoas,
animais, objetos e informações do nosso mundo para o
mundo dos humanos ou vice-versa por meios diferentes
dos autorizados por lei. Pena: morte por fuzilamento ou
128 SALOMÃO GLADSTONE

afogamento na Baía de Pastópolis, conforme a escolha do


juiz.
— Resumindo: Otávio deve estar tramando com
os humanos — disse Coronel Contra.
— E como é que os humanos podem ajudar a
Organização a passar a perna no Petinhas?
— É isso que nós não sabemos. Você vai ter que
seduzir os caras da Organização, um a um, para que
contem tudo que sabem. O que não disserem na vertical,
hão de dizer na horizontal.
PATO AO MOLHO PARDO 129

Capítulo 5

Todd McLay quase caiu de joelhos ao ver


Fatalôncio diante de seus olhos, inteirinho, em carne, osso
e penas. Era o apogeu de uma carreira policial devotada a
acreditar no inacreditável: a existência de raças inteligentes
em Pastópolis! Por outro lado, McLay bem sabia que não
tinha entrado numa fria. Aquilo era muito pior.
— Fatalôncio? É você mesmo?
— Agente McLay, você me surpreende. Ouvi falar
muito de você. Sem dúvida, é o investigador de araque
mais esperto que já encontrei. E, até hoje, não foram
poucos. Esta vida de negócios escusos ainda me mata...
Àquela altura, os seguranças do restaurante já
estavam mais do que avisados que algo de estranho
acontecia no banheiro masculino. Nem passaram pela
porta e já gritavam, armados até os dentes:
— Vamos acabar com a bagunça! Todo mundo
quietinho aí! Mãos na cabeça!
Antes que pudessem se tocar de como era
estranho encontrar um pato de chapéu coco e paletó,
McLay se assustou e gritou:
— Não atirem! Esse pato falante vai nos render
uma fortuna num circo! Eu posso dividir a grana!
— Não me surpreenda outra vez, seu palerma! —
grasnou Fatalôncio, enquanto sacava do bolso interno do
paletó uma bomba de fumaça.
Com um lançamento certeiro, a bomba estourou
bem nos pés dos seguranças. Fatalôncio pegou McLay pela
mão, ambos se jogaram no chão antes que fosse tarde: com
o efeito do gás, os seguranças tombaram inconscientes.
130 SALOMÃO GLADSTONE

— Fatalôncio, dê um jeito de nos tirar daqui! —


gritou McLay.
— Você tirou as palavras do meu bico!

*****
Era um esquema tático digno de Copa do Mundo.
O desgostoso Ronald, ainda com o “sumiço” de Vagarida
atravessado na garganta, foi chamado para uma missão de
emergência nos campos de petróleo de seu tio no Alasca.
Seus três sobrinhos, como de costume, acampavam,
alheios a todas as notícias. E o sindicato do crime de
Pastópolis organizava um congresso... que, pelo visto, seria
muitíssimo animado. Vagarida poderia agir à vontade para
conseguir os segredos da Organização. A propósito, o que
os mafiosos pastopolenses celebravam de tão especial?
— É o que precisamos saber, Vagarida — disse
Muckey, ao volante do carrão preto da polícia. —
Oficialmente, a festinha é para comemorar os 17 anos de
aliança das Indústrias Reunidas de Pastópolis com a União
Industrial de Grasnópolis, duas notórias fachadas para a
máfia. Mas em Pastópolis isso nunca foi motivo para
grandes embalos. Há algo muito maior por trás disso.
Coronel Contra, ao lado de Muckey, explicou
melhor a missão:
— Primeiro, você terá que usar seus contatos com
os caras da Organização para conseguir um convite para a
festa.
— Assim, como se fosse uma festinha de
aniversário? Pensei que a coisa fosse séria.
— E é séria, Vagarida. Você pode conseguir isso
facilmente. Prometa que vai dar para todo mundo. O
importante é conseguir as informações. Se você quiser dar
mesmo, o problema é seu: não quero nem saber.
PATO AO MOLHO PARDO 131

Vagarida olhou para o teto, com um olhar de “isso


vai dar um trabalho...”.
132 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 6

O que pode ser pior do que ser capacho do tio


megatriliardário? Ser chamado pelo tio, num cafundó do
Judas qualquer do mundo, para ajudá-lo numa missão
especial que o tornará ainda mais megatriliardário... e não
ter nenhuma esperança de ver a cor do dinheiro antes do
enterro do velho.
Era o que pensava o melancólico Ronald em seu
vôo fretado da Pastópolis Airlines para os campos de
petróleo das Organizações Petinhas, lá nos grotões do
Alasca. A comida do avião era horrível, a viagem parecia
que não terminava nunca, o lugar era frio e desagradável —
do chão, só brotavam as torres de petróleo. Mas Petinhas
botava a maior fé naquele negócio e precisava de Ronald
para vigiar os trabalhos de perto. Ou pelo menos dizia que
precisava. Lá no quinto dos infernos, na companhia das
focas e das baleias, quem iria saber?
Ronald, como único passageiro de um avião com
capacidade para vinte (uma extravagância desmedida para
as Organizações Petinhas: em condições normais o velho
pato faria Ronald esperar por um vôo de carreira), não
tinha muito a fazer além de procurar uma paisagem entre
as nuvens e falar consigo mesmo de sua existência
miserável.
— Esta viagem está muito estranha... Tenho que
criar coragem e enfrentar meu tio de uma vez por todas.
Dane-se a herança! Deste jeito, sou eu que vou morrer
antes do velho.
E se ao menos Ronald soubesse que, naquele
momento, tio Petinhas é que estava à beira da morte, nas
mãos de bandidos?
PATO AO MOLHO PARDO 133

*****
Enquanto os seguranças continuavam caídos,
Todd McLay e Fatalôncio se arrastaram para a primeira
saída que julgaram possível. Abrindo uma janelinha acima
dos mictórios, os dois pularam num matagal. Bem longe
dos olhos dos curiosos, felizmente. Fatalôncio se manteve
escondido enquanto McLay se esgueirava até a ambulância.
Ninguém notou: aparentemente, todos estavam distraídos
com a fumaceira que saía do banheiro. McLay apanhou
Fatalôncio e caiu na estrada.
— Obrigado pela ajuda, McLay — disse, ainda
ofegante, o magnata bicudo.
— Obrigado, nada! Você é o maior achado da
zoologia de todos os tempos... Quando o mundo souber
que você existe, muita gente boa por aí vai ter que mudar
de idéia sobre um bocado de coisas.
— Só por cima do meu cadáver!
— Tanto faz. Vivo ou morto, os cientistas farão a
festa.
— Não se eu puder impedir.
Numa fração de segundo, Fatalôncio sacou uma
pequena pistola e a encostou na cabeça de McLay.
— Deixe de ser besta, McLay, e faça o que eu
mando.
— Isso aí pode machucar alguém... Abaixe essa
arma, Fatalôncio...
— Primeiro, você vai ter que me levar para Miami
o mais breve possível. Questão de negócios.
— Então por que você não usa aquela ridícula
passagem transdimensional do vaso sanitário?
— Não discuta, McLay!
134 SALOMÃO GLADSTONE

De repente, um gato surgiu no meio da estrada.


Instintivamente, McLay fez uma curva para se desviar do
animal. Com o solavanco, Fatalôncio puxou o gatilho
enquanto a arma cutucava a orelha do agente do FBI.
PATO AO MOLHO PARDO 135

Capítulo 7

A arma de Fatalôncio era pequena, mas o estrondo


era de grosso calibre. Todd McLay tinha tomado o maior
susto de sua vida, mas fora só o susto. Não era apenas uma
aberração da física: era um milagre. A bala atravessou a
cabeça de McLay como se McLay não existisse. Ou teria a
bala desaparecido antes de entrar no ouvido direito de
McLay e reaparecido magicamente depois do ouvido
esquerdo? Só não pergunte ao Fatalôncio como pôde
acontecer uma coisa dessas.
— Raios! Você continua inteirinho!
McLay, mal refeito do susto, parou no
acostamento. O incrédulo Fatalôncio continuou atirando
no humano: cinco, seis, sete, oito tiros no peito.
Absolutamente nada. McLay não sentiu nem o ventinho
das balas.
— Isso é bruxaria! Minha arma de Pastópolis não
funciona com humanos!
— Acho que isto quer dizer algo... Agora você está
meio indefeso fora de seu mundo, não é mesmo?
— McLay, não me olhe desse jeito...
— Pois chegou a minha vez de me dar bem na
vida de uma vez por todas! — declarou McLay num sorriso
satânico. — Desde a infância eu sempre acreditei que os
desenhos e histórias em quadrinhos sobre a “fictícia”
Pastópolis eram apenas uma cobertura para despistar a
existência real da terra dos patos! Ainda na adolescência,
contra tudo e todos, eu comecei a juntar pistas e mais
pistas que me levassem a estabelecer contato com a raça
dos patos inteligentes. No FBI um bando de colegas
invejosos já tentou várias vezes denunciar minha
“insanidade” mental. Enquanto isso, eu tinha cada vez
136 SALOMÃO GLADSTONE

mais certeza de estar na pista correta da descoberta que


pode mudar o rumo da Humanidade!
— Não se eu puder impedir, Blade Runner de
araque! — disse Fatalôncio, já se preparando para sair
correndo.
— Ah, é, é? Se você fugir, o primeiro caipira que o
encontrar vai cozinhá-lo ao tucupi. Você decide.
— E-e-então...
— Se quiser ter alguma esperança de vida, venha
comigo. Primeiro, tenho uma pequena lista de 246
perguntas sobre Pastópolis que restam ser respondidas...

*****
O melhor lugar de Pastópolis para encontrar os
homens da Organização era o Boliche Central nas tardes
de quarta-feira. Isso era público e notório, mas ninguém
conseguia fazer uma acusação formal contra o bando. Sem
o noivo Ronald por perto e com a cobertura total da
polícia, Vagarida teve a chance que precisava para estreitar
seus laços com os membros da gangue. Se é que você me
entende.
Vagarida jogou um charme para o garoto da
portaria para conseguir uma pista vizinha à dos mafiosos.
Eram uns oito, dos quais pelo menos metade já conhecia
Vagarida de vista. Impossível que não notassem a presença
da noiva do sobrinho de Petinhas: a tática de se fazer de
jogadora burra era mais velha que a estátua de Cordélio
Flatus, mas sempre dava certo. Depois de Vagarida lançar a
quinta bola seguida na canaleta, um dos rapazes cochichou
com seus colegas:
— Essa Vagarida... Bicampeã pastopolense de
boliche e quer bancar a lesada pra cima de nós. Essa pata
está pedindo, e muito...
PATO AO MOLHO PARDO 137

Um risinho malicioso tomou conta da turma de


bandidos. Não demorou a que Pancrácio Lontra, um
veterano da Organização, se oferecesse para dar umas
“aulas” a Vagarida.
— Oi, garota! Quer aprender a derrubar uns
pinos?
Vagarida deu um risinho e chamou o homem para
sua pista. Conversa vai, conversa vem, ela deu o bote:
— O que vai fazer hoje à noite?
— Eu e meus colegas vamos a uma recepção
hiper-mega-privativa, e você pode vir com a gente. Mas
não sei que você vai gostar — Pancrácio despistou. — É
daquelas festas em que só tem macho.
— Agora sim, o negócio está subindo de nível...
Rê, rê, rê...
Pancrácio lambeu os lábios de satisfação.
138 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 8

A viagem interminável chegava ao fim: finalmente


o avião de Ronald desceu na pista particular do campo de
petróleo de Petinhas. Só que ninguém veio receber Ronald.
Não que Petinhas achasse que Ronald merecia um comitê
de boas-vindas com banda de música. Mas não se via
ninguém na pista de pouso. Nos arredores, muito menos.
— Será que todo mundo parou para almoço?
Mais estranho ainda, o avião ficou mais de meia
hora taxiando em círculos. E ninguém aparecia. Ronald
chamou alguém da tripulação. Aparentemente, todos
estavam ausentes. Assustado, Ronald se levantou rumo à
cabine de comando.
— Onde está todo mundo? — disse o sobrinho de
Petinhas do lado de fora da porta.
— Está tudo bem, Ronald. Entre aqui — disse a
voz lá de dentro.
Um microssegundo depois de abrir a porta, Ronald
não viu mais nada. A tijolada na cabeça foi certeira.

*****
Àquela altura, a ambulância só tinha dois quintos
de combustível. Todd McLay não sabia bem quantos
quilômetros isso renderia, e qualquer reabastecimento seria
altamente arriscado — afinal, depois da confusão do
restaurante, ele já devia ser mais procurado que Osama bin
Laden. Sem se abalar, o agente do FBI começou o
questionário pelo básico do básico.
— Primeira pergunta, Fatalôncio: o que você veio
fazer no mundo dos humanos?
PATO AO MOLHO PARDO 139

— Negócios, como sempre.


