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ee STM Tarts) ee Coc Mel ol Ole Tale) SUES O Ct eee eee i aes ne da autora...) A poesia de Concei¢ao Evaristo Oe Nec ee cae POCO Con eae en ata al e emocional que causa nos leitores. LO CC a CRT ee PUTS eC eet ee tees Ree eet Cece ere Mpa Roe Cu eee Ore eee Been cal CO Meee any eee i ez) BLOT TSE Mast 4 rt Q g 9 iS) éncio PONCIA VICENCIO Conceigao Evaristo os reservado naverade 2006 Elizabeth Miranda Capa Tilio Oliveira Reviséo ‘Ana Emilia de Carvalho Evaristo, Conceigio. EM®p —__ Poncid Vic8neio / Conceigio Evaristo .— Belo Horizonte : Mazza Edigoes, 2003. 128p.;115x17,3cm. 1. Romance brasileiro, I-Tiulo, CDD-B8693 (CDU: 869,0081)-31 Proibida a reproducdo total ow parcial 0s infratores serdo processados na forma da lei Rua Braganga, 101 ~ Baireo Pompei ~ Telefax: (31) 3481-0591, '30280-410 Belo Horizonte ~MG e-mail: edmazca@usi.com.br Este oro & de wma de minbas irmis, a mais vetha, a que taleex, manta ird lf-l, pois bd anos gue Maria Inés v0 Vieéneto, ¢ 20 guarda om sew mundo. assemetha a Powe E de Aind, minha iba, expcial monn, aguela gue mee com ha made, gue tanto sabe do tempo de espera E de minhas irmas ¢ irmios, tetemunbas de tantas bistoras zs pesinas (esto mutts) que atraveesams os woeus dias deixando ume conforsante sabor de fermura PREFACIO A hist6tia de Poncia Vieéncio, contada no rom de formagio do mesmo nome, descreve os caminhos, as andancas, as marcas, 0s sonhos ¢ os desencantos da protagonista. Conceicio Evaristo tragaa trajetécia da per sonagem da infiineia i idade adulta, analisando seus afetos ce desafetos ¢ seu envolvimento com a familia ¢ 08 amigos. Discute « questio da identidade de Ponci, centrada na heranga identitiria do avé e estabelece um didlogo entre passado e 0 presente, entre a lembranca ¢ a vivéncia, entze 0 teal ¢ 0 imaginado. Poncid é uma pessoa gue, , foi acumulando partidas e vazios até culminar comooa ‘puma grande auséncia ‘© romance explora a fundo as sucessivas perdas de Ponei (a morte do av, do pai, dos sete filhos, a separacic dz mie e do irmio), penetrando no “apactarse de s mesma”, Analisa tal fato como uma conseqiiéac grandes abalos emocionais, de profun vazios, mas também como o resultado de fatores sociais (extrema pobreza, desampara e injustigas sociais) que levam fa situagdes extremamente estressantes. A histéria se deseavolve com complexidade, mas sem atropelos. As ima- gens e as emogSes nos slo dadas aa dosagem certa, sem exageros ¢ sem mutilagbes nartativas, ‘A repetigio intencional de certas frases tem o-efeito de ligar 0s fatos, de conectar passado € presente € de cnfacizar certas facetas do mundo interior das personagens. As diversas partes do texto (cada uma enfocando um dos personagens) vio se intercalando, como pecas de um jogo ou de um quebra-cabeca. As frases curtas, quase secas, uso de poucos adjetivos e de poucas conjungdes aditivas contrastam claramenve com a quantidade de emocGes de sentimentos que escorrem pelas entrelinhas. Poneid nos arrasta consigo pelo processo de Jembear. O pai, que, a principio, era uma vaga figura ou avé de quem 6 se lembrava do “braco cots” ou do enterro, vio ganhando formas mais definidas a medida «que 4 voz narrativa permice ao leitor se esgueirar com a protagonista pelos meandros da sua meméria para com- partlhar com cla as amargas auséncias ¢ desencontros, ‘mas também para vivenciar com: ela 05 seus sonhos, a sua coragem e 2 profunda ternura das rolagdes familiares Segundo a autora, Poncid buscava “emendar um tempo a outro”, procurava “significar mutilagdes auséncias” ¢ incorporar “pedagos excedentes”. De modo que o tempo é de extrema imporrincia neste romance, pois a lipacio entre passado e presente torna-se 0 fio condutor do texto, jé que Poneid trabalhia cada lembranga “como akguém que precisasse recuperar a primeira veste, para nunca mais se sentir desesperadamente mua”. A vor nartativa suspende os acontecimentos € os itineracios das pessoas © vai intercalando fatos, tecendo uma erajetixia 20 mesmo tempo interrompida ¢ recuperada, As rela ges familiares que também parecem, a principio, distan- tes etristes vo aos poucos ganhando uma dimensio maior 4 medida que nés, leitores, vamos conhecendo melhor as 8 personagens ¢ nos aprofundando no universo delas. Se & jneméria é a via de acesso de Poncid ao seu gutoconhecimento, é também através dela, do que a voz nasrativa reconstnsi, que nés leitores penetramos no Amago das suas emogSes e passamos a conhecer a histSria pessoal de cada um ‘A tornura é a forma de redengio de quase todos os personagens. Conceicio enfatiza os profundos lacos de familia a unir mie e Sls, os gestos ternos € os abragos comovidos e mostra como, neste romance, a solidarieda- de se estende muito além das telagdes familiares. E a pedra de toque da amizade do soldado Nestor ¢ de Landi (© irmfo de Poncia) se manifesta no carinho deste ilkimo pela prostitata Bilisa. A vor marrativa leva o leitor a compartlhar a profunda cernura que se estabelece entre 0 marido (também cansado, acabrunhado ¢ sofide) ¢ Poncid, quando esta se queda em si mesma. Quase sempre este romance explora as complexidades das personagens, Raramente encontramos uma pessoa neste texto (mnesmo as personagens perifricas) aque possam ser categorizadas usando-se uma simplicida- de dualistica, ou seja, como seres meramente bons oF aus, Para cada personagem, Bvaristo apeesenta sempre ais de uma faceta, ox busca casas sociais, histéricas € cemocionais para explicar os comportamentos, fagindo sempre de conclusdes apresssadas. Por exemplo, 20 deserever 0 relacionamento de Poncid com seu marido, jamais a descreve como uma heroina trigica ov 0 marido como um vilZo. Ainda que Evatisto retrate com pincela- das bem reais © comportamento violento do masido, ram- 9 bem busca explicar as razées que o levam a proceder assim, Mesmo que tal explieagio n: cja.uma justificativa ara os seus atos, serve para mostzar que ele também & ‘uma vitima do sistema social. Além de apresentar uma trama psicoldgica emocional complexa, Poncid Vieéncto rettata e analisa questdes sociais ¢ raciais, pois aré mesmo a sobrenome “Vicéncio” era heranca da es vidio negra, Aquele so- brenome era uma “limina afiada a torturar-the o corpo", pois havia na assinatura dela s marca do poderio do Coronel Vicéncio, “dono dos seus bisavés”. O texto aborda a explotacio que ainda existe na zona ruzal, fala do trabalho em tegime de semi-eseravidio, da exploragio 4o trabalho do campo, do coronelismo, da migragio do campo para as cidades, da indifereaca da Igreja com os sem-casa, do trabalho das empregadas domésticas, do analfabetismo e da vida nas favelas Quase todo texto narrativo de Conceigio enfatiza a foxtaleza de espitito ¢ de corpo das mulheres ¢ 2 eriatividade como uma fonte geradora de mudangas sociais. Neste romance, tanto Poncii como a mie trabalham 0 barro, fazem objetos de cesimica para uso didtio, verdadeitas obras de acte, que depois chegaram a see expostas numa mostra, F esta arte que as distingue e que tumbém acaba fancionando como uma ponte de li- gagéo entre os varios membros da familia, como acontece, por exemplo, na passagem em que se desereve a emogio do itmio de Poncia 20 reconhecer as pegas da mie e da ima numa exposigio de objetos de arte 10 Icitor(a) 2 conbecer a protagonists pelos sentidos. Revela lnéneio € um romance que convida ofa) cheiros, sabores, paisagens e a percepeio da menina que cescuta tudo ¢ todos, olha, vé, sente e se emociona com o arco-iris, com as comidas, eom 0 cheiro do café fresco € das broas de fubi e que trabalha © barro, modelando objetos de argila (como a fguea do avd). Apeesenta uma personagem que “escura os passos” do passado © que se compraz com a memsria rca, os lagos perdidos, os aferos ‘que se esvairam, a saudade do que ja se foie a solide do que nio foi dito. A cobra (que Poneii-menina compara com o arcovitis € que vé no fog de barro da casa vazia do povoado em que vivera) € a casea da cobra (que 0 jrmio ¢ a mie eacontram na easa onde viveram) também slo bastante significativas, pois unem 0 meio ¢ o fical ae comeco da historia. Quando 2 teia de desencontzos se rompe,4 marca da auséacia ainda se faz presente, © estar além da tealidade presente esta representado pela pre senca do arco-iris que reaparece no final do texto. Esserito de dentto para fora, Ponaié Vitus apresenta rmuitas das mesmas qualidades da poesia Kicids insone daautora, Eu costumava dizer que a poesia de Conceigio Evaristo é uma poesia de visceras, profundamente marcada por palaveas escolhidas a dedo ¢ pelo impacto verbal emocional que causa nos leitores. Depois de ler Parad Vicénso, passei a rer que hi uma grande proximidade entre sta poesia € prosa. Se as travessias ontol6gicas hrermenguticas dos seus textos arrativos parecem mais, suaves do que os que encontramos na sua poesia, tanto ‘em um como em outro caso, os significados embutidos u nas entrelinhas séo bastante complexos ¢ acabam nos remetendo as profundas buscas que as personagens f- zem de si mesmas e 20 questionamento do mundo a0 seu sedor. E muitas vezes a sutileza do que nio foi dito ‘ou explicedo, ou aquilo que foi aarrado apenas de soslaio {que anuncia os processos de travessia emocional dos per- sonagens ¢ que enriquece 0 texto. Ha muito nio lia um texto que captasse tio sinceramente os elos de ternura e afeicio entre os per- sonagens ¢ que sirmultaneamente trabalhasse a linguagem de forma bastante poética, expressando tanto a ansia de definie sua identidade num ambiente marcado pelas diferencas ccondimicas, sociais e raciais, Considero que, apenas nos contos de Clarice Lispector, Guimaties Rosa em Vidas Secas de Graciliano Ramos, encontrei algo se- melhante, E um romance que lide um sé félego porque além de me prender a atencio, me tomou pelos sentidos pata percorter cot Poncié os labirintos e as vias tortuosas da memoria Ave, palavral Maria Jost Somoriate Barbaza Universigy of Lowa gentin um ealafrio, Recordou o medo que tiveri durante toda a sua infincia. Diziam que menina que passasse pot debaixo do arco-iris virava menino, Ela ia buscar 0 barro 1a beira do fio e la estava a cobea celeste bebendo agua, Como passar para o outro lado? As vezes,ficava horas e hors na beira do sio esperando a colorida cobra do at desaparecer. Qual nada! O arco-itis era teimoso! Dava uma aflicio danada, Sabia que a mie estava esperando por cla, Juntava, entio, as stias entre as pernas tampando (6 sexo €, num pulo, com o coragio 20s saltos, passava pot debaixo do angord. Depois se apalpava toda. Lé estavam os seinhos, que comecavam a crescer. Li estava 6 pubis bem plano, sem nenhuma saliéncia a no ser os pélos. Poncid sentia um alivio imenso. Continuava meni- na, Passara ripido, de um s6 pulo. Conseguira engana 0 acco € ao virara menino. Naquela época Poncis Vicéncio gostava de see menina, Gostara de ser ela propria, Gostava de tudo, Gostava. Gostava da roga, do rio que cotria entre as pe- das, gostava dos pés de pequi, dos pés de coco-d tarro, das canas e do milharal. Divertia-se brineando com as bonceas de milho ainda no pé. Flas eram altas ¢, quas- do dava o vento, dangavam. Poncia corria ¢ brincava en- tre elas, tempo corria também. Ela nem via. © vento soptava no milharal, as