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O Ato Analítico No Hospital Universitário
O Ato Analítico No Hospital Universitário
Leonardo Goldberg
Olá, boa tarde. Primeiro eu gostaria de agradecer a Prof. Maria Livia pela parceria e
supervisão na minha pesquisa de posdoc. O tema da minha pesquisa de posdoc é
justamente sobre a relação entre a ética médica e o ato analítico que se instaura a partir
da presença do analista no hospital geral. Esse seminário teórico faz série com o que fora
aberto pela Prof. Maria Livia e na sequência apresentado pelo Prof. Gabriel Binkowski,
ambos refletindo sobre a inserção da psicanálise no hospital. Quero agradecer também ao
Prof. Luciano Elia, que foi generoso em vir para São Paulo para participar desse
seminário.
Enquanto uma das atividades de minha pesquisa de pós-doutorado, realizo aqui neste
Hospital atendimento e supervisão clínica em um dos turnos propostos e distribuídos por
nossa equipe de pesquisadores. Hoje, decidi comentar dois pontos de tensão que acho
fundamentais para desdobrarmos em uma discussão e que se referem a inserção da
psicanálise no Hospital, lugar e contexto que comporta algumas especificidades,
especificidades, para não deixar em aberto, que oferecem certa iminência e contraem o
tempo, através de uma modalidade lógica que é o impossível próprio ao corpo que adoece,
diante das chamadas “últimas coisas”, a morte e o sexual. Essa é a peculiaridade com a
qual o analista lida no contexto de um Hospital Geral. Através da tentativa que o saber-
médico empreende de uma assepsia radical, em nome do controle de infecções
hospitalares, vemos que qualquer dimensão do real da morte e da sujeira própria ao sexual
são ignoradas, tratadas como ruído, desarmonia ou sintoma a ser curado.
É comum nos depararmos com pedidos que dizem mais respeito aos profissionais e a
equipe que efetivamente aos pacientes: por exemplo, que a equipe peça que a psicologia
os ajude a manejar um paciente que, inconformado com seu prognóstico fatal, dá trabalho
para os profissionais e ameaça acionar a justiça pois se considera injustiçado. Ou, então,
uma paciente com diagnóstico de esquizofrenia que deixa o ambiente da clínica neonatal
muito tenso ao questionar cada profissional de saúde que entra no quarto sobre a exatidão
do procedimento que será realizada em sua filha recém-nascida. Se não nos determos em
uma pré-reflexão frente ao apelo, rapidamente podemos escorregar para o lado da
demanda, e de maneira quase “automática” iremos demandar que o paciente se cale,
perturbe menos o cotidiano hospitalar ou até melhore depressa.
Eis que tais pedidos chegam em nossos plantões para serem discutidos e é bastante
comum que nossos colaboradores, geralmente estagiários do quinto ano do curso de
psicologia, se deparem, às vezes estarrecidos, com um manejo completamente diferente
do qual eles esperavam. Manejo que muitas vezes causa certo estranhamento por não
seguir uma ideia de certa noção de humanismo que, para aplacar a angústia que é própria
de uma demanda, precipita na tentativa de satisfaze-la através de uma salvação heroica,
que pode incluir falar com os médicos, familiares, amigos dos familiares, amigos dos
amigos dos familiares, mediação de conflito, levantamento de faltas e etc. Há um
pressuposto nessa tentativa de salvação que mira o apaziguamento e a resolução supondo
que o sofrimento humano pode ser resolvido a partir de uma lógica epistemo-somática.
Irei reduzir esse pressuposto, essa ética, ao sintagma saber-médico.
Essa diferença, entre, de um lado a perturbação da onda e de outro a boa forma, pode
nos servir enquanto provocação para pensarmos em como lidar com a demanda que nos
é endereçada. Lacan diz que o médico Erixímaco comporta uma noção de homem
microcosmo que faz com a natureza uma relação uníssona, através da ordem e da
harmonia do cosmos e termina tal aula com uma questão: - Tal noção, profundamente
universalista, não teria deixado alguns traços em nossos pressupostos mentais?4
Bem, ouso apontar que quando o analista é convocado por um apelo, pedido, demanda,
há quase um empuxo para tentar satisfaze-la. Essa é a fina diferença entre acolher a
demanda e acolhe-la sem tentar satisfaze-la, que é próprio da posição do analista,
advertido da não-relação. Há, ainda mais, no contexto de uma tradição médica, um
empuxo a posição de harmonia enquanto saúde que quase de forma automática nos lança
ao horizonte de apaziguar o conflito.
3 Op. Cit. p. 98
4 Op. Cit. p. 102
presença do analista é a intervenção no conflito, como assina-la Luciano Elia5. As
próprias noções de divisão subjetiva, de pulsão e gozo, do “além do princípio do prazer”,
já impossibilitam uma lógica de que haja harmonia e qualquer terapêutica baseada na
cessação ou solução do conflito conduz ao pior.
Um caso que se apresentou para a equipe no hospital foi bastante ilustrativo quanto a isso:
recebemos um pedido de interconsulta para atender uma senhora na faixa dos 60 anos.
