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HORACIO COSTA Sobre as afinidades eletivas: GUIMARAES ROSAEA ALEMANHA Aliteratura brasileira soube tonificar-se com dis- tintasinformag6esinternacionaisaolongodesua historia. Embora possa ser primitivo afirmar-se que a cada momento hist6rico de sua formagao umainformago internacional predomine,naose pode desvincular a produgio de alguns nomes-chave de nossa _worAciocosras conjunturasculturaisforneas,queosalimen- Brasiovana Universidade Nacional ica ou ideologicamente. O José de Alencar de O %® México literatura decert taram estili Guarani, por exemplo, & impensdvel sem o lacrimoso AssaKesavenon. THOMAS MANN Chateaubriand; o romantismo francés marcou profundamente nosso primeiro romancista, ¢ uma rocambolesca sensibilidade sempre a postos paraexumaro lado sublime das coisas atravessa- lhe a produgdo até o inacabado O Sertanejo. Machado de Assis, por sua vez, deve muito de sua bem-humorada, as vezes acida, reticénci: ao Sterne cujo Tristam Shandy ilumina nosso Brés Cubas,bemcomo aoutrosescritoresinglesesqueconfluiramcom SSugiahaiascun 6 . a Int et Provera Conparone sua propria visio de mundo para embasar-Ihe tom € técnica nar- “pes i: 4 2 12 Deparamario oe crane rativa. Entre os p6los inglés e francés principalmente,e tendendo fixss enseu? . . 2 Scena pemave serene Ge maisaesteque aquele, sobrepostosaumacrescentemente residual 1%: Grewia Oona wre i es i i . SGiopin ere Sista wok presenga lusitana,afirmou-se omainstrearn daliteratura brasileira, rsscoms REVISTA USP 494 1 Grande Sertto, wad. Curt Moyer-Ciason, Coidnial Bertin, Kiapermauer una ‘Wisc, 1068; Cops ce Bato, ‘er som, 1986 2 Cun MeyerCiasen, “Esto score Guimarkea Rosa"), Uisooa, isto Luc Bra: Idem, wide, 49, VIZ REVISTA USP Nao que ndo houvesse excegdes, que au- mentaram em mimero e importincia desde © século passado. J4 Augusto dos Anjos revela leituras alemas - um Haeckel ou um Schopenhauer de contrabando que Ihe te- To chegado através do interesse desperta- do pela pregagio germanizante de Tobias Barretona Parafba-,ea agudizagao politica que trouxeram o século-¢ a revolugao sovi- ética popularizou autores russos, sem o que oclima psicol6gico denso e tensodo melhor Graciliano Ramos, escritor Go debitariode repetidas leituras de Dostoiévsky, nao se consolidaria, Obviamentendomerefiroaqui a meciinica de importagdo de modelos cul- turais, segundo a qual intelectuais e artistas dos assim chamados paises periféricos mimetizam os modelosdiscursivosem voga nos paises centrais. A esta mecanica - cuja evidéncia,eficdciaesuficiénciastotomadas como fatosindiscutiveis porumaeritica lite- réria sociologizante -escapam os criadores, que necessariamente reinterpretam as suas necessidades as informagdes que lhes che- gam. Assim sendo, refiro-me aqui a um en- contro que se dé em nivel de profundidade maior, antes fruto de livre determinagao de partedointelectual ou doartista, que desua ‘compulsividade para acompanhar os passos sempre duvidosos do setor “de ponta” do cendrio internacional: um encontro pleno de beleza de significagdes, em que, apesar da barreira da diferenciagao linguistica ou da imposigaio de varidveis e muitas vezes discordantes matrizes culturais, a comuni- cago se dé, multiplicando expressdes in viduais. No plano da Cultura como proje- ao, interag&oeexpansao,esteencontro’ como escolha, como “afinidade eleti exereicio-didlogo do autor que de seu he- misfério,de sua pessoa, vistumbrae apreen- de outras galdxias de significagiio, Na histd- ria literdria brasileira, como em qualquer literatura nacional, alids,osexemplos abun- dam; um caso recente de interaggio, ndo 0 suficiente estudado, parece-me ser o de Guimaraes Rosa com a Alemanha -sensibi- lidade, lingua, literatura, O objeto do pre- sente ensaio serd levantar algumas premis- sas para um estudomaisabrangente que vise sistematizar o trago alemaona obra rosiana. Em primeiro lugar, mencionarei alguns da- dos biograticos iniciais, que panoramizemo ‘contatocoma Alemanhana vidade Gui ries Rosa. Em seguida exporei graus de a parentesco, por assim dizer, entre Grande Sertio: Veredase Doktor Faustus,de Thomas Mann. Finalmente, procurarei alinhavar elementos pervagantesde um contatocon- tinuado com a cultura alema em sua obra, como uma possivel marea heideggeriana em Grande Sertdo: Veredas, uma afinidade lingifistica entre seu processo de criagio verbal ¢ a lingua alema - que se depreende da traduzibilidade relativa de seus intrincados textos para aquele idioma -, ou a suspreendente acolhida critica que seus livros receberam na Alemanha, Como for- ma de apéndice, scrd interessante compa- rar aqui a visio subjetiva, profética metafisica, do autor mineiro,com relagio ao portugués do Brasil, e aquela expressa por diferentes intelectuais alemaes com relagdo a seu idioma nacional, A recebida extraordindria que Grande Sertao: Veredas e Corpo de Baite - wraduzidos ao alemao como Grande Sertaoe Corpsde Balletres- pectivamente (1)- tiveram na Ale- manha levou a que o editor Joseph Witsch convidasse Guimaraes Rosa aescreveralgumaslinhassobresua relagio como idioma alemao, Deste convitesaiuo texto “O Reno e © Urucuia”, citado pelo tradutor Curt Meyer-Clason num seu en- saio-homenagem a Rosa, publicado pelo Instituto Luso-Brasileiro de Lisboa, que aqui sigo de perto (2) Nesse texto, Rosa,bem-humoradamente comparandooriodos Nibelungoscomaque- Je em cujas margens ocorre a saga roménti- co-demoniaca do vaqueiro Riobaldo- Tatarana, revela que sua atragio pelo id ma alemdo data de sua infancia. “L4, em Minas Gerais, quando com nove anos de idade, muitoespantei aosmeus,aocomprar, pormimmesmo,uma graméticaalema, para estudé-la, sozinho, sentadoa beira da calga- da(...)” (3): anoticiandonosdeve surpreen- der -estimulado por seu professor ¢ porum clima familiar propicio, 0 menino Joao ja por esta idade lia em franeés e portugués ¢ possuia rudimentos de latim. © que oatraiu no idioma alemao é a sonoridade das pala- vras cheias de consoantes (“S6 foi por inato amor as palavras recortadas de exatas con- soantes: tais como Kraft e Sanfi, Welt ¢ Wald, e Gnade e Pfad ¢ Haupte Schwunge Schiiss” (4)), em oposigao a wocalicidade do portugués, que tiobemo adulto Guima- es Rosa saber combater em sua batalha sonora para a criagio de um novo ¢ mais expressivo idioma, Anos mais tarde, estu- dante de medicina e cientista amador, Rosa dard preferéncia aos livros impressos em alemio - para no perder contato com a lin- gua, desenvolvido durante a adolescéncia, bem como para aceder a poesia de nomes como Schiller, Heine ou Goethe. Depoisde exercer por alguns anos a medicina, Rosa - j4por entdo dominando mais uma lingua, o Tusso - é admitido como diplomata de car- reira (aos 26 anos, em 1934). Seu primeiro posto no exterior é, eoincidentemente, em Hamburgo, como cOnsul-adjunto. Af per- maneceré nosso escritor por mais de quatro anos (de 1938 a 1942), mais exata- mente até a entrada do Brasil na Guerra, quando foi encerrado em Baden-Baden como prisioneiro, sendoextraditado depois demeses de detengio, Nesse periodo, Rosa experimentou os horrores ¢ as contradigées dasociedade alemadeentioe, naturalmen- te,identificou-se com o grupo mais liber: ouhumanitério,dosintelectuaisgermanicos (¢famosa, por exemplo, sua arriscada ativi- dade pré-semita por esses anos, quando Guimaraes Rosa, com o consentimento da Chaneelaria brasileira, distribuiu passapor- tes para centenas de judeus alemies que de ‘outra formateriam perecido noholacausto). Por outro lado, a vivencia da cultura alema ez-se-lhe mais aprofundada; coms ‘gotével curiosidade intelectual, no ¢ dificil imagind-loas voltascomemaissignificativo dacultura germAnica, presa de uma intensi« dadeede umatenacidade paraoestudoque severiam refletidas em sua produgao futu- ra. Como exemplo, basta mencionar aqui a entrevista concedida ao critica alemao Gunther Lorenz, em 1965 (5) - & qual retomarei mais tarde -, quando Rosa citou de meméria trechos de obras tao distantes no tempo ¢ tao distintas entre si como o Simplizissimusou versosinteirosde Goethe. Embora a familiaridade com a lite alemi transparega na referida entrey ‘embora alguns textos seus - como “O Mau Humor de Wotan”, reunido a Ave, Palavra (6)-refiram-se diretamente asua experién- Giapessoal na Alemanha,naverdadea maior evidéncia de um estreito vinculo lingtiistico entre a criagdo rosiana ¢ o idioma alemao € suatraductibilidade. Voltemosaoensaiode ines- Meyer-Clason, antes mencionado. Nele, 0 panorama que otradutor nos da do nivel de exigencia de Guimaraes Rosa é compungente: palavra a palavra, oragio a oragdo, ¢, claro, neologismo a neologismo, © brasileiro trabalha e retrabalha, perfeccionistae ineansavelmente,asversoes de seus textos feitas pelo alemio, desde 0 ponto de vista de quem tem com a lingua alema “relagdes(...)de um leitor assiduo, de um lingiista, de um poeta" (7). No conto ‘Sequléncia” - apenas para citar um exem- plo - Rosa escrevera “coragdomente”, in- surgindo-se assim contra a banalizagio se- mintica do advérbio de modo alatinado “cordialmente” na linguagem cotidiana - mesmo burocrdtica - em portugues; nao se satisfazendocomatradugio para “herzlich” - mais afim do uso corrente que do sutil ncologismo -, 0 escritor propde a Meyer- Clason: “(...) talvezo termo possaser refor- gado: mitherzlich? —herzherelich? herzherrtich? herzundherclich? herzweislich?” (8), apontando uma diretriz ctiativa para o ato de traduzir, bem como revelando a referida com porden- tro” com o idioma para o qual esta sendo traduzido, Numa palavra, a passagem aci- mailustraaconsciéneiade Guimaraes Rosa sobre a equivaléncia das potencialidade de seu modo de expressdo-a “lingua” rosiana, porassimdizer -¢ aquelaslatentesnalingua alema, Em “O Renoe o Urucuia”, falando sobre seus livros, Rosa di “Sempre achei que seriam, principal- mente, leitura para alemies - gente que sentedemodoagarradoeafetivoanatu- reza,e que precisa, a todo momento, de maneira inadidvel, de apoiar-se na metafisica, Mesmo, em horas mais devaneadas,chegava apensarqueaque- les livros, tio brasileiros, e mineiros, es- tariam contudo algum tanto virgens, irrevelados,enquanto nao recebessem a sangdoe béngdo dos leitores alemaes,os de fato mais eapazes de ‘ver tudo’ neles. Ogque digo ésincero, nada demagégico, poderia juré-lo pelo corcel do jagungo Riobaldo, os quais, indissoliveis, vem a serum: Weihs Maltr (‘cavaleirocomba- tente’ou ‘cavalo de combate’)-que,con- forme vejo num léxico etimoldgico, € passando por Wimara, Guimara, foi 0 primitivo nome de Guimaraes” (9). 