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Veronika Decide Morrer

“Se Deus existe, o que eu sinceramente não acredito, entenderá que há um


limite para a compreensão humana. Foi Ele quem criou esta confusão, onde há
miséria, injustiça, ganância, solidão. Sua intenção deve ter sido ótima, mas os
resultados são nulos; se Deus existe, Ele será generoso com as criaturas que desejam
ir embora mais cedo desta Terra, e pode até mesmo pedir desculpas por ter nos
obrigado a passar por aqui.” (pág. 15)

“Durante toda a sua vida, Veronika percebera que um imenso grupo de


pessoas que conhecia comentavam os horrores da vida alheia como se estivessem
muito preocupadas em ajudar – mas na verdade se compraziam com o sofrimento dos
outros, porque isto os fazia crer que eram felizes, a vida tinha sido generosa com eles.
Ela detestava este tipo de gente: não ia das àquele rapaz nenhuma chance de se
aproveitar do seu estado, para ocultar as suas próprias frustrações.” (pág. 32)

“– Entretanto – continuou Zedka, fingindo não ter escutado o comentário – você


já deve ter ouvido falar de Einstein, dizendo que não havia tempo nem espaço, mas
uma união dos dois. Ou Colombo, insistindo que do outro lado do mar não estava um
abismo, e sim um continente. Ou de Edmond Hillary, garantindo que um homem podia
chegar ao topo do Everest. Ou dos Beatles, que fizeram uma música diferente e se
vestiram como pessoas totalmente fora de sua época. Todas estas pessoas – e
milhares de outras – também viviam no seu mundo.” (pág. 36/37)

“De modo que só restava uma saída: descobria a cura para a Insanidade. E o
Dr. Igor estava empenhado nisso até a raiz dos cabelos, desenvolvendo uma tese que
iria revolucionar o meio psiquiátrico. Nos asilos, os doentes provisórios em convivência
com pacientes irrecuperáveis iniciavam um processo de degeneração social, que, uma
vez começado, era impossível detê-lo. A tal Zedka Mendel terminaria voltando ao
hospital – desta vez por vontade própria, queixando-se de males inexistentes, só para
estar perto de pessoas que pareciam compreendê-la melhor que o mundo lá fora.”
(pág. 72)

“‘Excelente mercado, melhor que aqui’, pensou. ‘Quanto mais felizes as


pessoas podem ser, mais infelizes ficam’.” (pág. 74)

“Entrou numa espécie de euforia, como se a morte a libertasse do medo de


morrer. Pronto, estava tudo acabado! Talvez sentisse alguma dor, mas o que eram
cinco minutos de agonia, em troca de uma eternidade em silêncio? A única atitude que
tomou foi a de fechar os olhos: o que mais lhe horrorizava era ver, nos filmes, os
mortos de olhos abertos.” (pág. 78)

–... então convidaram o grande mestre da tradição sufi, Nasrudin, para dar uma
palestra – dizia ele.
Quando a porta se abriu, todos da sala olharam para Veronika. O homem de
terno virou-se para ela
– Sente-se.
Ela sentou-se no chão, junto à senhora de cabelos brancos, Mari – que fora tão
agressiva em seu primeiro encontro. Para sua surpresa, Mari deu um sorriso de boas-
vindas.
O homem de terno continuou:
– Nasrudin marcou a conferência para as duas horas da tarde, e foi um
sucesso: os mil lugares foram todos vendidos, e ficaram mais de seiscentas pessoas
do lado de fora, acompanhado a palestra por um circuito fechado de televisão.
“Às duas em ponto, entrou um assistente de Nasrudin, dizendo que, por
motivos de força maior, a palestra ia atrasar. Alguns levantaram-se indignados,
pediram a devolução do dinheiro, e saíram. Mesmo assim ainda continuou muita gente
dentro e fora da sala.
“A partir das quatro da tarde, o mestre sufi ainda não tinha aparecido, e as
pessoas foram – pouco a pouco – deixando o local, e pegando seu dinheiro de volta:
afinal de contas, o expediente de trabalho estava terminando, era chegado o memento
de voltar para casa. Quando deu seis horas, os 1.700 espectadores originais estavam
reduzidos a menos de cem.
“Neste momento, Nasrudn entrou. Perecia completamente bêbado, e começou
a dizer gracinhas a uma bela jovem que sentara-se na primeira fila.
“Passada a surpresa, as pessoas começaram a ficar indignadas: como, depois
de esperar quatro horas seguidas, esse homem se comportava de tal maneira? Alguns
murmúrios de desaprovação se fizeram ouvir, mas o mestre sufi não deu nenhuma
importância: continuou, aos brados, a dizer como a menina era sexy, e convidou-a
para viajar com ele para a França.’
Que mestre, pensou Veronika. Ainda bem que nunca acreditei nestas coisas.
“Depois de dizer alguns palavrões contra as pessoas que reclamavam.
Nasrudin tentou levantar-se e caiu pesadamente no chão. Revoltada, as pessoas
resolveram ir embora, dizendo que tudo aquilo não passava de charlatanismo, que
iriam aos jornais denunciar o espetáculo degradante.
“Nove pessoas continuaram na sala. E, assim que o grupo de revoltados
deixou o recinto, Nasrudin levantou-se; estava sóbrio, seus olhos irradiavam luz, e
havia em torno dele uma aura de respeitabilidade e sabedoria. ‘Vocês que estão aqui
são os que têm que me ouvir’, disse. ‘Passaram pelos dois testes mais duros no
caminho espiritual: a paciência para esperar o momento certo, e a coragem de não se
decepcionar com o que encontraram. A vocês eu vou ensinar.’
“E Nasrudin compartilhou com eles algumas das técnicas sufi.” (pág. 91/92)