Essa Senhora estava atravessando a rua em um dia chuvoso e torceu o pé, sofrendo uma
queda. Seu pé sofreu várias fraturas e ela iria fazer a segunda cirurgia no hospital, ou seja,
passaria por duas cirurgias difíceis que exigiam a colocação de vários materiais de
fixação. A equipe descrevia que desconfiava de um quadro depressivo dessa Senhora
diante do acidente que sofreu. Fizemos uma reunião e discutimos clinicamente o quão era
expressiva a lesão e como casos assim podem encobrir uma demanda e, portanto, que a
colaboradora que fosse atende-la tentasse escuta-la para além dessas descrições do
sintoma médico. Quando a colaboradora entra, a Senhora passa a descrever suas dores e
tristeza por conta do acidente. Detemo-nos por um instante: nesse momento, a
colaboradora poderia buscar acolher a dor da paciente de forma que mirasse a harmonia
e responder a partir de proposições que visassem o sentido apaziguador, algo como “olha,
mas você irá melhorar e estou aqui para escutar sua dor a todo momento”.
Bem, ao invés de reter-se na descrição de sua dor física, a colaboradora pergunta o que
essa Senhora estava fazendo aquele dia, e a Senhora responde que tinha ido comprar flores
para sua filha. A colaboradora então desdobra o assunto e pede que a paciente fale sobre
essa filha. A paciente diz então que essa filha faleceu fazia 6 meses, de forma abrupta e
na faixa dos 30 anos, por causa de um AVC fulminante, e que ela falava muito pouco
disso. Porém, que não conseguiu desmontar o quarto dela e comprava flores
costumeiramente para deixar em seu quarto. A colaboradora, novamente evitando o
paradigma da harmonia, pergunta como foi para ela a questão do luto, como ela se sentia
sobre isso. Eis que a paciente responde: - Desde a morte da minha filha, eu fiquei sem
chão. E a colaboradora, na posição analítica, pontua: - Talvez isso possa ter algo a ver
com sua queda? A partir dessa interpretação a paciente teve diversos outros encontros
com a colaboradora nos quais ela pôde trabalhar essa dimensão do luto.
Mas, mais importante do que a interpretação é a posição da analista a partir desse ato.
Nesse momento, a paciente se dá conta de sua divisão subjetiva e do inconsciente como
tal: de que “o que não vai bem”, o que agora é o sintoma propriamente, tem algo a ver
com um “não-saber”, e, portanto, “eu não sei exatamente porque isso aconteceu comigo,
mas posso endereçar esse não-saber ao analista, que eu suponho que saiba de algo que me
escape”. Essa é a mola da transferência. Ao invés da decifração, a passagem do analista
enquanto Outro que sabe para semblante de objeto causa do desejo.
Esse foi um caso emblemático em meu grupo e que nos ofereceu a possibilidade de
discutir bastante a entrada em análise. Freud, em “Sobre o início do tratamento”6, faz uma
comparação entre a psicanálise e o jogo de xadrez: “apenas as jogadas de abertura e as
jogadas finais permitem uma representação exaustiva” 7. Isso se refere diretamente ao
segundo ponto com o qual eu gostaria de trabalhar.
Enquanto supervisor clínico, me deparo bastante com uma angústia sobre tal “falta de
repertório”. É comum que o enunciado “eu não sei o que fazer diante do caso” seja quase
um mínimo comum entre grupos de supervisão, e é sobre esse enunciado que eu gostaria
de refletir. O “eu não sei o que fazer” desenha um horizonte no qual “há alguém que o
saiba” e, portanto, que haja um saber protocolar - ou conhecimento, a tentativa de cópula
entre o sujeito e o saber - diante do caso que se apresenta para nós. Mais do que isso, o
eu “eu não sei” pressupõe que a posição do analista seja a do ser pensante, racional.
Freud inventa a atenção flutuante (ou uniformemente distribuída) que convoca o analista
a se afastar do ser que pensa e Lacan estabelece a falta-a-ser enquanto política que orienta
a análise. Há uma dimensão topológica que o analista deve suportar na análise não a partir
6 Freud, S. Sobre o início do tratamento (1913) In Fundamentos da clínica psicanalítica. tradução Claudia
Dombusch. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017
7 Id. p. 121
da posição de sujeito (pensante ou não), mas na posição de objeto causa, essa é a
peculiaridade de uma psicanálise. Quem está na posição de sujeito é o analisante, que
“parte em busca do que tem e não conhece” e o que “vai encontrar é o que lhe falta”8. Do
outro lado, o discurso do analista opera a partir de uma posição de semblante objeto
pequeno a, objeto causa do desejo.
