Você está na página 1de 32
ARTIGOS GENERO FEMININO MEBENGOKRE (KAYAPO): desvelando representacdes desgastadas* Vonessa Lea” A questiio de género, embora nio teua sco 0 fo condutor, -empre foi um pano de fundo da .ainhs. pe: quisa com os Mebengokre - mais conhecidos como Kayap6 - do Brasil Central. Como poato de partida, gostaria de e-ocar 0 caso de uma mulher Mebengokre, Tuire, que, numa reunigo indigena realizada em 1989, em Altamira, mas de projec intemacional, roubou o show encostando um facdo no pescogo do diretor da Eletronorte.2 E interessante cotejar esta imagem com a descric¢ao Exe artze foi apresenlado inicalmente na XVIE Reuniio da Associado Bras de csatryoigg (ABA), en exo Honvente een ab de 162 e, seegbene ete no Centro de ‘Estulos do nao ~ PAGU, UNICAMP, so dia 26 de mato de 1492 Ageadeco @ Mariza dora plas sogesises pa. a vers pubbeda agut ‘As ples maborgoire, mgiiot, meluni, mebengete. meburerere, poser a era 2 crm desta oe acer com um “i (-) que, devido 2 iposlidade de mn btenio atv do ‘Mitr de texto izado, eat eano et aoa graf core ** Departamento de Antropologia-Unicamp, 4 toy © movimento famine que dev o inipalen para pensar a snagao de amar Cm doe resulados mevitvew fv 0 sbandono da cenga da unnidade dass etapdo que wedev lar & ‘pereepdo da diversidade de formas de ser ulcer (C{- FRANCHETTO, B HEILBOKN, ML. EAVALCANT. MLV. “Aitropslogia ® Famnsms’. IN Parecnva simonologeas da Mulrar (2 1). Rio de lamivo, Zaha 1980, ¢ MUHOPADEYAY.CC. ¢ HIGGINS, PL ‘Antaopologiesl stiles of ‘womia® sams genstse 19771987". IN inal Re-tov op Antroyology (r2 17). 1988 2 ata reunito pan KeyapS, leads por Pavakan, tna como objivo sistar o proto de cousin do complex inelsres do ro Xing Par 2 cobertir complete dents runio, vja CaDI (Cento Ecuenico de Documeatagio © lnformacto Paves Iudigenas no Bras 1957/88/80/00 Acontoveu Eepe fal 18. Sto Paulo, CEDI 1991 Ca?ernos Pagu (3) 1994: pp. 88-1 Genero feminino da antropéloga_norte-americana Joan Bamberger, minha predecessora’ feminina entre os Mebengokre. Foi dela, entre outros, que herdei minha visio inicial da mulher Mebengokre. Esta autora caracteriza © dominio feminino como "fracamente social" (sic. "weakly social")? afirmando que as mulheres desempenham um papel quase inexistente nos assuntos comunitirios.4 De acordo com ela, "A localizagao das mulheres na periferia da aldeia é simbolica de seu papel social apolitico e marginal na sociedade Kayapé".s Meu objetivo, aqui, & tentar reconciliar essas duas imagens paradoxais. Na sociedade Mebengokre, a relagao entre os sexos é assimétriea, mas nio se pode simplesmente rotular as mulheres como subordinadas, oprimidas, ou dominadas, porque uma interpretagao totalizante seria simploria e insatisfatéria. Dumonté refinou © conceito de hierarquia, definindo-o em termos de englobamento, o que permite conceber una esfere ou uma logica feminina como altemadamente englobando ou sendo englobada pela esfera ou légica masculina; esta idéia ficara mais clara no decorrer deste texto. ‘No mundo intelectual, as idéias costumam passar de uma disciplina para outra e isto aconteceu no caso da abordagem do objeto de pesquisa nas ciéncias sociais. Havia uma tendéncia, no passado, a caracterizar mulheres, indios e negros, entre outros, 3 BAMBERGER, J: Entrorment and eulural clas ‘Tees de doutrede, Uiverndads de Harve 1967. pp + BAMBERGER J. Op cit 1967, pp. 162. 5 BAMBEROER J: "The myth of matiarchy: why me rule in primitive society", IN Jn omer, Culture ane Socte'y.M Rosado L. Lamphere (ores) Stanford, University Press. 1974 pp 173. (OvecAs iad Ger dae ctagdes su minhas. S DUMONT, L: Fone hierarchicus Panis, Callinard. 