5 Ginter Lorenz. ‘Diogo com ‘Grades Rosa. n Guna. "les Rosa (Coles Focuna Gite), lo ae lane, Cv tragto Brasiova 1983.69. 62.07. (Rope dw Mungo ‘Nuvo, unos Ave, marge 1970) Paiara feo do Janero, Ed owe Otympo, 1970, 70 Mayet Cason 0p. 6.6.49, 18 Idem, ide, p 47:8 9 Laem, idem, p. 480 STA USPAIIS 10 Thomas Mara, La Noval 6 una Novela, Buenos Aron, Str 1988 118 Gunila Bergatien, Doktor WA REVISTA USP Como vemos, a redugao tiltima da germanofilia rosiana € apontar para uma embriondria germanicidade de seunome e, metaforicamente, de seu ser mesmo. Desta maneira, a afinidade eletiva reduz-se emblematicamentea uma nebulosa, distan- te porém onipresente raiz, étnico-cultural; assim sendo, aeleigdo da afinidade dé lugar A eristalizagio de construgdes mentais sim- bolicas: se a germanicidade se aloja numa camada to sensivel-quanto a da propria identidade, transforma-se em motor de espelhamento, de abertura do eu que iden- tifica em relagio ao outro que é identi do. O trecho acima, a meu ver, baliza e pos- sibilita aventurar-se pelas veredas deste ensaio que escrevo para além da simples intertextualidade obra rosiana/literatura alem’, oudoesgotanteexercicio de enume- ragdo académica. Obra ¢ autor - e, como mencionei, também sua “lingua” - aproxi- mamse deste outro que é, mais queallitera- tura pura esimplesmente, a coisa” alem’, por muitos dingulos; cabe-me agora, em se- guida, apontar um exemplo onde, tematicamente, esta aproximagio se da. Ainda que Thomas Mann apontasse em seu didrio sua intengao de escre- verum romance utilizando da figura miticac tao germanicado Dr. Fausto aindaem 1901, seré apenas durante a Guerra, € quando 0 escritor se en- contra na Califérnia como exilado, que a obra longamente acalentada serd es- crita. O dia preciso do infcio de suaescritura 615 de margo de 1943, como Mann nos in- dica em seu La Novela de una Novela (10); nestecuriosolivro-depoimentode umacom- posigdo literdria, também ele nos confessa encarar Doktor Faustus como “seu dltimo trabalho”. Quarentae dois anosde esperae a necessidade de compilar informativa metalinguisticamente,em trabalho a parte, dadosqueo autor querdaraconhecercomo necesséirios ou pertinentes para a compre- ensfo de uma obra sua nos alertam para a importancia da mesma no contexto de sua produgdo: Doktor Faustus €, sem diwvida, a summa literdria de Mann, destinada a ex- pressar,dadasua complexidade eseualean- ce, sua visio e, mesmo, seu julgamento so- bre a Alemanha. Este cardter hist6rico, no sentidomaisabrangente,emoral,éadema corroborado pelo fato de que o tempo do narrador Serenus Zeitblom, aatualidade da narragdo ¢ 0 tempo hist6rico em que escre= ve oautor Thomas Mann coincidem: é tam- bém na data acima referida que Zeitblom senta-se deter ado a escrever uma vindicagaio da memsriade sewamigo, ocom- positor Adrian Leverkihn, que morreratrés anos antes, vitima final da sifilis. Correm os meses decisivos da Guerra - quando futu- ro do péndulo bélico passa efetivamente a apontar para uma vit6ria dos Aliados con- tra 0 Eixo. Nao apenas dados como este, irrefutavelmentehistéricos,alertam-nosque naconcepgao geral da obra, e especialmen- tena concepgao do personagem do compo- sitor, tudo € intencional: Adrian, como Wagner, é misico e, como Nietsche, sfili- tico;aeste poderoso bindmioque encarnaa alta cultura alema de fim doséculo passado, nacionalista por um lado ¢ visiondria por outro, somasse a figura de Lutero, que se evidencia em vérias falas escritas em Alte Deutsch -alemio antigo - ao longo do livro. Discorrendosobreesteponto, acnsaista succa Gunilla Bergstren chamaatengaio para © personagem do rubicundo Professor Ehrenfried Kumpf, que em Halle ensina Teologiaa Leverkihn, figura que personiti- ca e parodia © Lutero {ntegro ¢ simplério das Confissdes de Augsburgo (11a). Por outra parte, é significativo que seja em ale- mio antigo que 0 proprio Adrian, sob 0 impacto de sua entrevista com o deménio, escreva o impressionante documento que Zeitblom inclui em sua narragao, e que seja nessa forma arcaica que publicamente se retrate 0 compositor quando de sua tltima e desastrosa aparigdo, antes de ser defi vamente engolido pela loucura, Sintetizan- doa umminimoacargasimbolica da utiliza. go do alemao antigo, parece-nos que cla é ade atualizar o debate teolégico da Refor- ma - ao tragar uma linha direta Luterof Leverkithn através da fala - ao mesmo tem- po que apontar para a enorme importéncia daexisténciamesmadesse debate para oser alemao. {ndice revitalizadode demonizagao dacultura,¢ particularmente da mistica-ou dareligiosidade -alema, a regressiio hist6ri- ca, no personagem principal do romance, a uma forma discursiva residual, porém basi- ca, com relagio ao presente social, somada a0 dado de que a abundancia no relato de referéncias hist6ricas nos permite atribuir aoromance ogénero"histérico”nosalertam para 0 fato de que Mann se esforgou por interpretara Historia sob um pontode vista eligioso e metafisico (11b). Naturalmente, aq) éer-me em esquematizar mais prolongada- mente Doktor Faustus. Entretanto, hd dois elementos mais a mencionar na obra antes que passemos consideragiio de Grande Sertio: Veredas. O primeiro é seu principio decomposigzio, profundamente contempo- tineo: rata-se da colagem, e dai, por conse- qiencia, da montagem. Na contextura de Doktor Faustus, rebrilham matrizes textu- tisde origens surpreendentementedispares, como o periGdico Scientific American qua biografia de Nietzsche eserita por Emil Rohde (quem, alids,embasa aconcepgiiode Zeitblom), 0 Apocalipse de Sa0 Joao Evangelista ou a biografia de Beethoven (outro genio alemao “condensado” em Leverkihn) por Schindler,mais,obviamen- {e, miltiplas verses do mito medieval do Dr. Fausto. Neste caso, Mannchega mesmo ‘tindicar,em La Novela de una Novela, um tratado nonocentista » Die Sage von Faust, ‘compilado por J. Scheible e publicado em Stutigart em 1847 - que, ao levantaras dife- rentes formas do Fausto na Idade Média e Renascimento, Ihe forneceu material para que pudesse delinear sta propria versio do ito. Além do anteriormente dito, a aportagem da miisica, especialmente da te- oria da musica dodecafonica de Arnold Schoenberg filtrada criticamente por Theodor W. Adorno, maisaconstante refe- réncia a obras plisticas -como a pintura de Patinirou2s gravuras de Durer fazem-nos Yer que 0 texto mesmo € concebido como lugar de projecao de muitas expressdes ar- Iistcas. Bleé, de fato, arquiteturamultimidia ¢rigida com base na técnica da colageme da montagem, que emblematiza a visio subje- tivade Mann sobre a cultura alema, Embo- Taoacimulo de:informagdes ou referencias ais ou menos histéricas pudesse dar mar- gem aque fosse o texto considerado como obra de um erudito, tanto a escolha quanto acisposigao do material nele empregado o selamcom um padrao de artisticidade abso- lutamente atinente como discurso das artes emnossoséculo. Obrasinfonica,mentalizada Asemelhanga da Parética de Tchaikovsky - que se projeta no texto iluminando a tltima “tomposigio de Leverkihn, ndo por acaso Hintitulada “A Lamentagao do Dr. Fausto”,e. ‘que metaforiza, por assim dizer, a existéncia do livto inteito -, Doktor Faustes 6 obra de umescritor seguro de seus métodose consci- entedaslimitagdes,ouda eficdciadomesmo, anivel da economia da leitura, Osegundopontoa consideraré0 proce- dimento literério que unifica 0 processo de agregacao do todo significante em Doktor Faustus, Trata-se, sem diivida, da parédia, nao em sua acepedo tradicional -a de “imi- tar burlescamente” -, e sim na de tomar emprestado uma nova vez, no todo ou em Parte, a um elemento qualquer - género, estilo, estrutura, ou elementos caracteristi- cos, coincidéncias semanticas no geral, ou um modo interno definido - de uma obra especifica ou uma escola anterior. Isto se evidencia de varias maneiras em Doktor Faustus. Primeiro, devide a uma tendéncia critico-metalingiistica do texto falar de si proprio: por exemplo, em varias de suas discussdes com seu circulo intelectual de amigos Adrian menciona, ¢ finalmente rechaga, a alternativa de produzir obras “parddicas” - uso aqui o sentido tradicional -comoa tinica alternativa que se oferece ao criador contempordneo, criticando esta al- ternativa coma se fosse um fendmeno liga~ lo auma spengleriana decadéncia da civi zago; nestes entrechos, uma verdadeira fi- losofia das formas parddicas é 0 que perse- gue Mann, Segundo, porque a propria utili- zagio voluntaria de um mito tao caudaloso iplica perse a referénciaa situagdes textu- ais