Você está na página 1de 35
Henrique Freitas om” Arco eal’ (Xrkhe ENSAIOS SOBRE LITERATURA E CULTURA A ARKHE E O XIRE: Das pilhagens epistémicas a literatura-terreiro SUSS-URROS” A epigrafe do padé é 0 eixo da en-c-r-u-z-ilhada, arkhé da farofa, gargalo da cachaga. Padé": 0 comego e/é 0 fim Com uma pedra langada ontem, ele mata um passaro hoje. Oriki de Exu'® O xIRB"E SUAS rotacées anti-teleolégicas, tomado 13 ~ Todos os poemas de minha autoria fazem organicamente parte do corpo ensaistico do texto, portanto nao sio citagées, desta forma eles no aparecem assinados em separado, pois o texto como um todo ji 0 foi. 14 ~ Pade ou Ipadé é 0 primeiro ritual executado antes de qualquer ceriménia no Candomblé ¢ visa A invocagio de Exu, buscando agradé-lo, através de oferendas, cuidando, assim, que ele nao atrapalhe o culto ¢ traga também prosperidade & comunidade. 15 ~ De acordo com Juana Elbein dos Santos (2012, p.141), Exu é“o principio dinamico de expansio de tudo 0 que existe, em ele todos os elementos do sistema e seu devir ficariam imobilizados, a vida nao se desenvolveria’ Para Sobrinho (2015, p. 199), Exu“é 6 [orixa] mensageiro dos egungin, dos orixé e de tudo 0 que existe” 16 - De acordo com Prandi (2001), xiré é “brincar; no candomblé, ritual em que os filhos e filhas-de-santo cantam e dangam numa roda para todos os orixis’ (© Arco ea Arkhé 37 Henrique Freitas aqui como conceito da literatura-terreiro na Marcacig temporal do agora, é a pedra que Exu langa Para fora do tempo linear da historiografia, da teoria e da critica literarias hegeménicas afetando a Arkhé centrada em uma tradicao etnologocéntrica € eurografocéntrica, sobre a qual se erigiu a literatura nacional no Brasil, para apontar para outra Arkhé mais aberta, afrorrizomatica (Santos; Riso, 2013), multimodal, que amplia os sentidos do que compreendemos por literatura (brasileira). Esta outra Arkhé, segundo Mestre Didi e Juana Elbein dos Santos, “[...] imprime sentido e for¢a, direcao e presenga a linguagem” (apud LUZ, 2013, p. 385) e nao se restringe a um principio inaugural historico- social e cultural, mas engloba a energia mistica, constituinte da ancestralidade e das forcas césmicas que regem o universo na interacao dinamica de restituicao de axé do ayé e do orun e vice-versa, a0 contrario. Se o ritual caracteriza um ethos, isto é, 0 aspecto da linguagem, estilo ou forma de comunicacao e expressdo de valores estéticos e éticos, e conteiidos de saber ou de nao saber, porém, o que ele realiza e dinamiza, sobretudo, é a restitui¢do e transmissao do axé. (LUZ, 2013, p. 384). __Ante 0 capitalismo etnicorracial” que saqueou 0s Cores indigenas € negros no Brasil-Colénia, e ante também * colonialidade do poder-saber"’ ainda em curso, que instituil ee 17-CE. pi ¢studos de Edmund . Gordon da Universidade do Texas sobre 0 tem 18 - Ani ii do hoe cen £ Mallet Mignolo ocupam-se da discussao acerca da colonialidad® ee eando © lugar de uma epistemologia latino-american®. u esses autores Res de Para discutir como a nogio de literatura esta fortemente impre8™? § 8 OArcoea arkne Henrique Freitas as pilhagens tedricas e epistémicas'? dessa mesma diferenga como modus operandi do soerguimento daliteratura nacional," é preciso forca plastica para nos tornar, nietzscheanamente, aquilo que somos” como poténcia em devir de uma expresso artistica brasileira, j4 que ainda nao nos permitimos a radicalidade das experiéncias éticas e estéticas que as gnoses indigena e afro-brasileira (africana e negro-brasileira) nos oferecem, Vale salientar que, exatamente por causa do flerte com esses saberes, a literatura brasileira ganhou no decurso da histéria uma projecdo internacional, ao mesmo tempo em que o epistemicidio, aliado ao genocidio, encarregou- se de tentar apagar essa alteridade como corpo fisico e gnosioldgico. Neste sentido, a Literatura, em especial a teoria, a critica e a historiografia literarias, precisam do abalo por que outras areas como a Histéria passaram quando importantes pesquisadores, como Joseph Ki-Zerbo, nao apenas reivindicaram a inclusio devida do continente africano na cronica universal, mas, ao produzirem uma eficiente inteligibilidade sobre as fontes orais validando-as no trabalho ooo dispositivos que negam as produgées que se proliferam fora da norma prescritiva, pelas paredes, pelos corpos, pelos sons, pelos ritos e pelos ritmos desafiando uma teoria ¢ critica calcadas em uma ideia fixa de real e de mimese debitaria de uma arkhé platénica- aristotélica. 