— Como assim “como sempre”? Não é todo dia
que nós, humanos, encontramos um pato inteligente
andando por aí. Na verdade, parece que só eu mesmo
acredito na sua existência.
McLay, antevendo as possibilidades, torceu o
pescoço e olhou Fatalôncio com um olhar de serpente.
— Quer dizer... Se você está aqui, é para fazer
contato com outro humano... Não é verdade?
Fatalôncio engoliu em seco, mas manteve a
história:
— Não. De jeito nenhum. Era só coisa de patos.
Eu sei que não devo ser visto por aí.
— Bem... Esta é a primeira vez que você vem ao
mundo dos humanos?
— Sim.
— Esta é a primeira vez que alguém de seu mundo
vem ao mundo dos humanos?
— Não sei. Pelas leis de Pastópolis, qualquer
contato com o mundo dos humanos é punível com a
morte.
— Hummmmm...
— Que foi, McLay?
— Nada... Quer dizer, nada que já não confirmasse
minhas antigas suspeitas.
Dito isto, McLay entrou numa estrada de terra,
determinado a esconder Fatalôncio a qualquer custo.
140 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 9

Vagarida não precisou contar à polícia onde seria a


festa da máfia: a polícia já estava careca de saber o
endereço. Difícil era pôr uma pessoa de confiança lá dentro
para arrancar os segredos da Organização. Muckey já tinha
alugado, em nome de seus sobrinhos, um apartamento no
prédio do outro lado da rua. Enquanto Muckey e Coronel
Contra vigiavam, o movimento de carros começava cedo.
Aparentemente, todo mundo que era alguém na
Organização pastopolense sabia que não podia perder o
embalo.
Vagarida também não demorou a sair. Com um
longo vermelho-sangue, ela estava vestida para matar —
talvez não tão literalmente, mas não era o tipo de roupa
que ela costumava usar quando Ronald estava por perto.
Em frente à sua própria casa, Vagarida já se preparava para
levantar o braço para o táxi, quando sua amiga Anabela
passou de carro (um modelo dos anos 30 daqueles que os
pastopolenses usam até hoje) pelo outro lado da rua.
— Vagarida! Que bom te encontrar aqui! O Clube
Feminino precisa de você.
Àquela altura, a noiva de Ronald tinha se
esquecido totalmente dessas caretices de Clube Feminino.
Ela tentou disfarçar quando Anabela deu meia-volta.
— Oi, Anabela! Infelizmente, hoje não dá... Tenho
algo muito import...
— Vagarida, você é a campeã de canastra do
Clube! Nossa equipe precisa de sua habilidade — Anabela
desceu do carro. — Afinal, todas as mulheres de Pastópolis
estarão lá nos esperando para jogar umas cartas e bater
aquele papo esperto...
PATO AO MOLHO PARDO 141

— Desculpe mesmo. Não posso... — disse


Vagarida, dando um passo para trás.
— E tem mais! Hoje começa o campeonato
beneficente de canastra em prol da Fundação Chocadeira
de Base de Pastópolis. Vai ser o acontecimento social do
ano! Como é que você pode perder essa? E sem o Ronald,
você vai fazer o quê por aí?
Sem dar a mínima para os apelos da amiga,
Anabela pôs sua mão enorme sobre as costas de Vagarida e
a conduziu para a porta de seu carro.
— Escute, Anabela, eu só posso jogar uma
partida... Eu prometi a mim mesma que vou dormir cedo
esta noite.
— Cedo? Rá, rá, rá! — Anabela pisou fundo no
acelerador. — Esta noite vai ficar para a história das
mulheres de Pastópolis! Você nem imagina! A propósito,
amiga, o seu vestido está arrasador...

*****
Enquanto isso, no interior do Alasca, finalmente
Ronald e seu tio Petinhas se encontraram. Na horizontal.
— Isso aí! Ponham o Ronald sobre essa mesa, mas
tomem cuidado... Não quero mais um pato quebrado para
atrapalhar.
Era tudo que os Patralhas precisavam. Depois que
Ronald foi posto para dormir com um golpe certeiro na
cabeça, dois Patralhas “genéricos” se encarregaram de
transportá-lo do avião para o posto médico do
(estranhamente deserto) campo de petróleo.
Daquele jeito, Ronald nem podia ver que, a seu
lado, o nonagenário Petinhas se encontrava em coma
profundo, mantido por aparelhos. Um serviço médico de
primeira, ainda mais impressionante por ser obra dos
142 SALOMÃO GLADSTONE

habitualmente incompetentes Irmãos Patralha. Contente


com o resultado, Vovô Patralha entrou na sala e observou
os dois patos desacordados:
— Nosso segredo continua bem guardado.
Ninguém há de saber que o campo de petróleo de Petinhas
jamais produziu uma só gota de petróleo.
PATO AO MOLHO PARDO 143

Capítulo 10

De volta a Piracicaba, o delegado Seixas não


conseguia acreditar como Todd McLay o tinha enganado
daquele jeito.
— Simplesmente não me lembro, Gusmão...
Depois que o tal McLay mostrou a carteira do FBI, parece
que tudo se apagou da minha cabeça...
— Gás hipnótico. O autêntico modus operandi do
vigarista. Primeiro, ele não é agente do FBI coisa nenhuma.
Segundo, ele se chama Derek Johnson.
— Hein?
O delegado Gusmão pegou uma pasta estufada de
papéis e resumiu a história:
— Derek Johnson, estelionatário amador e teórico
da conspiração profissional, é um notório propagandista da
existência de inteligências animais num mundo paralelo.
Desde muito jovem ele não tem medido esforços para
comprovar sua tese... Ou melhor, Johnson é que é
conduzido por sua idéia fixa. Sob vários pseudônimos,
tornou-se autor de quinze livros sensacionalistas como Os
patos estão entre nós, Patos — eu acredito! e A inteligência secreta
dos patos, todos devidamente ignorados, a não ser por meia
dúzia de curiosos.
— Para mim, esse é apenas mais um piradão
americano.
— Pode ser. Mas ele é muito hábil na mudança
radical de identidade conforme as circunstâncias. Por isso,
Johnson já acumula 79 processos em 39 estados
americanos. Ultimamente ele tem circulado com uma
carteira do FBI com o nome de “Todd McLay”, e em
144 SALOMÃO GLADSTONE

qualquer conversa ele é capaz de convencer a todos de que


é um agente do FBI de verdade.
— Então o que ele veio fazer no Brasil? E
justamente aqui? E interessado neste caso da morte no
ônibus?
— É o que veremos, Seixas. A propósito... Você
acredita em patos inteligentes?

*****
Enquanto Vagarida morgava num jogo de canastra
no Clube Feminino, os sempre vigilantes Muckey e
Coronel Contra apontavam os potentes microfones da
polícia para a festa da máfia no salão de festas do Hotel
dos Frangos (que, por sinal, já pertencia à Organização há
tempos). Sem sucesso: no salão entupido de gângsteres,
não se conseguia distinguir uma voz sequer. De repente,
Professor Urubu subiu ao palco e pediu a palavra:
— Irmãos, este é um momento histórico para
nossos negócios. Os dias de monopólio de Petinhas estão
chegando ao fim.
Gritos, assobios, aplausos. Urubu continuou com
sua voz de taquara rachada:
— Em menos de um mês, com o apoio financeiro
de Fatalôncio e os contatos transdimensionais da
Organização, os pastopolenses poderão comprar vasos
sanitários em regime de livre concorrência. Os preços
astronômicos do Petinhas se tornarão coisa do passado!
Agora os gritos se ouviam até da rua. Pior para
Muckey, que não conseguiu gravar nem uma palavra do
discurso.
PATO AO MOLHO PARDO 145

Capítulo 11

Professor Urubu prosseguiu na apresentação


comemorativa. A um toque num controle remoto, fez
descer uma tela de projeção sobre o palco do salão de
festas. Luzes reduzidas. Depois de meio minuto de
chuviscos, uma imagem meio embaçada foi tomando
forma diante dos olhos de todos. Silêncio total. Urubu
explicou:
— Como de costume, não podemos entrar num
negócio sem alguma garantia de mercado, o que é muito
compreensível... Com vocês, ao vivo via satélite, as
imagens da fábrica de vasos de Petinhas disfarçada de
campo de petróleo, atualmente invadida e dominada pelos
Irmãos Patralha.
Aplausos. A câmera passeia pelas instalações da
linha de montagem de vasos: filas e mais filas de máquinas
e vasos incompletos, até onde a vista alcança, enquanto os
Patralhas caminham para lá e para cá com desenvoltura. De
repente, a câmera dá meia volta, entra no posto médico e
encontra dois patos velhos conhecidos: Petinhas em coma
e seu sobrinho Ronald amarrado à mesa, grasnando em
fúria.
— Seu Patralha miserável! O que você fez com
meu tio?
Urubu toma um segundo microfone e conversa
com o pato:
— Ronald, desse jeito você está muito feio para
aparecer na televisão. Sorria para a câmera! Afinal, toda a
Organização está de olho em você aqui em Pastópolis.

*****
146 SALOMÃO GLADSTONE

Na base improvisada de espionagem, Coronel


Contra recebe uma mensagem no monitor:
— Muckey, interceptamos um sinal de vídeo
suspeito na antena do hotel.
— Boa pista, Contra. Aponte a antena e mande
desembaralhar o sinal.
O computador começou uma contagem regressiva
para revelar as imagens. A cinco segundos da conclusão da
operação, entra na sala Pluteta, o fiel escudeiro de Muckey,
que tinha sido chamado para dar uma força nas
investigações.
— Boa noite, pessoal... Epa!
Com seus pés enormes, Pluteta tropeçou no fio
elétrico principal, desplugando todo o equipamento.
— Pluteta, seu desastrado! — esbravejou Muckey.
— Como é que vamos rastrear o sinal da Organização
agora?

*****
Ronald, atônito com a imitação de telejornal
interativo, esticou o pescoço e olhou dentro da câmera sem
acreditar na situação. Urubu continuou a palestra:
— É, minha gente... Petinhas vai ficar um tempo
sem poder fabricar seus vasos caríssimos. Também, quem
mandou o velho pato contratar uma equipe de medrosos?
Até os Patralhas conseguiram botar a galera toda para
correr.
— Como assim, “até” os Patralhas? — protestou o
Patralha operador da câmera.
— Quer dizer... Para os Patralhas, bastou usar o
velho truque do Godzilla mecânico para afugentar a todos.
Na correria, Petinhas caiu de bico e está sendo
PATO AO MOLHO PARDO 147

caridosamente mantido por aparelhos, para que ninguém


pense que a Organização não tem fins beneficentes...
Os gângsteres riem da piada do Professor Urubu,
mas de repente alguém grita lá do meio do salão:
— Puxem logo esses tubos! Matem o Petinhas!
— Nada disso, caro colega... Lembre-se do ditado
“Deus dê longa vida a meus inimigos para que assistam de
pé à minha vitória!”
Aplausos, urros, braços erguidos num delírio
comemorativo. E no prédio em frente, a polícia nada sabe.
148 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 12

Os mafiosos de Pastópolis babavam de satisfação


com as imagens de Ronald e Petinhas, no distante Alasca,
debaixo das botas dos Patralhas. Enquanto todos se
distraíam, um dos convidados de honra, Fantasma
Manchado, punha a cabeça para funcionar sob a capa
preta.
“Quer dizer que, sem a fábrica do Petinhas,
automaticamente o esquema de Fatalôncio tomará conta de
100% do mercado de vasos...”
Manchado deu um puxãozinho na manga de
Otávio Buldogue (o “amiguinho” que acabou largando
Vagarida no mirante por motivo de força maior) e o
chamou para conversar num canto discreto.
— Otávio, acho que essa jogada de desativar a
produção do Petinhas não estava nos planos. O trato inicial
era deixar Petinhas na dele e ganhar mercado com
produtos melhores e mais baratos. Mas se Fatalôncio não
tiver concorrência, será pior para todos.
— Mas e daí, Manchado? Monopólio por
monopólio, é melhor que seja o nosso.
— Pelo menos os vasos do Petinhas são de boa
qualidade e chegam a Pastópolis com facilidade. É verdade
que são caros, mas se não forem mais fabricados, os
consumidores vão sentir falta.
— É exatamente essa a idéia, irmão: atiçar o ódio
do consumidor contra Petinhas até que os nossos produtos
pareçam ser o máximo.
— Pode ser, Otávio. Só que, até o quanto eu saiba,
Fatalôncio não tem nenhuma fábrica de vasos para suprir a
demanda: o esquema depende de uma aliança misteriosa
com os humanos e uma tal de “porta transdimensional”
PATO AO MOLHO PARDO 149

que ninguém ainda viu funcionando. Os preços irão para as


nuvens, até o ponto em que a Organização não conseguirá
mais fazer dinheiro com o negócio. O pior é que ninguém
se dá conta do óbvio: de olho na promessa de grana fácil,
todos os companheiros pulam e gritam como macacos
amestrados.
Otávio pensou e pensou por um quarto de
segundo antes de tranqüilizar Fantasma Manchado.
— Meu irmão, você não precisa se preocupar. O
plano de Fatalôncio é 100 por cento perfeito! Já temos
garantido o fornecimento de vasos, e eu posso assegurar
que a porta transdimensional funciona mesmo: daqui a
pouco o Professor Urubu mostrará o resultado a todos.
Neste exato momento, nossos agentes já são muitos entre
os humanos.
— Mesmo?
— Venha ver isto.
Otávio levou Manchado à suíte 36. Sobre a cama,
o corpo esfaqueado, coberto de sangue coagulado, de um
pato disfarçado de mulher humana.
— A tática manjada de Evilásio Patão — suspirou
Manchado. — Enfim nos livramos desse mala...
— Não disse que nossos homens já estavam em
toda parte no mundo dos humanos? Através de nossa rede
de informantes, seguimos Evilásio até um restaurante de
estrada no interior do Brasil. Interceptamos a porta
transdimensional que ele usaria para voltar a Pastópolis e
enviamos nosso agente Carlos Navalha. Foi perfeito:
Carlos deu de cara com Evilásio, fez o “serviço”, enviou o
corpo através da porta e retornou ele próprio a Pastópolis.
— Como posso saber se Evilásio foi morto lá
mesmo?
150 SALOMÃO GLADSTONE

— Com essa crueldade, só podia ser no mundo


dos humanos.
Os dois saíam da malcheirosa suíte enquanto
Otávio filosofava:
— Fantasma Manchado, você está no negócio há
tempo suficiente para saber do básico: não podemos
tolerar qualquer discórdia na Organização. Acima de
qualquer dúvida, temos que estar sempre, sempre, sempre
unidos em torno do mesmo ideal. Olhe para trás e veja o
trágico destino de quem sai da linha...
PATO AO MOLHO PARDO 151

Capítulo 13

Fantasma Manchado, o diplomata de sempre, não


quis entrar em atrito com seu amigo Otávio Buldogue.
Afinal, a noite era de comemoração, e um Otávio
enfurecido seria capaz de virar Manchado pelo avesso com
uma mão nas costas, se quisesse. Pedindo desculpas por
sua própria desconfiança, Manchado reafirmou sua
fidelidade à Organização para o que desse e viesse. A dupla
trocou sorrisos e tapinhas nas costas e voltou ao salão de
festas.
Pura falsidade. Otávio sabia que precisava ficar de
olho em cada passo de Manchado. E Manchado não sabia
qual tinha sido seu maior erro: abrir o bico contra a
mudança de rota da Organização ou simplesmente ter
entrado na Organização.