1966 (1978), 85 Vanessa Lea como vitimas passivas dos eventos que os. circundavam.? Bourdieu’ e Giddens? esto entre os autores que, embora nao se refiram um ao tabalio do outro explicitamente, tém desenvolvido a nogao de agente, ou agency, isto é, de alguém capaz de fazer opcdes, em qualquer contexto ou situagao, entre n estratégias disponiveis. Concorde com Lévi-Strauss! para quem a nogao de agente é perfeitamente compativel com o estruturalismo tal como ele 0 desenvolveu. 2m outras palavras, 0 coneeito de agente nao implica um retomo ao individualismo metodolégico (a glorificagao do sujeito/subjetivismo); 0 que ele permite é um entendimento mais refinado da relagio entre a estrutura social e 0 individuo, E enquanto agente que o individuo desempenha um papel na reprodugao ou na transformagao do seu mundo. Algo que ja apontava nesta direcio, a meu ver, é 0 estudo elissico de Evans-Pritchard! a respeito da bruxaria Azande, remetendo a questo da causalidade que, me parece, é aparentada ao conceito de agency. ‘Num livro recente, organizado por Strathem'?, esta autora usa 0 conceito de agency para abordar as relagdes de género na Melanésia; se a preocupagao com a desigualdade & 7 amiga "Minbar, de Franca Ongato Batagia (RASAGLIA, FOngaro: °Mulhae, IN Enciclopedia Einaut (i220), Parentesco. Lisboa, imprana Nacional -Casa da Moeda 1989.) 8 sugestvo de analogs com @ mania pela qual ond em sido pensado 8 BOURDIEU, P- Ounine ofr theory ofpracrice Cambridge. CUP. 1977, ° GIDDENS, A Ta constuton ofsosien: Canidae Poy. 198 TW LEVESTRAUSS, "Histoire etetinolone’ IN Anmaiesn@ 38.1983 Lt EVANSPRITCHARD: Michora, oracles and magic among the Arande. Oxford, Claenton Press 1937 (1968) 12 grRATHERN, M (org): Dealing with neg and beyond. Cambriige, CUP. 1987, analysing gender rearions in Melanesia 87 Genero feminino essencialmente Ocidental, ¢ se a diferenga nio é necessariamente pensada em termos de hierarquia, entio a nogio de agency pemnite escapar da armadilha etnocéntrica de medir 0 valor dos dois sexos a partir de uma escala idealizada para dar conta das diferengas em nossa sociedade. De acordo com Strathem, agency nio seria uma ferramenta puramente interpretativa, permitindo, ao contrario, comparagdes entre sociedades. O livro de Strathern trata nfo da natureza da desigualdade entre os sexos mas da construgao da desigualdade através da diferenga sexual."° Isto aponta para a possibilidade da implosio da questio de género, embora este seja um assunto que mobiliza atualmente a antropologia inglesa e francesa.!* No inicio do século, Hertz!> estava plenamente convencido de que escrevia a respeito da universalidade da oposigao entre o sagrado e o profano, enquanto, da perspectiva atual, podemos dizer que o ensaio clissico "A preeminéneia da mio direita" versa sobre a natureza da diferenca representada em termos hierérquicos. Hertz argumenta que a mio esquerda & atrofiada socialmente; a partir de uma leve predisposigio bioldgica favorecendo 0 uso da mio direita, a sociedade cria as mais diversas representagdes € contetidos simbélicos desta polaridade. Penso que existe uma analogia entre a maneira de pensar a relagdo entre as duas mos e entre o homem e a mulher. artindo do fato de que um homem pode impor relagdes sexuais. a uma mulher e nfo vice versa, e da tendéncia, numa determinada sociedade, de os homens serem relativamente mais altos e mais fortes do que as mulheres, isto poderia ter 13 gTRATHERN, M (org) Op eit 1987, pp | contrapatida balers & a recate cbesssta dos etndlogos oom a hstria, que passa ase cousin ems dominant por a8 1S HERTZ, R: "La prsminenc de la main dots", IN Annie Soiolgigue, 1907 88 Vanessa Lea alimentado, embora nio determinado, uma_hierarquizagao, socialmente construida, favorecendo os homens. Ha muito tempo, os antropélogos sabem que o parentesco transcende o nivel biol6gico, e, no que diz respeito a0 género, ha uma tendéneia a no mais partir da existéncia de dois sexos como um fato biolégico iredutivel, na medida em que até as diferengas biolégicas sio