19 - Chamamos pilhagem epistemoldgica uma das perversdes do epistemicidio que consiste na subtracao ou apropriagao de elementos constitutivos dos saberes subalternos (aqueles que constituem as cosmogonias indigenas, africanas, negro-brasileiras ou as tecnologias sociais e linguisticas dos pobres) sem qualquer agenciamento e muitas vezes mesmo referenciacdo dos sujeitos dessas gnoses. Nesse sentido, ¢ pilhagem, porque saqueia-se 0 outro naquilo que se reconhece como mais valioso para incorporando em seu repert6rio como estratégia de projecao individual ou de um grupo completamente diferente daquele que gestou os saberes em foco. : Fi 20 ~ A referéncia alude ao subtitulo do livro Ecce Homo de Nietzsche: “Como alguém se torna o que &” OArcoea Arkhé 39 & Henrique Freitas gt i ee cientifico, afetaram 0 poder-saber do campo desde o método, Ki-zerbo ainda tomou para sia tarefa monumental de, a parti desse abalo, coordenar junto a UNESCO 0 projeto da “escrita” de uma Histéria Geral da Africa (2010) considerando, além das fontes classicas que balizavam a producgao historiografica, A Tradigéo viva - titulo de texto seminal do escritor e critico Hampaté Ba presente no volume | desta colegao: A tradicao oral é a grande escala da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos. Pode parecer cadtica aqueles que nao lhe descortinam o segredo e desconcertar a mentalidade cartesiana acostumada a separar tudo em categorias bem definidas. Dentro da tradi¢ao oral, na verdade, o espiritual e o material nao estao dissociados. Ao passar do esotérico para © exotérico, a tradicao oral consegue colocar-se ao alcance dos homens, falar-Ihes de acordo com © entendimento humano, revelar-se de acordo com as aptidées humanas. Ela é ao mesmo tempo religiao, conhecimento, ciéncia natural, iniciagao a arte, histéria, divertimento e recreacdo, uma vez que todo pormenor sempre nos permite remontar 4 Unidade primordial. (KI-ZERBO, 2010, p. 169). : Na orla do cénone e da critica, a Literatura Periférica # Literatura indigena e, em especial, a Literatura Negra, foco Pie ne Dette artigo, redimensionam a no¢a0 de q eo brasileira, em vez de funcionar restringindo™ 1» categorizando-a, como insiste uma dada tradi¢#° analitica, Suey * es literaturas em diferenca leg¢™ ” Poraneidade importantes conceitos e 0 peradores Pa ) 40 OArcoea Atkhé Henrique Teitas a literatura brasileira e, aqui neste trabalho, nos deteremos exatamente na encruzilhada entre a Arkhé como tradicaio eurografocéntrica e 0 xiré como tradigao viva que evoca outra Arkhé para dar conta das tensdes e contribuicgées da literatura-terreiro como campo da literatura negra que dilata os sentidos convencionais de uma literatura brasileira. Se, em um primeiro momento, vamos tragar na literatura brasileira uma brevissima genealogia das pilhagens epistémicas para situar o impacto violento deste gesto para a diferenga negra e indigena, em seguida, propomo-nos a tratar rito-poeticamente 0 conceito de afrorrizoma com o qual tenho jé operado em outros trabalhos em face de sua produtividade também para esta discussdo. Logo depois, exploramos o conceito de literatura-terreiro prenunciando o grande nome deste campo, a ser analisado na sequéncia: Mae Stella de Oxéssi. Antes do gesto provisério de encerramento deste texto, tecemos, assim, uma breve exegese da obra da escritora Mae Stella, empossada recentemente na Academia de Letras da Bahia, para analisar como a potente producao desta ialorix do Ilé Axé Opé Afonja fala do lugar da periferia do canone, abalando o cerne daquilo que é convencionalmente compreendido como literario, sob o prisma dos valores afro-brasileiros, da filosofia da ancestralidade e de aportes conceituais do préprio campo da literatura-terreiro. © Arcoea Arkhé 41 Henrique Freitas siting | 1. Das pilhagens tedricas e epistémicas do que é periféricg 2 canone OGUN Forja, furia, férrea Abriu m-a-r-i-o-w Para nao ser maior Que a propria guerra A favor do batuque da cozinha que nasce na cozinha e sinha néo quer. Da poesia periférica que brota na porta do bar. Do teatro