bonecas dobravam até 0 chao. Poneii Vicéacio sia. Tudo era tio bom. Um dia, nessa brincadeira ela vin uma mulher ata, muito alta que che B siva até ao céu, Primeiro ela viu os pés da mulher, depois 25 pemnas, que exam longas ¢ finas, depois o corpe, que era transparente € vazio, Sorriu para a mulher, que the corresponden 0 sorriso. Quando contou sobre @ mulher altae transparente, a mac nio lhe den atencio, mas Poncia notow que ela se assustou um pouco. Dai a alguns dias, quando 0 pai chegou, ela escutou a mie pedindo-Ihe que contasse o milharal. O pai argumentou que nio era tem po de colheita ainda. A mie insistiu. E quando Poncia Vieéncio acordou no ontz0 dia, 0 milharal estava derru- bdo. As bonecas mortas pelo cho. Ela ainda olhow para 68 lados com esperanga de ver a mulher alta ¢ transparen- te, Nio viu, Tudo era um 36 vazio. Poncid chorou. Nunca mals ela viu a mulher alta, transparente ¢ vazia que ui dia sortira para ela entre as espigas de milho, Naguela tarde, Poneii Vicéncio olbava o arco itis ¢ sentia um certo temor. Fazia tanto tempo que ela niio via a cobra celeste, Na cidade, depois de tantos anos fora da terra, até se esquecia de contemplar 0 céu. Entretanto, desde cedo, a0 acosdar com a costumeira angistia no peite, sem querer olhow o céu, como se pedisse a Deus socorro, Estava, porém, arrependida. Um acco-itis boni- to, inteizo, bipartia a morada das aguas suspensas. Passou 4 miio pela testa como se quisesse apagar tudo que esti- sse pensando. Um receio antigo revisitou-a e insistin em seu corpo. Quando menina, peasava que se passasse debaixo do arco-iris poderia virar menino. Agora sabia que no viratia homem. Por que 0 reccio, entio? Estava cxescida, mulher feita! Olkou firmemente 0 arco-iris pen- sando que se virasse homem, que mal tetia? Relembrou- se do primeiro homem que conhecera em sua fara MW Va primeiro homem que Poncié Vieéneio co- hecera fora 0 avé, Guardava mais a imagem dele do aque a do proprio pai. Vé Vicéncio era muito velho. An- dava encurvadinho com o rosto quase no chic. Exa miudinho como um graveto, Ela era menina, de colo ain- ga, quando ele morreu, mas se lembrava diidamente de ‘um detalhe: em V6 Vieéncio faltava uma das mios ¢ vivia escondendo 0 braco mutilado pra tris. Ele chorava e ria muito, Chorava feito crianga. Falava sozinho também, O pouce tempo em que conviveu com o avé, bastou para que ela guardasse as marcas dele, Ela reteve na memoria 6s choros misturados aos risos, 0 bracinho cotoco ¢ as, palavzas no inteligivels de VO Vieeacio. Um dia ele teve tuma crise de choro ¢ riso to profunda, tio feliz, tio amarga € dessc jeito se adentrou pelo outro mundo. Ela, menina de colo, viu ¢ sendu 0 odor das velas acesas du- ‘6 braco inteizo do velho sobre © rante toda a noite. Vi peita. Viu © bracinhe cotoco dele. Sentiu 0 cheitn de bis- caito Frito, de café fresco dado para as mulheres © as criangas que estavam fazendo quarto 20 defunto. Sentin também o cheizo de pinga que exalava da garrafinha ¢ da boca dos homens sentados Ié fora com 0 chapéu no colo, Poncid Vicéncio, mesmo menina de colo ainda, nunca es queceu 0 dertadeiro choto ¢ riso do avd, Nunca esque- ceu que, nagela noite, ela, que pouco via o pai, pois ele trabalhava Ki na terras dos brancos, escutou quando ele disse para a mie que Vé Vicéacio deixava uma heranga para a menina 15 No dia em que Poni Vicéncio desceu do colo da mie ¢ comegou a andar, causou uma grande suspresa, Ela, até entio se recusava a assentars ,€ enggatinhas, cla nunca o fizera, Um dia, 2 mie com ela nos bragos estava de pé junto do fogio a lenha, olhando danca do fogo sob a panela fervente, quando a menina veio escorregan- do mole. Veio forgando a descida pelo colo da mie € pondo-se de pé, comecou as andancas, Surpresa maior no foi pelo fato de a menina ter andado tio repentinamente, mas pelo modo. Andava com um dos bragos escondido As cosias e tinha a mdozinha fechada como se fosse cots. Fazia quase um ano que V6 Vicéncio tinha morrido. To- dos deram de perguntar por que ela andava assim. Quan- do 0 avé morreu, 2 menina era tio pequenal Como ago- 12 imitava © av6? Todos se assustavam. A mie e a madsi- noha benziam-se quando olhavam para Poncis Vicéncio. SO 0 pai aceitava. $6 ele nio espantou ao ver 0 brago guase cor6 da menina. parecenca dela com o pai dele 16 (© homem niio parava em casa. Vivia constantemente 20 trabatho da roga, nas tereas dos brancos. Nem tempo para Gear com a mulher filhos o homem tinha. Quando ago era tempo de semear, era tempo de colheita € ele passava 0 tempo todo li na fazenda, (© pai de Poncia sabia ler todas as letras do alfabe to. Subia de cor esalteado, Em qualquer lugar que visse as letras, a5 reconhecia, Nio conseguia, porém, formar as silabas ¢ muito menos as palavras. Aprendera ler as letras ‘summa brincadeira com o sinhé-moco. Filho de ex-escra ‘vos, cresceta na fazeada levando a mesma vida dos pais, Ena pajem do sinhd-mogo. Tinha a obsigacio de brincar com ele. Era 0 cavalo onde 0 mocinho galopava sonhan- do conbecer todas as tersas do pai. Tinham a mesma ida de. Um dia 0 coronelzinho exigiu que ele abrisse a boca, pois queria mijar dentro. © pajem abdiu, A urina do ou- tro cala escorrendo quente por sua gocla ¢ pelo canto de sua boca. Sinhé-moco #, ria, Fle chorava € nao sabia © que mais Ihe salgava a boca, se 0 gosto da urina ou se 0 sabor de suas Kigtimas, Naquela noite teve mais édio ain: da do pai. Se etam livres, por que continuavam ali? Por ue, enti, tantos ¢ tantas negras na senzala? Por que to: dos nio se artibavam 3 procura de outros lugares ¢ tra balhos? Um dia perguntou isto a0 pai, com jeito, muito jcito. Tinha medo dos ataques dele. O braco cotoco do hhomem, ao bater, pesava como se fosse de ferro, Era cetteiro na pancada. Atingithe sempre na cabega, pro- 7 vocando wm gosto de sangue na boca. Perguntou € a respasta do pai foi uma gargalhada rouea de meio tiso € de meio pranto. O homem nio encarou o menino. Olhow 6 tempo como se buscasse no passado, no preseate ¢ 0 futuro uma resposta precise, mas que estava a lhe fugit sempre Pajem do sinhé-moco, eseravo do sinh6-mogo, tudo do sinhd-mogo, nada do sinhé-mogo. Um dia 0 coronclzinho, que jé sabia ler, ficou curios para ver se negro aprendia os sinais, as letras de branco ¢ comecou a casinar 0 pai de Ponci. © menino respondeu logo a0 ensinamento do distraido mestre. Em pouco tempo te- conhecia codas as letras. Quando sinhé-moso se certifi- cou de que o negro aprendia, paron a brincadeita, Negro aprendia sim! Mas 0 que 0 negro ia fazer com 0 saber de branco? © pai de Poncié Vietneio, em matérla de livros e letras, munca foi akém daguele saber. 18 g acta Vicénclo gostava de Bears da jancla olhando o nada, As vezes, se distraia tanto que té se esquecia da janta e, quando via, o seu homer esta- ya cheganddo do trabalho, Ela gastava todo 0 tempo com 6 pensar, com 0 recordar, Relembrava a vida passada, pensava no presente, mas nio sonhava e nem inventava ynada para o farata, O amanha de Poncid era feito de cesquecimeato. Em tempos outros, havia sonhado tantol Quando mais nova, sonbara até um outro nome para si Nio gostava daquele que the deram. Menina, tinha 0 hé- bito de ir & beiea do rio e li, se mirando nas aguas, gritava © proprio nome: Poncii Vieéneio! Ponci Victnciol Sen- tia-ge como sc estivesse chamando outra pessoa, Nio ‘ouvia 0 seu nome responder dentro de si, Inventava ou- tros, Panda, Malenga, Quiet, nenhumn lhe pestencia tam- bém. Ela, inominada, tremendo de medo, temia a btinea- deira, mas insistia. A cabega rodava no vazio, ela vazia se sentia sem nome. Sentia-se ninguém. Tiaha, entio, vonta- de de choros ¢ risos. (© homem de Poncid acabava de entrar em casa ¢ ‘iu a mulher disteaida na janela. Olhou para ela com édio. ‘A mulher parecia lerda, Gastava horas horas ali quieta olhando e vendo o nada, Falava pouco ¢ quando falava, as veres, dizia coisas que ele nfo entendia. Ele perguntava quando a resposta vinhs, na maiosia das vezes, compli cava mais ainda 0 desejado didlogo dos dois, Uma noite ela passou todo o tempa diante do espelho chamando por ela mesma. Chamava, chamava e nio tespondia, Ele 19 teve medo, muito medo, De manbi, ela parecia mais aca brunhada ainda. Pedia ao homem que aio 2 chamasse mais de Poncid Vieéneio. Ele, espantado, perguntou-lhe como a chamaria entio, Olhando fundo ¢ desesperada~ mente nos olhos dele, ela respondeu que poderia chama- Ia de nada. O homem de Ponca estava cansado, muito cansa do. Sua coupa empocirada, assim como 0 sex cotpo, potejava pd. Ele e outros estavam pondo uma casa, anti- an construcio, abaixo, Tarefa dificil, eada hora era um que pegava na marreta ¢ golpeava as patedes que re- sistiam. Ele se lemnbeava, a cada esforgo, do barraco onde moravam e que flumava a0 vento. Ao ver a mulher to alheia, eve desejos de trazé-ta a0 mundo & forea. Deu-lhe uum violeato soco aas costas, grtando-lhe pelo nome. Ela the devolveu um olhar de ddio. Pensou em sair dali, ir pata 0 lado de fora, passar por debaixo do areo-tis « vitor logo homem. Levantou-se, porém, amargueada de sev cantinho foi preparar a janta dele, 20 - oN tempo em que Poncid Vicéncio cava na beira do slo, se olhando nas dyguas, como se estivesse iante de um espelho, a chamar por si propria, ela ao squdova ainda muita estezas no pit, Fora ciada soe se 38 com amie. Tinka mais um irmlo que pouco brincava com ela, pois acompanhava o pai ao trabalho di voge as terra dos brancos. Ela ea mie fcavar das fe dias sem ver 08 dois. Nos tempos das chuvas, as vistas deles rareavam mais ainda. A mac fazia panclas, potes ¢ Dichinhos de barro. A menina buscava a argila nas mat zens do rio, Depois de seco, a mie punha os trabalhos para assar num forno de barro também. As coisinhas salam entio duras, fortes, custosas de quebrat, Poncié Vieéncio também sabia trabalhar muito bem © burro. Um dia ela fez um homem baixinho, curvado, agtinho, graveto e com 0 bracinho cotoco para tis. A ile pegov o trabalho ¢ teve vontade de espatifico, mas se conteve, como também conteve © grito. Passados uns dias, o pai veio da terra dos braneos teazendo 08 manti- mentos, O que havia com aquela menina? Primeiro andou de re nile andava com o coracio aflto indagador. pente ¢ com todo o jeito do av6... Agora havia feito aquele hhomenzinho de barto, vo igual ao velho, Ela havia enro- lado o trabalho guardando-o no fundo do caixote. E mesmo assim, parecia que ld de dentro safa ora tisos- lamentos, ora choro-gargalhadas. O que fazer com a cria Gio da filha? © que fazer com 0 Vo Vieéncio da filh Sim, era ele. Igualzinho! Como a menina se lembrava dete? au Elz era to pequena, tio de colo ainda quando o homem fez a passagem. Como, entio, Ponci Vieéncio havia guar- dado todo 0 jeito dele na meméria? O pai de Poncit Vicéncio olhou o homem de bar 10 que a menina havia feito ¢ reconheceu nele 0 seu prd~ prio pai, Pegou o trabalho ¢ examinou bem. Os olhos, a boca, as eostas encurvadinbas, a magrezs, 0 bracinho cotoce, tudo era igual, igualzinho. A boca ensaiava sorsi- 05, mas no rosto, a expressio era de dor. Teve a seas Gio de que © homem-barro fosse ti € chorar como eta feitio de seu pai. Chamou 4 menina entregando-lhe © que cra dela, Nao fez nenhum gesto de aprovacio ou repro- wagio, Aquilo era uma