suscetiveis das mais. diversas interpretagdes; em outras palavras, transcendem a esfera do “naturalmente dado”. Em suma, parece-me que a especificidade de género tende a dissolver-se, na medida em que remete a questdes mais amplas, como a alteridade, a classificagio e a estratificagao social. Quero agora contextualizar estas idéias através da apresentagio de alguns dados sobre os Mebengokre. Devo admitir que eu contemplava o mundo feminino Mebengokre com antipatia quando cheguei ao campo, tendo interiorizado a visio de Turner‘? de que as mulheres fomecem uma espécie de infraestrutura, dando conta da comida e das criangas, abdicando da realizagao cultural que seria reservada aos homens. ‘A nogio de male bias é infrutifera para desvendar a realidade Mebengokre, porque no é necessariamente a visio da pesquisadora feminina que se diferencia significativamente da visio do pesquisador masculine, Mais importante é a projegao de categorias ocidentais num universo alheio, como, por exemplo, a oposicio entre 0 piblico e o privado (inspirada em, ou, nossa heranga da oposigio grega entre polis e oikos). Uma visio quase consensual na literatura antropoldgica sobre os Jé Setentrionais & de que as mulheres estdo relegadas a esfera doméstica, enquanto 16 yada dsr isto mato do gus o debate al eee da grvider apis a menopause: of a Folia eS. Paulo"Menopausa & una ijstiga tata”, de ox Aritodemo Pitot, 17/U94 e“Graidez tarda tem dotte ico machin’, de va Cristina de Baro, 24198 V? TURNER, T: Social suture and political organization among the Northarn Kayaps. Texe de dowtornd, Harvard Univernt, 1966 89 Genero feminino os homens monopolizam a esfera piblica que remete tanto vida ritual quanto as atividades politico-jurais.® Da Matta’? ilustra esta tendéncia Existem analogias interessantes entre os Mebengokre ¢ as sociedades que caracterizam a Nova Guiné na literatura antropolégica, ou seja, sociedades onde hi um grau de antagonismo sexual e uma separagdo bem marcada entre os dois sexos. Isto tem conotagdes de complementaridade, nfo de autonomia,2? embora haja algo que faga lembrar a relagdo entre duas castas ou entre duas sociedades: ora cooperam, ora se separam. Tal complementaridade é perfeitamente compativel com uma relagdo de assimetria entre o5 dois sexos, por exemplo, quando a caga é um monopélio masculino e uma atividade prestigiosa, ‘Na “era dos presentes” (fornecidos pelo governo *), as mulheres prestavam atengao ao fato de os Villas-Boas (ou a pesquisadora antropolégica, conforme o caso) presentearem os homens e as mulheres de modo igual. As mulheres consomem came de animais abatidos a bala, mas elas consideram que nada recebem quando os homens recebem munigdo. Presentear as mulheres significa dar-lhes, por exemplo, pano para fabricar vestidos. Ainda mais surpreendente foi a afirmagao dos homens de que eles nunca buscam leuha porque nfo tém nenhum uso 18 distingto exe juice jul” vem d antopologa britnice polars jul ncorprada ‘a emologis basilar) remete a sonmas emungses moras em socedades sm um apert fideo 19 pa Marra, R. Vozes. 1976 20 pertier GHERITIER, F "Familia", IN Encciopéia Einaut (nf 20): Parewesco, Lisboa, Imprenss Nacional Case da Moeda 1986 (1979), aygumes que a divi sextal de trabalio = abn: tom por objeto tomar um sex> dependants do cu, craado "ans spice de conto Sesmtento” mito m mado dvidido: a exrutura social dos indios Apinasé. Pept, 21 Nao ha espa pare esclarce isto aqui A questi foi explorade em LEA, V- Nomes enebres sama concepedo de rijueza. Tose de dottrameto, PPGAS, Museu Nacional, Uni. Federal de Rio etme UFR, 1986 90 Vanessa Lea para ela. As mulheres buseam lenha porque cozinham e fazem fogo para as pessoas se aquecerem, e até fornecem a lenha que seus homens, cénjuges e parentes, levam para a casa dos homens, situada no centro da aldeia As vezes, um sexo admoesta 0 