que nao vem do ‘ter ou nao ter... Do cinema real que transmite ilusdo. Das Artes Plasticas, que, de concreto, quer substituir os barracos de madeiras. Da Danga que desafoga no lago dos cisnes. Da Musica que nao embala os adormecidos. Da Literatura das ruas despertando nas calgadas. A Periferia unida, no centro de todas as coisas. Contra o racismo, a intolerancia e as injustigas sociais das quais a arte vigente nao fala. Contra 0 artista surdo-mudo e a letra que nio fala. Sérgio Vaz (Manifesto da Antropofagia Periférica)”" eee tedricas € epistémicas indigenas, africanas ¢ afro: fers e = brea como operagao histérica daquilo x forma, ee ie timeline como literatura brasileira. nen ae saiseha seine assumir, longe de parricidios indcu0s ia is lingting © qualquer influéncia, que, mais que os '°™ Buas, os modos de saber e fazer, 0 corpo negro wut nee 21 ~ Disponivel em: Acessado em 27/08/2015 as 20:00. 9 42 e Atcoea Arkhé enrique Freitas e a literatura negra constituida a partir de sua amplitude gnosiolégica (nao é aqui nosso foco central, mas podemos também pensar em outras questdes como as indigenas) sao fundamentais para que a literatura brasileira se torne o que é, usufruindo da diferenga mimica que a potencializa através da rasura, mas sem apagar seus agentes, como tem sido feito. A mimica, para Homi Bhabha (1998), é a resposta ao desejo (colonial) da alteridade reconhecivel, como sujeito de uma diferenga que é “quase” a mesma, proxima do unheimiliche freudiano (estranho, mas, paradoxalmente, intimamente familiar). Seu discurso opera através da ambivaléncia reiterando aquilo que esta no lugar e precisa ser continuamente repetido e, ao mesmo tempo, excede em seu deslizamento, em sua diferenga. O seu “quase” é exatamente aquilo que denuncia a ambivaléncia do discurso colonial, desestabilizando-o em sua autoridade normalizadora, com sua referenciacao irénica, jd que ela se erige no limite de um discurso contra si mesmo. Textos do periodo colonial, como Caramuru, do Frei Santa Rita Durao, a epopeia sem herdi possivel (por isso esta missio na obra caberd a um portugués ndufrago: Diogo Alvares Correia, o Caramuru), em uma narrativa de fundagio de uma nagao ainda sob a égide de Portugal, mas com a pretensio da similaridade épica com Os Lusiadas de Camées, sao efeitos interessantes da mimica na literatura como caminho para a producio de uma textualidade literdria brasileira, ainda no séc. XVIII. A antropofagia indigena, identificada pelos europeus como trago de barbarie, desde o séc. XVI, nos escritos de Gandavo, Léry, Thevet, Hans Staden e outros, talvez seja OArcoea Arkhé 43. Henrique retas @ um dos gestos mais potentes reconhecidos pela critica que foram legados a constitui¢ao da propria literatura brasileira, quando Oswald de Andrade, séculos depois, a lé sob o crivo da mimica, extraindo e deslocando a for¢a metaforica latente no gesto “canibalesco” Mas, a antropofagia ja estava presente na cosmogonia indigena desde o principio e, por conseguinte, também em suas express6es artisticas. A dissimulagio que produz a diferenga a contrapelo de que falamos como resposta ao panoptismo colonial ja estava também na forma como a cosmogonia africana encontrou para sobreviver ao racismo epistémico no Brasil, seja na capoeira, na feijoada ou, ainda, na abordagem encruzilhada dos orixds com os santos catdlicos. A violéncia da colonialidade do poder-saber estende- se do periodo colonial ao Brasil pés-independéncia e, se nenhuma autoria indigena e africana, qui¢d a humanidade em muitos momentos, era reconhecida e legitimada sobre eles na praxis até 0 periodo novecentista, a necessidade de dizer a nacdo brasileira instituira, em diversos campos, especialmente na literatura, a pilhagem dos saberes indigenas € negros como alternativa a uma producio nacional, ainda que estas gnoses sejam apenas tangenciadas, necessitand0 hoje de uma exploracao sob outras perspectivas. eeebaerate das linguas e temas indigenas : Goneiatcn 3 tePir te dos indianistas José de slew ; estratégia de re poset ds Magelibes ou oa nacionalidade me ~ See ligsilidede inter ads ae / também é simultane = aeeogh cides intgnns: onl nO periodo. Neste iti. Benocidio indigena ainda em ¢ J omento, também ha um siléncio ™ 9 44 OArcoea Arkhe Henrique Freitas letras em