obra de Poncia Vieéncio, para ela mestha. Nada que pudesse ser dado ou vendide, Voltou 4s costas filha e, entre os dentes, resmungou para a mu Iher que no sabia por que ela se assustava tanto. Para o pai de Poncid, pouco se dava a menina se parecer com o pai dele ou niio, Fle no parecta, Nio tinhs herdado nada do velho ¢ nem quetia hesdar. Aliés, nem sabia se um dia tinha amado ou odiado o pai. Tivera visios sentimentos em relagio zo homem. Quando me nino, ainda pequeno, tvera, alver, medo, respeito, amor. Depois de tudo, pavor, édio, © vergonha, muita vergo. ‘nhs, quando © pai comegou a rit ¢ chorar ao mesmo tempo, como também a dizer coisas nfo inteligiveis, A medida que 0 velho piorava, comecou a desejar ardente- ‘mente que ele morresse. Chegou um dia até a pensar em ‘mati-lo, Sabia que a vida dele estava por um triz, bastava tum empurtio, seria 56 recordar o fato. Virias vezes ten- tou fazer isto. Um dia, no final da tarde, pegou 0 pai 2 pelos ombros, sacudiu, sacudi, sacudi, ©. homem ria ¢ chorava desesperadamente, Entretanta, a morte nha. O pai de Poncia sabia, porém, como abreviar a vida do velho. Era s6 trazer a atengao dele para o fato, Iniciow as perguntas, desist. Sabia que se fizesse o pai relembrar de eudo, se ferisse a meméiria dele, o homem morreria de vez. Morreria de todas as mortes, da mais profunda das mortes. Absiu a boca, novamente ensaiou as palavras, Parou. Relembrar o fato era como sorvera propria morte, cera matar a si préprio também. g oncid Vicéncio interrompew os pensamen- tos lembransas, levantou-se endireitando as costas que ar. diam pelo soco recebido do homem e foi vagarosamen- te armumar a comida. Olhou para ele, que se havia assen- tado na cama imunda, ¢ se sentiu mais ainda desgostosa da vida, O que ela estava fazendo ao lado daquele ho- mem? Nem prazer os dois tinbam mais. Lembrou-se, en +o, de quando viveu o peazer pela primeira vez, Estava com uns 11 anos talvez. Tinha acabado de passat por debaixo do arco-itis. Apavorada, deitou-se do oatzo lado 0 chio, e comecou a apalpar 0 corpo para ver se tinha softido alguna modificagio. Quando tocou ld entre as, pPernas, sentiu um ligeiro arrepio, Tocou de nove, embora sentisse medo, estava bom. Tocou mais e mais li dentro ¢ © prazer chezou apesar do espanto ¢ do receio, Li em cima a cobra celeste, com 0 seu corpo, curva ameacado- 1, pairava sobre ela © gtito do homem seclamando da lerdeza de Poncid fez com que, mais uma ver, ela intertompesse as Jembrangas,Irritou-se, mas nio disse nada, Engolia a rai- va em seco junto com o siléncio. Remexen o feijio. O foge dancou sob a panela como se quisesse incendiat tudo, Apesar da ida ¢ vinda dela no tempo, em poucos instan tes a janta Bow pronta. Foi até a prateleira, pegou uma fade olbic vain comepou a servi cons pu ele. Da panela subia cheiro algum. Teve diividas se come- 15a 0u aio, Pegou um punhado de torresmo com as pon- 24 tas dos dedos, levou A boca € fico mordiscan homem comia sentido na cama, com a lata na milo. ¢ imento descin iNCOLFetO, tOrtO, S€C0, provocando uma dose entre uma colherada © outra, Fla foi ao pote de parro e voltow com uma canequinta de lata cheia de gua, (© homem bebeu 0 liquido de um gole s6. Abandonow a hata com um resto de comida no chio, Arrancou a cami- sa, a cilga ¢ de calgio, que cheirwva a sujo, afundou 0 rosto no travesseito cheio de molambos, e em pouco tempo dormit, Poncid Vicéneio correu vagarosamente os olhos pelo cimoda onde moravam, © po avolumava-se por ima do armirio velho, Pelos caibros do telhado acurmnu- favam-se teas ce aranhas © picumis, As trouxas de rou: pas Sujas cesciam dias e dias pelos cantinhos do quarto, UAs folhas de jornal, que foreavam prateleiras do armario, jf estavam amareladas pelo tempo e rofdas nas pontas pelos ratos ¢ bararas. Toda noite cla contemplava 0 des- Ieixo da casa, « falta de asseio que Ike incomodava tanto, mas faltava-lbe coragem para mudar aquela ambiénci. Fechou os ollios ¢ relembrou a casinha de chao de bareo batido de sua infincia, O solo era todo liso ¢ por igual, meso seco dava a impressio de ser escorregadio.Tado aliera de barto, Panelas, canecas, enfeites c até uma colher com que a mie servia o feijfo, Ao se lembrar da mie, sentiu um aperto no peito. O que acontecera com ela? Tetia morrido? Precisava levantar algumas histérias do pasado. Mas como? E 0 irmio? Vivera pouco com ele ‘na inGincia, muito pouco, mas das raras vezes que se ex- 25 ram, gostavara tanto, Ezam seeos de carinhos ex plicitos; entretanto, mesino sem se tocarem nem se abra ccarem sequet, se amavam muito. Sabia que ele também saira varando o mundo, Conseguira? Seca que conseguira it além? Ou estaria reduzido, pequeno, mesquiaho, em tum barraco qualquer, feito ela? Poneid havin tecido uma rede de sonhos © agora via um por um dos fios dessa tede destecer & tudo se tornar nm grande burace, um grande vazio, 26 Ae Cos tempos de toga de Poncii, nos tem- os de casa de pau-apinac, de chio de bara ba, de Ponecas de espigas de milho, de arco-irs feito cobra co- atobeade Agua 10 fo, a menina gosta de see mulher, era feliz. A mie nunca reclamava da auséncia do homem. ‘Vivia entretida cantando com as suas vasilhinhas de barro, Quando ele chegava, era ela quem determinava 0 que 0 errttme faa em casa saqueles dias © que deveia fazer duancio epressasse Ii pata a teres dos brancos. © que Preris dizer para cles. © que devern razer da préizna vex que voltasse para casa, Enrolava as vasilhas de barro ‘em folhas de bananeira e palhas secas, apontava as que ‘om para veader estipulava o prego. Dis que cram para dar de presente, nomeava quem setia 0 dono. O pal, Bs vezes, discotdava de tudo. Do que iria fazer naqueles dias de estadia em casa, do preco estipulado para as pe fs € das pessoas que ganhariam os presentes. A mie re- petia o que havia dito anteriormente, O pai fazia ali o que cla havia pedido e sala sem se despedir dela e da filha, puxando 0 filho pela mio. A mie, da soleira da porta, tbengoavao filho e desejava em vor alta que cles sepa gem a caminhada com Deus. Voltasa depois eantaolan- do pata o interior da ass, Pon Vieéncio sorta, O pai ‘era forte, o irmio quase um homem, a mie mandava € cles obedeciam. Exa tio bom ser mulher! Um dia tam- bém ela teria um homem que, mesmo brigando, haveria de fazer tudo que ela quisesse e teria filhos também. Poragusles tempos, pelo interior andavacs uns mis sionitice, Un dia 2 noticia corteu. Els iriam demorar Pa porali e montariam uma escola. Quem quisesse aprender a ler, poderia iz. Poncié Vicéncio obteve 0 consentimento da mile, Quem sabe a menina um dia sairia da roca e iria para a cidade, Entio, carecia de aprender a ler. Na rosa, aio! Outro saber se fazia necessirio. © importante ns roga era conhecer as fases da lua, 0 tempo de plantio e de colheita, o tempo das aguas e das secas. A gacrafada para © mau da pele, do estmago, do intestina e para as exce- Héncias das mulhetes. Saber a benzedura para 0 cobeeiro, para 0 0880 quebradio ou rendido, para 0 vento virado das ctiangas. O saber que se precisa na roca difere em tudo do da cidade. Era melhor deixar a menina aprender ler Quem sabe, a estrada da menina seria outea Poneli Vicéncio vencia as dificuldades. Aprendeu oabeceditio, conhecia as letras em qualquer lugar. Quan- 0.0 pai chegava, fcavam juntos lendo as letras na carta, Enquanto o saber do pai, em matéria de leitura, se estacion nara no reconhecer as letras, o da mening ia além, Come- cou a formar as silabas e quando ja estava formando as palavras, a misso acabou, Os padres foram para outros Povoados, tendo deixado os casais amigudos, casados; as cziangas pequenas, batizadas; as maiores tendo comunga- do pela primeira vez € os doentes ungidas. Doentes how ve que sararam com as garrafadas de Néngua Kainda, levantaram-se da cama ¢ tempos de vida tiveram para pecar outcas vezes, Quando 0s padres particam, depois de terem cum- prido todos 08 seus oficios, Poncit logo percebew que nto podia ficar espetando por eles para aumentar © seu saber. Foi avangando sozinka ¢ pettinaz pelas folhas da cartilha. E em poucos meses ji sabia ler. 28 acoseumava com 0 pedprio nome. Continuays achando Some vazio, distante. Quando aprenden a ler e a escre- ver, fo pior ainda, 20 descobrit 0 acento agudo de Poncié. ‘As vezes, num exercicio de autoflagelo ficava a copiat 0 ‘ome € 2 repet-lo, na tentativa de se achar, de encontrar ¢ sen cco. F era t20 doloroso quando grafava 0 acento. Era como se estivesse lancando sobre si mesma uma li- {nina afiada a torturar-lhe o corpo. Poncia Vieéncio sabia gue o sobrenome dela tinha vindo desde antes do avé de sen av6, 0 homem que cla havia copiado de Sua meméria fo bacro e que a mie nao gostava de encarar. O pai, ini todos continuavam Vicenio Na aesnatra dla reminiscéncia do poderio do senhor, de um tal coronel ‘Vicéacio. O tempo passou deixando a marca dacueles que se fizeram donos des terras e dos homens. E Poncii? ‘De onde teria surgido Ponci? Por qué? Em que memé- sia do tempo estaria escrito o significado do nome dela? Poncia Vicéncio era paca ela um nome que nfo tinha dono, ‘A menina ouviea dizer algumas vezes que V6 ‘Vicéncio havia deixado uma heranga para ela. Nao sabia fo que era heranga, inka vontade de perguntar ¢ no sabia como. Sempre que falavam dele (falavam muito pouco, muito pouco) a conversa era baixa, quase cochichads € quando ela se aproximava, calavam. Diziam que cla se parccia muito com ele em mudo, até no modo de olhar Diziam que ela, assim como ele, gastava de olhar 0 vazio. Poacii Vicéncio nio respondia, mas sabia para onde esta- va olhaado. Ela via tudo, via 0 prOprio vazio. susto dela, no momento, talvez tivesse sido maior que a dor. Semanas antes ele tinha estado em casa capinando 0 rato que teimava em crescer em volta, servinda de es- conderijo para as cobras, Havia levado também os bar- ros que a mulher trabaihara para vender. Saira de casa bom ¢ se nio fosse a auséncia que softia, embora nunca reclamasse, da mulher ¢ da fitha, poderia dizer que partira «quase feliz, O pai de Poncié no era dado a muitos risos, caladio, quieto, guardava para si os sentimentos. Quando menino, no, Apesar dos mandos do sinhozinho © da apatente obediéncia cega, que era obsigado a demons- trar, ele revelava as guas tristezas com imensas légrimas, assim como gtitava alto os seus risos. Entretanto, foi cres- cendo ¢ aprendendo a disfarcar 0 que li de dentro vinha, Nio chorava e também guardava o ris. Eo que fazia, se descontente estava, era resmunga:, mas tio baixinho e com os labios t20 cerrados, que os resmungos cafam para si proprio, numa discordncia funda ¢ mula. E numa tarde clara, em que 0 sol cozinhava a terra © 0s homens trabalhavam na colheita, enquanto todos entoavam cantigas titmadas com 0 movimento do coz po na fungao do trabalho, naquela tarde, o pai de Poacia Vieéncio foi se curvando, se curvando ao citmo da misi- ca, mas nio colhew o fruto da terra, apenes A terra se dew, (Os companheiros, entretidos na lida, nio perceberam. E s6 momentos depois, no meio da toada, escutararn ura 30 tom, um acento diferente. Exam os solugos do irmao de Poncié deitado sobee © corpo do pai, que estava de ‘emborcado 10 chiio. Dias, quase um més apés, foi gue o fmeniao tomox coragem de ir a casa © contar 4 mic ¢ 4 jrma o sucedido. A mulher, quando avistou 0 vako do fiho sozinho, saiu desesperada 40 encontro dele. Abra ou 6 menino e depois, enta e solenements, abragou 0 azio como se estivesse abragando alguém, Nio pergun- tou fada. Sabia de tudo, Naqueles dias sonhara virias ve- zes com 0 seu homem. 