Outro caso nosso ilustra bem o quanto o analista sustentar uma posição de falta produz
efeitos analíticos importantes: a colaboradora intervém em um pedido que dizia sobre
uma suposta “depressão” de um paciente na fila de transplante renal. Na intervenção
atenta - que suspende o “eu” que poderia se chatear, demandar, querer curar, diante de um
jovem que perdeu 15 litros de água desde o início da hemodiálise e que não poderia seguir
a vida ordinária de antes – a colaboradora faz uma pontuação sobre a impossibilidade do
paciente de consumir álcool (isso porque ele se incomodava com o barulho alto de festa
aos fins de semana no entorno do hospital) e a partir de tal pontuação o paciente responde
que estava chateado não pelo quadro grave, mas porque sua ex-namorada não atendia
mais seus telefonemas, e então passa a tratar um sintoma que atualizava em suas relações
amorosas e que dizia respeito a sua vida boemia. Mas é importante apontarmos que isso
não basta: que o sintoma tenha a ver com algo do cifrado, do recalque, isso até o médico,
por experiência, pode intuir. A questão é passar da posição do Outro que pode decifrar, o
oráculo, ao qual o paciente endereça a questão: “o que eu tenho?”, “o que desejo?”, “o
que é melhor para mim?”, próprio do conflito psíquico para a posição de objeto causa do
desejo.
8
A posição do analista conservaria algo análogo a de Sócrates no banquete, e Lacan define
uma ética que, para suportar a posição de objeto, o desejo e a função do analista devem
comportar um luto, uma perda radical, um des-ser. Esse luto também se presentifica no
Hospital a partir da posição de resto, o que é própria a posição de objeto a que que agencia
o discurso do analista. É o que resta das reuniões de equipe, dos procedimentos, do
sintoma, da não-relação, da redução ao significante. Aliás, em “Televisão”, Lacan diz que
renomearia o objeto a por abjeto9. É o abjeto, o desprezível da morte, do enigma próprio
ao corpo e a sexualidade, do adoecimento que escapa ao saber-médico e que causa
angústia e desejo. Que desliza do belo, do erótico próprio ao corpo à bolsa de colostomia.
É o (a)bjeto que o analista irá encarnar advertido de sua operação faltante e que causa
efeitos analíticos no paciente e no campo. Essa posição, de resto, difere absolutamente da
do saber médico: ela inclui e escuta a “falha espistemo-somática”10 própria ao corpo
atravessado e animado pela linguagem e que goza. Não que os médicos não percebam
este resto enquanto importante, mas fazem questão de ignora-lo ou considera-lo um ruído
ou perturbação.
Lacan, sem seu seminário proferido em Yale, em 197511, aponta a aparição da psicanálise
na tradição médica e que em certo momento, a medicina percebeu que não podia tratar
tudo (sublinho tudo). E que então a análise estaria na cauda da medicina, como sua última
flor12. Essa expressão cauda sempre me causou uma curiosidade e ao escrever esse
seminário encontrei uma referência que Lacan havia usado no ano anterior ao seminário
de Yale. Em 1974 (em “os não tolos erram”), Lacan volta a sua lógica do para todos e da
exceção para pensar na sexuação. O que determina a sexuação se trata de um dizer
formalizável a partir do “Existe um x não phi de x”, a exceção, o não-todo produziria
consequências àqueles que acreditam ter o falo (que ele afirma não ousar chamar de
cauda13).
Esse talvez seja o ponto chave de uma lógica de escuta no hospital: sem protocolos ou
pretensões universais, que escute a partir de uma posição de exceção, não-toda, o ponto
de falha que escapa, produz perturbações (ondas) em um ambiente-modelo da assepsia
que é própria à uma noção de ciência que tenta escamotear o sujeito que retorna nas
formações inconscientes, no sintoma e no próprio conflito. Se de um lado a lógica médica
reduz o sujeito ao para-todo: aquele que sofre há determinado tempo de determinada
sofre necessita disso e daquilo; a lógica psicanalítica pode oferecer escuta ao xis do desejo
e da angústia e a partir da posição de resto desvelar a divisão subjetiva que é própria aos
seres falantes, profissionais ou pacientes.
Aliás, essa expressão – falha epistemo-somática - que Lacan cunha em uma conferência
destinada aos médicos, dá notícias de uma ética que inclui a própria falha, efeito da
desarmonia estrutural, constituinte de um corpo que goza. O lugar do analista é justamente
o de fazer falar tal falha e, como pontua Maria Livia14, a partir de um lugar que só se
sustenta pelo desejo do analista. Desejo que tal falha fale e não que seja curada ou
reduzida a um diagnóstico que lhe sirva como tampa.
14 MORETTO, Maria Lívia Tourinho. Psicanálise e hospital hoje: o lugar do psicanalista. Rev. SBPH, São
Paulo , v. 22, n. spe, p. 19-27, jun. 2019 . Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-
08582019000200003&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 20 jun. 2023.
15 Lacan, J. Primeira versão da proposição... Escritos, p. 579
impossível de se escrever, mas transmissível e que se presentifica em uma análise, em
qualquer contexto.
Concluo o texto com um chamado que recebemos no hospital. A clínica neonatal nos
chamou com a indicação de uma possível “depressão pós-parto” na qual a mãe estava
rejeitando o bebê de maneira expressiva.
Muito obrigado.
Referências bibliográficas
Moretto, Maria Lívia Tourinho. Psicanálise e hospital hoje: o lugar do psicanalista. Rev.
SBPH, São Paulo , v. 22, n. spe, p. 19-27, jun. 2019 . Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-
08582019000200003&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 20 jun. 2023.