*****
Enquanto isso, Professor Urubu comandava o
show via satélite.
— E então, Ronald... O que você tem a dizer,
agora que o negócio de produção de vasos das
Organizações Petinhas vai enfrentar concorrência braba?
— Seus bandidos miseráveis! Não seremos
derrotados assim tão facilmente!
— Vire esse bico para lá, seu tolo. Eu só não
mando matar o Petinhas agora mesmo porque ainda
precisamos dele vivo e com saúde. Daqui a pouco um
avião trará você e Petinhas de volta a Pastópolis, onde já
haverá uma equipe médica de prontidão para cuidar do
coroa. Quando ele voltar a si, será “convidado” a assinar
152 SALOMÃO GLADSTONE

um contrato vendendo sua fábrica de vasos à nossa


Organização por apenas um centavo.
— Você está blefando, Urubu. Petinhas não
venderia a fábrica nem sob tortura!
— E quem falou em tortura? Nós já temos provas
suficientes de que Petinhas é o atual monopolista dos
vasos... Um negócio que ninguém em Pastópolis é capaz de
admitir que existe. Depois que jogarmos a lama no
ventilador, em poucos meses a família Pato só terá um
meio de vida: pedir esmolas na Avenida Cordélio Flatus,
desde que a polícia de Coronel Contra não os prenda por
vadiagem. Rê, rê, rê!
— Urubu, quando eu puser minhas mãos em você,
não sobrará pena sobre pena!
— Calma! Ainda nem contei o que faremos com
você, seu inútil. Quando você chegar a Pastópolis, eu e os
companheiros da Organização pegaremos nossas facas
afiadas e...
Nisso, a imagem do telão desapareceu.
— Maldição! — esbravejou Urubu para o garoto
da mesa de controle. — Cadê o link de satélite?
— Sei lá! Parece que estamos sofrendo um
bombardeio eletromagnético de alguma espécie estranha.

*****
Nem tanto: quando Coronel Contra, Muckey e
Pluteta reinicializaram o sistema de rastreamento,
cometeram o erro de plugar a tomada na tensão errada.
Isto bagunçou de vez os sinais de todas as antenas num
raio de 300 metros — incluindo a poderosa parabólica da
Organização no prédio em frente.
PATO AO MOLHO PARDO 153

— Desisto, coronel — resignou-se Muckey. —


Parece inútil captar qualquer sinal dos mafiosos.
— O que fazer então?
Muckey deu uma olhada rápida para o lado,
encontrou Pluteta encostado na parede e chamou o
coronel num canto.
— Temos que tirar a Vagarida da festa
imediatamente. Só o Pluteta pode ir lá e chamar a Vagarida.
— Mas todos os mafiosos conhecem o Pluteta. Ele
será transformado em churrasquinho!
— Isso depende da pontaria do pessoal, e já faz
tempo que eu estou mesmo a fim de me livrar do Pluteta...
154 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 14

Os mafiosos estavam em silêncio esperando o


restabelecimento do link de satélite. Enquanto a equipe
técnica arrancava as penas, Coronel Contra e Muckey
preparavam Pluteta para entrar no hotel. Um disfarce tão
obviamente manjado que o pessoal da Organização não
ousaria desconfiar: Pluteta atravessaria a rua e tocaria a
campainha vestido de entregador de pizza.
— Tem certeza de que dará certo, Muckey?
— Claro que sim. Para qualquer eventualidade, há
uma pistola dentro da caixa da pizza.
Pistola? Conversando com seus botões, enquanto
descia a escada do prédio, Pluteta acabou tendo uma idéia
muito melhor:
“Cansei de ficar sempre em segundo plano nessas
operações do Muckey. Chegou a minha vez de me dar bem
na parada! Não só vou tirar a Vagarida lá de dentro, como
vou tocar o rebu na festa. Rê, rê, rê!”
Conforme o combinado, Pluteta saiu para dar uma
volta de bicicleta em torno do quarteirão, só para disfarçar
antes de chegar ao hotel. Longe das vistas de todos, Pluteta
tirou sua carta da manga — ou melhor, seu amendoim
mágico do chapéu. Plim! Lá estava Superpluteta pronto
para mais uma missão heróica.
Superpluteta acionou seu poder de vôo, entrou
num bueiro a 200 por hora e buscou uma saída para o
salão de festas. Acertou em cheio: saiu bem debaixo do
palco onde Professor Urubu, arrancando as penas,
esperava a solução técnica que não vinha.
— Oi, Professor Urubu! Quanto tempo, hein?
PATO AO MOLHO PARDO 155

O super-herói segurou Urubu pelo pescoço,


deixando o vilão roxo de falta de ar. Quinhentos gângsteres
sacaram suas armas.

*****
Enquanto isso, no mundo dos humanos...
— Por que um trio? Nossa turma só trabalha em
duplas, sempre trabalhou em duplas. Não entendo como
pode ser diferente agora.
— Segurança, Honório, segurança — disse
Norberto Bicudo. — Cada um de nós vigia os outros dois.
Neste mundo não se pode confiar nem na própria sombra.
— E, afinal, vocês pensam que eu penso que nós
estamos confortáveis aqui, num vagão de trem, comendo
poeira, engaiolados como... aves para o matadouro?
— Ué? Nós somos aves, Teddy!
— Mas nada me convence de que esta não seja
uma missão suicida. No interiorzão, a mil quilômetros da
porta transdimensional mais próxima, e com os homens da
Organização à solta por aí... O buraco é mais embaixo.
Querem nos fazer de iscas vivas para capturar o
Fatalôncio.
— Deixe de besteira, Honório! E continue falando
e falando desse jeito, até que os humanos enxeridos
acabam encontrando a gente. Se os humanos souberem
que nós existimos, todos saem perdendo.
— Ainda não entendi por quê...
— Forças ocultas, meu caro. Nem eu sei. E é
melhor nem querer saber.
156 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 15

— Abaixem essas armas, seus estúpidos! Querem


me matar? — grasnou Professor Urubu no fiapo de voz
que lhe restava.
Superpluteta, sorridente, ergueu o professor à vista
de todos e anunciou com sua voz poderosa:
— Não quero machucar ninguém. Só quero saber
uma coisa: onde está a Vagarida?
Os gângsteres, ainda brandindo seus trabucos, se
entreolharam sem entender direito a pergunta. De fato,
ninguém tinha visto Vagarida na festa.
— É duro ter que encarar uma crise de amnésia
coletiva. Talvez isto refresque a memória de vocês...
Superpluteta disparou sua visão de calor no meio
do salão. Fez-se o pânico.

*****
Enquanto isso, no Clube Feminino, até que enfim
estava encerrado o jogo de canastra. Vagarida se despediu
das amigas afobadamente, o que causou muita estranheza.
Anabela quis dar uma de boazinha:
— Deixe que eu te levo para casa, Vagarida.
— Não é preciso. Eu pego um táxi.
Na verdade, de onde estava, Vagarida poderia ir a
pé ao Hotel dos Frangos com facilidade. Mas Anabela não
largava de seu pé.
— Tem certeza? Olha que no caminho eu te conto
todos os babados da colônia de férias da Associação de
PATO AO MOLHO PARDO 157

Tricô de Pastópolis! Você nem sabe quem ficou com


quem...
— Amanhã de manhã você me conta. Pode ser,
amiga? — disse Vagarida, com a cara mais falsa do mundo.
— Não! Às seis horas eu tenho passagem marcada
para Grasnópolis, e depois eu posso te levar lá em casa
para a gente botar a conversa mais em dia e...
Vagarida pôs os miolos para funcionar e teve uma
idéia brilhante:
— Pensando melhor, Anabela... Quer ir ao bar do
Hotel dos Frangos para um último drinque antes de voltar
para casa?

*****
Otávio Buldogue, alheio ao barraco armado no
salão de festas, admirava na entrada do armário de
vassouras do quinto andar o tesouro máximo da
Organização: a porta transdimensional.
— E pensar que, com esse botãozinho, abrem-se
as porteiras para o mundo dos humanos...
Como uma criança curiosa, Otávio pressionou o
botão vermelho “Transporte”. O batente da porta
começou a emitir uma luz verde piscante. Do interior do
armário saía uma estranha fumaça esbranquiçada.
Então surgiu no fundo do corredor uma multidão
de bandidos fugindo dos poderes de Superpluteta com o
ímpeto de um estouro de boiada. Otávio não teve tempo
de se desviar da massa humana. Ele e dois companheiros
foram empurrados porta adentro.
158 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 16

Enquanto os mafiosos mais procurados de


Pastópolis saíam correndo do Hotel dos Frangos, Anabela
e Vagarida acabavam de chegar. As duas garotas custaram a
entender por que a galera corria pelas ruas como um
enxame de formigas bêbadas. Enquanto encostava o carro
no meio-fio em frente à porta do hotel, Anabela
perguntou:
— Ué? O que é que está havendo no Hotel dos
Frangos?
— Sei lá. Se for uma festa, já acabou.
De repente, um dos gângsteres apavorados,
correndo mais que um Ben Johnson entupido de
anabolizantes, deu de cara com o carro de Anabela e
mergulhou no banco de trás. Recomposto em um
microssegundo, ele rosnou:
— Pé na tábua, rápido!
— Tá pensando que isto aqui é um táxi, malandro?
Vai se...
O sujeito encostou sua arma na nuca de Anabela:
— Não se faça de engraçadinha, garota! Estrada de
Grasnópolis, já.
Vagarida olhou discretamente para trás e
reconheceu o bandido. Eufrosino Fuinha, um “amigo” de
outros carnavais. Não pôde conter o sorriso discreto. Se
alguma mulher fosse mandada para o inferno, não seria ela.

*****
— Eu sabia que o Pluteta era feio, mas nem
tanto... — filosofou Muckey, com grande surpresa, ao ver
PATO AO MOLHO PARDO 159

da janela a fuga dos mafiosos — Foi só ele entrar na


festinha que tudo mundo saiu correndo em pânico...
— Não sei como ele fez isso, mas este é o
momento certo para invadir o recinto. — Coronel Contra
pôs duas armas na cintura e outra sob a perna da calça.
— Mas ainda não temos provas contra o bando.
— Temos, sim. Se isso não é perturbação da
ordem pública, o que é, então?
Muckey deu uma gargalhada de satisfação. Os dois
desceram correndo e atravessaram a rua. Enquanto isso, no
salão de festas, entre as cadeiras reviradas, sobraram apenas
o Professor Urubu e o triunfante Superpluteta.
— Largue-me, seu vira-lata superdesenvolvido! Já
disse que nunca vi mais gorda essa tal de Vagarida!
— E o que você diria se eu queimasse cada uma de
suas penas, Professor? Iac! Iac! Iac!
Nisso, o poder de Superpluteta se esgota
repentinamente. Pluteta, de volta ao normal, larga o
Professor Urubu de cabeça no chão. O cientista do mal
desmaia, sem saber o que houve. O segredo do super-herói
estava mantido. Muckey e Contra entram no salão.
— Muito bem, Pluteta! — disse Muckey. — Isto é
que eu chamo de trabalho bem feito.
— Q-q-quem, eu? Não fiz nada de mais!
Coronel Contra cumprimentou Pluteta e examinou
Urubu. Estava vivo.
— Muckey, mande fazer um cerco policial em
torno do hotel. E chame uma ambulância. Este meliante
tem que estar muito saudável para dizer à polícia tudo que
sabe...
160 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 17

Muckey e Coronel Contra não tiveram o menor


trabalho para levar Professor Urubu para o xadrez e deter
os mafiosos que não conseguiram fugir a tempo do Hotel
dos Frangos. É claro, ninguém tinha a menor idéia de que
aquele armário de vassouras do quinto andar ocultava a
misteriosa porta transdimensional, que levara Otávio
Buldogue e dois comparsas para lugar incerto e não sabido.
Teriam os bandidos caído num buraco negro entre
Pastópolis e a dimensão dos humanos? Será que a porta
transdimensional de destino estava desativada por falta de
luz? Pouco provável. Em questão de segundos, o trio de
malfeitores foi rematerializado num barril num vagão de
trem em movimento. Quer dizer: o trio foi praticamente
cuspido pelo barril em direção a um carregamento de
engradados de patos.
— Ué, chefe? Não sabia que o Hotel dos Frangos
tinha todo esse estoque de patos vivos...
— Não estamos mais no hotel, seu palerma! —
esclareceu Otávio. — Na verdade, não estamos mais em
Pastópolis. Acabamos de ser enviados para algum lugar no
mundo dos humanos!
— Isso é grave? — perguntou Elpídio Labrador.
— Não sei. Alguns companheiros da Organização
já estão neste mundo, mas não tenho a menor idéia de
onde eles possam estar.
— Como não? Eles também não passaram pela tal
porta?
— Passaram, mas não por qualquer uma. Em
Pastópolis há duas portas em atividade: uma no hotel,
outra no laboratório do Professor Urubu. Do lado de cá,
PATO AO MOLHO PARDO 161

não sei quantas portas existem, mas teoricamente é


possível ter acesso instantâneo a qualquer canal
transdimensional. Só que a porta do hotel não estava
ajustada para nenhuma porta específica... Em resumo:
estamos perdidos!
— Mas eu sei como sair dessa: é só voltar a
Pastópolis pelo mesmo caminho! — disse o afobadinho
Elpídio. — Pro barril, rapazes!
— Não faça isso, idiota!
Insensível aos protestos de Otávio Buldogue, o
meliante deu um salto e mergulhou de cabeça no barril.
Otávio ainda tentou segurá-lo pelas calças, mas foi tarde: o
corpo de Elpídio passou até a cintura para cima, quando a
transferência foi subitamente interrompida.
— O que a gente faz agora, chefe?
As pernas de Elpídio, para fora do barril, se
debatiam em desespero. Não adiantava empurrar nem
puxar: alguma falha no sistema de transporte
transdimensional fez com que metade do corpo ficasse em
Pastópolis, o resto no mundo dos humanos. Para os
ouvidos de Otávio, ainda bem que a metade xingadora
ficou bem longe.
Enquanto isso, do meio dos engradados de patos a
caminho do matadouro, surge um trio de patos vestidos,
inteligentes e armados até os dentes... Se tivessem dentes, é
claro.
— Otávio Buldogue, Nicanor Furão, metade
inferior de Elpídio Labrador... — disse Honório Bastos. —
A vida no mundo dos humanos não é para amadores.
Ajoelhem-se e prestem reverência, ou digam adeus às suas
existências miseráveis!
162 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 18

No sacolejante vagão ferroviário, o destemido


Otávio Buldogue sacou sua arma e deu um passo à frente,
desafiando as aves desafiadoras. O clima era de duelo de
faroeste. O primeiro que piscasse levaria chumbo.
— Não se faça de engraçadinho, Honório. Eu sei
muito bem quem você é e o que você faz por aqui,
portanto...
Nisso, alheia a tudo, a metade inferior de Elpídio
continuava dando sinais de desespero, até que o barril
tombou e começou a andar como uma barata tonta.
Honório abriu fogo contra o barril. Nenhum efeito. Otávio
riu da desgraça de Honório.
— Arrá! Pelo visto, você anda comprando armas
no mundo dos humanos sem saber exatamente para que
servem... Tome isto!
O tiro de Otávio acertou o pé de Honório, que
respondeu com mais tiros para todos os lados. Dezenas de
patos (os normais, do mundo dos humanos, não os de
Pastópolis) morreram na hora; o piso do vagão ficou
furado como uma peneira. Mas as balas nem fizeram
cócegas nos mafiosos pastopolenses.
Honório e seus comparsas, acuados, deram
passinhos tímidos para trás. Enquanto isso, Elpídio
continuava na pior posição possível entre um mundo e
outro.