6 no conseguia ver 0 rosto dele, Ora cle estava de costas, ora com 0 chapéu tio afun dado na eabeca que chegava a the cobsir a face, E numa tarde, em que o tempo estava claro ¢ quente, ela escutou cantigas, choros ¢ lamentos. Nos lamentos reconheceu a yor do filho. Mie ¢ filho vieram andando de mios dadss. De pois que 0 flho crescera, este ciao primeito gesto zasga~ do de catinho da mie. Ela apertava a mio do flho, como se tivesse medo de ele fugir também. Chamou a menina e disse-the que © pai no voltaria mais, Ele havia feito a grande viagem. Poncii, primeiro, expesimentou um senti ‘mento de taiva. Como o pai poderia ter feito aquilo? Ela cconhecia pessoas que tinham feito a derradcira viagem, mas que ficavam muita tempo fazendo a despedida. Ex- perimentavam antes as garrafadas de Néngua Kainda. E, 36 depois de todos se acostumatem com 2 idéia da par tida e elas proptias também, é que se despediam. Poncia ficou muito tempo, anos talvez, esperando que © pai pus desse surgir, retornar a qualquer hora € por qualquer 31 motivo, A mie, talvez, partithasse desta mesma sensagio, pois sempre conservou as coisas do homem no mesmo lugar. F nos dias em que o filho regressava do trabalho, la esperava por ele na soleira da porta e depois que 0 abengoava, caminhava para frente cinco passos © com tum gesto longo ¢ firme abragava 0 vazio. A mulher aio acreditava que seu homem tivesse apartado de ver, 22 P., Vicéncio deitou-se na cama imunda ze lado do homem e de barriga para cima ficou com o olhar eneontrando o nada, Veio-the a imagem de porcos no chiqueiro que comem e dormem paca serem sacriti- cados um dia, Seria isto vida, meu Deus? Qs dias passa- ‘vam, estava cansada, fraca para viver, mas coragem para morret, também no tinha ainda. © homem gostava de dizer que cla era pancada da idéia, Seria? Seria! As vezes, se sentia, mesmo, como se a sua cabeca fosse um grande vazio, repleto de nada ¢ de nada. Quando Ponciii Viebacio resalven sais do povoa- do onde aascera, a decistio chegou forte ¢ repentina. Es- tava cansada de tudo ali, De trabathar 0 basso com a mie, de ir ¢ vir 3s tertas dos beancos € voltar de mios vazias. De ver a terra dos negros coberta de plantagies, cuidadas pelas mulheres ¢ crianeas, pois os homens gasta- ‘vam a vida trabalhando nas terras dos senhores, ¢ depois, amaior parte das colheitas ser entregue a0s coroneis. Can- sada da luta insana, sem gloria, a que todos se entregavam. para amanhecer cada dia mais pobres, enquanto alguns, conseguiam enriquecer-se a todo o dia. Ela acreditava que poderia tracar outtos caminhos, inventar uma vida nova avancando sobre o futuro, Ponci partiu no trem do ou- tro dia, pois tio cedo a maquina nio voltaria 20 povoa- do. Nem tempo de se despedir do iemao teve. E agora, ali deitada de olhos atregalados, penetsados no nada, per gguntavs-se se valera a pena ter deixadio a sua terra. O que 33 acontecesa com os sonhos tio certos de uma vida me. nor? Nio eram somente sonhos, eram cextezas! Certezas que haviam sido esvaziadas no momento em que perdera © contato com os seus. E agora teico morta-viva, vivia, Dor o wem foi diminuindo a mascha © pa- souna plataforma, Poncia Vicéncio apertow contra 0 peito a pequena trousa que carregara no colo durante a viagem Jateira. Levancou-se alta e othon desesperada i fora pro- cura de alguém. Nio divisou um rosto conhecido, expeti- mentou um profunco pesar, embora soubesse de ante- pid que no havia ninguém esperando por ela. Nao co: nhecia ninguém, nunca viera até a cidade ¢ todos os sews pareates haviam Gado para tris. Nenbum deles havia ou sado tamaaha aventura, Estava escurecenda, Poncié no sabia bem o que fazer, Caminhow ripido ealcangou 0 lado de fora da estacio, Quis olhar pra tris, mas temeu o desejo de recv0. Olhou em frente, uma imponente catedal, com sas lazes acesas, espernva pelos erentes, no final da aveni da, O telégio da matriz era enorme, de longe conseguit ler ashoras. Exam seis, Poncié tinha, entio, 19 anos, sendo ca pazainda de inventar sentimentos de seguranca, Caminhow firme, sempre em frente, ¢ 56 parou quando chegou 4 es cadatia do templo. ‘A psimeira impressio sentida por Poncia Vieéncio ro interior da igreja foi de que os santos fossem de ver- dade. Eram grandes como as pessoas, Estavam limpos & penteados. Pareciam até que tinham sido banhados, Bles deveriam ser mais poderosos do que 0s da capelinha do lugarejo onde ela havia nascido. Os de la eram minguadinhos € malvestides como todo mundo. Quan: do as luzes das velas iluminavam os rostes deles, podia-se 34 45 ver que eles tinham o olhar aflito, desesperado, como os pecadores ali postados em Indainha. Os santos daquela catedral, nfo! Eram ealmos, Poncid olhou as pessoas 10 redor. Combinavam com os santos, limpas € com tercos brilhantes nas mos, Lembrou-se do seu de lagrimas de Maria, E com um movimento sipido rou as contas escuras, protetoras de seu corpo, do pesco- co. Nio teve coragem de debulbar 0 rosirio em piblico AAs contas eram, © 0 enfiou bem lino fando da trouxa, Ajoethou-se ten- tando rezar a Ave-Matia, inspirado coragio de Poncis ditava fururos su- cessos para a vida da moga, A crenga esa 0 tinico bem que ela havia trazido para enfrentar uma viagem que du- rou teés dias ¢ ads noites, Apesar do desconforto, da fome, da broa de fabs que acabara ainda no primcito dia, do café ralo guardado 1a gurrafinha, dos pedagos de rapa- dura que apenas lambia, sem 20 menos chupar, para que eles durassem até 20 final do trajeto, ela trazia a esperanca como bilhete de passagem, Haver, sim, de tragar 0 seu destino, Poncia deixara a mie wiste, sozinha, Acabrunhada, ela reclamou da saudade que ia sentir da filha, quando 8 ‘moga lhe falou da inesperada decisio de partir. Advertiu- Ihe ainda do que seria o viver na cidade. Poneié tenrava consolar a mie dizendo que um dia voltasia para buscé-la € a0 irmio também. E que, juntos, tados seriam felizes Poneia Vieéncio no entendia por gue no povor- do as pessoas temiam tanto a cidade. Algumas pessoas salam ¢ ficavam bem; entretanto, eles 86 relembravam, 6 36 epetiam os cas08 infelizes, as historias de feacasso, Viviam contando 0 acontecide com Maria Pia, A mocs havia se comaminado com uma doenga do filho do pax eo, O rapaz cstava mau € falou de amor com ela, Fle quedia, ela quetia. Nio precisava de ninguém saber, prin- cipalmente 03 pais deles, Podia ser ali mesmo, no quarto dela, nos fundos da cozinka. Eo Raimundo Pequeno? Enganou-se com os amigos, crendo nelese seduzido pelo dinheiro que chegava tao ripido, aceitou vender tudo 0 aque eles traziam. Chegou até a levar algumas coisas para a roca. Tuco muito bonito. Cortes de fazenda, enxoval, rou- pas, relégios, bolsas e até um ridio. Soube-se depois que ‘os amigos de Raimundo fugiram ¢ ele havia sido preso, Outros € outros casos de conhecidos que saiain do povoado 2 caminho da cidade e eam roubados na estacio de chegada. Perdiam 0 pouco que tinham ¢ ali mesma viraram mendigos. Outros no conseguiam t1a- batho ou ganhavam pouguissimo € nfo inham como vie ver, A vida se tornava pior do que aa roga. Fla sabia de muitos casos tristes, em que tudo havia dado errado, Pro- curou sc lembrar de algam que tivesse tido um final feliz Nao lembrou. Esforgou mais e nto atinoa com nenhum. ‘Nio esmoreceu, Relembtam tanto, fulavam tanto dagus les casos tzistes, que até cla s6 se lembrava deles. Nio tinhe importincta. O caso dela, quando voltasse para bus- cer os seus, haveria de ser uma histéria de final feliz ca g clatidade da igeeja, a musica bonita que cantavam Ié em ‘cima, « coupa limpinha do padre, a beleza dos santos © as mulheres tio bem vestidas que estavamn ao lado dela, nido isso a distraia, Comegou a oragio varias vezes, se perdea- do sempre no meio das palavess. Ficou muito tempo dentzo da igreja. Era tudo td0 belo, Deus bem que deve. sia gostar de todo aguele faxo. ‘Aos poucos o som do coro foi diminuindo. As pessoas saindo e as luzes se apagindo, Ao dar por si, a Jgreja estava quase vazia, uma pessoa ali, outra acola. Ten- tou conecatrar-se de novo na oragio, Fechou os olhos e conseguit terminar de sezar a Ave-Matia. Quando aca- ou, sabia que devia fazer alguma coisa. Sair da igreja € buscar onde dotmix. $6 entio se assustou com 2 cora- gem que tivera, Resolvera tudo tio répido, Havia arru- mado suas poucas coisas de sopetio e, aum repente, co- ‘municon logo a mie a decisio de partir. Tinha de ser breve, muito breve. Nao podia ficar ensaiando despedi- das. O trem parttia no outro dia cedo. Se perdesse aque le, 6 dai a alguns tantos dias, quase um més, Deixava um abrago para 0 irmio, no poderia ir is terras dos brancos procusar por ele. ‘A mie de Poncid olhou meio incrédula para a moga, 20 onvi a fia falae da decisao de partir. Por que uma ida to repentina, como um gesto de quase fuga? Poncia nto conseguin explicar que sua urgencia nascia do medo de 38 do conseguir partir, Do medo de recuar, do desesperc por aio guste fiearalrepetindo a histria dos seus. Agora a cidade, sozinha, para onde devesia i? © que dev faver? Ja perdeza muito tempo contemplando cada de: ihe da fé externada naquela casa de Deus. Escutoa 0 ba- ralho de portas pesadas se movimentando, Era 6 sactis: to que fechava a igreja, Confusa, saiu sem saber que rumo tomar 39 dade acabou sendo ali mesmo na porta da igreja. Viu 0 sactistdo fechae a porta. O mogo também a viu abracada } 4 trousa de seus poucos pertences. Quis pedir alguma informacio, perguntar pelo padre e pedir 2 caridade de algum alimento e de um gole d agua, mas nfo teve cora- gem. Algumas veves, ela havia passado a noite em cla- 10, em festa ou veldrio, mas nucica Sovinba. Seatia frio € mede, Aos poucos foram chegando companhia, Mend. ‘gos, criangas, mulheres ¢ homens, Vinham alegres, riso- 7 nnhos, apesac do desconforto e do frio. Poncia descobdia alguns ja deitados, agasalhados em jotnais ¢ senti um calaftio, Lembrou-se dos santos que estavatn li dentro, das velas ¢ dos casticais, dos vitrais coloridos, dos bancos largos e lustrosos de madeira. Reviu o chio liso, brilhante, quase escorregadio da igreja. Olhou novamente pata os lados, todos calmos, muitos até dormindo. Ela abriu a touxa, tirow o tergo de lagrimas de Nossa Senhora, bei- lando respeitosamente as contas eseutas que se dluiaan aa cot mesma da noite, benzeu-se © comegou a rezar 2 Ave~ Maria, noite passou lenta e friorenta, Poncié escutou to- das as badaladas do sino da igreja e assustou-se com to- das. Ficow relembrando a sua infiincia, os casos da roa, 108 fatos de vida € de morte. Lembrou-se da mulher alta, transparente ¢ vazia que tina sorrido para ela um dia no meio do milharal. Lemibrou-se do vel6tio de V6 Vieéncio, 40 do cheiro ¢ da luz da vela, Lembrou-se de que sempre ouviea dizer que 0 ave deixara uma heranca para ela. Les- brou-se do pai que saira para trabulhar e que no voliara aca mais. Lembrou-se ainda do trabalho que fizera no barro © que todos diziam ser V6 Vieéncio. Apaipou trousa. Que