outro sobre seus deveres. Ouvi os homens dizerem as mulheres que deviam parar de fiear correndo atrés dos avides que aterrisam na aldeia e pegar mais lenha, em vez de deixar seus homens passando fio. Ouvi as mulheres dizerem aos homens que devem jogar menos futebol e cagar ou pescar mais, em vez de deixar as mulheres com fome de came. Antigamente, os meninos Mebengokre iam morar na casa dos homens (gd) a partir de uns sete anos de idade? hoje em dia, eles continuam morando na sua casa materna até se casarem, ocasiio na qual se transferem para a casa da esposa, Os Mebengokre dizem que, no passado, 0s homens voltavam a morar na casa dos homens apés o nascimento de cada filho, somente voltando a residir com a mulher quando a crianga comegava a andar; isto sinalizava a suspensio das interdigdes sexuais referentes 4 mulher. No decorrer deste periodo de residéncia no mgd, os homens podiam namorar as mogas nto casadas ou manter casos extraconjugais com mulheres casadas. Hoje em dia, os pais de recémr-nascidos permanecem poucos dias morando na casa dos homens, que ¢ atribuido ao citime das esposas em relagio ds amantes dos maridos. Torna-se evidente, em todos 03 niveis, uma diluigio na separagio sexual a partir do contato com a sociedade envolvente ‘Nilo € nenhuma novidade antropolégica que certas coisas consideradas naturais por nés, si concebidas entre outros povos como socialmente fabricadas. Ao que tudo indica, os 22 separacto somal Mebengolze me Ima a classe dominate tna, cade 0s meninos de ‘ste ano ao envins pare nteraton. a1 Genero feminino Mebengokre consideram que sio os homens que fabricam a vagina, cavando-a através da relagio sexual. As mulheres nao tém vagina até wm homem comegar a cavé-la,e é isto que explica a perda de sangue ocasionada pela defloragao. A palavra usada em Mebengokre é dnpok, a mesma que designa a retirada das entranhas do peixe pelo pescador. Assim sendo, conforme um homem me explicou, um homem pode comecar a furar (6npok) uma mulher e outro terminar 0 empreendimento. Conseqiientemente, as mulheres simplesmente tém relagdes sexuais (ni), mas sua ‘fabricagao® nas maos dos homens continua, Segundo as afirmagdes dos Mebengokre, os homens arraneam os pelos das mulheres (atualmente elas ajudam a depilar-se com gilete no cotidiano). Além disso, os homens puxam regularmente os labios da vagina (os pequenos, me parece) para esticé-los. A resposta inevitvel & pergunta "por qué?", é "porque os homens assim acham bonito” 2 ‘A menstruagio é outro assunto misterioso na sociedade Mebengokre. Nao consegui ter certeza se ela é reconhecida como tal, na medida em que parece ser designada pela expressio kukriit kane (doenga de anta), provocada pela ingestio desta came. A anta é 0 animal de maior porte na regio, mas qualquer came pode trazer doenga, ou até o contato com agua respingada 2 para fins comparativo, sea VIVETROS DE CASTRO, "A fibicagdo do compo ta sociedade ‘angina IN Soler ab Mueeu Nactonal NS 22-1978 2 Ap ao fo totale etlarecido sxatamante 0 que ascado A plana am mebengokne ‘ge desgna semen’ e fem so taduada (por virios emlogos) como cites, que mio paivel ‘eer estado. Num mio Mebengoie, oi de uma mulher chega @ amasar-se pelo cio. Eno mito a aldein das mulheres, ¢ 0 vento que cugravida as mulberes soprando em seus nus (ere). Os Suyd tém a mesma price (ct SEEGER A" Nature and society n Covtral Brac: the Siya Tons of Mato Grosso. Cambridge Mass, Harvard Univ. Pres 1981) do esticamenta das lbios ‘Ga vagna¢ Vives de Casto (VIVEIROS DE CASTRO, B- Araweté: os deuses cabs Rio de Simo, Zahar ANPOCS. 