*****
— Fantasma Manchado, tire-me daqui!!!!!
PATO AO MOLHO PARDO 163

Mesmo considerando sua situação delicada (para


dizer o mínimo), Elpídio tinha a intuição de que Fantasma
Manchado ainda estava por perto, escondido numa das
centenas de suítes do Hotel dos Frangos. Errado. Àquela
altura, Fantasma tinha encontrado uma passagem secreta
para a rede de esgotos. Mas os gritos de Elpídio chamaram
a atenção de Cremilson Bicolargo, um policial que
vasculhava o hotel em busca de pistas da Organização.
— Mãos ao alto, seu facínora! Não tente nem dar
um passo em falso!
— Se eu pudesse dar um passo, não estaria
entalado nesta porta maldita!
O tira, sentindo cheiro de emboscada, se
aproximou lentamente. Elpídio tentou negociar:
— Eu me rendo! Mas tire-me daqui como puder!
Minha metade inferior está presa do outro lado desta
maldita porta transdimensional que...
Antes que pudesse concluir, o elevador chegou
trazendo Muckey e Coronel Contra. Ao ver a cena, Muckey
exclamou:
— Estou vendo que tem gente aqui sabendo
demais...
— É mesmo! — disse Cremilson. — Esse sujeito
deve conhecer um bocado da Organização.
— E quem falou de Organização, seu babaca? —
vociferou Coronel Contra. — Você, Cremilson, é que
meteu o focinho onde não devia!
— M-m-m-mas eu só estava cumprindo meu dever
e...
Coronel Contra, com a habilidade de um caubói de
filme, sacou sua arma em um microssegundo e acertou um
tiro na testa de Cremilson. Elpídio ficou em estado de
choque.
164 SALOMÃO GLADSTONE

— É a primeira vez que eu mato em serviço —


disse o coronel, observando os últimos movimentos do
corpo ensangüentado. — Mas você bem sabe que é
estritamente necessário...
— Não faz mal, Coronel. Diga que foi uma “troca
de tiros com malfeitores” e mande organizar um enterro de
herói para Cremilson.
Para concluir o serviço, Muckey virou de costas,
olhou nos olhos de Elpídio e tirou seu próprio revólver do
bolso do paletó.
— Não, Muckey! Poupe-me!
— Você pensa que eu vou te matar, assim, sem
mais nem menos? Você é um ser tão desprezivelmente
azarado que não merece uma gota de sangue. E se for para
revelar nosso segredinho, menos ainda. Tome isto!
Muckey deu uma dúzia de tiros na chave de força
da porta transdimensional. Em Pastópolis e no mundo dos
humanos, as metades de Elpídio desapareceram em nuvens
de fumaça. Nunca mais se ouviu falar de Elpídio Labrador.

*****
Enquanto isso, no Alasca...
— Já que Professor Urubu não manda notícias, é
hora do plano B — disse Vovô Patralha. — Vamos levar
Petinhas e Ronald de volta a Pastópolis, onde o Professor
certamente vai dar um “trato legal” nesses dois patos
pulguentos...
— Na minha humilde opinião, eu mataria os dois
agora mesmo, mas já que o senhor insiste... — opinou um
Patralha “genérico” — Só dependemos do Fatalôncio
mandar a grana para o transporte, pois o dinheiro da
operação acabou.
PATO AO MOLHO PARDO 165

— Boa pergunta! — disse outro Patralha. — O


combustível do avião acabou, o estoque da fábrica está a
zero e Fatalôncio nunca mais fez contato...
— Por que vocês não assaltam um posto de
gasolina, meninos?
— Aqui, no meio do nada?
De repente, Maga Magalógica, montada em sua
vassoura voadora, entra pela clarabóia:
— Não se preocupem com isso, seu bando de
palermas. Em troca da moedinha do Petinhas, vocês terão
toda a minha ajuda...
166 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 19

A família Patralha não gostava muito de Maga


Magalógica, mas todos ficaram felizes com a presença
inesperada da feiticeira naquelas terras distantes. Uma
aliança de interesses era tudo que os dois lados mais
precisavam para esfolar de vez o velho pato.
— A propósito, meninos... Nunca vi uma
operação criminosa tão burra nos meus 427 anos de vida.
Onde já se viu armar uma emboscada para um velho
decrépito neste fim de mundo?
— Você não entendeu, Maga. Desta vez o plano
não é só para levar a grana do velho: temos uma aliança
com o Fatalôncio e a Organizaç...
— Cale a boca, seu demente! — Vovô Patralha
acertou uma bengalada na cabeça do neto indiscreto. —
Assim você está entregando todo o plano!
— Não precisa se preocupar, Vovô. Eu já vi tudo
em minha bola de cristal: este campo de petróleo é um
disfarce para a fábrica de vasos sanitários. E sei muito bem
como o plano pode me ajudar. Sem mais demora, vamos
levar os patos de volta para terras mais quentes...
— Como?
— Sem problemas; eu dou meu jeito.
Maga Magalógica, num gesto de bailarina do
Bolshoi, ergueu sua varinha de condão e espalhou
estrelinhas pelo ar. No segundo seguinte, Maga, Vovô,
mais cinco Patralhas e os (literalmente) amarrados Ronald e
Petinhas reapareceram no escritório do zilionário dentro da
Caixa-forte.
— Maneiro! — disse um dos Patralhas. — Isso é
melhor do que a porta transdimensional!
PATO AO MOLHO PARDO 167

— Nem tanto. Para manter esse poder todo, eu


preciso da moedinha de sorte do Petinhas, desde que eu
possa tirar uns obstáculos do caminho.
— Então é agora que a gente mata o velho?
— Ainda não, estúpido. Temos um trabalho a
fazer.
Dito e feito. Vinte seguranças surgiram na porta da
sala, armados para a guerra. Quem desse um pio viraria
hambúrguer. Magalógica ficou com medo. E, daquela vez,
não estava blefando.

*****
Enquanto isso, num vagão de trem entre o nada e
o lugar nenhum, Otávio Buldogue condenava
sumariamente Honório Bastos a um fim trágico.
— Agora é sua vez de fazer as últimas orações,
Honório. Nossa missão aqui é não deixar pedra sobre
pedra... ou melhor, pena sobre pena.
— Não se eu puder impedir!
Honório, num movimento digno de filmes de
kung-fu, saltou sobre a cabeça de Otávio. Num movimento
instintivo, Otávio puxou o gatilho, acertando mortalmente
seu comparsa Nicanor Furão. Àquela altura, Honório e
seus companheiros aproveitaram a distração e fugiram para
o teto do trem. Otávio, mesmo com aquele tamanhão
todo, foi atrás.
— Voltem aqui, seus franguinhos
subdesenvolvidos! Quero abatê-los com minhas mãos
nuas!
A perseguição se estendeu por uma dúzia de
vagões. Honório, que não era besta, observou uma
168 SALOMÃO GLADSTONE

ambulância no cruzamento esperando o trem passar, e


gritou para seus comparsas:
— Boa sorte, amigos! Tchau, Otávio otário!
Honório abriu as asas e saltou sobre o capô da
ambulância. Dentro da cabine, Fatalôncio sorriu de orelha
a orelha:
— Pois é, Todd McLay... Mundo pequeno, o dos
humanos. Quando você menos espera, o arquiinimigo da
Organização aparece na sua frente.
PATO AO MOLHO PARDO 169

Capítulo 20

Honório Bastos cacarejou de medo ao encontrar


Fatalôncio no banco do carona da ambulância. Todd
McLay levou um baita susto.
— Quem é esse frango mal nutrido, Fatalôncio?
— Não se meta nisso, McLay. Negócios de ave
para ave.
Fatalôncio botou a cabeça para fora da janela,
sacou sua arma e a apontou para Honório. O franguinho
respondeu, como um caubói de filme: ergueu sua própria
pistola e puxou o gatilho. Nem parou para pensar que
aquela era a arma que só funcionava contra humanos. A
bala atravessou Fatalôncio como se o pato fosse feito de
vento, mas acertou mortalmente o peito de McLay.
— Quaaaaac!
Fatalôncio, em ato reflexo, meteu uma bala no
meio da testa de Honório. Agora eram dois os cadáveres
que Fatalôncio tinha que fazer sumir o mais rápido
possível. E o trem desaparecia no horizonte, levando as
pistas da inesperada presença de Honório no mundo dos
humanos.
— Buááááá! Quero voltar pra casa! Buááááá!

*****
Em Pastópolis, Maga Magalógica e os Patralhas
marchavam para fora do escritório de Petinhas, sob a mira
das metralhadoras dos seguranças.
— E aí, Maga? Que tal fazer de novo aquele
truquezinho para nos tirar daqui?
— Cale-se, seu Patralha palerma!
170 SALOMÃO GLADSTONE

Meia hora depois, Manuel Corvo, o médico


particular de Petinhas, chegou ao gabinete para ver o
estado do ancião zaralhonário. Ronald, preocupado,
observava.
— Afinal, doutor, isso é grave?
— Nada de mais. Pressão baixa, temperatura
caindo, batimentos quase sumindo... Só tenho uma coisa a
fazer.
O médico desligou as tomadas de todos os
aparelhos. Petinhas morreu na hora. Ronald ficou de
queixo caído.
— M-m-m-mas... Como ousa, seu pulha? Meu
único tio zaralhonário, e você...
— Calma, Ronald! Não é nada disso que você está
pensando!
Manuel Corvo tirou a máscara. Era o próprio
Petinhas disfarçado.
— Rá, rá, rá! Preguei uma peça em todo mundo!
Esses Patralhas ainda têm muito o que aprender...
— Então eu fiquei preocupado todo esse tempo à
toda? E qual é o corpo que está nessa maca?
O Petinhas verdadeiro tirou a máscara do Petinhas
falso. Eram os restos mortais do verdadeiro doutor Corvo.
PATO AO MOLHO PARDO 171

Capítulo 21

— Titio! Isso é brincadeira que se faça? — grasnou


Ronald, revoltado por ter caído... hã... como um patinho.
— Rê, rê, rê! Não está mais reconhecendo seu tio
num disfarce ridículo desses, rapaz? Agora que botei todo
mundo num mato sem cachorro, posso agir à vontade.
— Mas precisava ter matado o velho doutor
Corvo?
— Você não sabe de nada, Ronald. Basta dizer
que, no mínimo, ele sabia demais sobre a operação...
Ronald se espantou mais uma vez. O que seu
velho tio estaria tramando? Petinhas, vendo a dúvida nos
olhos de seu sobrinho, disse:
— Venha comigo, patinho desmiolado. Tenho
algo para lhe mostrar na caixa-forte.
— Eu, hein? Estou por aqui de tanto olhar suas
montanhas de ouro.
— Desta vez é diferente, Ronald. Você realmente
não viu nada ainda!
Ronald tinha certeza de que o velho estava
caducando. Mas não poderia contrariá-lo: afinal, uma
herança considerável estava em jogo. Petinhas, sob o peso
da idade, abriu a porta do cofre com dificuldade, e mostrou
o depósito de dinheiro. Estava totalmente vazio.
— Quaaaaaac! Para onde foi a sua grana, titio?
— Lá no Alasca, de onde você acabou de vir! Você
não viu o que há debaixo da terra.
— Então aquela era uma caixa-forte subterrânea
disfarçada de fábrica de vasos sanitários disfarçada de
172 SALOMÃO GLADSTONE

campo de petróleo... Brilhante idéia para confundir a


Organização!
— Obrigado, Ronald. Mas a idéia não é minha: é
do meu sócio exclusivo e especial.
— Quem?
Nisso, Sovina McGrana entrou no cofre.
— Estou meio surdo, mas acho que ouvi alguém
me chamar...