anteriores (sendo que este Fausto est mais préximo das fontes tradicionais medi- evais que da versao romantica de Gocthe, porexemplo).Terceiro, porque um tom ir0- nico afim do parddico, por vezes associado a0 grotesco ¢ a0 “sublime” piegas, que se tinge de tragédia e crueldade sem com isso prescindir daironiaaolongodolivro,media arclagodoescritoredonarradorZeitblom, Por tudo o que foi dito anteriormente, cabe afirmar que Dokor Faustus parodia 0 10- mance memorialistico-encomidstico do. culo XIX, parodia discursos (0 critico, o poético, 0 cientifico entre eles), obras espe- cificase personagens hist6ricos, visandoatra- vés dessas lentes de aproximagio estabele- cer e, ao mesmo tempo, transcender © qua- dro de uma época, ¢ proceder a uma inter- pretagio profunda da Alemanha. O livro foi publicado em 1946, ¢ imediatamente transformou-se no livro essencial do pos 110 Acute rspoto, altura de ‘ons enaaios de Mann exc orem s944 (mae oun, Se ae eweagbes Ge corto. ‘ramotetnee eicectges) Dimov doe eneaior ama Froncionados Ver The ‘Alan Monti, vl. 173 ‘aio we 1044 pp. 7885) 6 wal tafe. consoae tee, Dio REVISTA USPRIS 1S ¥ec Gunner Loran, op. ct, 61am, ncem,p 8s 17 Sual Fran Speer, Caos @ Gosmos, Sto Pavio, Ovas. Condes 1978 Bisa icem pp. 175.6184 116 REVISTA USP gucrra;poresta altura, Joao Guimaraes Rosa publicavasuaprimeiraobra-Sagarana-num pais distante do cendrio da Guerra, Ja Sagarana chamou atengio da critica devido a sua diferenga contrastante com 0 que por aquela época no Brasil se convinha chamar como “literatura regionalista” (12), devido a um personalfssimo padrao de inventividade com relaggio a0 marco regio- nal e, especialmente, devido a uma di rada inventividade com relagdo ao uso da linguagem, tanto no ambito da apreensio das formas idiomaticas regionais come no da utilizagao da tradigao castiga do idioma portugués. Entretanto, as obras de maior eso especifico na produgio rosiana, nas quais os tragos gerais acima apontados tor- nam-se maisexponenciais, Corpo de Bailee Grande Sertéio: Veredas, consumiriam dez ‘anos para serem escritas ¢ 6 vieram a luz, consecutivamente,emjanciroeabrilde 1956. A inusitada proximidade entre essas datas é explicadapelofatode que Grande Sertaotoi mentalizado, originalmente, como um dos sete contos longos, ou das “novellas”, que compdem Corpo de Baile (13). De fato, a correspondéncia 6 notivel, sobre 0 ponto de vista formal, ou estilistico, entre Grande Serido e quaisquer das narra- tivas de Corpo de Baile. Naqueles dez anos, Rosa esteve trabalhando em blaco, daf ser possivel argumentar-se que ambas as obras devam ser tomadas ¢ estudadas, de prefe- réncia, em conjunto, Uma citura “radical proporia, por exemplo, que Corpo de Baile pudesse ser visto como uma "unidade fratu- rada”, em que situagdes, personagens ou falasreferenciam-seentresi,delincandoum tinico espago narrative romanesco corres- pondente, porsua vez, a0 espaco autonomo de Grande Sendo; nao obstante,amagnitu- dedo sopro, ariqueza da tessiturae oalean- ce experimental deste ultimo livro Ihe ga- Tantem, a 6s, um lugar especial na literatu- ta brasileira. A meu ver, desde Memérias Péstumas de Brés Cubas, que Machado de Assis publica em 1880, nenhuma obra con- seguirallidartaoconsistentementecomoser humano na literatura brasileira, a partir de uma matha de marcos cireunscritas e sob um pontode vistauniversalizante.Conside- To que um dos componentes para que esta cristalizagaoinaudita de qualidades literari- as se desse em Grande Sertao tenha sido justamente uma leitura de Mann feita por Rosanoperiododo pés-gucrra, periodoeste que o brasileiro, diplomata de carreira, divi- deentre o Brasil, a Colombia e Paris. Assim sendo, Doktor Faustus estaria para Grande Sertito: Veredas como Tristram Shandy es- teve para Memérias Péstumas, guardadas as proporgoes e tal como mencionei no co- mego deste ensaio. A idéia da afinidade entre Doktor Faustus ¢ Grande Sertao nao é nova na crf tica literéria brasileira. Roberto Schwarz a desenvolveem A Sereiaeo Desconfiado(4}, adimensiio desta afinidade nao escaparia a finos leitores como Paulo Rénai e Jacé ‘Guinsburg. Detodasasmaneiras, asaproxi- mages feitas entre ambas as obras obede- em a um critério temitico - so obras “faustianas” - nao respaldado pornenhuma declaragio especifica do escritor brasileiro, ‘Onome de Thomas Mann aparece apenas uma vez na entrevista eoncedida a Gunther Lorenz (15), juntamente com os de Robert Musil e Franz Kafka; € uma presenga mais honoraria que real entre os arcanos ‘germanicos citados naquela entrevista, es- pecialmente em comparagao ao de Goethe, de quem, na mesma ocasiio, Rosa disse ter sido “o nico grande poeta da literatura mundial que nao escrevia para o dia, mas paraoinfinito” (16). Ainda,nolevantamen- to da biblioteca de Guimaraes Rosa no momento de sua morte, levado a cabo por ‘Suzi-Frank|Sperber em Caose Cosmos(17), encontramos oite livros de Goethe, inclusi- ve trés verses do Fausto (uma alemd inte- gral, uma bilingie franco-alemd, com a tra- dugio francesa de Gérard de Nerval, e uma terceira em francés, na tradugio de Henri Lichtenberger), contra uma tnica obra de Mann-o Bekentnissedes Hochstaplers Felix Krull (18). Entretanto, essa auséncia nio deve de modo algum significar desconheci- mento de Rosa em relagio a obra de Mann: como rcitera a ensaista Frankl Sperber, 0 mestre mineito nao era amigo de acumular livros ¢ rechagava a idéia da formagio de uma biblioteca. Senenhumdadopodenosassegurartan- toaleitura como uma provavelascendéncia da obra de Mann sobre a de Rosa - 0 que, ademais, seria de menor importancia para uma avaliagio critica madura, além de care~ cer totalmente de interesse aos olhos de um Ieitor comprometido tdo-somente com a rentabilidade desualeitura-,semelhangase diferengas entre Doktor Faustus e Grande Sertio: Veredas permitem-nos avangar um padrdo tentativo de comparagao. A primei 1a correspondéncia é uma coincidéncia tematica; a primeira diferenga é a maneira mesma que tém os escritores de se apossa- rem do mito. Para Mann, o Fausto é 0 em- bblema da Alemanha posta a pique por uma Hist6ria pervertida; para Rosa, 0 mito faustiano simboliza, antes que um fait accompli, uma diivida estruturadora do homem sobre a natureza de sua experiéncia (divina? demonfaca?) na Terra. A forma de apropriagao do mito por Rosa ¢ Mann dis- tingueambososprojetosliterdriosdesde um, prinefpio; a primeira semelhanga converte- se, assim, na primeira diferenga. Isso, obvi- amente,ndoexelui uma possivelleitura pro- cessada pelo brasileiro da obradoautor ale- mio, ainda que fosse para, através da contraposigao, esclarecer-semelhorsuacon- cepgdoromanesca. Antesde pretenderapre- ender numa esquematizagao simbdlica um ser regional ou nacional encapsulado por artimanhas da Historia, o que busca Rosaé, frontalmentee desde atrituragio da consci éncia de um heréissingularmente épico, sin- gularmente romantico, problematizar um fuxo de conhecimentocmbusca de umsen- tido maior para a existéncia individual Adrianéumgéniocriador,embuscadaauto- expressiio; é esta dnsia pela linguagem que 0 faz pactar com 0 demdnio. Riobaldo Tatarana, 0 heréi rosiano, € um homem comum que, levado por um amor duvidoso senio proibide pelos padrdes morais que regem a subcultura que © viu nascer, vé-se numa encruzilhada de sua vida, tendo que se contrapor a um poderoso inimigo cujas forgas he sio superiores. O pacto demont- 200 6, portanto, antes resultado do medo - da sensago da propria inferioridade para teagir a uma situagdo real imposta pela vida - que da soberba intelectual que busca origi- nalidade pessoal reconhecimento pubblico. Adrian nao se encontra ameagado pelo seu entorno; pelo contrario,amanciracomocle considera sua produgao cultural é ade um competidor-agressor, de acordo com a me- horética protestantee capitalista. Riobaldo, emcontrapartida, tem suaintegridade fisica ameagada. Frutode um desejo inconsciente dohersideMann,um frigidissimoemutavel Demoselheaparece para formalizar-lheum a sido resolvide com anterio- ridade; nao reagindo contra esta noticia, passivamente deixando-se envolver pelo discurso demonjaco, Adrian torna-se cim- plice da situagao e compromete seu futuro. Riobaldo, por sua vez, deseja ou pensa de- sejar que uma forga escura oajude adesem- baragar-se das circunstancias em que sua paixdoo havia imerso;entretanto, a presen- ga demoniaca no se materializa no relato: nao passa de uma laténcia, simbolizada por uma forma etérea da natureza - um rodamoinho. O heréi alem4o éculpado por sua fraqueza, por sua deciséo ou por sua indlecisaio;0 herdi brasileiro,entretanto, vé- se acossado por uma obsessdo que perma- nece como iinico residuo real de suas andangas ou amores de juventude, Como vemos, 0 mito do Dr. Fausto esta mais fiel- mente registrado no herdi de Mann que naquele de Guimaraes Rosa, Riobaldogum Fausto sui generis: ndo intelectual -embora extremamente inteligente - ¢ inseguro de sua identidade faustiana; sua excep- cionalidade com relagdo ao arquétipo faustiano chega ao ponto dele colocar em davida aexisténciado Deménio. Mann pre- ocupa-se com uma problematica nacional, Rosa com uma teoldgica, exposta anagogicamente. Mann visa a Alemanha; Rosa oleitor. A narragdode Doktor Faustus se historiciza continuamente, como acima ficou dito; em Grande Sertdo, ao contrario, ha um desejo transparente de desca- racterizagiio dos marcos temporais. Embo- ra mais préximo do mito original do Dr. Faustoque Riobaldo, Adrian vivenumtem- po mais hist6rico, ¢ inversamente: embora, mais liberado do