– O que é o verdadeiro Eu? – interrompeu Veronika. Talvez todos ali


soubessem, mas isso não importava: ela devia preocupar-se menos com a história de
incomodar os outros.
O homem pareceu surpreso com a interrupção, mas respondeu:
– É aquilo que você é, não o que fizeram de você. (pág. 95)

– Se eu ficar aqui por mais tempo, vou terminar desistindo de ir embora. Estou
curada da minha depressão, mas descobri, aqui dentro, outros tipos de loucura. Quero
carrega-los comigo, e começar a ver a vida com meus próprios olhos.
“Quando entrei, era uma mulher deprimida. Hoje, sou uma mulher louca, e
tenho muito orgulho disso. Lá fora, me comportarei exatamente como os outros. Farei
as compras no supermercado, conversarei trivialidades com minhas amigas, perderei
algum tempo importante diante da televisão. Mas sei que minha alma está livre, e eu
posso sonhar e conversar com outros mundos que, antes de entrar aqui, nem sonhava
que existiam.
“Vou me permitir fazer algumas bobagens, só para que as pessoas digam: ela
saiu de Villete! Mas sei que minha alma estará completa, porque minha vida tem um
sentido. Poderei olhar um pôr-do-sol e acreditar que Deus está por trás dele. Quando
alguém me aborrecer muito, eu direi alguma barbaridade, e não vou me encomodor
com o que pensam, já que todos dirão: ela saiu de Villete!
“Vou olhar os homens na rua, dentro de seus olhos, sem vergonha de me sentir
desejada. Mas, logo depois, passarei numa loja de produtos importados, comprarei os
melhores vinhos que meu dinheiro puder comprar, e farei meu marido beber junto
comigo, porque quero rir com ele – a quem tanto amo.
“Ele me dirá, rindo: você está louca! E eu responderei: claro, estive em Villete!
E a loucura me libertou. Agora, meu adorado marido, você tem que pedir férias todos
os anos, e me levar a conhecer algumas montanhas perigosas, porque preciso correr
o risco de estar viva.
“As pessoas vão dizer: ela saiu de Villete, e está enlouquecendo o marido! E
ele entenderá que as pessoas têm razão, e dará graças a Deus porque o nosso
casamento está começando agora, e nós somos loucos – como são loucos os que
inventaram o amor.” (pág. 145/46)

– Estou curada?
– Não. Você é uma pessoa diferente, querendo ser igual. E isto, no meu ponto
de vista, é considerado uma doença grave.
– É grave ser diferente?
– É grave, forçar-se a ser igual: provoca neuroses, psicoses, paranoias. É
grave querer ser igual, porque isso é forçar a natureza, é ir contra as leis de Deus –
que, em todos os bosques e florestas do mundo, não criou uma só folha igual a outra.
Mas você acha uma loucura ser diferente, e por isso escolheu Villete para viver.
Porque, aqui, como todos são diferentes, você passa a ser igual a todo mundo.
Entendeu? (pág. 150)

COELHO, Paulo. Veronika Decide Morrer. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.

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