*****
Horas depois, sob as ordens de Eufrosino Fuinha,
o carrinho de Anabela chega ao esconderijo campestre da
Organização. Eufrosino era, para Vagarida, algo como um
velho amigo. Mas o lugar, a pata leviana não conhecia.
— Ponham o carro na garagem, desçam e sigam
minhas ordens! — rosnou Eufrosino, fingindo dar uma de
valente.
— Acho melhor a gente seguir as ordens dele,
amiga.
Anabela se assustou, mas Vagarida sabia que era
apenas uma armação. Sob a mira da arma de Eufrosino, as
duas entraram num enorme barracão, cheio de corredores
labirínticos. No fim, uma portinha discreta. Lá dentro, o
escritório de Fantasma Manchado.
— Eufrosino, muito obrigado por trazer Vagarida
ao nosso convívio. Não sei se eu já lhe disse isso hoje, mas
tenho que repetir: você é uma flor de pessoa. Huá, huá,
huá, huá, huá!
A risada irritante de Fantasma Manchado
estremeceu as paredes. Eufrosino agradeceu e saiu tão
rapidamente quanto entrou. Na sala, o trio trocava olhares.
— O q-q-que você quer de mim, Fantasma?
PATO AO MOLHO PARDO 173

— Eu não quero nada de você, sua rameira inútil.


Eu quero você! É um absurdo que você tenha sido comida
por metade da Organização, menos por mim.
174 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 22

Vagarida olhou para os lados em busca de alguma


saída. A seu lado, sua amiga Anabela a olhava como se
tivesse encontrado o monstro do Lago Ness. A sua frente,
Fantasma Manchado fazia sua tradicional pose de todo-
poderoso. O que fazer?
— M-m-m-mas... Eles eram meus amigos, e você
nunca me foi apresent...
— Conversa mole! — Fantasma quase quebrou a
escrivaninha com sua mão pesada, fazendo um grande
estrondo. — Você é uma marafona por vocação. Seu
negócio é esperar o Ronald virar as costas, chamar os
rapazes da Organização e dar, dar, dar! Estou me
preparando para tomar conta de Pastópolis de uma vez por
todas... E se você não cooperar, será o fim dos seus dias na
face da Terra!
Vagarida deu dois passos para trás.
— Não vou avisar de novo, Fantasma: eu não faço
nada dessas coisas por obrigação. Não importa se o cara é
poderoso. Com você não vai ser diferente...
— É o que veremos!
Fantasma Manchado, como um morcego, voou
sobre Vagarida. Os dois se atracaram numa briga feroz.
Anabela, subitamente, deixou a covardia de lado e acertou
uma sapatada na cabeça de Fantasma. Só serviu para irritar
o bandido mais ainda.
— Como ousa, sua vaca?
Anabela atirou seu outro sapato bem no meio da
testa de Fantasma. Vagarida aproveitou a distração, pôs-se
de pé e tirou do bolso secreto do vestido sua arma secreta:
a pistola paralisante de seus tempos de super-heroína.
PATO AO MOLHO PARDO 175

— Fantasma Manchado, fique quietinho aí e não


mexa uma sobrancelha. Agora é a minha vez de acertar
contas...
Nisso, derrubaram a porta da sala. Surgiram trinta
homens da Organização.
— Vagarida, deixe o acerto de contas com a gente.
Vocês duas podem ir embora.
A dupla de moças não acreditava no que via. A
Organização armou um golpe contra seu próprio parceiro!
Vagarida escondeu a pistola rapidamente, viu Fantasma ser
rendido com uma metralhadora na nuca e ouviu o
agradecimento de um de seus “amigos”:
— Parabéns, Vagarida! Só você para derrubar
Fantasma Manchado. Lá na cadeia, Professor Urubu vai
gostar de saber disso...

*****
Enquanto o pacto dos bandidos fazia água, a
aliança de Petinhas com um arquiinimigo ficava mais clara
para Ronald.
— Sobrinho, posso compreender por que você
fica assim tão assustado, mas eu e Sovina McGrana nos
cansamos de brigar. Estamos velhos demais para arranjar
inimigos, justo agora que nossas fortunas estão em jogo...
— Hein?
— Concorrência, rapaz — completou Sovina. —
A era das caixas-fortes e dos banhos de dinheiro está
chegando ao fim. Agora uma meia dúzia de espertalhões
fica jogando dinheiro para lá e para cá via Internet, e os
magnatas da velha guarda acabam ficando para trás.
Petinhas continuou:
176 SALOMÃO GLADSTONE

— Além disso, o monopólio das Indústrias


Petinhas na fabricação de vasos sanitários está indo para o
brejo. Nossa equipe de agentes secretos descobriu que os
planos da porta transdimensional vazaram para duas
grandes quadrilhas... E pelo menos uma delas está
envolvida até o pescoço com a máfia dos humanos. Daí
para um esquema transdimensional de tráfico de vasos, é
um pulinho.
— E qual é o seu plano de contra-ataque?
— Já que sabemos que Fatalôncio é o verdadeiro
cérebro da operação, temos que partir para o tudo ou nada:
destruir todas as portas transdimensionais existentes, tendo
o cuidado de deixar Fatalôncio no lado errado... O lado dos
humanos, é claro. Tenho até pena do que pode acontecer
com um pato falante sozinho no mundo dos humanos.

*****
Horas e horas de suor, e finalmente Fatalôncio
terminou de enterrar os corpos de Todd McLay e Honório
Bastos. Antes, Fatalôncio pegou a arma de Honório. Só
restavam duas balas, mas era sua única defesa contra a
xeretice dos humanos. Fatalôncio pensou, pensou e bolou
um plano:
— Se eu subir numa árvore, esperar um trem
passar e saltar sobre um vagão, há uma grande chance de
eu achar o que Honório estava procurando. É isso!
A primeira parte deu certo. Honório escalou a
árvore rapidamente. Um tempão depois passou um trem.
Fatalôncio se preparou, respirou fundo e saltou sobre um
vagão de minério. Afundou como em areia movediça. Lá
no fundo, quase sufocado, Fatalôncio se sentiu sugado por
uma fonte de luz intensa e foi atirado de três metros de
altura sobre um piso duro e gelado. Era o xadrez da
PATO AO MOLHO PARDO 177

delegacia central de Pastópolis, onde estavam detidos os


mafiosos da confusão do Hotel dos Frangos.
— Que bom te ver, Fatalôncio! Tenho certeza de
que os rapazes estavam com saudades suas. — disse
Professor Urubu.
Fatalôncio, meio grogue da queda, resmungou:
— Não acredito... Ou aqueles remédios para
enxaqueca não me bateram bem, ou essa proliferação de
portas transdimensionais está saindo do controle...
— Ih, pintou sujeira!
178 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 23

Os homens da Organização, que lotavam a cela,


ficaram excitados com a aparição de Fatalôncio.
— Oba! Uma passagem secreta! Vamos fugir
daqui, galera!
Professor Urubu, branco de pavor, conteve os
bandidos.
— Nãããão! Essa é uma porta transdimensional
para o mundo dos humanos, que ninguém sabe direito
onde vai sair! É melhor ficar aqui na cela mesmo, que é
mais seguro.
Fatalôncio limpou a poeira do paletó e disse:
— Concordo totalmente, Urubu. Que bom que
pelo menos voltei à companhia de meus amigos de
Pastópolis... Não agüentava mais a confusão lá do outro
lado. Mas que raio de porta é essa que aparece numa
carceragem?
— Foi mal, Fatalôncio... Resolvi experimentar uma
nova e revolucionária porta móvel, que pode ser
instantaneamente implantada em qualquer lugar. Só que
ainda não resolvi o problema de “linha cruzada” entre uma
porta e outra...
Fatalôncio agarrou Urubu pelo colarinho.
— O quê? Quer dizer que eu poderia ter sido
mandado para qualquer mato sem cachorro? E eu nem
sequer sabia que estava entrando numa porta
transdimensional!
— Epa! — disse algum chefete da Organização. —
Como ousa falar assim com Professor Urubu, o nosso
líder?
PATO AO MOLHO PARDO 179

— Tasca ele! — disse outro.


— Esperem! Vocês não entenderam. Fatalôncio
ainda vai ser muito útil para nós. Não podemos fazer
nenhuma de nossas megaoperações sem financiamento. E
agora que Fantasma Manchado foi posto fora de
combate...
— Hein?????
— É isso aí, Fatalôncio. Eu nunca suportei aquele
magriço, que é inteligente, mas não sabe trabalhar em
equipe. Muito menos na nossa equipe! Tramei tudo com
Otávio Buldogue e deixei todos os rapazes de prontidão
para garfar o Manchado.
— Espere aí! Isso não estava em nossos planos.
— Muito menos o seu sumiço e o de Otávio
Buldogue... A propósito, por onde anda aquele vira-lata
superdesenvolvido?
Dito isso, foi a vez de Otávio, todo tingido de
sangue, despencar ruidosamente na cela.
— Que droga! — gritou Urubu. — Essa porta
transdimensional saiu do controle! Tenho que desligar isso
antes que apareçam humanos xeretas!
O burburinho na cela chamou a atenção de
Coronel Contra, que veio correndo ver o que acontecia.
— Que bagunça é essa? Na minha delegacia,
prisioneiro só tem direito a ficar calad... Fatalôncio?
Otávio? Como vocês entraram aqui?
— Oi, Coronel — disse Otávio. — Digamos que a
gente fez como o cachorro da piada, que entrou na igreja
porque a porta estava aberta. Rê, rê, rê, rê, rê!
— Não me venha com gracinhas! Tratem de
explicar como arrumaram esse horário “alternativo” de
visita, ou os dois vão fazer companhia a seus amigos até o
juiz Décio Coruja bater o martelo.
180 SALOMÃO GLADSTONE

Fatalôncio se ergueu, metendo a mão no bolso.


— Sem problemas, Coronel. Tenho uns
documentos que podem interessar muito ao reforço da ceia
de Natal da briosa corporação policial pastopolense...
— Mande! Preciso examinar isso minuciosamente.
Fatalôncio, por entre as grades, encheu a mão
estendida de Coronel Contra com um rolo de cédulas das
grandes. Para o magnata, era um trocadinho. Para o
Coronel, mais de oito meses de salário. A porta da cela se
abriu em segundos. Fatalôncio saiu lépido e fagueiro;
Otávio o acompanhou, até ser barrado pela espingarda do
Coronel.
— Você fica, Otávio.
— Ora, vá pastar, Coronel! Fatalôncio pagou
muito bem pago por nós dois e...
— O quê? Como ousa acusar de corrupção um
policial honrado como eu, seu verme?
Dito isso, Coronel acertou uma coronhada na
barriga de Otávio. Sob as vistas de todos, Coronel brandiu
a espingarda como um machado e continuou batendo e
batendo. O mafioso rolava de dor, mas o chefe da polícia
parecia disposto a transformar Otávio em hambúrguer de
cachorro. Até os mais durões dos homens da Organização
ficaram chocados com a crueldade.
— E tem mais, Otávio: policial, além de ter que ser
honesto, tem que se divertir um pouco de vez em quando.

*****
Ronald nunca tinha visto seu tio engendrar um
plano tão esquisito. Mas o inventor das portas
transdimensionais, Professor Padral, chegou à Caixa-forte
para as devidas explicações:
PATO AO MOLHO PARDO 181

— Petinhas, Sovina, Ronald, já tenho dois


inventos prontos: um localizador de portas
transdimensionais, para sabermos exatamente por onde os
meliantes estão passando, e um neutralizador de canais,
para interromper instantaneamente a transmissão de
objetos entre uma porta e outra.
— E como eles são usados? — perguntou Ronald.
— Primeiro instalamos esta antena de radar no seu
carro...
— Logo no meu carro?
— Fique quieto, sobrinho desmiolado! — grasnou
Petinhas. — É só pelo tempo que durar a operação de
busca.
— ...E então seguimos o sinal para encontrar as
portas transdimensionais ativas num raio de 50
quilômetros. Uma vez localizada uma porta, nós nos
aproximamos dela e apontamos esta pistola de raios
neutralizadores. Os raios mandam o canal transdimensional
para uma espécie de buraco negro: daí em diante, quem
entrar na porta não consegue mais sair. Não é brilhante?
Enquanto Petinhas e Ronald examinavam os
planos dos inventos, Sovina McGrana murmurava
satisfeito:
— Consegui tudo que precisava. Que otário! Esse
Petinhas precisa aprender a não confiar nem na própria
sombra.
182 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 24

Ronald, alheio ao entusiasmo de seu tio diante dos


novos planos de Professor Padral e da aliança com Sovina
McGrana, pediu licença para se retirar.
— Desculpe, titio, mas estou muito cansado. Este
foi o dia mais corrido da minha vida, daqui a pouco já vai
amanhecer, e faz um tempinho que não vejo Vagarida e os
meninos.
Petinhas estava tão dominado pela febre do ouro
que não fez oposição. Com um gesto, dispensou o
sobrinho. Ronald desceu correndo as escadas da caixa-
forte, pegou seu carrinho antiquado e voltou para casa em
alta velocidade. Enquanto isso, pensava:
“Esse Sovina quer fazer Petinhas de trouxa. Não
posso deixar que um picareta desses ponha a perder toda a
fortuna que um dia será minha. Tenho que ficar de olho no
coroa.”
Em casa, enquanto seus três sobrinhos dormiam o
sono dos justos, Ronald pegou o elevador secreto do
armário e desceu à base secreta de Superbicudo, o maior
super-herói de Pastópolis (que, por acaso, era o próprio
Ronald disfarçado). Ligou o cérebro eletrônico e consultou
todos os dados existentes sobre Sovina McGrana.
— É incrível. Todo mundo está careca de saber
que Sovina e os Patralhas são aliados, mas ele jamais foi
acusado de um crime em qualquer lugar do mundo. Que
tremenda fraude!
Nisso, Ronald ouve a campainha do despertador
de seus sobrinhos. Provavelmente eles tinham que levantar
cedo para algum acampamento. No painel de controle da
base de operações, Ronald pressionou o botão “Bilhete
PATO AO MOLHO PARDO 183

Instantâneo” e — plift! — caiu sobre a mesa da cozinha


um bilhete: “FUI VISITAR O C APITÃO M ORBIDUQUE. NÃO
ME ESPEREM PARA O ALMOÇO. — RONALD”.
Esse era um álibi infalível. Só Ronald sabia que o
velho Morbiduque estava morto.