pena! Havia esquecide o homem-barto em casa, Veio-lhe a lembranga do ar afito e desesperado da mie na hora da partida, Nesse recordar, misturou-se 0 rosto do irmio, que ela jé no vin hi mais de um més. Seniiu um peso no coragio, uma cristeza funda, umn mau pressigi. Levantou-se aflia. Queria ir. Aonde? Sentou-se novamente. Lim mendigo dormia profundamente do lado dela, mas de vez em quando se batia todo. Desejou estar no trem, estar de volta, Escondeu 0 rosto sobre a trouxa que estava no colo ¢ bem baixo, quase silenciosamemte, quase escondida de si préptia, chorou, Poncif Vieéncio acordow com barulho de portas, se abrindo. A casa dk ‘Mulheres idosas, ainda com o ar sonolento, entravam pidas, cada qual patecendo querer ser a primeira a cam primentar Deus. Os mendigos, que 4 noite se haviam es- tendido pelas escadarias, se encolhiam ou se Jevantavarn para dar passagem aos fis, que chegavam contritos, para assistrer & primeira missa do dia, Eram 6 horas da ma hi, Muitos deles comecavam a se dispersat, principal- mente as cviancas. Os velhos se encostavam por all mes mo c estendiam 05 chapéus ou as latinhas (de goiabada vazia) onde, de ve? em quando, caiam algumas moedas. Condoida da sorte deles, Poncia catou as suas iltimas moedas ¢ oferecen a alguns, se absia para acolher os iis. 41 Procurando acordar a coragem que havia ador- mecido sob 0 efeito do medo, Poncié se dispés a indagar As senhoras que safam da igreja, se nfo estavam precisan. do de alguém para trabalhar. A cada crist, a pergunea era feita de sopetio, pois podria ser que a fala ficasse soter rida na garganta. Quando saiv a primeira, ela se aproxi- mou tipido, mas a moga seguiu em frente, e quando Poncia conseguin abrit 2 boca, a dona ja estava longe. E assim foi com outras. Decidiu, entio, esperar com as pa lavras arrumadas, Distanciow-se da porta principal da igeeja € veio se ajuntar ao grupo de pedintes que se havia desta- cado umn pouco, para dividir alguns pedacos de pio entre eles. Fscotheu uma mulher de certa idadle, que se patecia com sua mie, para poder exercitar 0 treino de aborda- gem na solicitagio de trabalho. A pedinte clhou para Poncia € sotriu, dizendo que nfo tinha trabalho nenhum para ofereces a moga, mas, se quisesse, poderiam pedir esmo- las juntas. Era s6 ela fechar 05 ollios com cuidado, sem apertar muito ¢ todo mundo daria uma ajuda para uma mulher tao jovem e cega. Poneid se assustou 20 imaginar a cena, Nio, ela nko era cega. Enxergava de olhos abertos ¢ fechados. Desde pequena, assistia a coisas que muita gente no percebia Voltando para a porta principal, Ponci se postou novamente 4 espreita. Assim que saiu mais uma fiel, ela avangou gaguejando e conseguin falar de sua necessidade de arcumar trabalho. Nao tinha experiéncia de cuidar de casas de ricos, portm sabia lidar muito bem com o bar: 20, A. moga ouviu tudo pacientemente € na final disse no estar precisando de ninguém, Desapontada, Poneié olhou 2 interior da igreja, Poucas pessc fe, dentre elas 56 uma mulher, ¢ foi nela, justo nel, que restavam, trés somen, Poncid depositou as suas dkimas esperancas. Poncié aguardou essa ultima com as paluvras jd des gartando dos libios, Tinha de ser breve, Mala dona sau, fa Ibe tocou 0 brago. Explicou-lhe que estava chegando ‘capital. Viera de trem, Aquele trem que passava no po. yoado de “Vila Vicéncio”. Fstava a procura de trabalho. ‘A dona olhou pasa ela de cima a baixo, Disse nfo estar precisando, mas uma prima talvez estivesse. Escreveu em tum pedacinho de papel o endereco ¢ depois leu bem alto a Poncid Vicéncio, pedindo para que el fosse li, ainda paqaela manhi. Poneii, antes de buscar a maneita de che- gar ao eadereco, leu e releu o que estava escrito no papel- nko: “Rua Prata de Lei, n° 39, casa 7 Baisro das Alegrias”. Dobrou em seguida o escrito e guardou nos seios. Eestava feliz, sabia ler ‘Aos poueos, Poncii foi-se adaptando ao trabalho. Ficou mesmo na casa da prima da moca que ela havia encontrado na igeja. Foi aprendendo a linguagem dos aftzeres de uma casa da cidade, Nunea esquecest 0 dia fem que a paszoa lhe pediu para que ela pegasse 0 peignir, ¢ atendendo prontamente 0 pedido, ela levou-the a sabo- neteica, Errava muito, mas ia aprenclendo muito também, Estava de coragio leve, achava que a vida tinka usna sai- da, Trabalharia, juntaria dinkeizo, compratia uma casinha fe voltaria para buscar sua mie ¢ seu irmio, A vida the patecia possivel ¢ facil 43 € homem de Poneid Vicéncio remexeu-se na cama, O movimento dele foi até 20 fundo do estado de torpor em que Poncié estava entregue, despertando-a de seus pensamentos-lembrangas, Fle, ao lado dela, ressonava trangiilo, como se estivesse com a vida resolvida, Deas meu, seni que o homem ni desejava mais nada? Pata cle bastava o barraco, a comids posta na lata de goiabada varia? © p6, a pocira das construgies civis, 0 gole de pinga nos finais de semana? © papo ripide com os ami- gos? Sexi que 6 isso bastava? As vezes, ea percebia nele uum vislumbre de tristeza. Tinha vontade entao de abrir 0 peito, de solar a fala, mas 0 homem era tio bruto, tio caludo. Nem quando ela 0 conheceu, nem quando ela e ele sortiam ¢ se amavam ainda, Poncia conseguiu abrit para ele algo além do que seu cospo-pernas. AS vezes, rentava, mas cle sempee cade, silencioso, morno, Muitas vores nem o prazer era separtido, Depois entio, tha, zelembrava com o pensamento € com as mios 0 prazer que sinha tido um dia, quando cheia de medo e de desespero se tocou pasa se certificar que, apds a passa- gem por debaixo do angots, ainda continuava menina . ONE pecs vxs gue Poe Vins sentiv 0 vazio sa cabeca, quando voltou a si, ficou ator- doada, O que bavia acontecido? Quanto tempo tinha f- ado naquele estado? Tentou relembrar os fatos € no sabia como tudo se dera, Sabia apenas que, de uma hora para out, era como se um buraco abrisse em si peda, formando uma grande fenda, dentro e fora dela, um vi- ‘evo com © qual ela se confundia, Mas continuava, entre- tanto, consciente de mido a0 redor. Via a vida ¢ 0s outros se fazendo, assistia aos movimentos alheios se dando, mas se petdia, 30 conseguia saber de si, No principio, quan- do 0 vazio ameacava a encher a sua pessoa, ela fleava possuida pelo medo, Agora gostava da auséneia, na qual dha se abripava, desconhecendo-se, tomando-se alhela de sea proprio eu 49 C Ao umada a poucas coisas, Poncié ‘Vicéncio ia trabalhando ¢ juntando dinheiro para com. prar um bartsco. Eserevia muito para a mac ¢ para @ irmio. Como eles no sabiam escrever € nem o earcciso passava ld pelas terras dos negros, cla nunca soube se cles recebiam noticias suas. No dia em que o trem de ‘carsegamento que passava em Vila Vieéocio chegava a estagio, a moga ia por Id aflita em busca de algum rosto conhecido, de algum aventureizo que tvesse chegado a cidade. Jé estava ha tempo fora do povoado e tinha uma saudade intensa dos que tinham ficado, Queria voltar em J casa, mas como dizer para a pattoa? E também havia a promesse que havia feito a si propria: s6 retotnasia para’ buscar os seus. Um dia, porém, em suas andangas pela estagio, ‘anos ¢ anos depois, soube do acontecido, Seu irmio tam- ‘bém saa do povoado e nha vindo também para a mes: | ima cidade, Sua mie, nao querendo ficar sozinka, pusata a porta de casa, largara tudo e saira em busca no se sabe de qué. Dos filhos, do barro. Poneid Viegncio ganhou um aflitivo remorso no 3 peito. Sim, fora ela a causadora de tudo. Saira primeiro de casa, agora estava 0 irmio perdido na cidade © a mie sem remo ld pelo povoado, Precisava dos dois, 0 dinhei ro que possula jé dava para comecar a compra de uma casinha nas redondezas da cidade. Mas para que uma casa agora? Viveria sozinha? Nao haviam sido esses 05 seus 46 ccisava urgent no primeitos. -nte enconirar a mie " ven. Vel, eno, uma ila, uma pemissora de ridio local e chamar pelos dois. F, de vez em quando, cla propria escvtava, em quase desespero, 0 seupréprio e aflito pedido para localizar os seus. Respos- tw alguma chegava; entretanto, Poncié guardava a espe- tanga de zevé-los um dia ida. Ta proc a7 anos de trabalho, conseguin comprar um quartinho na periferia da cidade, reroraou a0 povoado. O tem era 0 ‘mesmo, com as mesmas dificuldades e desconforto, Des cia-se na entrada do povoado e caminhava todo o resto, horas ¢ horas a pé. Atravessava as terras dos brancos, viam-se terrenos ¢ tertenos de lavouras erguidas pelos homens que ali trabalhavam longe de suas familias Poncit se lembrou do pai, das auséncias dele durante os longos periodos de trabalho, Atravessou, depois, as tettas dos negros ¢ apesar dos esforcos das mulheres € dos filhos pequeaos que ficavam com elas, a ro¢e ali era bem me- nor € © produto final ainda deveria ser dividido com 0 coronel, Hii tempos e tempos, quando os negros ganharam aquelas tersas, pensaram que estivessem ganhando a ver- cadeiza alforria, Engano, Em muito pouca coisa a sin clo de antes diferia da do momento, As terras tinham sido ofertas dos antigos donos, que alegavam ser presen- te de ibertagio, E, come tal, podiam ficar por al, levan- tar moradias e plantar seus sustentos. Uma condicio ha- via, entretanto, a de que continuassem todos a trabalhar ras terras do Coronel Vicéncio, © coracio de muitos se repozijava, jam set livres, ter moradia fora da fazenda, ter as suas terras ¢ os seus plantios. Para alguns, Coronel \Vicéncio parecia um pai, um senhor Deus. © tempo pas sava c ali estavam os antigos esceavos, agora libertos pela “Lei Aurea”, os seus filhos, nascidos do “Ventre Livre” 48 am escravos, Son dos sob os efeitos de uma liberdade assinada por am: princesa, fada-ma vatinha de condia, Todos, ainda, sob 0 jugo de um po- fs seus metos, que nunca s 1, que do antigo chicote fer u der gue, como Deus, se fazia eterno. Depois de andar algumas horas, Poncii Vicéncio reve a impressio de que havia ali um pulso de ferro a segurar o tempo, Uma soberana mio que etérnizava uma condicio antiga. Varias vezes seus olhos bisaraim a ima gem de uma mie negra rodeada de filhos, De velhas e de vellos sentados no tempo passado e presente de um so- frimento antigo. Bisaram também a cena de peqenos, ctiangas que, com uma enxada na mio, ajudavam a lavrar terra A casinha de pav-a-pique de Poncii Vicéneio conti nuava de pé. © tempo de chuva comecava © um mato verde, ameacador, exescia a0 redor. Fla teve recsio de eo- tora, mas seguit adiante. Empurrau a porta, que abriu doce e lentamente, camo se a easa estivesse também a aguardar por ela. O chio de barro batido continuava limpo. As va- silhas de barto que a mfe fizia estavam arnamadas na pra telcira. Em cima do fogio a lenha estavam as caneeas de café do pai, da mie, dela e do irmio, Esquecidas de que a vvida eta outra no moment, teimosamente se postavam, como se tivessei i espera do liquido, Poncié correu eabrix a jancla de madeira. Lim cheiro bor de mato, tera ¢ chu- ve invadiu a casa. Com o coragio aos pulos, reconciliowse com o lugar. Continuou procurando ¢ remexendo nos ob- let0s tio conhecidos. Foi ao velho bad de madeira, tirou de iG algumas palhas secas ¢ vu, entio, li no fundo, o homew- 49 barre. V6 Vieéneio olhava para cla coma se estivesse per guntando mado Poneié Vieéncio tisou 0 homem-barzo de deato do bad, colocando-o em cima da mesa. Estava cansada, tinha fome, emogio e um pouco de fro. A cabega ton- reo Sentou-se répido num banqpiaho de maceits. Veio, cntio, a profunda auséncia, o profundo aparcar-se de s Quando Poncié voitou ass, era quase meia-noite, Quanto tempo ficara alheia? Nio sabia so ecrto, Chegata ali por volta do meio-dia e agora a noite ja se tinha dado. Lembrou-se dos biscoitos fiitos que a mie fazia. Abriu a trowxa (semelhane a que levata quando partiu) e de li tetitou um pedago de pio com lingiiga, Comeu a me renda desejando um quido, Saboreau na lembranga da lingua o gosto do café du mie. Contemplou a figura do homem-batto ¢ sentin que ela caisia em prantos ¢ tisos. 