relagao a estrutura escravocrata sobre a qual o Brasil ainda movia a maquinaria de seu capitalismo racial contra os africanos e seus descendentes. Mais tarde, quando 0 abolicionismo torna-se totem dos discursos romanticos, sua realizacao se da em um processo muito mais de fetichizagao representacional e paternalismo que de efetiva agéncia para os sujeitos negros no Brasil. Ademais, é facil identificar na leitura de muitos poemas abolicionistas brasileiros que o grande tema é a escravidiéo, nao exatamente o sujeito escravizado como detentor de uma singularidade, dai ser possivel descrevé-la do alto, tal qual um condor, cujos voos s6 permitem entrever uma massa homogénea submissa. Sobre o quadro apresentado até aqui é¢ possivel convocar ainda as palavras de Edimilson de Almeida Pereira (2013) para compreender os efeitos desse epistemicidio em relacao aos saberes negros eo necessario devir da teoria, historiografia e critica literdrias a fim de, para o bem da propria literatura brasileira, buscar reverté-los: No tocante as textualidades de procedéncia africana e sua inser¢io na cartografia literaria brasileira, a problematica é complexa, pois, se fizermos um recorte histérico, do periodo colonial ao inicio do século XX, nao sera dificil perceber que, nas raras vezes em que foram tomadas como “objeto literdrio”, tiveram de passar pelo filtro de uma visio eurocéntrica. Em fungao disso, deixou-se de levar em conta os recursos especificos de representagao e de configuracao estética de textualidades como os orikis, no caso do Candomblé, ou dos poemas rituais, no caso do Congado. Uma investigacao de O Arcoea Arkhé 45 6 Henrique Freitas natureza multidisciplinar - envolvendo métodos da teoria da literatura, da etnografia, da linguistica e da histéria - nos ajudara a compreender os vinculos dessas textualidades com as herancas e as reconfiguragées estéticas geradas, a partir da didspora africana, em diversas sociedades contemporaneas. A ampliacdo dos territérios de recep¢ao dessas linguagens e das praticas culturais relacionadas a elas ¢ uma decorréncia dos sucessivos e prolongados processos de reivindicagao politica, levados a efeito por grupos e agentes excluidos das esferas sociais privilegiadas. (PEREIRA, 2013, p. 72). A crueldade maior deste processo epistemicida ocorre quando um autor importante como Luiz Gama, na condigio de ex-escravizado, vaza todas as estruturas do sistema hiperpandptico colonial tornando-se um advogado & escritor de sucesso no séc. XIX e, ainda assim, ¢ amputado da historiografia literdria ou aparece como um apéndice apressado no Romantismo, mesmo que suas contribuigdes tenham sido decisivas para a literatura em sua época: &™ relacdo a0 foco, interessa a ele o sujeito escravizado (nd0* escravidao informe), bem como os processos de subjetivaga? fe a estereotipia e o racismo em um espas® pa escravizados. a ais era pos-colonial para os negros, Ae Ss 4 0 “pés-” naka pace ae ae ; fe Witdependkae eal a nenhum sentido, uma aici em relacdo ao ghey ca de 1822 nao altera a sua i 86 ver a mudanea =a ou paralelo no Roman ati eM reasig a gan erates que ele propo SOs prenunciadores na linguag® 46 O Ate ea Arkhé Henrique Freitas muito daquilo que sera celebrado nos modernistas como gesto irénico, proximo de uma diccao popular estetizada. Além disso, sua producao literaria— insisto em chamé-la de literaria— engloba ainda as maximas”, como apresenta Ligia Ferreira Fonseca no livro Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas e mdximas (2011). Nele, podemos flagrar reflexdes de Gama muito caras a este debate: “A escravidao é uma espécie de lepra social: tem sido muitas vezes abolida pelos legisladores e restaurada pela educag4o sob aspectos diversos” (FERREIRA, 2011, p. 298). Outro belo trabalho, porque opera exatamente naquilo que temos destacado até aqui, é 0 de Silvio Roberto dos Santos Oliveira, Gamacopeia: ficgdes sobre o poeta Luiz Gama (2004), tese na qual o autor assume que “pretende também indicar 0 lirismo, e nao sé a stira, como um componente de sua poética [de Luiz Gama], frisar o cruzamento de referéncias classicas e populares em seus versos e compreender como a sua percep¢ao poética resolveu-se pelo acréscimo e nao pela exclusao”. O apagamento autoral de Luiz Gama no decurso da