*****
— Agora é a nossa vez de ir embora, Petinhas.
Vou pegar uma carona com o Professor até o hotel.
— OK, Sovina. Durma com os anjos.
Professor Padral e Sovina McGrana, tão logo
embarcaram no carro e saíram da área de alcance dos
microfones da caixa-forte, botaram a conversa mais em dia.
— Sovina, o senhor acha que esse plano vai dar
certo?
— Certamente que sim. Você me dá os
equipamentos transdimensionais, eu neutralizo todas as
portas dos outros, abro as minhas portas exclusivas, os
meus vasos sanitários baratos entram no mercado e
Petinhas será um ex-zilionário.
— E da minha parte, o senhor esqueceu?
— Não, Padral. Você será regiamente
recompensado. Sabe aquele seu plano de dissolução da
diferença reprodutiva entre as espécies?
— Ã-hã.
— Eu prometo que você vai ter todo o dinheiro
que precisar para realizar sua façanha bioquímica, e muitas
outras... Logo que mandarmos Petinhas grasnar de raiva no
asilo de mendigos de Pastópolis.
Padral esfregou as mãos de satisfação. Enfim seu
talento de cientista recebia o reconhecimento devido.
Sovina continuou:
184 SALOMÃO GLADSTONE

— Só mais uma coisa: deixe-me na delegacia


central de Pastópolis. Tenho uns assuntos a acertar.
— Deixe comigo.

*****
Que pena que Ronald estava longe e não podia
ouvir a conversa da dupla. Pelo contrário: ele teve que
esperar pacientemente pela saída dos sobrinhos antes de
tirar o carro da garagem — aparentemente, era o carro de
sempre, mas por baixo do capô se escondia o arsenal de
truques de Superbicudo. Por ironia do destino,
desenvolvidos e montados pelo Professor Padral, o vira-
casaca.
— Este radar me dirá exatamente onde se
encontram Sovina e Padral. Se eu estiver na pista certa,
Sovina está nas imediações da delegacia central...
Enquanto Ronald dirigia, a seu lado vinha o carro
de Anabela, com Vagarida no banco do carona. As duas
ainda estavam assustadas com toda a confusão da noite e
com o golpe contra Fantasma Manchado. Ronald se
esqueceu da espionagem, emparelhou e gritou:
— E aí, Anabela e Vagarida? Saíram cedo hoje,
hein?
Vagarida levou um susto de deixar as penas em pé,
mas forçou um sorriso de saudação. Anabela pensou
rápido:
— É mesmo, Ronald... Vamos fazer um trabalho
voluntário no Clube Feminino.
— Que legal, hein? Parabéns e boa sorte!
Dito isso, uma limusine preta que vinha na
transversal parou no meio da rua, fechando o trânsito. Um
PATO AO MOLHO PARDO 185

sujeito de capa preta abriu a janela, apontou uma


metralhadora e encheu de tiros os dois carros.
186 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 25

— Rápido! Abaixem-se já, meninas! — grasnou


Ronald antes de se encolher atrás do painel de seu carro.
Ronald esticou o braço, pegou no porta-luvas a
pistola de raios de Superbicudo, abriu a porta direita do
carro e atirou na metralhadora. Enquanto o atirador
misterioso se abaixava para pegar outra arma, foi a vez de o
motorista da limusine abrir fogo contra o sobrinho de
Petinhas.
— Salve-nos, Ronald! — gritavam Vagarida e
Anabela.
Ronald voltou ao banco do motorista, acionou o
botão “Hiper-Ultra-Turbo” (mais um dos truques de
Superbicudo) e meteu pé na tábua. O carro de Ronald
“estacionou” bem no meio da limusine, mas o assento
ejetável salvou Ronald antes que os dois veículos se
transformassem numa bola de fogo. As duas moças
estavam perplexas. Ronald se recuperou da queda, limpou
a poeira e esperou o fogo baixar para identificar os
meliantes — ou o que restou deles.
— Como sempre, a Organização. Alguém aqui está
sabendo demais...
Vagarida e Anabela se aproximaram de Ronald, pé
ante pé, mas felizes com o desfecho.
— Meu herói! Você salvou nossas vidas! — disse
Vagarida.
— Obrigado, Ronald! — disse Anabela. — A
propósito... Que arma é essa que você usou? E que assento
ejetável é esse? Parece até que o Superbicudo passou por
aqui...
PATO AO MOLHO PARDO 187

Ronald, ao ouvir isso, sacou de seu bolso duas


bolinhas e as atirou no chão com força. Uma fumaça cor-
de-rosa derrubou as duas garotas, mas Ronald saiu
correndo a tempo.
— Rê, rê, rê! Adoro as utilidades do Superbicudo!
Quando elas acordarem, terão esquecido de tudo que se
passou nas últimas 24 horas. Melhor assim.

*****
Numa das celas da carceragem de Pastópolis, Maga
Magalógica e alguns Patralhas dividem o pouco espaço
disponível. Maga tem seus poderes reduzidos e não
consegue fazer nenhum truque para se livrar das grades.
Porém, Maga conseguiu chamar telepaticamente um de
seus corvos de estimação e enviar um bilhete para sua
amiga Madame Minha. Quem sabe ela não conseguiria tirá-
los de lá antes que o juiz Décio Coruja batesse o martelo?
— Maga! Seu corvo está de volta! — disse o velho,
mas ainda esperto, Vovô Patralha.
O fiel corvo passou pela janelinha da cela com um
bilhete no bico. Maga agradeceu ao pássaro, pegou o
bilhete e o leu para os Patralhas:
— “Amiga Magalógica: Já estou com uma poção
mágica pronta para tirar você e seus parceiros da cadeia.
Como estou sabendo que o fofinho do Fantasma
Manchado foi passado para trás, tenho certeza de que você
também poderá me quebrar um grande galho: faça com
que Professor Urubu corrija essa grande injustiça com o
bandido mais adorável de Pastópolis. Com carinho,
Madame Minha”.
Vovô Patralha se espantou:
— O que tem a ver uma coisa com a outra?
188 SALOMÃO GLADSTONE

— Tudo. Madame Minha é apaixonada pelo


Fantasma, e não está nem aí se ele não gosta dela. Coisa de
mulher idiota...
— Não importa. Você não pode mexer uma palha
para livrar a pele do Fantasma. Ordens do Professor
Urubu.
— Mas ela é minha amiga, afinal...
— Você sabe, Maga, que não há amizade entre
membros da Organização. Se Madame Minha nos ajudar,
ela ajudará a Organização. Isso representa um pacto de
morte. E aí ela deixa de ser amiga e passa a aliada.
— Desculpe, Vovô. Eu posso ser a maga mais
picareta do mundo, mas prezo minha liberdade e minha
amizade com Madame. Quero ser solta e quero ajudar
Madame, ainda que isso me leve a bater de frente com a
Organização!
— Ainda que isso a leve a perder a Moedinha para
sempre?
Maga sentiu um gelo na espinha. O momento de
pegar a Moedinha de Petinhas estava cada vez mais
próximo. O que a poderia deter? Mas a bruxa número 1 de
Pastópolis teve uma idéia.
— Já sei, Vovô. Madame Minha nos solta, a gente
reabilita Fantasma, eu consigo a Moedinha e faço
churrasquinho de Fantasma. Topa?
— Mas aí Madame não vai gostar nada de ser
enganada.
— Pouco importa. Com o poder da Moedinha,
Madame não poderá me ignorar: se não conquistá-la pela
amizade, eu a conquistarei pelo temor. Rá, rá, rá, rá, rá!
Os olhos de Vovô brilharam através das lentes
grossas.
PATO AO MOLHO PARDO 189

— Sim, isso parece brilhante. Mas sabe como é a


Organização: primeiro o Professor Urubu tem que dar o
OK.
Então se ouviu uma batida de bengala na grade da
cela e uma voz rouca:
— Urubu? Quem precisa daquele saco de penas
seqüelado? Já está tudo combinado, e Urubu é carta fora
do baralho.
Todos se viraram. Era Sovina McGrana.
— Sovina? O que você está fazendo aqui? A esta
hora você devia estar lá na África do Sul contando seu rico
dinheirinho.
— Tive uma idéia melhor, Vovô. Ou os Patralhas
não querem meter a mão na grana do Petinhas?
— Óbvio.
— Então é melhor se apressar. Quando meu
esquema de portas transdimensionais entrar em operação, a
fortuna do coroa vai para o brejo.
— Os chefes da Organização disseram a mesma
coisa.
— Esqueçam a Organização! Eu poderei
neutralizar todas as portas transdimensionais daquele
bando de patetas. Quando vocês tiverem todo o dinheiro
de Petinhas que conseguirem carregar, poderão comprar
todos os homens da Organização, um por um. E Maga terá
a cobiçada Moedinha de uma vez por todas.
— Isso parece bom demais para ser verdade —
disse Maga. — O que o senhor exige em troca?
— Nada de mais. Só o testamento do velho
Petinhas.
Ronald, que ouvia tudo através do megamicrofone
de Superbicudo, grasnou de raiva:
190 SALOMÃO GLADSTONE

— Assim não há condições! Agora, só matando o


Sovina.
PATO AO MOLHO PARDO 191

Capítulo 26

— Mas, Sovina McGrana, por que o senhor quer o


testamento do Petinhas? — perguntou Maga Magalógica.
— O senhor poderia embolsar 90 por cento da grana da
Caixa-forte e se tornar o pato mais rico do mundo...
— Não me subestime, pata otária! Primeiro, eu
não sou ladrão. Já estou riquíssimo, não preciso do
dinheiro de Petinhas e nem quero sujar minhas mãos
naquilo. Eu quero é o poder daquele bicudo ordinário.
Segundo, eu vou bancar a operação, centavo por centavo, e
vocês não têm o que discutir! Terceiro, a bufunfa já não
está mais na Caixa-forte há tempos. Eu vi com meus
próprios olhos aquele depósito de dinheiro completamente
vazio...
Os Patralhas se entreolharam, boquiabertos. Vovô
perguntou:
— Hein? Como é que você sabe?
— Eu fiz uma aliança com Petinhas com o
pretexto de deter a proliferação de portas
transdimensionais. Mas meu verdadeiro objetivo era fazer
um acordo em separado com Professor Padral e conseguir
os planos de seus novos inventos: o criador de portas
instantâneas e o neutralizador de portas ativas. Assim, só
eu terei o controle do transporte entre dimensões! Aí é que
Petinhas vai ficar pobre mesmo.
— E a bufunfa, Sovina?
— Está escondida no subsolo do Alasca,
disfarçada numa fábrica de vasos sanitários disfarçada em
campo de petróleo...
Os Patralhas quase caíram de costas. Vovô rosnou:
192 SALOMÃO GLADSTONE

— O quê? Quer dizer que a gente faz um pacto


com o escroque do Urubu, se mata naquele fim de mundo
do Alasca... E tudo não passou de uma pista falsa?
— Não olhe para mim desse jeito, Vovô. Eu juro
que não sabia de nada antes que o próprio Petinhas me
contasse. Palavra de pato zaralhonário.
— A propósito, Sovina... Por que é que nós
teríamos que confiar no senhor? — perguntou Magalógica.
— Será que o senhor é aliado mesmo de Petinhas e veio
aqui confundir nossas cabeças?
— Realmente, minha cara, nem você nem os
Patralhas têm a menor obrigação de confiar em mim. Mas
em quem vocês podem confiar? O Urubu, na primeira
chance, trairá Fatalôncio do mesmo jeito que traiu
Fantasma Manchado. Como gesto de boa-vontade, farei
com que vocês saiam da cadeia pela porta da frente, com
ficha limpa. Lá fora, sim, vocês decidirão o que fazer: ou
seguem seus caminhos como se nada tivesse acontecido,
ou cometem o ato de extrema inteligência de me apoiar
neste plano infalível. Vocês é que sabem. Qualquer coisa,
me procurem.
Sovina ergueu sua bengala e, antes de ir embora,
ainda se virou para a cela e disse:
— Só mais uma coisa: nem pensem em me
denunciar à Organização. Eles já estão carecas de saber o
que vocês precisam aprender o quanto antes: eu valho mais
vivo do que morto. Passar bem, amigos!

*****
— Por favor, Coronel, mate-me de uma vez por
todas! Não agüento mais...
— O quê? Agora que a festa está ficando boa,
Otávio Buldogue? Eu é que não vou lhe dar esse gostinho.
PATO AO MOLHO PARDO 193

Você ainda tem que ver com seus próprios olhos a cara de
satisfação de Muckey ao encontrá-lo nesse estado
miserável.
— Misericórdia! Eu dou o que você quiser, mas
acabe logo com isso.
— E eu ainda quero alguma coisa sua? Você nunca
teve dinheiro seu, como bom gângster de segunda
categoria. E agora não tem poder nem de levantar sua
bunda gorda dessa poça de sangue... pois, se tivesse, seria
para apanhar mais ainda!
Nisso, a porta da sala do Coronel Contra se abre
subitamente.
— Entre, Muckey! Venha participar da festinh...
Epa! Sovina McGrana?
— Bom dia, Coronel. Desculpe atrapalhar sua
operação especial... Não quero tomar seu tempo. Preciso
de um favorzão do senhor: eu, os Patralhas e Maga
Magalógica fomos convidados para uma festinha, e acho
que não vou poder me divertir sabendo que meus amigos
terão que recusar o convite. Será que é possível deixá-los
dar uma voltinha? Serei eternamente grato pela sua
compreensão...
— Sem dúvida, Sovina. O que eu não faria por um
amigo? Espero que aquela parada ainda esteja de pé.
— Sim, está. O iate está esperando por você na
Marina de Pastópolis. É só passar na recepção do meu
hotel e pegar as chaves. É todo seu. Divirta-se!
— Obrigado, Sovina.
— De nada, Coronel. Agora vou descansar, pois
estou realmente exausto. Bom trabalho... e solte logo os
Patralhas e a Maga.
— É pra já.
194 SALOMÃO GLADSTONE

*****
Na noite seguinte, Petinhas chamou seu sobrinho
para mais uma reunião, desta vez na suíte imperial onde
Sovina McGrana estava hospedado. Sovina recebeu os dois
patos com camaradagem e serviu um drinque
comemorativo.
— Um brinde à nossa aliança!
Sovina levou a taça ao bico, tomou um gole e deu
um grito:
— Aaaaaarghhhhhhh!
— Que foi, Sovina? — preocuparam-se Petinhas e
Ronald.
O segundo pato mais rico do mundo, roxo de falta
de ar, não conseguia dizer uma palavra. Envenenamento na
certa.
PATO AO MOLHO PARDO 195

Capítulo 27

— Sovina McGrana está passando mal! Chame a


ambulância já, Ronald! — grasnou Petinhas diante do
desmaio de seu sócio.
— É pra já, titio.
Na verdade, Ronald estava tão assustado quanto
Petinhas. Quem poderia ter envenenado a bebida? Será que
Sovina era mesmo o alvo? Ronald, com a ajuda de seus
aparelhos de escuta, já estava careca e depenado de saber
que Sovina estava armando para dar o bote em Petinhas,
seu rival histórico. Mas se foi a Organização que mandou
matar Sovina, teria que ser alguém muito poderoso. Nem a
turma do Professor Urubu, nem os Patralhas, nem os
mafiosos do círculo de Fantasma Manchado se meteriam a
besta de mandar eliminar o pato zaralhonário número 2 do
universo. A não ser que...
“É isso!”, pensou Ronald, antes de discar um
número que não era o do pronto-socorro do Hospital
Memorial Cornélio Patus.