registro de um mito espe- cifico, Riobaldoencontra-senumdevirtem- poral mais préximo do mitico que Adrian, Por um lado, temos uma atualizagio histé- rica do mito em Doktor Faustus, por outro nos depara um desbordamento inter- pretativo de um mito referencial em Gran- de Sertio: Veredas, obra cuja concepsao aponta para uma outra percepgao do fend- meno da temporal continuidade temporal subjetiva, tiosubje- tivaquese aproxima a atemporalidade. Nes- se sentido, a concepgio de Riobaldo Tatarana vincula-se, em termos de hist6ria literdria, maisaquela do Leopold Bloom de Ulysses que aquela do Adrian do Doktor Faustus;esta disjuntivaé,ademais, realgada por uma diferenga estrutural entre Doktor REVISTA USPIIT 19AsES, Olvaes, "Fausto. o ‘Personaje Autentico y eI Tondtes Favstes an late: ratura Universal ta Pats, ‘Unweridad Nacenal, 1968 WB REVISTA USP Faustuse Grande Sertdo: Veredas, queGada figura do Narrador. Serenus Zeitblom narra a histéria de Adrian Leverkuhn, como vimos, desde um pontode vista exterior, embora estejaemo- Gionalmente envolvido comseu relatoe seu personage; este modelo garante-Ihe um tom decandidezquedamargemaque Mann exercite sua ironia, voire sua veia parédica, Nocasode Grande Sertdo, anarragdo 6 feita em primeira pessoa, e o narrador dos fatos é, também, seu maior ator. Em Dokror Faustus o narrador conta uma histériae sua preocupaciio¢ conté-laomaisintegralmen- tepossivel:s6.assimamemsriadeseuamigo serd vindicada. Em Grande Sertéo, 0 narrador nos confessa a sua: tinico respon- sével pelo proprio relato bem como pelas agdes nele enfocadas, Riobaldo nos brinda um strip-tease animico: seu tesouro é sua histéria, portanto a forma de verbalizé-la torna-se essencial: antes de querer contar uma histéria rout-court, Riobaldo quer contésla bem. Nesse processo, Riobaldo converte-se de ator em autor; literalmente, ele assume a palavra, Assim sendo, uma maior preocupagiio com a exatid’o dos da- dos do relato intensifica, por assim dizer, a presenga do escritor ao longo de Doktor Faustus;por detrésda narragdode Zeitblom passo a passo acompanhamos Mann numa, performance awtorial magistral, Rosa, a0 contrério,comosc fazendosuaamdximade Eliot que recomendava que oautoranulas- sesua personalidadenaescritura, guarda-se por detrés do texto. Como veremos, sua in- lengaio ndio ¢ desaparever de todo, como se estivesse buscando criar uma perspectiva ilus6ria de verossimilhanga, escudado pelo discurso autorial de seu personagem. E isso porque © modo direto livre do narrador Riobaldo vem direcionado obliquamente em Grande Sertio: Veredas: ao invés de buscar comunicagio direta como leitor,cle € filtrado, por assim dizer, por um interlocutor imével, que nunca acaba de formalizar-se, ou de desenhar-se, no relato. Esseinterlocutoroclusoéa quemonarrador Riobaldo sempre se refere em scus ires ¢ vires, na mogao balanceada do ato de con- tar, é um “Doutor” - um membre de uma outta classe social, presumivelmente urba- ha - que, na estrutura do relato, eumpre a fungdo simultdneademediagio donarrador ao Ieitor € de representagiio metaférica do leitor no texto; outra valencia metaférica tomnada possivel pelo esquema concebido por Rosa é a de representar-se ele no pré- prio texto como receptor de um diseurso alheio. Nessecaso-seo “Doutor" aquemse dirige o jagungo Riobaldo for deveras Gui- mardes Rosa (que, ademais,recordemo-n0s, era médico de profissio) - o relato poderi ser vistocomoo registrode um depoimento sobre um casode possessiiodemontaca (real ou imagindria); assim, o escritor obtémnio apenas jogar com a idéia mesma da autoria do texto como também com a legitimidade mesma de poder este texto ser visto como obra de criago artistica: em tela de juizo ficam as nogdes do romance como géneroe a do escritor como autor. De tudo 0 que foi ditoacimadepreendemos que umainovagio no esquema narratoldgico do relato -a refe- rida obligitidade augurada com ainsergaono mesmo de um “outro”, um interlocutor cujo papelou identidade “reais” sao mantidosem suspenso para o leitor - trouxe uma nova e mais movimentada dimensio semaintica a toda a obra, marcada pelo signo duplo da pluralidade ¢ da ambigiiidade. Como vemos,nos aproximamos a colindar com aidéia da parédia, no sentido contempordineo acima esbogado. Abrevie- mos rapidamente, portanto, algumas valéncias parddicas em Grande Sertio: Ve- redas. Em primeiro lugar, pelo que foi dito anteriormente vemos que 0 género classico do didlogo transforma-se, de fato,em mo- nélogo que se abre para uma dindmica dialogante, sem identificar-se por completo com uma forma ou com outra, Em segundo lugar, a tendéncia a documentalizagio das formasoraisregionais,quecaracteriza sobo ponto de vista lexical a chamada literatura “regionalista”,passaporum processointen- sificado de criagao ¢ reverberagio semanti- ca, que termina por tornar imprépria, sendo. ridicula, a classificagio de Grande Sertto como obra regionalista; entretanto, a pre~ senga de toda uma corrente literdria que se. define, na historia da literatura brasileira, a partir de nomes como o préprio Alencar, até 0 ciclo do romance nordestino de Graciliano Ramos e Lins do Régo, como -gionalista”’ se faz indelevelmente sentir aolongodolivra. Um terceiropontoaabor- daraqui €,igualmente, de genero: tipo de romance que evoca o enredo de Grande Sertio 0 do western, ou romance de ago viri, Hé um parentesco evidente entre a superficie do enredo de Grande Sertdo com 0 da maioria dos livros que trata, tematicamente, do conflito armado entre bandos de homens que vivem fora dealean- ce daleicivil,entreguesaosprépriospadrées de conduta, nas fronteiras dos espagos urbanizados-ou“civilizados”-,;comosioos sertées brasileiros ou as prairies norte-ame- ricanas. Assim,a nivel da economia do rel: to,um dos pontos de interesse é 0 de panhar o desenvolvimento ¢ o final result. do de uma luta & morte entre jagungos inimistados, embora sejam perceptiveis, na leitura, as dimensdes simbdlicas que tal en- redo assume, principalmente a partir da superposigao tematica do mito faustia Contudo, além da temética faustiana uma tltima camada parddica distingue a fabrica de Grande Sertio: Veredas. Trata-se do dit cursoromanticode Riobaldo se basciana problematizagaio de sua prépr identidade sexual. Curiosamente,otemada homossexuali- dade comparece também em Doktor Faustus: tanto 0 afeto do narrador Serenus Zeitblom por Adrian as vezes parece exces- sivo aos olhos de um leitor malicioso, po- dendo sugerir um relacion: sexual latente, quantoaamizadedocompo- sitor Leverkiihn violinista Schwerdtfeger, que evolucionaparaatin- gir um nivel afetivo explicitamente ho- mossexuall, so indi- ces da vinculagiiodo tema do Fausto com ode uma sexualida- deoutra, A tems homossexual, alids, esté contida numa das verses mais an- tigas do mito do Fausto, provavelmente origindria da Baixa Idade Média ou de principios do Renascimento. Essa versio forneceu ele- mentos, por exemplo, jd para a concepgiio do Dr. Faustus de Marlowe, como nos ensi- na Alicia Olivares (19). Assim sendo, Thomas Mann c, como veremos, Guima- Hes Rosa, ao acentuar uma problemstica homocrdtica em seus personagens, niio fa zem mais que reciclar uma inform mitica; entretanto, nem 0 ¢s acom- ‘atarana,que mento homos- com o critor alemao nemobrasileiro, a0 fazé-lo,obedecema uma visio moral de condenagio ao homossexualismo per se, como uma mani- festagao mais do demonfaco, Em Doktor Faustus, a relago Schwerdtfeger/ Leverkiihn é vis mocomsimpatiayem Grande Sertéo,otema do homossexualismo assume as dimensoes que mencionaremos a seguir. Riobaldo Tatarananarrasua paixdopelo Jagungo Diadorim, mogo imberbe de finas feigdese olhos claros, que se torna seu com- panheiroinsepardvel clugar-tenente,apar- tirdomomento em que Tatarana ascende lideranga dobando. Aolongodamaior parte do relato de Riobalde, a natureza de seu amor por Diadorim € problematizada ob- sessivamente: premido por uma moral a , 0 velho combatente pergunta-se a saciedad to;levado pelo discurso, ou pelo prazer de contar, pouco a pouco todo o proceso de seu envolvimento. com Diadorimse revelaaoleitor. De fato,a paixdo equivoca de Riobaldo constitui-se numa segunda linha de ambiglidade no relato: assim como nosso herdi-jagungo tor- lura-separadefinirsuarelagaocomoDemo, também cle luta com a expresso € com a forga emocional da evocagio de seu passa- do para definir, para seu interlocutor obli- quo, a forma de seu amor. talamor forall Entretanto, se a existéncia ou nto do pacto com o Dem@nio jamais se esclarece a Riobaldo - dessa maneira dando-Ihe a nova dimensfo faustiana imaginada por questo de sua ambigilidade sexu- alse resolver coma final revelagio da ver- dadeira identidade de Diadorim, Seu com- panheiro de armas era, na verdade, uma mulher (de nome Maria Deodorina), filha travestida do homem cuja morte nas m dobandocontrérioquerem Riobaldoes Rosa Us Rev $1 usps 20 Asso respeio, wer Walnce, Noguera Galvin” As Formas ‘oFatno StoPaio Perepc 21 Marin Heigger, “MNase of Language” in On the Way {0 Language. Sto ranciaco Harper Rom, 1982" 9657 WO KEVISTAU e homens vindicar. Deodorina mantivera sua identidade escondida para ser accita em pé deigualdade,comoguerreiro, pelosdemai serd apenas depois de morta em batalha campal-na qual fere & morte oassassino de seu pai-quescuverdadcirosexoserédesco- berto. Estamos diante de um processo tipi- co de anagnérise, t&0 prezado pelo teatro classico; além de langar mao desse recurso para criar um ponto culminante no relato, convém aesta altura mencionar que, assim como