50 : y Q evensenin as ligeimas-risos do ave Poneti se cecordou de uma histiria contada por seu ir ssio, depois que 0 pai havia morrido. Ao contar, ele ha- via feito a recomendacio para que cla ndo perguntasse sada a mic. Eraa histdria do brago cote de V6 Vicéncio, ‘Vo Vieéncio tinba nascido um homem perfeiro, com peraas ¢ brucos completos. O brago cots ele se dex de: pois, eon um momento de revolta, na procura da most, No tempo do fato acontecide, come sempre os homens ¢ muitas mulheres erabalhavam na ters. O cana- vial erescia dando prosperidade 20 dono, Os engenhos de acicar enriqueciam ¢ foraleciam © senhor. Sangue € garapa podiam ser um liquido s6, V6 Viegacio com a ‘mulher € 0s filhos viviam anos ¢ anos nessa lida, Trés ou quatro dos seus, nascidos do “ventre livre”, entretanto, como muitos outros, tinham sido vendidos, Numa noite, 0 desespeto vencen. V6 Vicéncio matou a mulher e ten tou acabar com a propria vida, Armudo com a mesma foice que lancara contra a mulher, comegou a s€ autoflagelar decepando a mio. Acudido, ¢ impedido de continuar 0 intento, Estava louco, chorando e indo, Nao morreu 0 V6 Vicéncio, a vida continuow com ele, inde- pendentemente do seu querer. Quiseram vendé-lo, Mas quem compratia um eseravo louco € com 0 brago cots? ‘Tomow-se um estorva para os seahores. Alimentava-se das sobras, Catava os restos dos cies, quando aio era assistido por nenhum dos seus. Viveu ainda muitos & st suitos anos. Assstv, choranda e indo, 20s sotimentos, 205 tormentos de todos. E 36 quando acabou de rit to. dos os seus loueos risos «de chorar tados os seus insanos prantos, foi que V6 Viedncio se quedou ealmo, Poncit ‘ ‘céncio era pequens, muito pequena, ceianga de colo ain- que Poncié Vie8ncio no dormisa. Deitada de ollos abes tes, vigiou © noturno tempo. Contou os buracos da pa- rede ¢ das telhas, Reconhecen as lagartixas que brigavam 1a busca de aranhas e mosquitos. Distinguiu o barulho dos ratos. Ouviu os gemidos amorosos do casal do bar sico-a0 lado, Na manha quase desperta, no muito longe dali, 0 choro de fome ou frio de uma crianea invadiu repentina- mente 05 ouvidos de Poneié. Lembrou-se dos sete filhos que tivera, todos mortos. Alguns viveram por um dia Ela nio sabia bem por que eles haviam mortido. Os cin- co primeitos ela tivera em casa com a parteisa Masia da Jaz, A mulher chorava com ela a perda dos bebés, tio sacudidinhos, mas que nio vingavam munca. Os dois it ‘mos ela tivera no hospital. Os ‘morriam por causa de uma complicagio de sangue. De- pois dos sete, cla nunca mais engravidou, O homem de Poncii Vieéneio se mostrava também acabrunhado com a perda dos meninos. A cada gravider sem sucesso, cle bebia por longo tempo e evirava contato com ela, De~ pois voltava, dizendo que itia fazer outro filho e que aquele haveria de nascer, erescer e-virar homem. Poncia jé anda- ‘ya meio desolada, Abria as pesnas, abdicando do prazet ¢ desesperancada de ver se salvar 0 filbo ‘O homem remexen violentamente na eama. Absiu 0s olhos, contemplou Poncié ¢ balangou a cabega nutna surda reprovagio, 20 perceber que els passara mais uma icos disseram que eles 3 makesta (Quis ataci-l, mas vin que ela escava tio apitica, tio dis- tante como sempre, que sesolveu cutuci-la com os pés. Poncia acordon de seu alheamento, Levantou-se paceen- do desconhecer a presenca dele, encheu a latinha de dgua, revirou as cinzas do fogio buscando a brasa que ali havia guardaclo da noite antesior. Ela, como nos tempos de 1o¢a ainda, mesmo com a faeilidade do Fosfor, prefecia suardar o fogo sob as cinzas, para recomerar 0 novo dia Parou por alguns instantes perco do fog, olhando a Agua fervente, sem atinar que era preciso fazer o café. O ho- ‘mem toss li fora na fossa ¢ ela se sentiu chamada. Pre- parow 0 coador com o restinho de pé. Lim timide cheiro, ¢h bebida ameacou-se no ar, Lim liquido ralo foi servido para elc com um pedago de angu feito 20 dia anterior. Poncia se lembrou da mic preparando biscoitos para 0 paie para o irmiio, quando eles salam para 0 teabalho nas terras dos brancos. Lembrou-se do cuidado com que ela arramava 0s objetos de barto. Embalava tudo em folhas de bananeira ¢ palhas secas, entregando-os depois para 0 homem vender li na fazenda. Lembrou-se tambem de que, quando era pequena, vivia sonhando com o dia em. gue, grande, teria um homem e filhos. Lé estava ela agora com scu homem, sem filhos e sem ter encontrado um modo de ser feliz. Talvex 0 erro nem fosse dele, fosse dela, somente dela. Ele era assim mesmo, Durante todos aqueles anos, calado, do trabalho para casa, sempee na repeticio do mesmo gesto. Quando estava sem trabalho. algum, ficava preso dentzo de casa ou em algum boteco polis redondezas. Bebia, mes no muito. Tinha a natureza fracs, no er2 preciso muito para que fleasse tonto. Uld- sem qualquer dormida. Sentiu wi 34 mamente andava muito bravo com ela, por qualquer coi salhe enchia de socos e pontapés, Vivia a repetir que e estava feando Jouca, Mas de manha quando aconiava © guardava a marmita, enquanto bebia 0 gole ralo de café ffoesmo sea laiza esuvesse quase cheia dep, bbida cera sempze ra), ele era calmo, quase doce. Ble sentia sau- éades da outra Poneid Vieéncio, aquela que ele conhecera um dia. E se perguntava, sem entender, o que estava acon- tecendo com 2 sua mulher. Ela que antes era feito uma formiga laboriosa resolvendo tudo, Bla que muitas vezes saia junto com ele na labute diéria do fogio, da timpeza, Fas trouxas de roupa nas casas das patroas. O que estava 2 scontecendo com Ponci Vicéneio? ‘Nas manhis, quando © homem de Poncia saia para a lida didria, ela olhava para ele descendo 6 moro e sea cotagio dois. Nao, ele cambém nio estava feliz, Pensava, centio, em amenizat o sofrimento dele um pouco, Poderia pelo menos tornat a casinka dos dois um lugar prazeroso de viver. Mas que prazet, onde morava 0 prazer? As ve- zes, fieava marutando para quem a vida se tomava mais dificil. Para a mulher ou para o homem? Lembrava-se do pi, da histéria do pai dele, 0 Vé Vietncio, do irmio dela 9) que arsbalbava desde cedo nas tertas dos brancos ¢ que nem tempo de brincadeiras tivera. E acabava achando que, pelo menos para os homens que cla conhecera, a vida era tio difie quanto para a mulher. Naquele mo- | __ mento se enchia de bons propésitos Ia criar congem de “| —mudar tudo. Hoje, agora! Mas, quando dava por si, nem cla mesma sabia explicar. Encontrava-se quieta, sentada n0 scu cantinho, olhando pela janela o tempo a fora, en cguanto ia vinha no tempo ci dentro de seu recordar, 35 ae terra, € 20 chegar em casa, quedou-se de cepence tomada por aquele profando vazio, achou por bem passar a noite all mesmo. Os jirais com os eolchées de capim continua. ‘vam no mesmo lugar, no outro cémodo da casa, quarto onde dormiam ela ¢ a mie, depois da passagem do pai Q ismao, quando chegava, inha por cama aquele que ha- +a no canto da cozinha, perto do fogio. Lembrou-se de ‘que, quando era pequena, ela € 0 irmio dormiam juntos. Depois, quando ele foi ficando maiorzinko e jé acompa- hava 0 pai no trabalho das terras dos brancos, um ja foi armado 86 para ele, mas o itmfo preferia o antigo Nas ocasides em que voltava para casa com 0 pai, ficava disputando 0 jirau do cantino com Poncid. O calor que emanava do fogio transmitia uma sensacio de coafotto € seguranga. Ela se lembrou também de que o pai ¢ a mie ficavam conversando no outro cémodo até tarde da noite. Alias, 96 se escutava a vor da mie. Do pai so se ‘ouvia uma resposta ecoando: hum, hum, hum... Foi na ‘quela época que Poneié ecomegou a achar que homem era ‘quase mudo, Seu imo falava, mas parece que estava fi- cando mudo também. A cada retorno falava bem menos depois que o pai se foi, era como se o encanto falante do iemae tvesse partido também. Porém, cantava muito ‘como 0 pai. O homem entoava umas eantigas bonitas e ‘o filho acompanhava sempre. As veves, o pai cantava uns 56 E ersos ¢ ele va muito, mas gostava de cantar também. Na noite em que aconteceu o regresso, F sspondia cantando com outros. A mie fala. Vicéncio nfo dormis, Vive 0 tempo em que era toma- dap tada escutando, Escutou na cozinha os passos dos seus. Sentit 0 cheito de eafé freseo e de broa de fubs, feitos cla auséncia ¢ quando retomnou a si, ficou apenas dei- pola mile. Escurou o baralko do imo se levntando vi rias vezes, & noite, e urinando li fora, perto do galinheito Escutoa as toadas que 0 pai cantava. Escutou os galos cantando na madrogada, no galinheiro vazio, Escutou, € fo que mais escutou, @ o que profundamente eseutou fo- tam a8 choros-risos do homem-barro que ela havia feito um dia. ‘De mani cedinho, Ponci Vicéncio se levantou & procura de café. A caneca estava no Inger, em cima do fogio, porém vazia. Assustou-se, Durante a noite, ela vi vera a certeza de gue a casa estava habitada ¢ cheia de vida, Possuida por essa sensacio, esperou ainda um breve instante. Tinha a esperanca de ver a mie entrar com 0 pote de barro cheio d’égua que ela fora buscar no rio, Alguma coisa mexeu no fogio, bem debaixo da trempe, no meio das einzas. Foi, entio, que Poncis acordou para o momento presente, Nao havia Fogo, no havia a bbtasa acesa que sua mae guardava sob as cinzas, Uma co- bra movimentou-se lentamente dentro do fogio, Poncia colhou o bicho e no teve vontade de fazer nada. S6 entio percebeu que a casa estava vazia, A dor da auséncia da mie do irmio aconteceu mais forte ainda, Olhou para a mesa de madeiga ¢ J4 estava o hamem-barro entee prantos € 7 #8308, Pegou o trabalho ¢ enrolow, como fazia a mae, em folha de banancira e palhas secas guardando-o carinhosa- mente no fundo da touxa. Ena sua meméria veio o dia em que V6 Vieéacio morrera. Ela era bem pequena, meni- tnade colo ainda, ¢ ouvira os parentes dizer que o avd havia deixado uma heranga para ela Poncii Vicéncio apertou a trousa contra 0 peito € othow novamente para o fogio. A cobra estava calma, enrolada li dentro. Poncid saiu lentamente pasando a porta devagarzinho como se niio quisesse acordar ninguém. O céu estava escuro, choveria na certa, Ela ndo sabia por que estava indo, Sé dai a quase quatro semanas, 0 trem passaria de volta no povoado com destino & cidade, En tretanto, ela no poder ficar ali, em casa, sem a mie, 0 pai, o irmio ¢ até sem o avd. De noite, eles estiveram com ela 0 tempo todo, mas de dia, quando Poncid perce- bew, quando viu, tuto estava vazio. Nio suportava viver 2 auséncia deles, no jogo de esconde-aparece que eles es- tavam fazendo. (© trem que levaria Poncia Vieéncio de volta 4 ci- dade tardaria, O que ela Faria entio? Poderia ficar traba. Ihando uns dias nas terras dos