*****
Enquanto isso, por entre o emaranhado de fios e
cabos coloridos que se alastravam pelas paredes do porão
de seu laboratório, Professor Padral admirava uma tela de
cristal líquido de cinco metros de largura.
— Esta é a parte dos projetos que Petinhas e
Sovina nem sonham que existe: o intercomunicador
transdimensional instantâneo! Sem as inconveniências do
transporte convencional entre dimensões, posso conversar
ao vivo, em tempo real, com meus sócios no mundo dos
196 SALOMÃO GLADSTONE

humanos. Enquanto os velhos magnatas e os mafiosos


comuns quebram a cara com as portas transdimensionais,
que ainda não estão totalmente testadas, tenho aqui um
canal direto para chamar os humanos, os verdadeiros
chefes da operação...
Padral ligou os aparelhos e pressionou um grande
botão verde. Em cinco segundos surgiu uma imagem em
preto e branco, cheia de chuviscos, mas ainda assim
identificável: Esther Altman, direto do último andar de
uma torre megaempresarial em Miami. A voz potente da
mulher, para não despertar a curiosidade dos vizinhos, foi
direcionada para os fones de ouvido do intercomunicador:
— Boa noite, Padral! Como está o tempo aí? E
então... Conseguiu a parada?
— Boa noite, Esther. Enfim, tenho boas notícias.
Petinhas caiu no conto da aliança estratégica e Sovina vai
botar uma nota preta em nosso projeto de estimação. A
fórmula da unificação reprodutiva das espécies está cada
vez mais próxima da realidade! Vai chegar ao fim o drama
dos pastopolenses que são proibidos, sob pena de morte,
de transar com quem não seja de sua mesma espécie.
— Uma mão há de lavar a outra. No mundo dos
humanos, uma fórmula dessas será uma revolução da
biologia... Que fará de nós os senhores do planeta! Rá, rá,
rá, rá, rá!
— Quando isso der certo, você pode até fazer uma
visitinha... Já disse que, para uma humana, até que você é
uma gata?
Esther sorriu sem graça:
— Deixe de galanteios, Padral... Temos que tratar
de altos negócios. Falei com os chefões sobre a sua
participação no negócio. Eles oferecem meio por cento do
faturamento da fórmula no mundo dos humanos, mais a
PATO AO MOLHO PARDO 197

garantia de que você terá o monopólio da fórmula em


Pastópolis.
— Que espécie de garantia?
— A de sempre... A cobertura armada da
Organização, agora reunificada sob o meu comando
pessoal.
— O quê? Você acha que a Organização vai se
curvar a uma mulher humana? E a grana do Fatalôncio,
que financia as operações regulares?
— Ê cientistazinho burro! Primeiro, quando sair a
unificação das espécies, eu poderei ser tão pastopolense
quanto você, o Petinhas, o Ronald e o Fantasma
Manchado. Segundo, a Organização só precisará do
dinheiro de quem tiver dinheiro grosso em Pastópolis. E
quando a fórmula entrar em fabricação, as fortunas de
Sovina e Fatalôncio reunidas serão trocadinho diante da
montanha de dinheiro que você vai ganhar! Por isso e
muito mais, esses magnatas da velha guarda são cartas fora
do baralho.
— Mas tem gente muito poderosa que não vai
gostar de saber disso.
— Isto é um segredinho entre mim e você... Deixe
os “meninos” para lá. Afinal, você não estava a fim de...
hummmm... estreitar suas relações comigo?
— Pode ser... Mas acho que você ainda vai precisar
passar por cima de alguns cadáveres poderosos no
caminho...

*****
Ronald, instintivamente, ligou para o laboratório
de Padral. Como o telefone ficava no térreo e Padral estava
ocupado com a conversa picante transdimensional, não
198 SALOMÃO GLADSTONE

ouviu o toque. Mas o telefone foi atendido e Ronald ouviu


uma voz:
— Alô, Ronald. Isto é uma gravação do Fantasma
Manchado. Acabei de tomar conta desta linha telefônica
esperando que você ligasse. Quer dizer que você, o
sobrinho do Petinhas, se acha muito esperto, não é? Pois
se você andou espionando o Padral, meus mil olhos em
Pastópolis já espionavam vocês dois há tempos. O Padral
não tem nada a ver com o envenenamento do Sovina: ele
não é inteligente o suficiente para fazer esse servicinho sujo
por nós. O Sovina vai sobreviver, mas o recado está dado.
O próximo da lista é você. Não adianta correr, pois estou
mais poderoso do que nunca. Tenha medo. Tenha muito
medo.
PATO AO MOLHO PARDO 199

Capítulo 28

Ronald, com o susto, ficou mais branco ainda. O


veneno deixou Sovina McGrana totalmente roxo. E
Petinhas, vermelho de raiva, grasnava em busca de uma
atitude de seu sobrinho.
— Ronald! Cadê a ambulância?
— M-m-m-mas... O hospital não atende, titio.
Deixe que eu levo Sovina à emergência.
Quando Ronald já se preparava para carregar
Sovina, Petinhas deu um salto (improvável para sua idade
avançada) e postou-se diante da porta da suíte.
— Não você, Ronald.
— Hein?
— Largue o Sovina. Você não confia de verdade
nele, e eu não confio em você.
— O quê? Depois de todos esses anos como seu
capacho em todas as aventuras de exploração, o senhor me
vem com essa? Eu sou seu herdeiro, viu?
Petinhas acertou uma bengalada na cabeça do
sobrinho.
— Cale-se! Você não sabe de nada! Eu, que escrevi
o testamento, é que sei quem tem direito à minha herança...
É bom você ficar quietinho enquanto nós três vamos ao
hospital. Nós três!
Ronald pensava: “Não vai ser mesmo agora que
vou dar um fim no safado do Sovina...”

*****
200 SALOMÃO GLADSTONE

Enquanto Sovina McGrana recebia os devidos


cuidados médicos sob a estrita vigilância de Petinhas, a
própria Caixa-forte estava entregue às baratas. Um
descuido da segurança permitiu que Maga Magalógica, com
suas bombinhas de gás paralisante, derrubasse todos os
guardas que encontrou no caminho. Os alarmes foram
desligados rapidamente. Atrás da bruxa, uma dúzia de
Patralhas. Nada parecia mais fácil. Até a porta do cofre
principal estava aberta.
— Vamos lá, manos! Vamos tomar banho na
grana do velho!
— Nada disso, 171-171! — gritou o Patralha
Intelectual. — Nossa missão aqui é pegar o testamento e a
Moedinha, não lembra? O Sovina disse que o velhote levou
o dinheiro todo para o Alasca.
— Rá! Só acredito vendo! — disse 171-171,
enquanto corria para o reservatório de dinheiro... que,
como era de se prever, estava completamente vazio. Foram
as últimas palavras de 171-171 antes de espatifar os miolos
lá embaixo.
— Oh, não! É o primeiro homem que perdemos
nessas operações especiais — lamentou Maga ao esticar o
pescoço para ver o que restou do Patralha.
— Mas isso não pode atrapalhar nossos planos!
Achem a Moedinha e o testamento, já! Revirem tudo! Não
desistam!
— Calma, Intelectual! — disse Maga. — Não
conhece meus dons paranormais? Eu vou achar a
Moedinha e o testamento com a força da mente.
Maga fechou os olhos, concentrou-se
profundamente, deu meia-volta e apontou para a janela
mais próxima.
— Lá está o testamento do coroa... Corram...
PATO AO MOLHO PARDO 201

— Lá fora, Maga? — irritou-se o Intelectual. — O


que há lá fora? Um gramado enorme, um monte de prédios
e avenidas, a estátua de Cordélio Flatus...
— O testamento está na estátua, mas não por
muito tempo. É de quem chegar primeiro... Há
concorrentes... Sejam espertos...
Intelectual disse a seus companheiros:
— Não sei o que ela quer dizer com isso, mas é
melhor a gente cumprir a instrução. Vamos lá, rapazes!
Magalógica e os Patralhas embarcaram nos dois
furgões pretos e desceram os dois quilômetros de rua até a
estátua de Cordélio. Tarde demais. Naquele momento,
enquanto Pastópolis dormia, Fantasma Manchado acionava
uma enorme escavadeira e derrubava a estátua. Ao notar a
chegada da quadrilha rival, Fantasma disse
debochadamente:
— Que otários! Não há nada que eu não saiba
nesta cidade de titica. Huá, huá, huá, huá, huá!
Vovô Patralha, que até aquele momento era um
coadjuvante na operação, ergueu a voz.
— Fogo no Fantasma, meninos! Pela alma do 171-
171!
Os Patralhas sacaram suas armas e atiraram sem
cessar na cabine da escavadeira. Mas a cabine era muito
bem blindada e Fantasma nada sofreu. Ignorando os tiros,
Fantasma pisou no acelerador e avançou pela Avenida
Patal, com estátua e tudo.
— Ele vai sumir daqui a pouco! Atrás dele!
Rápido!
Dito e feito! Em alguns metros, Fantasma,
escavadeira e estátua desapareceram por completo numa
porta transdimensional, em pleno asfalto, diante dos olhos
202 SALOMÃO GLADSTONE

de todos. Os Patralhas não conseguiram alcançar o


bandido de preto. Muito menos pegar o testamento oculto.
Enquanto isso, numa praia próxima a Miami, a
ardilosa Esther já esperava a chegada do testamento. A
estátua passou perfeitamente. Mas a escavadeira, com
Fantasma dentro, parecia ser grande demais para se
materializar no mundo dos humanos através de uma porta
transdimensional portátil.
— Maldição! Não posso confiar mesmo nessas
portas absurdas!
Esther nem teve tempo de ouvir a voz de
Fantasma: a escavadeira se desfez em milhões de
pontinhos e desapareceu no “buraco negro” entre as
dimensões. Mas a estátua ficou, para a felicidade de Esther.
— Pronto... Agora é só pegar o pé-de-cabra,
arrombar a portinha sob o pedestal e pegar o testamento.
No começo parecia meio difícil, mas Esther
conseguiu em cinco minutos. Agora uma mulher humana
teria acesso ao segredo mais bem guardado de Pastópolis: o
destino da herança de Petinhas! Esther, trêmula de
emoção, desenrolou lentamente o papel e começou a ler:
— “Eu, Petinhas O’Pato, em pleno gozo de
minhas faculdades mentais, venho por meio deste
testamento legar a totalidade de meus bens, incluindo, mas
não limitados a, reservas de numerário, imóveis, máquinas
e equipamentos, obras de arte e...”
Esther não conseguiu terminar de ler o
documento. Uma mão emplumada surgiu do nada e, numa
fração de segundo, tomou o papel e desapareceu em outra
porta transdimensional. Esther saltou em direção à porta,
mas caiu de cara na areia.
PATO AO MOLHO PARDO 203

Alguém em Pastópolis estava rindo à toa. Mas


muita gente poderosa em Miami não gostou nada do que
viu.
— Levante as mãos, Esther. Seus dias de máfia
chegaram ao fim!
Esther sabia que não era a polícia. A voz de seu
chefe era inconfundível. Era ele mesmo e seus capangas,
todos fortemente armados. Se fosse eliminada sem dor,
sairia no lucro. Tudo estava perdido, menos o ímpeto
desafiador.
— Mate-me agora mesmo, se você for homem!
— Pois eu não tenho culpa de ser viado, sua
embusteira! Rá, rá, rá! Pensa que vou te dar esse gostinho?
Fatalôncio vai adorar saber o que você anda fazendo. Já
para o carro, Esther!
O chefe deu uma olhada para o lado, encontrou a
estátua e deu a ordem:
— Essa estátua de Cordélio Flatus vai ficar ótima
no jardim da minha mansão. Obrigado pelo presente,
Esther...
204 SALOMÃO GLADSTONE