1986.) notou algo semctant ete os Arawets segundo ale, estca os sandeslibios. Sera que existe tal diversiade, cu sea, que os Mebenzcze estcam os pegienos Tahoe eos Awa ow prance dion? Somente ove forages pode eckrcer se igi serualidade maz mice Vanessa Lea da panela onde esti sendo cozida. E possivel que as mulheres ingiram alguma substaneia que impede ou diminua a menstruagio, porque raramente parecem fiear menstruadas.2> Isto explicaria o fato de a menstmago ndo ser um tema elaborado na sociedade Mebengokre. As pessoas me explicaram que uma mulher nio sangra antes de ter relagdes sexuais pela primeira vez. FE igualmente a relacdo sexual que é tida como responsivel pelo crescimento dos seios; n&o ficou claro se enchem de sémen como acontece com o feto. Pessoas de ambos os sexos marcam a pele de seu parceiro, no rosto, bragos € tronco, com suas unhas, como sinal de apreciagio sexual. E freqiiente ver as pessoas assim marcadas, algo que os Mebengokre acham muito engragado, Sao os homens, ou altemativamente, uma erva do mato (pitu), que fabricam as criangas. E o actimulo de sémen que forma o feto, feito de cabega para baixo. Por isto, os homens se queixam de que "tem que trabalhar muito” para fazer uma crianga, Pelo menos uma mulher sugeriu que os bebés de sexo masculino levam mais tempo para nascer do que os bebés de sexo feminino porque tém mais trabalhos para aprender. Embora enigmitico, sugere uma maior complexidade do trabalho masculino, sendo andlogo a distingdo feita entre a versio masculina e a feminina de wna mesma ceriméaia (mebiok). Os Mebengokre afirmam que ha mais "cultura" (kukrdidé), ou seja, as partes que constituem o todo, na ceriménia masculina do que na feminina, Pude assistir as duas versdes, e de fato a versio masculina é mais complexa. A versio masculina também & mais 25 4 flsidamisiondi do SI Mickey Stout, in 9 depard com eta mesa gusto ou 8, se as mulheres abibuem o gue chamamos de mexstuasio as ants, sendo que parece algo que esgermentamn rarameate,Trbaliet com um povo Tup\-Ouscani onde paecia Set mesmo wna fcoréncia mens. Isbele Videl Getanin (comimicepto pesrol) considera que oe Mabsngoics ‘ecohecem a existéncia da menstuard, embora de cut duapio. Na opin dela, a hemerrasia (eominada fulvat kane conser com ado causada pala agers de corgi de ata plas mulheres 93 Genero feminino cara; exige uma quantidade maior de alimentos, sendo desempenhada com maior vigor. Este exemplo mostra como se pode, a partir da biologia, tecer representagdes sobre género até no contetido ¢ no desempenho das ceriménias. ‘A crianga que nasce pertence a Casa da mae. Os ‘Mebengokre tém uma ideologia uterina; tudo de mais valioso - os nomes pessoais e as prerrogativas herdiveis - ¢ transmitido por via uterina, Evito a palavra "matrilinear” porque o que esta em jogo nao séo bem linhagens ou clas, mas Casas concebidas como pessoas morais, algo que nos ¢ familiar através das casas nobres medievais. Foi Lévi-Strauss? quem elaborou esta nogao de casa, definida como: "(.) uma pessoa moral, detesitora de um domixio, que se pe.petua pelu transmissio de seu nome, de sua fortura e de seus titulos em linha real ou fieticia, tida como legitima na iinica condigao de que esta continuidade pode ser expressa na linguagem de parentesco ou de alianza, e, mais fregiientemente, os dois juntos."2 ‘Nao temos outra palavra além de "patriménio” para designar a riqueza que caractetiza as Casas Mebengokre, ja que a palavra "matriménio” denota algo bem diferente. No entanto, é irénico esquisito ter que usar a palavra “patriménio” para deserever algo transmitido por via uterina: de mie para filha e de un homem ao filho da irma. 26 LEVE-STRAUSS, C: Paroles Données Pais, Plon. 1584 27 LEVESTRAUSS, €-Op cit 1984, pp 190. 