historiografia e dos estudos literarios hegeménicos converge como forga em outro vetor na estereotipagao do negro brasileiro que ganha forga exponencial, posteriormente, nas representacoes literarias naturalistas embasadas pelas teorias do séc. XIX (darwinismo, positivismo, dentre outras). Some-se a isto 0 processo de embranquecimento daquele que é considerado mesmo pelas abordagens canénicas mais conservadoras como um dos maiores escritores brasileiros: literaria de diversos autores e 22 ~ Veremos as maximas, provérbios e aforismos na obra m idéncia, um lugar da diferenga autoras negros no Brasil, o que indica mais que uma coinci ; para fazer literatura acionado pela gnose negra no plano da escrita. 23-Cf.em http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/2code=vtls000327122 O Arco ea Arkhé 47 § Henrique Freitas Machado de Assis. Sobre esta questdo especifica debruca. se o livro Machado de Assis afrodescendente (2007), de Eduardo Assis Duarte, mostrando como, através da ironia e auto-ironia que marcava a eleicdo dos Personagens e, sobretudo, dos vilées machadianos, 0 escritor deixa-nos entrever sua negritude por meio de representa¢6es, recursos estéticos e discursos que mobiliza. Esta obra de Assis Duarte “regenealogiza” Machado colocando-o inequivocamente como um dos afrorrizomas da Literatura negra no Brasil, da qual deriva outras escrituras. Por outro lado, o escandaloso embranquecimento de Machado pelo canone brasileiro é imagem tao forte que, em propaganda televisiva do ano 2011, promovida pela Caixa Econémica Federal, o ator que o interpretava era branco, o que acirrou os debates em relacioa este tema nada inocente, sintoma da pilhagem de que estamos tratando nesta secio. Devido as Ppress6es sociais de grupos organizados em torno da questao racial brasileira, como 0 Movimento Negro, a Caixa Econémica viu-se obrigada a retificar 0 “lapso”. Sao muitos os exemplos e trabalhos que tém contribuido Para restituir estas importantes autoras e autores a hist6ria, a Partir de cortes genealégicos estratégicos como 0s realizados set cea eee Cuti sobre Cruz e Sousa e Lima bare ae ea Florentina Souza sobre os cade Tecentes de/sobre ait bem ome pelas publicagoes ™ arolina Maria de Jesus, vide Onde estaes fh / he organizada por Dinha e Raffaella Fernande? A literatura m: ie arginal, teori a literatura Petifrica, teoris 8) ‘orizada por Ferréz, € ada por Sérgio Vaz, ambas vazadas P&* § 48 O Atcoea Arkhé Henrique Freitas multimodalidade negra do hip hop, maior agéncia de letramento extraescolar no Brasil, confrontaram também, de forma definitiva, a pilhagem epistémica naturalizada na historia literaria do Brasil, reivindicando, de forma inegociavel e inadiavel, a condicao autoral aos sujeitos da margem através do “Terrorismo literdrio”: “[...]a capoeira nao vem mais, agora reagimos com a palavra” (FERREZ, 2005). E tem mais: “Semana de Arte Moderna, parceir@, agora... s6 se for na quebrada, sé se for Periférica, ta ligado!”** Asestéticase éticas dos guetos, dos presidios, das periferias do pais, disseminadas em representagdes da violéncia, da pobreza, da miséria plasmadas nas variedades linguisticas desprestigiadas e nas experiéncias traumaticas daqueles que sofreram consagraram, de forma asséptica, muitxs escritorxs na historia literdria brasileira. Este ¢ apenas mais um exemplo da pilhagem epistémica que segrega 0 Outro, o saqueia, apropriando-se de seus cadernos, suas grafias, suas dic¢es, seu saber em diferenga, mas nega-se ao empoderamento da alteridade mantida sob 0 jugo do preconceito linguistico, do genocidio, do encarceramento, da fome. Nos estudos literérios formais, ainda que nao tenhamos feito a necessdria guinada epistémica no campo, alguns trabalhos na contemporaneidade tém provocado rasuras importantes, contribuindo com o que Achille Mbembe (2014) aponta como “critica da razio negra”, dentre os quais destaco alguns daqueles que potencializam o foco deste trabalho: a historiografia monumental intitulada 24 ~ Referéncia & Semana de Arte Moderna da Periferia, criada por Sérgio Vaz. Disponivel em http://colecionadordepedras.blogspot.com-br/2007/10/manifesto-da- antropofagia-perifrica.html . Acessado em 27/08/2015 as 20:00. OArcoea Arkhé 49 6 Henrique Freitas Literatura e afrodescendéncia (2011), bem