brancos. Nio aprender lavrar a terra para o plantio, mas sabia outros afazeres aprendidos na cidade. Pensou em trabalhar o barro para vender, mas teria de voltar a casa, voltar a0 rio... E ela no quetia, A casa era sua enquanto os outros existiam. Resta vache, porém, os outros memibros da familia por todo 0 povoado. Todos eam parentes por ali. Desde que os nnegros haviam ganho aquelas terras, ninguém tinha che 58 4 4 do € eles se casavam entee si, Eram parentes, talvez, Gesde sempec, desde ld de onde tinham sufdo, Fla deci iu, entio, que ita rever os outros, aqueles que também ceram os seus, ‘As casas das terra dos negros, para o olbiar estran- ageito, eram aparentemente iguais. Chio batido, liso, «3+ cortegadio, paredes de pau-a-pique ¢ cobertura de ca- pim. As camas dos adultos e das erlancas eram jiraus que fs homens € mesmo as milheres armavam. com gallios de arvores amarrados com cipés. O colehio de capim cxa, as vezes, cheiroso, dado ao alecrim que se misturava ali dentio na hora de sua feitura. Os grandes vasilhames de bazro on ferro & os tachos onde as mulheres faziam doces permitiam imaginar farturas. As criangas gostavam, de raspar os tachos se lambuzando com os doces de ma- iio, cidea, banana, goiaba, leite, abdbora eo melado de mapidura, Tinham de ser ripidas. Nos tachos, 20 esfria sem totalmente, em suas bordas apareciam as manchas esverdeadas de zinabre, que as mies diziam ser veneno, tingindo de desgosto a gula alegte dos filhos. [As eriancas, 0s jovens, as mulheres, os homens, as, velhas © of velhos, imagens de um passado se presen- tificavam aos olhos de Poncia Vieéncio, & medida que a moga caminhava. Ela ao nba pereebido gue ji vinha ddecendo de uma saudade gue era de muito © muito tempo. Poneid gostava das pessoas velhas, mas as temia. [A cabega branea, a vor souca, 0 olhar embagado con- semplando a vida refeita pelo movimento das Jembran- 28. Ela as olhave & distincia. B, depois de longa auséncia 59 pela cidade, durante o tempo de seu regresso, Poncia se encontrou com Néngua Kainds. A mules, que era alta e ‘agra, pareceu-the mais alta e magra ainda. Continuaya ereta, apesar da idade, como uma palmeita seca. A pele do rosto, das milos, do pescogo ¢ dos pés descalgos era inh 0 olhar vivo, enxergador de tudo. A velha pousou a mio sobre a cabeca de Poncia he que, embora ela no tivesse encontrado a mie € nem o imio, ela aio cestava sozinha, Que fizesse 0 que o coracio pedisse. Lz ou ficar? $6 ela mesma é quem sabia, mas, para qualquer lugar que ela fosse, da heranca defxada por Vé Vieéncio cla nio fugiria, Mais cedo ou mais tarde, 0 faro se daria, a lei se cumprisa, Poncid nada indagow. Nada respondeu, Pedi léneao a Néngua Kainds e se disp6s @ continuar a vida carugada como a de um maracujé maduro, ‘céncio dizend 60 a 4 da janela, em sen manutar, acabou esquecendo o grande propésito com o qual se levantata naquela man’, Tinha decidido fiememente a deixar 0 pensar de lado e ir Iota, dar um jeito na vida, Mas nem se deu conta nem perce beu 0 momento exato em que se assentow ali, antes mes- mo do primeiro gole de café, e comecon a buscar na meméria as coisas, os fatos idos. Lembtou-se da fala de Néngua Kainda, quando espetangosa, tinha voltado a0 povoado em busea da familia. Néngua Ihe havia dito que em qualquer lugar, em qualquer tempo, a heranga que V6 Viedacio tinha deixado para ea seria recebida, Poncii ousia esta conversa desde pequena. Que legado do avi seria pertenca dela? Desde pequena, ouvia dizer também que as terras ‘que o primeiro Coronel Vicéncio tinha dado para os ne- «etos como presente de libertacio eram muito mais, © que pouco a pouco elas estavam sendo tomadas novamente pelos descendentes dele. Alguns negros, quando 0 Coro- nel Ihes doou as terras, pediram-lhe que escrevesse 6 pre- sente no papel ¢ assinasse. Isto foi feito para uns. Estes, cexibicam aqueles papéis por algum tempo, até que um dia © proprio doador se ofereceu para guardar a assinatura- doacii, Ele dizia que, na casa dos ncgros, o papel pode ra rasgar, sumir, no sei mais 0 gud... Os n ram, alguns desconfiados, outros nto. O dou os papéis e munca mais a doacao assinada voltou as ol ros des negros. Eaquanto isso, as terras voltavain as mios dos brancos Brancos que se fizeram donos desde 65 passados tempos. A familia de Poneid recebeu um papelzinho da. queles, O Coronel chamou V6 Viekncio, que jé chorava e ra, O homem levou © papel & boca prendendo entre os lentes a bondade eserita do Coronel. E ali mesmo, na presenga do doador, com 0 brago eotaco escondide nas costas, com a outra mio com gestos ripides ¢ raivosos rasgon tude, © pai de Poncid, aaquela época, era ainda ‘mogo solitério de companheiros e mulher, Bla nie era nem sonho ainda... Eatio, qual seria a heranca que V6 Vicéneio havia deixado para Poncii e gue ela ouvia dizer desde meniaa? 2 nas terras dos negros, visitou a casa de uns € de outros. Em todas, encontrou trabalhos de barro, feitos por ela ¢ por sua mae. E de todas as pessoas, Ponci ouvin a mes- ma observacio, Ela ea a pura parecenca com V6 Vicéncio. Tanto © modo de andar, com braso para tris € 2 mio fechada como se fosse cots, como ainda as feicSes do velho que se faziam reconhecer no semblante jovem da moca, A neta, desde menina, eri 0 gesto repetitive do avd no tempo. Escurou também, por diversas vezes, a historia dolorosa, que ela jé sabia, da morte da avé pelas| ios do avd, Relembravam 0 desespeto © a louesra do homem. Falavam também do édio que o pai dela tinka por Vé Vicéncio ter matado a mie dele, Poncia sabia dessas histérias ¢ de ourras ainda, mas ouvia tado como se fosse pela primeira vez. Bebia os detathes remendando cuidadosamente 0 teeido roto de um passado, como al- .guém que precisasse recuperar a primeira veste paca nua ‘ca mais se sentir desamparadamente cus. Nos dias em que ficou no povoado A espera do trem, por virias vezes sentiu o vazio, a auséncia de si pro- pra. Cain meio morta, desfalecida, vivendo, porém, 0 mundo ao redor, mas nio se situando, nfo se sentindo. [As pessoas auio se assustavam com 0 desfalecimento de Poneié. Ela ia ¢ vinha de suas anséncias, nenhum pavor, nenhuma estranheza dos outros ela percebia, 8 Quando fina ‘Vieéncio apontou na curva e vein parando devayar, Pond mente © trem que passava em Vila subit © semtou-se. Tinha 08 seatimentos confusos. Nio queria iz, nfo queria ficar. la, a sua casa estava vazia dos vivos ¢ dos mortos. Ao regeessar, s¢ na entrada do dia, ela tivesse percebido a mesma movimentagio da noite anterior, talvex até ficasse. Tinha voltado para buscar os seus. Se eles estivessem por ld ¢ no quisessem ir, cla teria ficado, quem sabe? Mas niio eneontsou ninguém. Ble 35 os perceben & noite, mas, entretanto, precisava deles todo © dia, todo 0 sempre. Era preciso, entio, continuar a via- gem ¢ descobrir onde eles tinham feito cova moradia, TTinha de encontrar os vivos ¢ os mottos em algum lugar, Estava s6, estava vazia. ‘A viager Ihe pareceu mais longa e mais dolorosa do que a primeira, Eatzetanto, j tinha trabalho garanddo ina cidade e havia até conseguido economizar algum di- theiro que deza de entrada na compra de uma casinha no) morso, Allém disso, Poe estava experimentando seati. mentos novos. Estava enamorada por alguém que ela conhecers por aqueles tempos, Fira a sua peimeia vez. ot enamorada een um homem que trabalhaya em uma construgao civil a0 lado do emprego dela, Ele também cestava enamorado e observara que ela era uma pessoa muito ativa, Estava sempre a lidar Era bonita, ‘Tinba um) jeito estranho que ele nio sabia bem o que era, Gostava de cantar, Tinka uma vor de ninar crianea € de deixar fhomem feliz. Haviam conversado algumas vezes, Sabia que a moca viera da roca deixando a mie € 6 irmao, pessoas que agora cla procurava tanto, Trabalhava ali € tinha uma easinha no morro, Ele gostava da tenacidade dela, de sew olhar adiance, Era uma mulher sozinha ¢ muito mais forte do que ele. Fra de uma pessoa assim que ele precisava, Ele estava também a trabalhar, s6 que sozinho ¢ no conseguia nem sonhat. Fla, entrecanto, iguiava ser 1 dona dos sonbos, parecia morar em outro lugar. As ‘veres, era como se 0 espirito dela fugisse ¢ Fieasse 86 0 corpo. Ek Depois que voltou do poveudo © nie soube noticias da respeitava, aha medo. Nao indagava nada inde € nem do itmio, ela se tornou mais estranha ainda, Fo} logo que se conheceram. Lim dia a moca mostrou- them homem-barro que havia Feito quando ceing. Trou era agora, nesta viagem, a0 vit pela primeira ver, tinha deixado 0 trabalho li, Era uma criagio bonita, Embora ele nfo ivesse tio a coragem de encarar aestinus, sendin um attepio quando Poneié beijou a cabega da copia de alguém que ea fizera ai, Olhou de sostaio para 0 trabalho 6 na mio da mulher. Como ela parccia com a imagem de barro que estava a segurar. Tinka sempre um beago para tris © a mio fechada como se fosse um cotoce, Pedi, cent a ela que guardasse a lembranca ¢ tentou retomar 0 assanto de antes, 86 que nem ela © nem cle se lembeavam mais do que estavam dizeado. Ela ficou durante uns momentos Jonge, vazia, com o olhar parado, sussurran. do coisas incompreensiveis, Ele quis tocar nela, pergun- tas, sacadis, mas teve medo, ansito medo de abeirac-se de tum vazio que exa s6 dela. 66 vam pouco. O pai ¢ © irmio haviam sido exemplos do estado da quase mudez dos homens no espaco domésti co. Agora, aquele, 0 dela, ali calado, confirmava tudo, Ele também 96 falava 0 necessatia. $6 que o necessirio dele era bem pouco, bem menos do que a preciso dela ‘Quantas vezes quis ouvir, por exemplo, seo dia dele tinh sido difiel, se © pequeno machucado que ele tracia na testi tinha sido eausado por algum tijolo, ow mesmo sa~ ber quando comecaria a nova obra, Muitas vezes quis dizer das tonturas e do desejo de comer estrelas de que era acometida todas as vezes que ficava grivida, Quis confidenciar a respeito de um medo antigo que sentia, as vezes. Quis saber se ele também softia do mal do medo, se cle vivia também agonias. Quis gue 0 homem lhe falas se dos sonhos, dos planos, das esperaneas que ele deposi tava na vida, Mas ele era quase mude, Nao chorava, aio a. Desde 08 primeitos tempos, nos momentos em que ela se abria paca ele, © homem vinha emudecido, wranca- do de falas, sem gesto algum dizivel de nada, Enquanto (que Poncia vivia a dasia do prazer e 0 desespetado desejo de encomiro, E, entio, um mist de raiva ¢ desaponto tomava conta dela, a0 pereeber que ela ¢ ele nunca iam além do corpo, que aio se scavam para além da pele 67 duitma. Chegou num dia de chuva e fio. Traci of, fome também. © limpar os dltimes degeaus da posta da ‘A chuva incomodava Luandi, A oupa colada em delegacia, Luandi parou um pouco para permitir que seu corpo € 08 saparos molhados causavam-lhe deseon: Soldado Nestor passasse. Luandi admirava 0 Soldada foro. Estava calgado pela primeies vee. Na roea sempre andara de pés no chio, As luzes dos postes querendo fapear a escurdio da aoite aborreca profundamente 0 fnogo. “Para que cu vim pra cidade>", perguntov-se entre osdentes, resmungando, como era habito de seu pai. “Para Nestor. Aquele era, para Luandi, maior que 0 esctivao, maior que 0 investigador, maior que 0 delegado, maior que Deus. Soldado Nestor era negro. Negro ¢ soldado, © homem andava