Capítulo 29

Professor Padral tentava retomar contato com


Esther, mas sem sucesso: àquela altura, a mafiosa estava
amarrada como uma múmia, no fundo de um camburão,
sendo levada a toda velocidade para local incerto e não
sabido. Como Padral iria saber?
— Raios! Não encontro ninguém do outro lado...
Vou ter que acionar o hiper-turbo-reforço do sinal
transdimensional.
Padral puxou a alavanca “Hiper-turbo-reforço” no
painel de controle. Estava emperrada. Padral arregaçou as
mangas e fez mais força. Nada. Antes de ter que apelar
para ferramentas menos “científicas”, o inventor agarrou a
alavanca, apoiou os dois pés no painel e continuou
puxando. A alavanca quebrou, e o desastrado Padral
acabou caindo sentado sobre o controle remoto das portas
transdimensionais.
— Ai! Tenho que me lembrar de fazer uns
controles remotos mais macios da próxima... Epa! O que
está acontecendo?
Abriu-se uma grande porta transdimensional no
meio do laboratório. Adivinhem quem apareceu em
instantes: Fantasma Manchado e sua poderosa escavadeira,
que era grande demais para não sair destruindo tudo no
porão da casa de Padral. A começar pelo controle remoto.
— Volte de onde você veio! Saia daqui! Poupe
meu querido laboratório!
A escavadeira passou por cima de todo o sistema
de intercomunicação entre as dimensões. Destruiu o único
exemplar do neutralizador de portas transdimensionais. E
arrasou as anotações de laboratório e as amostras de
PATO AO MOLHO PARDO 205

produtos químicos que dariam origem à menina dos olhos


de Padral: a fórmula da unificação reprodutiva das espécies.
— Nããããão! Pare já, seu destruidor maluco! Pare,
eu ordeno! Pare, senão vou chamar meus amiguinhos!
Depois de não deixar um parafuso inteiro no
laboratório, Fantasma Manchado finalmente puxou o freio
de mão da escavadeira e foi ver o tamanho do estrago. Só
se deu conta de onde estava quando encontrou Padral
choramingando num canto.
— Chuif! Chuif! Agora vou ter que trabalhar mais
vinte anos para recuperar isso tudo...
— Padral? É você mesmo? Epa, foi mal, mas deu
um defeito quando eu passava de uma dimensão para outra
e...
Fantasma nem teve tempo de completar. Uma
bota enorme arrebentou a porta do laboratório, abrindo
passagem para vinte policiais armados até os dentes.
— Quieto, Fantasma Manchado! — rosnou
Coronel Contra.
— Oh, não! Como é que descobriram a gente? —
assustou-se Fantasma.
— “A gente”, uma vírgula! Você, Fantasma, é que
está preso em nome da lei por invasão de domicílio,
vandalismo e operação de escavadeira sem licença. Se tem
amor à sua vida, deite-se no chão e nem pense em dar uma
de engraçadinho!
Sabendo das habilidades de Fantasma em artes
marciais, quatro policiais grandalhões cuidaram de algemar
as mãos e os pés do meliante.
— Obrigado, Coronel Contra! Veja o que esse
monstro fez no meu laboratório! O senhor salvou a minha
vida — disse Padral, na maior cara-de-pau que o chefe da
polícia de Pastópolis já tinha visto.
206 SALOMÃO GLADSTONE

— Não há de quê, professor. A missão da polícia é


defender cidadãos honestos como você, não é verdade?
Nisso, Contra deu uma piscadinha cúmplice a
Padral e deu ordem a seus homens para levar Fantasma
Manchado a mais uma temporada de férias na
penitenciária.

*****
Fatalôncio, em sua poltrona executiva, estava feliz
como uma criança. Finalmente o testamento de Petinhas
estava em suas mãos!
— Rá, rá, rá, rá, rá! Fui mais esperto que todos
aqueles palermas, seja em Pastópolis, seja no mundo dos
humanos... Vamos ver aqui para quem vai a grana do
velhote.
Fatalôncio leu uma vez. Quase caiu para trás.
Pensou que fosse um trote. Releu mais umas cinco vezes
para ter certeza do conteúdo. A realidade era mais absurda
que qualquer ficção.
— Realmente, o velhote está doido. Mas não há de
ser nada. Na hora certa, no momento exato, este papelucho
valerá mais que todo o ouro do Petinhas... É hora do Plano
B.
Fatalôncio pegou seu velho cronômetro, apertou o
botão e contou os segundos.
— Cinco... quatro... três... dois...
O intercomunicador tocou ruidosamente. Do
outro lado, a sonolenta secretária:
— Sr. Fatalôncio, os Irmãos Patralha e Maga
Magalógica aguardam na recepção.
— Mande-os subir logo. Obrigado!
PATO AO MOLHO PARDO 207

Pouco depois, a turma se sentava à frente da


escrivaninha do megaempresário.
— Exatamente como eu previa... Se fosse
ensaiado, não sairia tão perfeito!
— Como você sabia que a gente vinha para cá,
Fatalôncio? — perguntou Maga.
— Eu sabia que o plano de vocês com Sovina
McGrana não podia dar certo. Grampeei os telefones de
Fantasma Manchado, que, por sua vez, grampeou os
telefones de todo mundo na cidade... Tenho que
reconhecer que Fantasma é competente. Conseguiu levar o
testamento para o mundo dos humanos, mas eu fui mais
esperto e usei minha porta transdimensional pessoal para
recuperar o documento.
— Hein?
— Para piorar a situação de vocês, Sovina saiu de
circulação por uns tempos por motivos de saúde, Fantasma
está encrencado com a polícia, Otávio Buldogue está mais
para morto-vivo, Professor Padral não apita mais nada e
Urubu vai mofar na cadeia. Enfim, a quem mais vocês
poderiam pedir ajuda? Ao Petinhas? Ao prefeito Omar
Suíno? Ao bispo de Pastópolis?
— Hummmm... Pensando bem... — resmungou
Vovô Patralha.
— Pensando no bem-estar de meus amigos, já
tenho um novo plano na manga: carregar a Caixa-forte
inteira para bem longe de Pastópolis, por via aérea!
— Mas a gente já esteve lá na Caixa-forte, e está
completamente vazia. Petinhas escondeu tudo no Alasca.
— É o que vocês pensam. Ouçam esta gravação
feita agora há pouco.
Fatalôncio pressionou um botão num controle
remoto. A voz de Petinhas envolveu o ambiente.
208 SALOMÃO GLADSTONE

“Ronald, eu sei que nossas vidas correm perigo,


pois Sovina é metido com muita gente que não presta. Só
inventei aquela história de mandar o dinheiro para o Alasca
para despistar malfeitores. A grana está toda escondida nas
paredes falsas da própria Caixa-forte. Tudo que eu quero é
encerrar a história das portas transdimensionais e voltar a
tomar meus banhos de dinheiro.”
— Raios! Que otários que somos! — protestou o
primo 666-666.
— Vocês não viram nada... A cartola de truques de
Petinhas é inesgotável.
— E, afinal, o que diz o testamento do velho?
— Está tudo aqui escrito, mas não posso revelar.
A não ser que vocês queiram perder a bocada de meu novo
plano. O trato é o seguinte: vocês terão todo o dinheiro
que precisarem para arrancar a Caixa-forte do chão. Depois
de pagas as despesas da operação, a grana de Petinhas é
toda de vocês. Se Petinhas morrer, pouco importa. Pato
morto não precisa de Moedinha da Sorte. Não é mesmo,
Magalógica?
— Não entendi, Fatalôncio. Você sempre quis
Petinhas vivo e nunca se importou com o dinheiro dele...
Por que mudou de idéia?
— Novamente, amiga... Está tudo aqui escrito. Um
dia vocês vão descobrir. Agora, mãos à obra!

*****
No hospital, Otávio Buldogue, todo enfaixado e
mantido por aparelhos, se recuperava precariamente das
sessões de “massagem” de Coronel Contra. De repente, no
meio da madrugada, uma visita pouco esperada e muito
desagradável: Professor Urubu.
— Boa noite, Otávio! Que bom te ver... Rê, rê, rê!
PATO AO MOLHO PARDO 209

— Não estou entendendo mais nada, Urubu. Quer


dizer que eu quase morro de tanto apanhar do Coronel, só
para depois ele te libertar e você vir para cá terminar o
serviço?
Urubu tirou do casaco uma reluzente
submetralhadora e a apontou para o peito de Otávio.
— Só há espaço para um chefe supremo na
Organização pastopolense. Por isso, eis um presentinho
pela sua recuperação: muito chumbo quente. Reze, Otávio,
reze!
Naquele momento, Superbicuda saltou janela
adentro e caiu de pé bem na frente de Urubu.
— Só por cima do meu cadáver!
— Superbicuda, sua intrometida! Volte para a
cozinha e deixe que nós, homens, acertamos nossas contas.
Com sua pesada bota, a super-heroína
pastopolense deu um chute na barriga de Urubu, fazendo-o
largar a metralhadora.
— Engano seu. Ninguém vai mais encostar um
dedinho em Otávio.
Enquanto Urubu se contorcia de dor e
Superbicuda apanhava a arma, Otávio não continua sua
dúvida:
— Você está blefando, Superbicuda. Se você
combate a Organização, por que me defende?
— Nada a ver com a Organização. É uma questão
pessoal, meu caro...
Dito isso, Superbicuda ergueu seus óculos e deu
uma piscadinha para Otávio. Agora, sim, Vagarida era
inconfundível, mesmo dentro daquela roupinha colante
ridícula.
— E como soube que eu estava aqui?
210 SALOMÃO GLADSTONE

— Já que eu não te encontrava em nenhum outro


lugar, procurei na lista de pacientes do hospital. Sabia que
você estava correndo perigo.
Urubu pegou o revólver que estava escondido em
sua perna. Antes que pudesse se levantar, Superbicuda
apontou a metralhadora para o bico do bandido:
— Parado aí, Professor Urubu. Ninguém mexe
assim com macho que eu beijei... Aquiete-se antes que eu
conte para todo mundo o seu segredinho íntimo.
PATO AO MOLHO PARDO 211

Capítulo 30

— O que você quer dizer com isso, Superbicuda?


— disse Professor Urubu, num momento inédito de
hesitação.
— Eu nem vou contar para Otávio não passar
mais mal ainda... Mas você sabe, seu ordinário.
— Ela é a Vagarida, Urubu! — disse Otávio, num
fiapo de voz.
— Hein?
Superbicuda, sentindo-se desmascarada, tentou
esconder a hesitação.
— Não dê ouvidos a esse traidor!
— Ué? Pensei que Otávio fosse seu queridinho...
— Nem mais um passo, senão leva fogo!
Superbicuda olhou sorrateiramente para os lados,
em busca de uma saída para o impasse. Uma coisa parecia
certa: dos três que estavam naquele quarto, pelo menos um
teria que sair morto. Pensou rápido. Agiu mais rápido
ainda.
— Tome isto, Urubu!
Com uma agilidade de campeã de ginástica,
Superbicuda acionou as molas das botas, deu um salto para
trás e passou para o outro lado da maca de Otávio.
Destravou as rodinhas e empurrou violentamente a maca
na direção de Urubu, arrancando os tubos que mantinham
Otávio vivo.
— Uff! Isso não estava nos planos! Quem tinha
que matar Otávio era eu!
— Mudei de idéia.
212 SALOMÃO GLADSTONE

A esta altura, a maca rolava rapidamente para fora


do quarto e Superbicuda trocava socos com Urubu em
cima da barriga de Otávio. A maca desceu em disparada
um longo corredor. A rotina do hospital ficou seriamente
abalada.
— Que foi isso? — perguntou um médico.
— Sei lá. Por um momento, pareciam Professor
Urubu e Superbicuda brigando em cima de uma maca —
opinou outro médico.
De repente, Urubu perde o equilíbrio, cai para o
lado e derruba a porta de um dos quartos. Lá dentro, mais
uma surpresa: Sovina McGrana.
— Isto é jeito de entrar, seu moleque desaforado?
— Ufa! que bom encontrá-lo, Sovina! O senhor
está enrolado, e eu também... Precisamos sumir de
Pastópolis por uns tempos, até que a poeira baixe para nós
dois.
— Como é que é?
— Venha! Vamos aproveitar a distração de todos e
fugir para qualquer lugar.
Enquanto os dois se esgueiravam para fora do
hospital, a maca despencou por uma janela e caiu três
andares numa caçamba de lixo. Otávio já estava mortinho
da silva, mas Superbicuda nada sofreu. Antes que os
curiosos se aproximassem, Superbicuda tirou o uniforme.
Assim ela voltava a ser a Vagarida de sempre.

*****
Fantasma Manchado sabia demais. Sabendo disso,
conseguia tudo que queria na prisão. Era mantido numa
cela individual da delegacia de Pastópolis, com relativo
conforto e comida de primeira qualidade. E ainda podia
PATO AO MOLHO PARDO 213

dar uma de chato, batendo com a caneca nas grades por


qualquer coisinha: os outros presos ficavam furiosos, mas
Coronel Contra fingia que não dava mole para o meliante.
— Carcereiro, o jantar! Carcereiro, o jantar!
Logo que ouviu a voz de trovão de Fantasma, um
guardinha de terceira categoria foi atendê-lo. Surpresa total:
a cela estava completamente vazia.
— Coronel! Coronel! Fantasma Manchado sumiu!
Foi como mágica: ele me chamou e...
O chefe da polícia olhava para o teto, resignado.
— Só pra variar... É como eu sempre digo: é mais
fácil prender o Gasparzinho que manter o Fantasma
Manchado na cadeia.

*****
Alguns até viram. Quem viu, achou que era uma
ilusão de óptica, um disco voador, algo assim. Quem viu e
teve certeza do que era, não foi levado a sério. Alguém
poderia acreditar que uma vassoura voadora cruzava os
céus de Pastópolis naquela noite de lua cheia?
— Obrigado por me salvar, Madame Minha. Mas
fique sabendo: eu continuo não querendo nada com você.
— Ora, Fantasminha do meu coração... Você, que
já comeu todas as mulheres do submundo de Pastópolis,
vai dispensar justamente o piteuzinho aqui? Vem cá que eu
vou te dar um trato no meu castelo mal-assombrado...

*****
Ronald e Vagarida não poderiam perder a cena de
jeito nenhum. Na Caixa-forte, diante do depósito central
totalmente vazio, Petinhas pressionou um botão e abriram-
214 SALOMÃO GLADSTONE

se as portas dos reservatórios secretos de dinheiro. Em


minutos o depósito estava cheio, como nos velhos tempos.
Petinhas deu um salto mortal e mergulhou na piscina de
moedas.
— Urruuuuuuu! Finalmente posso voltar a tomar
meus banhos de dinheiro!
Ronald e Vagarida, felizes com a felicidade de seu
tio, se olharam apaixonadamente.
— Eu te amo, Ronald.
— Eu é que te amo, Vagarida. Enfim, juntos!
Vagarida deu as mãos a Ronald e olhou de
esguelha para as montanhas de dinheiro do megazilionário.
— É... Pobre Petinhas. Com toda essa bufunfa, o
coroa vale mais morto do que vivo.
— Sabe de uma coisa, Ronald? Por isso é que, no
fundo, no fundo, a morte de Petinhas é um desejo de todos
nós.

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