na concepgio de Riobaldo vemos incidiro mito do Dr. Fausto, na do persona gem Diadorim desenha-se a figura medie- val da “donzela guerreira”, cujo arquétipo hist6rico-mitico é Joana D'Are (20). Seja como for, Diadorim/Deodorina, para os efeitos da estrutura do livro, funcio- nacomoum dosindices polaresdaambigui- dade existencial de Riobaldo; como disse anteriormente, hd um nivel parédico que se anuncia através de seu discurso, principal- mente se tomarmos como modelo os herdis dos romances deagio viril, A nivel teol6gicoou roméntico, Riobaldo é um personagem que se define pelos meios- tonsantes que por contrastes fortes: 0 espa- godeseuseréo dadiivida ontologica, Heri da relatividade, nisto diferencia-se da con- cepgio literéria de Leverkihn, muito me- Ihor definida em termos absolutos. De todas as manciras, parece-me claro que uma provavel Icitura de Thomas Mann tenha alertadoGuimaraes Rosasobremui- tos dos aspectos que 0 escritor brasileiro desenvolveriaem Grande Sertio: Veredas. Em que pese a diferenga na concepgio geraldasobras,dos personagense dastéc- nicas narrativas,ou mesmo diferenga na forma de escrever desses autores, Grande Sertéo¢ Doktor Faustus dialogam a partir de sua filiagZo tematica ¢ a partir de um procedimento parddico que as aproxima. Comrelagoaeste ditimo aspeeto, htuma otvel diferenga entre a importancia de tal procedimento em Doktor Faustuse em Grande Serio: naquele livro, cle é unificador, neste, ele é ancilar. Em Gran- de Sertio: Veredas, 6 0 proceso de criagio lingtistica a nivel da palavra como unidade isolada, tomado como fator de reflexao filo s6fica, que predomina, Este ¢ 0 pico que Urataremos a seguir. Por ora, baste-nos afirmar a afinidade entre Doktor Faustus e Grande Sertdo: Ve- redas,clegida por Rosa atravésdesua expo: sigéo & eseritura de Mann Riobaldo suporta “uma experiéncia comalinguagem’” em seudiscurso (pa: rafraseio.o Heidegger de The Naaure of Language(21),Suamaneirade falar ndo condiz com a lingua “da tribo":0 narrador de Grande Sertao: Veredas narra desde um espaco linguistico proprio, cuja densidade vai além, por assim dizer, dasimples morfologia do discurso,de sua aparéncia. A“experi¢ncia” de Riobaldo traduzaqueladoautor Guimaraes Rosacom acsséncia da lingua brasileira,com o portus mente, que a lingua de Rosa nascia da con- ji do aproveitamento das formas idio- miiticas regionais com um trabalho consci- ente sobre a heranga castiga do idioma nao €incorreto; entretanto, um significado pro- fundo, quese refere a experiéncia basicade sua escritura para si mesmo como autor - significado este que transparece em toda a sua obra e privilegiadamente em Grande Sertio -, no encontra lugar em tal afirma- gio. O projeto lingUistico-literdrio de Rosa quer ir além da fusiio bem-sucedida da oralidade regional coma tradigio escrita do idioma: apresenta-se comoum portadordes- sa experiéncia metafisica com o niieleo vital da lingua. O préprio escritor referiu-se a isso ‘¢emsuaentrevistaa Gunther Lorenzzantesde regressarmosacla,convémestendermosum poco mais sobre 0 que acima dissemos. Naturalmente, ao falarmos em termos polares como aparéncia/esstncia da lingua- uma definida como fisicalidade do discur- so que se submete a quais interpretagdes ou raciocinios forem, € a outra definida tio- somente através da percepgio de sua indefinibilidade em termos de um discurso cquivalente -nosaproximamos da nogaode metuifisica da lingua, Uma maneira de com- preender esta nogiio levar-nos-ia 4 admis- siio que existe um centro irradiador no mais nodoidioma, quelhe emprestasuaiden- tidade profunda e que transcende, como entidade, a0 uso social ou mesmo histérico da lingua, localizando-se num tempo pré- ptio- ima absoluto no qual todas as possibi- lidades de desdobramento criative dentro do idioma jazem larvais. Se admitimos esta nogio dessa forma, naturalmente poderd resultar-nosclaro aproximé-la da problem ticado relacionamento entre idioma naci= onalidade. Assim sendo, numa relagdo biunivoca, a metafisica da lingua como no- do nos traz A questéo de sua iden- tificabilidade como nicleo estruturador de um grupo de individuos que se toma como umanagio. A este ponto,estamosaum passo deefetuar uma leitura ideologicamente ne- gativa da nogiio de metafisica da lingua, ao apontar uma sua possivel interpretagio em, termos nacionalistas; entretanto, por perti- nente que seja esta questiosob um ponto de ta tedrico, ela ndo cobre, semanticamen- te, todo oespectro designificagSespossiveis da nogao que aqui tratamos. Sob um outro ponto de vista - como veremos adiante, gundo a acepgio de Rosa -a “metafisica da Ingua” vincula-se a uma quintesséncia po- 4tica do idioma, Em outros termos, objeti- vamtente a nogaoem questao pode vincular~ seaumacaracteristicanacional, manipulavel politicamente (edafseuriscopotencial,como um instrumento ideoldgico a servigo do Estado); subjerivarnente, no entanto, desde opontodevistadocriador,este éum concei= to legitimo, que se confunde, na tradigio romintica, com a artisticidade mesma do texto. Quanto Aculturaalema, porexemplo, tal conccito confunde-se com a historia mesma do Romantismo, de Fichte e Von Humboldt, de Hélderlin a Heine. Recapitulemos. Por um lado, a nogaio de “metafisica da lingua” termina por parecer intransitiva, nao permeavelao discurso criti- cocesta intrasitividade pode parecer suspei- tesa aos olhos de um leitor que n ispo- nha aaceitar os limites de eficdcia da palavra critica, jd que nos leva as lindes desconfortaveisda tautologia subjetivizante: por outro, aponta para um projeto de sensibilizagdo a nivel da palavra que vemos desenhar-se cm Heidegger: “ao invés de ex- plicara linguagem em termos de uma coisa oudeoutra, afastando-se dela dessa forma,o caminhoparaalinguagempretende fazercom que cla seja experimentada como tal” (22). ‘Como vemos a partir de agora, hé uma. complementaridade entre a expressio rosianae amaneira como 0 filésofo.alemio aborda o tema da linguagem. J4 haviamos, naparte anterior deste ensaio, aoreferirmo- nos a Girancle Serta: Veredas, wtilizado cer- tos termos heideggerianos, como ter-se-4 dadocontaoleitor, oExistencialismo-como filosofia do ser, como ontologia, como pos- tulava Heidegger - ¢ a filosofia da lingua- gem - da qual o filésofo alemao foi um dos expoentes - acorrem, sob formade constru- es mentais, uma e outra vez, durante a leitura de Grande Sento, Em Sein und Zeit (1" parte - 1929), Was it Metaphysik (1929), ouem Hélderlin unddas Wesen der Dichtung (1936) (23) - apenas para citar alguns titulos todas as obras da primeira metade da pro- dugiio de Heidegger, os temas acima apon- tados jése delineiam com bastante forga; a tais titulos, entre outros, poderia ter tido acesso Guimaraes Rosa quando de sua per- manéncia na Alemanha. Antes de mais nada, vale a este ponto dizer que, no referido inventario da biblio- teca de Rosa, no se menciona nenhuma obra do filésofo alemao; entretanto, nomes como os de Kierkegaard ou Nietzsche, pre~ decessores, em mais de um aspecto, de Martin Heidegger, ouode Karl Jaspers,com quemopensamentoheideggerianomantém pontosdecontato, neleestio presentes (24). Embora catdlico praticante, Guimaraes Rosa estava aberto as tendéncias do pensa- mento contemporaneo para além das afiliagdes religiosas dos pensadores que the interessassem; é de pressupor-se que 0 ¢s- critor brasileiro, seja no perfodo passado na Alemanha, seja nos diferentes paises nos quais a partir de entdo serviu, tivesse se detido no estudo da contribuigao heideggerianaaopensamentoocidental. Se nao éna formagao de sua biblioteca na hora de sua morte que encontramos confirma- o para essa diivida, descobrimos uma alu- silo explicita a filosofia heideggeriana na entrevista concedida a Gunther Lorenz. Voltemos, poi A passagem ¢ interessante e merce ser mencionada cuidadosamente. Primeira- mente, Lorenzafirma que, devido ao domi- nio de Rosa sobre muitas linguas estrangei- ras, pode ele contar com um ponto de van- tagem com relago a seus colegas de oficio, muitas vezes limitados a um grupo restrito de idiomas, quando nao limitados apenas a ingua na qual escrevem. Como exemplo, cita a téenica de “retradugdo intelectual”, na qual construgdes idiomaticas de outras nguas sao “adaptadas” pelo escritor brasi- Iciro, de formaa tracer asua” lingua sono- ridadesousignificadossurpreendentes para © portugués. Toda passagem contém impli- citamente, portanto, um elogio no apenas Way 10 Language’. in M Heidegger op cit pp. 111 36. A passagem citada (op. 119-20 cucp ct). ue Yatusiiwementase potugs fe, ansr cove ra radagto Inoleca ae Peter 0. Mec) “When woratectonlangeage qua’ language. we a instead of pain language tema ‘tena tng or anche ane inusronneg away tom he grabped but gasped the Fraspotsometungote an Sco tmeaondtoianguage exclusively a8 language, however, them tanguay Tormard everything Belonge 10 Tonguepe language" 28SeinundZot (gan) Hal, Ea Jat he Priceops tina Phanomenciogache Forschung vat Vil, 4650 Hate. Max Nameyer. 1927 as at Metagnysi. Bom, 28>. 1909 pewatado com tim Niachwort am 1943) ‘olen vedas Wes cor Dectng, Das erere ech "a (aoatado wn plaguane formar en 1987), 248 rs. Le Le Francas. ournal(Enraas) 10541048, waa Kn Farlow @ Jeans Gaionu. “Les Exons” Pars, Gaimaré. 