bonito, marchando, mesmo estando sem farda, Sabia ler. Assinava o nome de uma maneica ripida ¢ bonita. Um dia, Soldado Nestor pedi a Luandi que fosse ao botequim ao lado, Rsereveu um bilhete pe dindo que the eaviassem um maco de cigarros fiado. O dono do borequim entregou 0 pedido a Laandi e man- dou para 0 Soldado Nestor um seeada, Que ele viesse logo pagar as contas. Luandi guardon de lembranga 0 bilhete que o Soldado Nestor havia escrito. Entregou a encomenda € nio sepetin o recado. «que ex vim pra cidade?”, se perguntau novamente, Achat rninha irmi, jantar diaheiro ¢ fiear rico. B, cle havia de ficar rico. Diziam que na cidade as pessoas trabalham muito, mas Bicam rieas. E de teabalho Luandi iio tinha medo. Pison em uma poca dégua acabando por molhar os pés, mais ainda, ea barra da calea também, Sentia uma pontada aa boca do estémago, era fome. Enfiow a mio to boiso emexendo lino fundo, Nao havia mais nada, nem wma moedinha sequer. Encostow-se ao muro ¢ ten- sou abrir a mala de papelio. Nio foi preciso. A mala, Loandi ji estava na cidade hi anos, Chegara soz tode eacheread, fol se abrindo por si mesma, O rapaz nthe, Quando velo, pensava que seria s6 bater em algum fer wana pequena trouxa com a roupa que estava all den lugar e se oferecer para trabalhar, Na roca trabalhava sem- ceo. Uma calga nova, duas camisas velhas com os puahos pre. Se ni estava semeando, estava colhendo ov arando 0 colarinho puidos (ciaham sido do pai), um pedaco de a terra, ou ainda estocando alimentos nos armazéas da famo de rolo, palhas de cigarro e um canivere. Guardou fazenda, Estava também a moenda da cana, na corre slo do café. As vezes, carreava bois e fazia cercas. Ea (0 fumo, as palhas € 0 eanivere no bolso, deixando o resto da mala seguir na correnteza da caxurrada, © estémago pau-de-toda-obra. Sabia fazer de tudo, Na cidade estava continuava remoendo 0 vazio. A chuva caia insistente- aprendendo a fazer de tudo também, Chegou ali sem mente. E agora? Como loealizar a irmi? Na toca € 86 ira nem beira. Tinha perdido pelo caminho 0 endereco andar pelo povoado ¢, quando no se encomtra a pessoa 68 ) do nosso desejo, um ou outro apazigua a aflieio da gen- te, Traz noticias ou leva um cecado para a pessoa proeu ada. Mas ele sabia o que deveria fazer. No outro dia haveria de andar a cidade inteira, Tantos haviam saido da roca eestavam ali! Na certa, se nfo encontrasse logo Poncié - encontsaria alguém que saberia dizer do paradeiro dela, Luandi nao tinka onde passar a noite e depois de caminhar um pouco, resolven voltar para a estacia, Po- detia assentar ou até deitar em uns dos bancos e esperar 0 dia seguinte. Foi acordado, entresanto, no meio do sona poruim soldado: “O que vocé esti fazendo aqui? Mostre os documentos? © que vocé faz? Vocé est armado?” Luandi respondeu-the que nio tinba trabalho ainda. Nao tinha documentos, Tinha acabado de chegar ta da roca Foi, entio, revistado: no bolso um canivete, Estava arma- dot “Por isso, € melhor voce me seguir até 4 delegacia” Soldado Nestor pegou Luandi pelo braco € foi levando. Fazia forca, apertava-Ihe o beaco. Um funcionério que vvarriaa estagio ficou olhando. Era negeo também, Luandi se assustou, mas nem raiva teve. Estava feliz. Aeabava de faver uma deseoberta. A cidade era mesmo melhor do que na roea. Ali estava a prova. O soldado negro! Ab! gue beleza! Na cidade, negro também mandava! Luandi passou o resto da noite na cela da delega- ia. Chegando li, 0 soldado negro chamou outro solda- do, Veio um branco, Ele mandou que © branco guardas- se Luandi na cela $6 trancasse o preso, no fizesse nada... Luandi conclui que 0 soldado negeo era mesmo impor: tante. Era cle quem mandava, No out dia foi colocado 70 ante de um branco que estava assentado atris de ums rest € que Ihe fez muitas perguntas, De onde ele viers? O ‘que favia antes? Quem eram seus pals? Se sabia ler © es «sever? Em que gostaria de trabalhar? Luandi respondew ‘que no tinha escolhas Trabalharia em qualquer coisa, E foi com suspresa e sem entender até, que ele eseutou 0 delegado dizer ~ Senhor Luandi José Vietncio, 0 senhor esté em- pregado! Empregado aqui na delegacia! ~ Empregado? Como? Fazé 0 qué? Vesti farda, sé soldado? © delegado, o soldado negro ¢ 0 outro branco scam, gargalharam, Quando fizeram silencio, oi 0 solda- do negro que se aproximou, dizendo-se chamar Nestor € ‘que, se Luandi quisesse, ele estaria empregado. Era para waster, limpar, cuidar do asscio da delegacia, E. como ele rio sabia ler nem assinas, no poderia ser soldado, Mas, se ele estudasse muito, poderia ser soldado um di, Pode- fia ser mais, muito mais, Entretanto, Luandi s6 quesia ser soldado. Quetia mandar. Prendes, Bater. Quetia tera voz alta e forte como a dos brancos. n ON, vemizs cs de vat de Line os Vicéncio na delegacia, chegou um molecote acusado de roubo, Era um rapaz meio amulatado de olhos claros ue tinha sido pilhado zondando o armazém dos espa- See ee enn uu O mene aa i Ee ude nates ta fs pela vida da mie pelas chagas de Cristo. O delegado cee eer Pes pai esas Seen eet do pores O dee veh eon sso Go dno ao ac ues dependesse dele, cortaria as mios de todos os ladrées. ferent Oso Nestor wate 9 "cuir 0 dcr do deegado soe manda cree aca tenga dein Vi diante de si a figura do avé com a brago cotoco escondi- do, rindo-chorando-falando sozinho. Pela primeita vex a age ache de Yo Vicéncio, Dizia mesmo que ele era doido, assassino, Tinha cee oie at a Sonlotol cs io fone ae wt Gabonese at ows seen eee ede docsu No cuca se ee earns pide Luana uct nee cong from bse Fen oe ge Land yar ee ares is cage ote see eens en wes soe a eh eck clouguces n JLuandi pensou na figura de V6 Vieéncio, mas, aliviae do cstava, pois acreditava que o tempo da escravidio sinha passado. Existia softimento s6 na roca. Ne cidac todos etam iguais. Havia até negros soldados! Laand) José Vicéncio gostava de trabalhar na dele gacia, O momento de que ele mais gostava era quando chegavam os presos. Alguns chegavam assustados, acuados. Outros vinham com as feigSes carregadas de dio. Ble ficava encarando um por um na tentativa de descobrir quem era culpado e quer era inocente. Tinha a impressio, as vezes, de que todos eram inoceates, mas 20 mesmo tempo culpados. Seu coracio dofs um pouco. Sentia-se também preso em cada um dele. Landi havia eolocado um grande desejo no peito. In aprender a lez para um dia ser soldade. Lembrou-se da missio que passara por uns tempos na sua terta, Foi raquela época que sua itm Poncid tinha aprendido ler. Ele ji acompanhava 0 pai nos trabalhos de roca, E a sua ima? Ja varara 03 quatro cantos da cidade, olhava as mo ‘88 negras, procurando um rosto que fosse o dela, A itm sabia Jer, como estava sendo a vida dela? Poncid trabalha va tio bem o barra, Tinka os dedos espertos, fuzedores de coisas bonisas, mais do que os da mie. Ea mie? De- via estar ni roga trabalhando o barro, Agora ela mesma tendo de ir ¢ vir A freenda, a terra dos brancos, falando pelo caminho com os negros Sim, a mie, na certa, estava com saudades deles, mas estava bem. O dia em que apren= desse a les, o dia em que fosse soldado, volearia i Vila Vieéncio ¢ buscaria a mie. F os dois juntos encontrasiam ism, Onde estaria Poni? Seri que a hesanca ji estava se cumptindo? B amanheceu novamente no emprego depois do retomno 3 terra natal, levantou-se com uma coceita insistente entre os dedos das mios. Cogou tanto até sangrat. Cuidou dos afazeres da casa da patroa, mas a toda hora interrompia fo trabalho ¢ levava as maos debaixo d'igua para ver se allava 0 incémodo. Ela nunca tivera nada de pele. Ao nasees, 0 primeiro banho tinba sido em sangue de tatu, 0 aque deixow Poncté imunizada para qualquer mau nesse sentido. Entio, por que agora, quando ja grande, 0 surgimento daquele incdmode que covava tanto enite os dedos? Poncii Vieéncio cheirou a mao ¢ sent 6 cheiro de barto. Para Poncii, a cidade ihe parecia agora sem graga e a Vida seguia sem qualquer motivo. Trabalhara, consegui- 1 untar algum dinheizo com o qual pudera comprar uma casinha, mas falavadhe os seus. Voltara a terra na espe ranga de encontrar qualquer vestigio da mite e do irmio e apenas confirmara o sumico dos dois. O que fuzet ago- 13? Perdera o elo com o8 wivos e com 08 mortos seus. O que valia agora 0 barraco? Quem ela levaria ali para den~ 10? Que pessoas vivas on mortas? Correu Iino fuado da casa, no seu quarto de empregada, e tirou o homem- barro de dentso da trousa. Cheirou o trabalho, era 0 mesmo oder da mio. Ah! Entio, era issol Era 0 VO. Vicéneio que tinha deixado aquele cheiro. Era de VO Vicéncio aquele odor de barro! O homem choravs ¢ a, 74 Ela beijou respeitosamente a estéeua sentindo uma palps. vel saudade do barto. Ficou por uns instantes trabalhar do uma massa imaginéria nas mos. Ousiu murmiirios, lamentos € risos...Era Vo Vieéncio, Apurou os ouvidos € espirox fundo. Nio, ela nfo tinha perdido 0 contato com 9s mortos. E era sinal de que encontraria a mic € iro vivos. 5 oe, mie de Poneii Vicdncio pensava nos fj Thos, mas relutava em tomar o rumo da cidade. A cidade cra para os novos, para os que agdentavam qualquer aven- tura, Os cabelos dela embranqueceram da noite par o dia, embora conservasse 0 roste jovem. Els trazia 0 co- sagio dolorido, Exa como se tivesse dentro do peito um zprande pote de bazro, ao qual armazenasse todas as pes soas queridas, ¢ esta vaslba um dia tivesse quebrado, par- tido, A mulher sofrera mvito com a ida da filha, depois com a do filho, Antes, havia vivido 0 pesar da passagem de seu homem, naquela tarde clara e ensolarada. E foi acumulando idas, parridas, auséncias, As veres, vinha um desespero tal, que ela pensava, entio, em abreviar a sua hora, Sentia-se tio s6, tio vazia que poderia it buscar 0 batto Id no fando do tio... Sozinha, entretanto, se kecape- tava, Fla acreditava que a vide tem o tempo cetto, assim como 6 fruto tem 0 momento exato para ser colhido, Sabia que a sua vida no era ainda um fruto amadutecido, Seus dias ao estavam prontos, no era tempo de se co- ther, E, entio, se tivesse de padecer, que experimeniasse as dores. Se ivesse de ser 6, que sozinha Fosse. Se tivesse de se abragar com os seus proprios bracos, ela mesma criaria 0 seu proptio anelo, c se auto-abragaria, até que reencontrasse 05 filhos ¢ 08 abracos deles abragassem 05 abracos dela 16 Poncia Vieéncio deveria estar muito bonita, j 2 € 0 filo havia do para a cidade ¢ desde entio, cla também nunca mais parsra. Quando a filha se fo, ea se sentiu meio alejada, Foi como se tivesse perdido uma parte de seu corpo. A menina eca a sua filha mulher. Falavam, trabalhavam € cantavam juntas. Ji bem pequena, ela entendia o barto € ia 20 tio buscar 4 massa. Sabia qual era a melhor, qual a via passado tanto tempo que a f ‘mais macia, a mais obedionte, Reconhecia aquela que acei tava de bom grado 0 comando das mios, traduzindo em formas os desejos de quem eva. Ela conhecia de olhos fechados a matéria do slo, E quem visse, como cla mes- sma viu, ewtando a menina comesou a andar de mio fe- chada para tris, como se tivesse Geado com 0 brago cotoco do at aio pensaria nunca que justo aquela n aeremedo perieito do velbo, seria a que mais daria forma i massa, sera a que mais eriara. n

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