como a ampla difusio da critica literaria de produgoes negras no Porta] Literafro(http://150.164.100.248/literafro/news.asp), ambos coordenados por Eduardo Assis Duarte, ainda que tenhamos ressalvas ao conceito demasiadamente fluido de afrodescendéncia; a cartografia do epistemicidio, flagrando explicitamente a pilhagem epistémica nos lugares de prestigio reservados a literatura em nossa sociedade - feiras, prémios literérios, catalogos das grandes editoras, dentre outros - feita por Regina Dalcastagné, em especial no livro Literatura brasileira contempordnea: um territéorio contestado (2012), uma vez que este trabalho vai do mercado editorial e suas tecnologias de circulacio, bem como prestigio autoral, 4s representacdes de personagens negrxs nos romances brasileiros langados por grandes editoras no Brasil, quantificando e apresentando dados incontestes de uma barreira racial em nossas letras que nao tem nenhuma relagio com qualidade ou qualquer critério que nao o racismo epistémico no campo; finalmente, mas nao menos importante, o trabalho na Teoria da Literatura desenvolvido por Edimilson de Almeida Pereira em diversas obras, a exemplo de Um tigre na floresta de signos: estudos cia damn Bal 0, bon literario e a poee suas eae ee ae Para o etersthy ae eae - a is ee ae ea on itico de (est)éticas em devir. al Pereira em cee do péndulo, Edimilson de ee (2013), por exem, age ee ote Ce pe por uma tradicao ae agra sua criacao literaria fundadé ‘ canénica, mas, sobretudo, pelos rit 9 50 0 Arco ©a Arkhé Henrique Freitas do Carnaval, Jongo, Folia de reis e outros gestos sagrados; da MPB (Pixinguinha, Cartola, Chico Buarque, Jorge Ben Jor) e dos textos de Etnografia, Folclore, Antropologia, Sociologia e Historia. Através da proposicao da permeabilidade de uma praxis poética e antropoldgica, ele pensa a poesia como espago da linguagem e, simultaneamente, também de praticas culturais, tendo em vista que, se essa experiéncia permite ocupar outros lugares sociais através da relativizacao que a produ¢ao poética proporciona em suas encenacées, ha também uma relativizacao dosvaloresestéticos: “Esteticamente,aencena¢ao da experiéncia poética rasura o script dos modelos literarios para expressar-se como um campo de possibilidades, no qual as formas canonizadas representam uma dentre outras feigdes da experiéncia poética” (PEREIRA, 2013, p. 40). Para ele, a perspectiva antropoldgica possibilita a abertura a um relativismo que permite 4 experiéncia poética um devir aberto a linguagens, suportes e procedimentos plurais: Uma interpretacdo antropoldgica sugere, enfim, que a experiéncia poética ultrapassa a circunscricao da literatura escrita, 4 medida que se revela como pratica cultural em sentido amplo. A partir dela sio explicitadas proposigoes estéticas, relacoes de poder, linhas de interesses de grupos sociais privilegiados ou excluidos. Em sua abrangéncia, a experiéncia poética demonstra que 0 modo como 0 sujeito estabelece certas representacoes estéticas contribui para que o mesmo e sua comunidade estabelegam determinadas formas de se relacionarem entre si € com o mundo”. (PEREIRA, 2013, p. 42). © Arco ea Arkhé 51 6 Henrique Freitas Edimilson Pereira aponta para o seu Livro de falas (1987), no qual ha um forte didlogo com a tradigao Classica negra, propondo-se aquele mesmo exercicio que a teoriae a critica candnicas se prestam ante as produgées artisticas de linhagem estética helénica: afinar a sensibilidade para explorar os muitos sentidos dos mitos greco-latinos retrabalhados. Neste caso, é preciso considerar uma outra Arkhé, ja que “[...]os deuses sao negros, as regras de sacrificio e premiagao pertencem a outro modelo de cultura’. (PEREIRA, 2013, p. 50) Ainda sobre o Livro de falas, o autor supracitado investe em algumas aproximagées nao usuais que produzem interessantes linhas de fuga, conforme ele mesmo assume, nesse exercicio de trabalhar uma (est)ética em devir: Por ser um livro de didlogos, 0 Livro de falas quer também despertar as mais diferentes sensibilidades, de pessoas negras e nao negras. E interessante observar como algumas imagens dos mitos originais do Candomblé trazem uma estimulagio que lembra o Surrealismo. Em algumas passagens do Livro de falas, usei, intencionalmente, imagens de mitos originais