1950) Os ‘ana optima Wad A Me Destourseaux vols te) (Han Aber v0) il Le Pages Crotioe as. Hane Abort, Pats, Mercure 1047) De x votanungen 1949) 6 Inoguet Priosopive (wad. Jaan Hersch Pan, Pion, 851) vista USP 421 25-090 com Gui sumsorgen “eis dee’ aso TAZ REVISTA USP a técnica de Rosa, como também ao.que ela implica de dedicagio, em termos de horas de trabalho, paraa absorgdo de tantasinfor- magoes. Contornando esta sub-repticia manifestagaio da ¢ticado trabalho por parte de seu entrevistador, Rosa a cla soma a re- alidade todo-poderosa de sua relagao dife- rencial com o idioma. Serd neste contexto que mencionaré Heidegger; a resposta, tao reveladora de Rosa como homem ¢ como autor, prefiro aqui cité-la por inteiro: “Pode ser, mas nao creio que isto seja decisive. Repito minha opiniio:o traba- Iho € importantissimo! Mas ainda mai importante para mim & o outro aspecto, © aspecto metafisico da lingua, que faz. com que minha linguagem antesde tudo seja minha. Também aqui pode-se de- terminar meu ponto de partida, que é muitosimples. Meulema é:alinguagem eavidasdouma coisas6.Quem nao fizer do idioma o espelho de sua personalida- denio vive;ecomoa vida é umacorren- te continua, a linguagem também deve evoluir constantemente, Isto significa que, comoescritor,devome prestar con- tas de cada palavra ¢ considerar cada palavra 0 tempo necessario até ser ela novamente vida. Oidiomaéa tnicaporta para 0 infinito, mas infelizmente esta oculto sob montanhas de cinzas. Daf resultaque cu tenhaquelimpé-lo,ecomo € expressio de vida, sou eu 0 responsé- velporele, peloquedevoconstantemen- te wmsorgen (*). Soa a Heidegger, nio? Ele construiu toda uma filosofia muito estranha, baseada na sensibilidade para coma lingua, mas teria feito melhorcon- tentando-se com a lingua, Sim, com isto eu jé disse todo o fundamental sobre mi- nha relag.io comalingua. Eumrelaciona- mento familiar, amoroso. A lingua e eu somos um easal de amantes que juntos procriam apaixonadamente,masaquem até hoje foi negada a béngiio eclesifstica € cientifica, Entretanto, como sou serta- njo,a falta de tais formalidades nao me preocupa. Minha amante é mais impor- tamte para mim* (25). Hadois pontos para os quais cu gostaria de chamar atengao no trecho acima. O pri- meiroé ae: adoxo tipica- Iingua - que, segundo Rosa, the dé a possi- bilidade da existéncia de “sua” expresszio- termina por ser exposta através de uma metéfora que apela para toda a forga da carnalidade. Assim sendo, 0 aspecto “metafisico” tomna-se decididamente “fisi- co”: na fisicalizagao sensual da trans- cendéncia ¢ onde o escritor vé surgir sua linguagem. A metafisicarosiana ndose con- funde com nenhum aspecto sublime- nefelibata: sua experiéncia com a ess¢ncia do idioma ¢ sensivel, tatil, corpérea, Seu relacionamento com 0 cere da lingua sub verte a nogao tradicional de metafisica;ain- da aqui, Guimaries Rosa recicla ¢ atualiza = tanto quanto no aned6tico episédio do neologismo “coragiomente”, anteriormen- te citado - um conceito estabelecido, inseminando-ocom um sopro pessoal, nte- gro a seu modo. ‘Osegundoponto diz respeito a mengiio, nao muitoclogiosa,da filosofiade Heidegger na passagem acima. Falando desde a segu- ranga que Ihe dé a dimensdo mesma de sua criatividade, Rosa critica o filésofo alemao, coincidindo, entretanto,como contetido da passagem de Heidegger que hd pouco men- cionamos. Em poucas palavras, 0 que pare- ce querer dizer Rosa é que a filosofia heideggeriana ainda vem imbutda de um discurso que a contradiz em sua base: a for- ma do pensamento heideggeriano trairia, assim, scu contetido,€a “experiéneia coma nguagem”, preconizada pelo fildsolo, tor- npossivel dentro dos marcos de sua prOpria expressio. Vemos, aqui, a vor doartista quesesente superior, anivelintui- livo e desde sua verdade, as instancias especulativas de eriticos ou filésofos; stia postura é, na base, pragmatica, Apesar disso, mesmo que Rosa néio se reconhega na experigncia de Heidegger, a simples mengao do pensador alemio indica que 0 escritor brasileiro privou, ¢ intensa- mente, de suas tcorias. Numa literatura que jamais se caracterizou pela veia abstra- livizante, ¢ na qual a nogdo de metafisiea usualmente naorepresentou umsclodedis- 1¢40, a insistncia de Rosa revela inform: sBes © preocupagdes forineas; a alusio a Heidegger, justamente quando oescritor: poe-se a dissertar sobre a natureza de sua ‘experiéncia com a lingua, nlio pode senao nar-se-ia Finalmente, hd maisum aspectocompa- Tativo entre as idéias de Rosa expressas na dita entrevista ea “coisa” alemi (para dize- Jo numa palavra) a que quero referir-me neste ensaio. Trata-se de sua visdo proféti ca, milenarista talvez, que aproxima oescr tor brasileiro da sensibilidade alema. Para chegarmosaeleseranecessiriodetermo-nos nasimilaridade entre a visdoda metafisicada lingua para Rosa, seguindo assim o que vie~ mos fazendo, com aquela de alguns nomes alemies seus contemporancos. Paginas atras referimo-nos a preocu- pagdo de Thomas Mann em interpretar a historia desde um ponto de vista religioso oumetafisico; se no encontramosem La Novela de una Novela ou em Doktor Faustusumadeclaragioespeciticaque vise afirmar um certocaraterdeterministicona lingua alema, a Ieitura deste tltimo livro nos esclarece sobreas virtualidades desua interpretacao do bindmio nagio/lingua alemas. Entretanto, a valorizagaio do idio- ma como fator determinante fica melhor evidenciada em duas ocasides que mencio- narei aseguir. A primeira 6a famosa entre- vista que Martin Heideggerconcedeu a Der Spiegel em 1966, e que s6 foi publicada de poisde sua morte, passados deza segundaéa respostaque Theodor W. Ador~ no deu a uma enquete sobre “O: que é ser alemio",feitapela televissioalemiem 1965, depois de haver o critico regressado dos Estados Unidos (27). Aum dado momento em sua entrevista, Heidegger menciona Hélderlin como um poeta que encarna, por assim dizer,oaspec- tometafisico do idioma alemao. Hélderlin 6,para cle, mais que “um assunto para his- toriadores da literatura”, jd que “6 0 poeta que aponta para o futuro, que espera por deus” (28). Para Heidegger, 0 contato com apoesiae com asensibilidade holderlinianas designaria uma tarefa colctiva para 0 povo. alemio:aoestabelecer um: te com esta “espera” (propiciatéria, divinatoria), a Alemanha poderia augurar uma nova “conversio” (Umkelir) da huma- que inventarama industrializagioe primei- Tosetecnificaram;paraHeidegger,claurge, para contrarrestar a destrutividade de uma humanidade vista como presa de seus pré- Prios avangos tecnolégicos ¢ incapaz de e1 contrar alternativas de continuidade. Como vemos, 0 teor da visio heideggeriana se aproxima em mais de um ponto da fabulizagao feita por Mann em Doktor Faustus, Assim como Mann aponta inapelavelmente para uma culpabilidade conjuntural dos alemaes (em que pese sua crenga numa Alemanha originalmente sa ¢ incorruptivel, apesar das mazelas da Hist6- ria, como ele nos ensina em “What is German” (29), Heideggerapontapara uma tarefaaoaleance dohomemalemiiomoder- no: ouvir a voz epigonal de Hélderlin para, conciliado consigo mesmo, repensar (Umdenken) a sorte da histéria contempo- ranea, “preparando-se para preparar-se, através do pensamento e do fazer postico, para a manifestagiio de deus, ou para a au- séncia de deus, caso as coisas continuema ir Jadeiraabaixocomo témidoatéagora” (30). Perguntado por Der Spiegel se os alemaes contariam aseu favor com alguma qualida- de especial para levaremacaboeste proces- 80, responde 0 fildsofo: (ou pensando na relagio especial, in- terna, entre a lingua alema e aquela dos pensadores gregos. Os franceses apenas confirmam-me isto cada vez mais,agora. Quando comegam, a pensar, falam ale- mao. Eles me asseguram que no 0 po- dem fazer em sua propria lingua” (31). Apesar do diibio ncoclassicismo que se depreende-da leitura da passagem acima, ¢ em que pese a alusio contra o idioma fran- cés e, implicitamente, contra todas as lin- guas neolatinas, nela vemos confirmada a importincia determinante da lingua como fator metafisico, para Heidegger. Num sen- idocomplementar,embora,comoveremos, demodomaiscauteloso, Theodor W. Ador- no dird “(..)alingua alemiapresentaobviamen- te uma afinidade elctiva para afilosofia, algo que Ihe ¢ particular, uma afinidade para a especulagao a qual, nao sem ra- , condena © Ocidente como perigo- samente nebulosa" & “Aquele que sabe que a filosofia, con- trariamente as citncias, é essencialmen- 28 Philosophy Today. vol XX, Veins tambéen a mesma ‘Facity Priosophy Journal, al 6.001 Winter 1976 vad Dasa Scnonder p. S27 27 Theodor W. Ageena, “RA. fponae bla Gueston eat allemand? in ‘Modis Cregves vas Mare ener © Elane Raval, ara, Payot 1904, pp. 220. e 28 “ont a Gos Can Save Us’ op et ta. At Caputo A Haier to be ptt any poet ‘nose work. among many ‘Soe, has boon taken as # Sutyect for iteraryhatorane Forme tote the poet ‘who pinto th hae no Srpecte god. and. who {arafore may not remain ‘meray an abet of Hern (eseatch and of he kd of Brosenrations offered by Foray stan? 281) 29 Tho! 18 Mann. “What is iay Osten 20 -Ony a God Can Save Us (Der Spieget ). ta Senonsiar A vaducis asso ogee "Only ged can sare snow. Wecan ony though Irihing and wag propare (obo prepared for the ‘antestaton of Cod. oot reabsonce ofGadasthings ‘odonnitat ne way. 18 Compare: tacoma de iter « Caputo “Oni « od ‘can save us The sole oss na se ro opropareasatotnasiness, {rough thinking and ostang. or te pearance (tthe gacor fr ine absence of the god in the time of Specie quaitcaton for ns Conversion?” (responce Martin Heidegger im Gorman language and inher ofthe Groots. Tho ‘more fome'now. When Poy Depin fo hint, they speak aman Thoy sure me Py ‘outdo manage wih te language (p24, Navas oe ‘ter Caputo otwor daar REVISTA USPI29 22 Moor W. dota, op. p-228 Aspassagons casas teimcoven nated