colocadas junto de imagens criadas_pelas técnicas Surrealistas, (PEREIRA, 2013, p. 51). ems ange as contribuicées importantes - na_perspecti © Outros campos para os Estudos inertial ale fone. da_reversao dessa _pilhagem eplsthn i 9 seu incontor, Irabalha do socidlogo Sérgio Miceli © Tnavel Intelectuais e classe dirigente no ‘ 9 820 Atcoea Arkhé Henrique Freitas (MICELI, 1979), livro em que toma para si a tarefa tabu de mostrar as dbvias, mas interditas relacées entre os escritores e a classe dirigente no Brasil que implicavam, direta ou indiretamente, também em questées do canone. Neste sentido, trés outros trabalhos mais recentes advindos de pesquisadores também do campo das Ciéncias Sociais, destacam-se no mapeamento exaustivo dessas literaturas 4 margem e das questées éticas, estéticas, discursivas por elas propostas, bem como suas importantes contribuigdes para a cultura e para a cena literaria mais ampla: Erica Pecanha, com a obra Vozes marginais na literatura (2009), Alejandro Reyes com Vozes do pordo: a literatura periférica/marginal do Brasil (2013) e Mario Augusto Medeiros, finalista do prémio Jabuti do ano de 2014 que, além de mapear as literaturas marginal e periférica, aborda também a literatura negra em suas miultiplas interfaces com o excepcional trabalho A descoberta do insélito: literatura negra e literatura periférica no Brasil 1960-2000 (2013). Por fim, nao hd como escapar de nos determos brevemente no caso mais emblematico, mais escandaloso, da pilhagem epistémica nas letras do Brasil: Lima Barreto. Autor importantissimo para a genealogia da literatura brasileira, fundamental para todas as discussdes que 0 Modernismo propés como estratégia de reversio da sindrome da dependéncia cultural brasileira para se forjar uma literatura nacional, formula suas teses em romance antes da Semana de Arte Moderna, apesar de ainda estar em atividade quando o Modernismo eclode. A despeito de tudo isso, foi apagado da genealogia deste movimento e reinventado pela critica e pela historiografia como pré- O Arco ea Arkhé 53 6 Henrique Freitas ey ee ee modernista amorfo, sem nenhuma ligagao com aquilo que, de forma epigonal, ajudou de forme decisiva a erigir, O “grande legado” deixado pela critica para as geracées posteriores foi sua reiterada identificagéo como louco e bébado, como se estas também nao fossem perversas produgées necropoliticas, que apagam o fato de que sem Lima Barreto nao teriamos Modernismo no Brasil, pois nao sdo as vanguardas europeias que trarao a différance constitutiva do projeto de nacao brasileira perseguido, e sim a releitura das tradicdes e saberes negros, presentes da linguagem aos temas pelos quais ele opta, e das tradi¢des e saberes indigenas, j4 mediadas pelo autor de Clara dos Anjos, exatamente na chave do Tupi or not tupi, base da discussio antropofagica de Oswald de Andrade: em Policarpo Quaresma ja temos sistematizada essa questo indigena nas acées do personagem e temos ainda a resposta ao problema no rizoma do nome do proprio Policarpo (aquele que constitui ou da varios frutos). As contribuicées estéticas barretianas sao inegaveis, Sobretudo no que tange a recursos literarios produtivos como a repeticao (SANTIAGO, 1982) e a aproximagao 4s narrativas populares, algo que tanto Oswald de Andrade ree Mario de Andrade buscarao em suas producoes. dag stoi me nao podemos ignorar os modos de Te do alcoolismo, dy spores Negros tragadxs pela neste att stmete ee te e de problemas psicoldgicos ae do Contexto a que <_e ato Lape a aie ° depois de um episte a submetidos (nao de pore é APagamentos; por Sia. em torno de estereotip! * at 08 » Nao podemos também ign? 9 54 OArcoeg Arkhé Henrique Freitas modos de saber desses sujeitos como nés dessa imensa teia afrorrizomatica que integra a literatura brasileira. E preciso reintegrar, pois, esses sujeitos e seus respectivos saberes aos seus lugares na historia como corte genealdgico que podemos fazer agora, permitindo essas emergéncias. Mas, para além disso, é preciso perceber que as gnoses indigenas e negro- brasileiras podem auxiliar ainda mais 0 campo da Literatura, se vencermos a dimensiao dessas pilhagens epistémicas, permitindo que esses saberes afetem de maneira mais incisiva a teoria, a critica e a historiografia, j4 que esses sao vetores de nossos modos de ver 0 literdrio. 