ot) "Cota qu vonve ot qu a borcue contact nf avecce (ue fat sa specs aev'a Sutanconsenantsoninnd avec ea prope larg vant ao ia meipnrave imdtaohyscaveon ganaal(.) (ocaractroreaptyscqvedo targus ne conse ps pelo ‘de woe stove a ange aptovtene dela langue {ecommbion i ont die do vagaredansuneadreangae des textes pniosopnaves ‘dun nivens bord ls qe la Prenomenciogia de Te sprit ‘ie Hoge! ov sa Senco ea rogace" 95 -Ony a God Can Save Us" ta Scrondr “One a no Inoredansistea thought han Transat hora 300 os compttey aera (p24). {6 “Dislogs com Guimarses Rona op ot po 37 Em Mamsis do Guinarsos ‘ows earos ators), Peo nero, Jove yore, 1968 bp 2455 WRB REVISTA USP te representaciio (...) dirige-se paraa lin- gua alema” (32). Entretanto,maisadiantenomesmotex- to, Adorno alertard contra uma supervalorizagéio, ou mesmo idolatrizagio, do fator metafisico da lingua alema, ao di- zer, referindo-se a seu idioma natal: “Aquele que perdeu 0 contato ingénuo com 0 fato de sua especificidade deverd, conservandosua intimidadecomsuapr- prialingua,demonstraruma vigilinciai fatigdvel paracvitartodasassuperstigies ‘que esta lingua poderia facilitar; deverd evitar acreditar que 0 que cu gostaria de qualificar como © excedente metafisico da lingua ésuficiente para garantir a wer- dade da a que esta lingua pro- poe, ou mesmo da metafisica em geral. (...) O cardter metafisico da lingua nao. constitui nenhum privilégio" (33). A posigio de Adorno é, assim, regularizadora de um “furor metafisico” do idioma; visa impedir que a potencialidade expressiva da lingua se totemize, obnubilandoa transparéneiados contetidos queelapossa veicular. Pelo pélo oposto,esta regularizagao critica € andloga a carmavalizagao de Rosa que fisicaliza mete foricamente 0 metafisico; entre estes pélos, encontra-se a seguranga monolitica de um Heidegger, leitor de Fichte que sente no idioma alemao a pedra angular da deuscht- hit, da “alemanidade”. De todas as manei- ras, mais Ou menos critica ou bem- humoradamente, 0 excedente metafisico, como furto, € aceito sem discussao pelos tres nomes citados, Como desdobramento des 1a comunhio de pontos de vista, com 1 ¢4o a um tdpico to intimamente ligado ae que estamos discutindo como o da tradu- Jo, também vemos desenhar-se uma pos Gio comum entre brasileiros e alemaes, Adorno aponta a dificuldade de tradugio detextosfiloséficoseser lemio para ‘qualquer outro idioma (34); Heidegger, no mesmosentido,declaraque emnossosdias, Uaduzirse um pensamento tornou-se ti0 mirifico quanto traduzir-se um poema (35). Por sua vez, Guimaraes Rosa diz que “cada ngua guarda dentro de si uma verda lerior que nito pode ser traduzida” (36). A este ponto cabe perguntarmo-nos como ose pode ter sido to satisfatria para si mesmo a tradugio das obras de um autor que inti: mamentedeseré doatode traduzir, feitapara um idioma que, baseando-se em sua com- plexidade, considera-se a si préprio como intraduzivel. Sem diivida, 0 feliz.evento de que tenha sido possfvel uma tradugio magna do por. tugués de Rosa para o alemao sé pode ser explicado de duas formas: ou bem toda a teoriadaintraduzibilidadedefendida poruns € por outros se contradiz por este fato mes- mo, podendo portanto ser vista como uma faldcia, ou entao hd uma afinidade especial cntrea linguade Rosa e oidiomaatemao.J4 que ocvento de uma tradugio bem-sucedie da poderia constituir-se num excegzio que viesse a confirmar a regra da intra ide _geral entre Iinguas, cabe-nos considerd-lo como uma demonstragio da segundahip6tese antesmencionada,daqual, naturalmente, soube um tradutorexcepeio- nal tirar partido, J4 num plano puramente ‘especulativo, a tradugdo de seus textos po- deria indicar uma complementaridade, se- nao uma interscgdo, entre o exercicio metalisico de Rosa em “sua” lingua ¢ a metafisica latente na lingua alema. Valha como corroboragio parcial acstahipdtesca andlise de um levantamento nao menos parcial das artigos sobre a obra de Guima- s Rosa publicados na imprensa estran- ra até 1968- ouscja,atCum anodepoisdo desaparecimente do escritor. Dos cem artigos recenscados em Em Meméria de Guimaraes Rosa (37), rinta nham sido escritos na Alemanha; quatorze ‘outros paises - nos quais se inclufam Portu- gal, Franga, Tchecostovéquia ou Estados Unidos - dividiam os setenta por cento res- tantes;na Alemanha,doSchleswig-Holstcin a Bavaria, a edigio das obras de Rosa foi recebida cntusiasticamente, de forma nun- ca dedicada, antes ou depois, a nenhum es- critor brasileiro, Embora interessantes, es- tes dados podem afastar-nos do que antes tragamos como nosso objetivo; voltemos, Pois, ao Gime WGpico que nos propusemos desenvolver neste en Acima mencionamos uma veia proféti- a.em Heidegger, ao declarar o filésofo-ale- ;ntagem earacteristica que o instru- mento lingua representaria para seus adios no processo de repensamento bases fundacionais de nossa ci tais como o fendmeno da divindade. A de- dlaragdo € profética, j4 que designa uma ta- refa coletiva para o pavo alemio, mas vem, igualmente, inserida num contexto messifinico: ni poracasoaentrevistaa Der Spiegel foi publicada com o titulo “Apenas um Deus pode Salvar-nos”, frase sacada de uma de suas respostas naqucla ocasidio (38). Torna-se-nosaparente neste momento, por conseguinte, a implicagdo muitua da nogio de metafisica da lingua e um processo de espera messidinica: a esta altura, convém observarmos como ele se apresenta em Guimariies Rosa. Recordemo-nos, pois,do entrechoacimacitado daentrevista Lorenz/ Rosa. Nele, o escritor brasileiro disse: “O idioma ¢ a tinica porta para o infinito, mas infelizmenteesta cobertopor montanhasde cinzas. Daf resulta que cu tenha que limpa- lo,e como é expressiio da vida, sou eu ores- ponsdvel por ele, pelo que devo constantamente umsargen”. Re-criar 0 cri- ado; inseminar com umsopro de vidaascin- zasinermesdaexisténciadaqualsesubtraiu aesséncia; dar-lhes alma, mogao, corpo. O gesto¢equivalenteaodoCriador no Génesis, uma miragem adémica a que se esconde por detris do discurso de Rosa. Em seu desfgnio,hdumadimensaoblasfemaquendo escapa ao préprio es Tetomando o tema da met ao dizer que sua linguagem “deve ser a lin- guadametafisica” cle confessaqueest fundoé um conccito blasfemo, ja que assim secoloca o homem ne papel de amo da cri- agio”. Pouco depois, ainda, Rosa dird:”Me- itando sobre a palavra, cle (0 homem) se descobreasimesmo. Comisto repeteo pro- cess0 de criagao” (39). Vemos, assim, como trabalhara nivel da palavra implica, para Rosa, desempeni um papel fundacional, seja para oindividuo kolado, seja na conquista de uma coletiva que vise osurgimento de uma nova erevivilicada humanidade, palavra € re- Yelagio eascese.O método preconizado por Rosa encontra-se com o de Heidegger em maisde umponto;em direc sintaxe o futuro passa por um retomo voluntirioa uma dimensdo anterior, des onipotente, dentro da lingua: a exposigdo A UrSprache, & lingua original que se torna {ransparente através da criagio na lingua- gem, ¢ a clave que coordena o avango, a Tenovacio da espécie. Por detrasde ambos, Heidegger e Rosa, nao é dificil perceber-se apresenga de Nietzsche: este tema, como ¢ sabido, foi caro ao filésofo alemao de fim- de-século; nJo nos surpreenda, poi depararmo-nos com uma alusio explicita a Nietzsche num outro momento fulcral da entrevista Lorenz/Rosa, Ao falar da diferenga entre 0 portugues doBrasile oeuropeu-semprenoquadrode precisar o que considera como sua relagaio metafisica com o idioma -, Rosa afirma que a superiaridade, inclusive sob 0 panto de vista metafisico, do portugues brasileiro so- brea lingua-mae reside em ser ele uma lin- gua ainda no saturada, “Jenseits Von Gut und Bose” (40) - uma lingua “além do Bem edo Mal”. A mengao, noidioma original, do titulode uma das obrasmaisimportantesde Friedrich Nietzsche nao podesenioaludira crenga de Rosa quanto a dimensio da “pu- reza original”, pré-moral e, portanto, difusamente mitica, na variante americana sobre a européia do idioma portugucs. Tangencialmente, esta visio, porsi, jd pres supde uma missdio regeneradora, dentro do mbito lingdistico, para o portugues brasi: Ieiro; entretanto, como veremos, embora i el, o objeto da for- mulagdio de Rosa é mais geral e abrange, dentro de um marco humanistico,aprogres- siio.a um futuro do homem. Neste ponto, a filosofia germanica e, mais justamente, a0 visionarismo de Nietzsche, devemos somar uma poderosa corrente messiinica interna aculturaluso-brasileira. Antesde voltarmos. acsteaspecto, convém citarmos duas decla: ragdes complementérias de Rosa em sua entrevista com Lorenz. Em primeiro lugar, explicando a seu entrevistador a razio que subjaz em seu projeto de “purificagaio da Jingua” (uso sua terminologia), Rosa, utili« zando-se do pronome possessivo, dira que sua” lingua brasileira “6 a lingua do ho- memideamanha, depois desua purificagio” (41). Mais tarde, incitado por seu entrevistadora precisar sua acepgdo do ter- ‘brasilidade”, equivalente brasilico da deutscheit ou da hispanidad de Fichte ou Unamuno,numaexplosao inabitual paraum individuonormalmente reservadacomoera Rosa, o eseritor dita: “Falemos de ‘brasilidade": nos os brasi- Jeiros estamos firmemente persuadidos, no fundo de nossos coragovs, que sobre- 28 Cl nota 31, antvo. ‘oreapassager: Temosde pani do fato de que nosso Porugubs rasiove 6 uma fingu mais wea, inclusive Imotalcamart, ge 0B. {Upvte taco na Europe [hain oe tc, tom varie (jomde qus teu corona Sando oateturage A 2 bumalingua ones Von GutunatBas6| 6 apesu sa $0.1 # ncweulael wn Secmonte do peruguta Bran porrazbes erg se arvopotegecat™ 41 em, bide, p. #7: "Mas minha lingua basta 6 8 lingua remem aeamanhd pots do saa purtcacto REVISTA USPIZS oem tapuda a eorinaagss esa "(.) Cro 6 un bom ‘exompo dso. Tamim to fxerela seguncnnoesa ta. rotaeto banana aba mo Ersta mas muito creda © urd Esta ceuts ni ss ‘Ga das cosa, fag a ah Dincacoras A Sina erste para expular 0 dabo. © no ‘mem aote aarp 0 deses Baro matteo, poraconmece satires Jo abo w pode fssmiquda'o, supereedo-o ‘id consegus uma manda Satedona 6 algo dst oa ‘Goa, A sbeosna ¢ saber fagdo. Maas parsonagent, ‘queso wempre um poco oo hdodoverserndopodomese ‘etwlectuns posto arin 494 exseespeio.cacomondoo (ho de Hite do Pera do Fae anna Viera (ston (Caan da Mowda. 1002), foto or Maia Carvndo bu ‘4 S0b10 est topicointestan te. vor Maa nae Povora ‘Sedueics, OMessiangmono Brasveneitundo, S30 ae, Demin, 1085 WRSREVISTA USP viveremos ao fim do mundo que aconte- cerd um dia, Fundaremos entéio um rei node justiga, poissomeso tnico povoda terraque praticadiariamentealogicado il6gico, como provaanossapolitica, Esta mancira de pensar é conseqUéncia da ‘brasilidade’. Outro exemplo, desta vez referente a mim mesmo, para que voce possa acreditar tranqiilamente - estou certo de que voct fard esta pergunta durante nossa conversa, por isso anteci- Ppoaresposta. Eu nao sei o que sou. Pos- sobemsercristéodeconfissdosertanista, mastambém podeser que cuseja taoista Amaneirade Cordisburgo,cu um pagaio crente a la Tolst6i. No fundo, tudo isto no é importante. Como homem inteli- gente, as vezes pode-se sentir necessida- de de se tornar um beato ou um funda- dor de religides. A religidoé um assunto poético e a poesia se origina da modifi cagéio de realidades linguisticas. Desta forma, pode acontecer que uma pessoa forme palavrase na realidade esteja cri- ando religides” (42). ‘As passagens acima sio extremamente ricas ese prestariam, comefeito,ainmeras interpretagGes. De fato, por si s6s justifica- riam um ensaio onde sua complexidade pudesse ser melhor analisada. Em relag a0 que mais nos interessa neste momento, retenhamos apenas o aspecto que exsuda milenarismo,quantoa psicologiacoletiva,e ‘© que aponta para uma visio propiciatéria de sua prépria eseritura, por parte de Rosa. Por um lado, Rosa vé-se comorepresentan- te de um povo designado (cosmicamente? divinamente?) para sobreviver a um final dlos tempos que se aproxima, Como acima dissemos, sua visio profética vincula-se a um lincamento fundamental daculturaluso- brasileira, e ndo pode surpreender avs que com ela estejam familiatizades. Dois s0.0s temascomplementériosquea caracterizam. Oprimeiroé aesperade um rei-meninosim- bolico, imaginado consoante Dom Sebasti- 0, morto na luta contra os infigisem Aled- cer-Quebir, que voltard um dia para guiar a nagio portuguesa a scu destino; o segundo tema éafundagao de um “Quinto Império” terrestre, cabalisticamente pela Pedra no- meado ¢ com inspiragio nas profecias de Daniel no Velho Testamento, que, sab a égide de Portugal, se estenderd a todo 0 mundo, criando-um reino de justiga milenar que sucederd a violencia da destruigao final da atual fase da humanidade, caba- listicamente nomeada pelo Fogo (43). Desde o Renascimento a cultura lusita: na esté marcada pelo sinal distintivo do milenarismo, que se reflete na produgio de alguns dos melhores nomes de sua literatu- ra. A corrente milenarista permeia parte da produgio camoniana - lembremo-nos, por exemplo, da redondilha “Séboles ios” - embasa a barroca Histéria do Futuro do Pe, Antonio Vieira -onde, pela primeira ver, os dois temas sfo tratados extensamente -¢ ressurge, em nosso século, na voz.orténima do Fernando Pessoada Mensagem -quando se dd uma apropriagdio moderna de valores miticos tradicionais, Aqui nos referimos a alta cultura portuguesa; porsua ver, adisse- minagio do mito sebastianista © da visio profética, sua correlata. se dé na cultura popular ininterruptamente; no Brasil, messianismoemilenarismo, transplantados de solo europeu para a América através, principalmente, do labor jesuitico, prolife- raram-se em indmeros movimentos sociais, dos quais © methor documentado é 0 de Canudos, que Euclides da Cunha recothe em Os Sertdes (44). Como vemos, Guimaraes Rosa vai res- paldado por sélida companhia ao profe: suas declarages. Ainda que ele considere quco portuguésdo Brasilestejamaisaberto para um desenvolvimento futuro devido &s suas caracteristicas sineréticas, a filiagdio do pensamento rosiano a corrente profético- milenaristalusitanaéevidente;aeste ponto, cabe-nos apontara afinidade entre estacor- rente,naqualencontralugara visiode Rosa acima expressa,¢o pensamentoalemio,em suavertente também proféticaemessiainica, a que anteriormente nos referimos, Num plano meramente especulativo, conviria apontar que uma certa marginalidade de Portugal e da nagio alema com relagio a0 mainstream da cultura européia durante séculos poderd ter facilitado 0 desenvolvi- mento de formas auténomas que mescla- ram nacionalismo com milenarismo; em ambas as regides, ademais, a contribuiggio judaica ao longo da historia nao foi menos ‘que notavel, econdmica ¢ espiritualmente. Caso este raciocinio esteja correto, uma ai- nidade eletiva entre Guimaraes Rosa ¢ a Alemanhaacusaria umamanifestagdoe mais de uma identidade profunda e parcial, cir- cunscrita, naturalmente, aos t6picos que acabamos de discutir, entre as culturas em questo. Entretanto, vale ressalvar que, se quanto a uma veia profética ou messifnica emRossa se pode observar um confluirentre ibilidade alema, sempre nos termos acimareferidos,ea herangaportuguesa,com domindncia desta sobre aquela, no que tan- ged suavisiiodametafisicadalingua,noque tange, numa palavra, a filosofia da lingua- gem, ocorre o contrério: nela, o germe ale- mio predomina, nela o impacto do pensa- mento germinico se faz sentir sobre Rosa mais do que em nenhuma outra instéincia que examinamos. As dltimas declaragdes antes mencio- nadas do escritor brasileiro, como disse- mos, também langam luz quanto a uma visio propiciatéria do mesmo com rela- go a sua forma de expressao, “sua” lin- gua. Reparemos que aqui ndo est4 Rosa chamando atengio para um possivel dis curso de contetido messifinico que nela possa transparecer; pelo contrario, o que Iheinteressa éa sintaxe internade sua gua, scu teor pottico, essencial, Em resu- mo, sua declaragaio, antes de sugerir ou pretender desculparumacargacatequética em sua expressdo, visa dar um direcionamento definitive a pulsagao metafisica de sua palavra, Em Rosa,owalor mistico que se depreende na referida pas- sagem se submete auma vivénciacstétic: longe de carregar sua expressio literdria com a ret6rica da persuasiio, que viesse veicular arrebatos profético-messianicos adequados para um oradorreligioso, Gui- maraes Rosa prefere problemat digo humana, Transferindo sua carga espiritual dosconteddosevidentesparaum trabalho persistente e fundacional em ni- veldapalavra, Rosa protege aartisticidade do texto: s6 assim 0 discurso de baldo poderia ser tomado, em sua extensdo, como “uma experiéncia com alinguagem”, Eadistincia entre os significados de suas crengas pessoais, expressados na entrevis- taconcedidaa Gunther Lorenz,esua obra literéria (scu “texto”) que permite que a concepsao de seu herdi faustiano tenha podido assumir as dimensdes a que nos teferimos: arte anterior deste ensaio;é esta mesma distancia, sem duvida, nao emocionalmente fria mas sim critica, que aracon- nos possibilita avaliar a proporgdo, ¢ a qualidade, do homem Guimaraes Rosa como artista. No livro de Goethe que parafrascio no titulo deste ensaio, a um dado momento Charlotte pede ao Capito um exemplo do que scriam as “afinidades eletivas”, termo Cientificoentao em vogaentre os estudiosos de quimicaemineralogia,sobre oqualesta- vam os trés a discutir - Charlotte, Edward e © Capita -, na biblioteca do Castelo. “De- meumexemplo disto” disse Charlotte. “Tais, coisas nao podem ser ditas com palavras”, respondeu 0 Capitio. “Como disse antes, assim que eu puder mostrar-Ihe 0 experimento, poderei fa er com que tudo se torne inteligivel e agradiivel para Voce. Porenquanto,nio possosenéiodar-Ihe horriveisexpressdes ssicntificas, que aomesmotemponaolhe dario idéia nenhuma sobre o assunto, ‘Vocé deveria ver com os préprios olhos estas substancias que parecem (Zo defi- nitivamente mortas, ¢ que entretanto se encontram tio cheiasde energiae forca, interagirem em sua presenga. Voce de- veria observé-las com um verdadeiro interesse pessoal. Num momento se es tio procurando mutuamente, atraindo- se, colidindo-se, devorando-se, destru- indo-se;no outro, subitamente,reapare- cem de suas combinagdes, frescas, reno- vadas,com uma forma inesperada: ape- nas cnidio compreenderd Voot por que hes atribuimos uma espécie de imortali- dace; por que falamosdelas comose pos- suissem almaeconhecimento;dado aque sentimos que nossos proprios conheci- mentossdoinsuficientes paraobservé- adequadamente, ¢ nossa razdio demasia- do fraca para acompanhé-las.” Se no principio deste ensaio faltou-me aepigrafe, aqui a tenho; valha para langar, de tids para frente, luz sobre o que se leu. No plano infinito da literatura, combinan- do-se como elementos da natureza, Charlotte c Edward, oCapitdoe umacerta inefavel Ouilie, e Guimaraes Rosaea Ale- manha, cu e tu, subitamente adquirimos brilho estével; a combinatéria de repente se esvai e, embora o plano siga Ii em ex- pansdo constante, a noite persistente recu- pera as formas. REVISTA USPIQ7

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