2. Xiré: por um conceito de literatura-terreiro FA O caminho é pé e possibilidade Péndulo entre o que esta e Aquilo que se torna o que é A literatura-terreiro liga-se aos textos produzidos desde o corpo negro permeado pela cosmogonia africana e negro- brasileira. Ela est conectada as epistemes que circulam nas religides afro-brasileiras e, prioritariamente, refere-se as producées oriundas destes espagos que se vinculam a uma dimensao nio s6 oral, mas multimodal diaspérica. Isto exige por parte da critica uma “jniciacdo” na rede sinestésico- analitica em que estas produgGes se inserem para que possam ser analisadas em sua complexidade. Ela nao é uma literatura sobre as religises de matriz africana ou que etnograficamente a utilizam como mote tematico; é aquela ancorada na filosofia da ancestralidade, O Arcoea Arkhé 55 Henrique Freitas os | de que nos fala Eduardo Oliveira: “[...]filosofar sobre o corpo nao é 0 bastante, sejam 0s corpos dos participes das religibes de matriz africana, ou mesmo sobre o corpo dos orixds... £ preciso filosofar desde 0 corpo e reconhecer que o corpo é filosofia encarnada e cultura, e literatura em movimento? (OLIVEIRA, 2007, p. 110). Aliteratura-terreiroéaquelaainda queestanaencruzilhada conceitual que permeia a teoria. Dai a questao do racismo, a vinculagéo a uma perspectiva da diaspora nao como forca unilateral de dispersio, mas como forca perlaborativa ser chave para uma “inescapdvel” negritude, pensando naquilo que a Africa tornou-se no Brasil e nas Américas através da conversao das experiéncias dolorosas em arte, em cria¢éo libertaria (Cf. Hall, Gilroy, Abdias Nascimento): violéncia “fundadora” que transcende o revanchismo e busca escapar as armadilhas do que Fanon (2008) j4 chamava de escravidao mental. Assim como quer Nietzsche em relacdo a Historia, ela €uma literatura intempestiva. Por isso, é preciso co-mover-s Para lidar coma literatura-terreiro. Seu principal signo: Exu. ea de Senhor dos Caminhos, dono das encruzilhadas, ¢ peat dinamico da cosmovisao africana presente nt eee eee do pantedo das religides de ay Ben tal ae Pode acu mapeada através das a i leitura dlesthitic enernieg CT sent on ee ee craene 0 das religioes judaico-cristas cone an ininteligivel were a Seo 20 sohetion’s et é Teverenciado oe ae ei ico cul ea, : 2 como ©ONCeito estratégi Wersas produgées e constitui-s ara Eauaeel pao rege liveira, na filosofia do paradoxo que 5 560 Atcoea Arkhé Henrique Freitas Exu, ele é 0 principio de individuagao que estd em tudo, inclusive impregnando todos 0s seres vivos, ea tudo empresta identidade: “E 0 mesmo que dissolve 0 construido; aquele que quebra a regra para manter a regra; aquele que transita pelas margens para dar corpo ao que estrutura o centro; é aquele que inova a tradi¢do para assegura-la” (Oliveira, 2007, p-130). Dessa forma “[...Jmantém um equilibrio dinamico baseado no desequilibrio das estruturas desse mesmo sistema filos6fico-ético.” (Oliveira, 2007, p. 131). Na_ literatura-terreiro, uma dimensao’ ética/estética negro-diaspérica e de didlogo encruzilhado com uma produsgao literaria canénica se imbricam, desafiando os oris a incorporarem outros paradigmas ao som de alujas, opanijés e outros rit(m)os, enquanto os atabaques-palavras dobram na repeticdo, na incisao letra a letra no texto produzido desde o corpo como afrorrizomas. Os afrorrizomas relacionam-se com a tor¢ao dos rizomas delleuzianos para se pensar no processo de dispersao, pluralidade e invengao das tradi¢ées negras que envolveram a diaspora africana, recusando a teleologia. A Africa, nesta perspectiva, nao é nem bloco monolitico nem origem estatica ou destino fechado. A encruzilhada, no exercicio critico desta literatura-terreiro, torna-se 0 conceito-mor por meio do qual se tensiona a mimese, a dialética, o real, seja na literatura negro-brasileira, seja em algumas produgées africanas elaboradas sob este viés ético-estético-ritual. E disso que trata Afro-rizomas na didspora negra: as literaturas africanas na encruzilhada brasileira, obra organizada por mim e Ricardo Riso, em 2013, que contou com a participagao de intelectuais e escritores negras e negros do Brasil e dos paises africanos OArcoea Arkhé 57 & Henrique Freitas

Você também pode gostar