4 Vanessa Lea Sendo nomes e nekrets (pretrogativas herdaveis) 0 tema de trabalhos anteriores meus,2* nao vou me alongar sobre este assunlo aqui, mas ele é indissocivel de uma investigagio sobre género. Os homens constréem o organismo, mas este nada mais, é do que matéria bruta, Os nomes e prerrogativas transformam esta matéria bruta annima numa pessoa. Na sociedade Mebengokre, os nomes pessoais e os demais bens herdaveis so categorias polissémicas com conotagdes de alma ou de genes - ou seja, aguilo através do que os antepassados vém se reciclando desde os tempos miticos, A categoria nekrets inckui: 2 para mulheres, 0 direito de eriar certos animais de estimagio (estes animais identificam cada Casa visualmente, como se fossem "totens" ou emblemas vivos); ? para homens. o direito de consumir determinadas porgdes de came de caga; ? para mulheres e homens, 0 direito de fabricar e utilizar certos enfeites, desempenhar certos papéis cerimoniais colecionar ou guardar determinados bens dentro de sua Casa. E possivel interpreta o simbolismo da forma circular da aldeia (veja a planta na pagina seguinte®®) como remetendo ao englobamento da aldeia pelas Casas, em vez de atribuir os homens ao centro e as mulheres & periferia como é a convencao 28 LEA, V: Nomes enokrets: una concepsdo de riqueza. Tse de dovtoramente,PPGAS, Museu Yecionl, Univ. Federal de Rio de Taneyo (UFR) 1986, LEA, V. "Meberpolre (kayend) ‘qm: a fie of Houses as ttl soil facts in Central rac’, IN Mr (VoL 27 ni). 1992: LEA, V. "Cas e casas Mebenooie (8), IN Viveros de Casto, E.¢ Camera da Ciba. M. (or2s) Amazénia: Emologiae Historia iaigena, Séo Pale: NHILUSP FAPESP. 1993, 29 postanonmante it sds fio conbecisa pelo nome Mittire A plata &eaqoemiticn: 28 Imbitages atvais so etangulares. Os algarismose leas usacos pare identifcar as Cases rete. um crogu da ade de Keaymepniyaks studs o oeste doo Xingu na decade 30 (LEA. V Op cit 1986) 3 asda onde varios dos Mate com quem tbat passaram sua infineia| Os algaismos romanos referemese ds pimeias Cass exjos meats atravessran © Xingu pe nile ‘So soul, a Inranieniiam a Casa ujoe metbnoechepaamn pstncetnete ao lad ideal sono 95 Genero feminino entre etnélogos. As Casas abrem para o centro e as mulheres se ocupam com coisas que dizem respeito ao interior da sociedade. A casa dos homens, situada no centro, direciona o olhar para além da aldeia, os homens so os responsaveis por aquilo que diz respeito 20 mundo exterior. As habitagdes formam um grande circulo; se ha muitas casas, um circulo é construido fora do outro. O significado do circulo foi investigado, entre outros por Jung e Montessori. Tem conotagdes de movimento porque no tem um comeco, ¢ de continuidade na medida em que forma uma corrente. A casa dos homens se assemelha as habitacdes femininas, mas ha uma, ou, no passado, no maximo duas casas de homens, uma na metade leste © uma na metade oeste.%° A casa dos homens destaca-se como um bloco ou, alternativamente, duas casas de homens se opdem como duas facgaes. A casa dos homens tem representantes de todas as Casas, Portanto, & um espago onde interesses particulares tém que reconeiliar-se com interesses coletivos. E também o lugar onde so orquestrados empreendimentos coletivos, e onde decisdes consensuais sio comunicadas por porta-vozes para que todos ougam. O encaixe entre as atividades masculinas e femininas é quase automitico, Se as mulheres sabem que os homens foram cagar ou pescar, elas se organizam para colher mandioca para cozinhé-la como acompanhamento, Cada género sabe 0 que se espera dele e se organiza de acordo com tais expectativas. 80 CE TURNER, T:Op cit. 1965, 96 Vanessa Lea Fi 1 - Planta esquen (Os aigarismos de 1 * Os alga.ismos roma indicam as Casas, cada uma com seu patti uma determinada poreao do ¢.reulo: Ptarta reproduzida de LEA, V.: ‘Casas e casas Mbengokre (Je) Viveiros de Castro, E. e Carneiro da Cunha, M. (orgs.) Ama: Ewlogia e Histéria Indig. na. Sao Paulo: NUIVUSP/FAPE.P. 1993. 31 numeran, as habitagaes; WS # as letras (ver nota de rodape m’mero 29) \inio distintivo e que ocupa O parto & um evento do qual os homens so excluidos e logo apés © nascimento, um bebé comeca a ser moldado nas mos das nmulheres, tanto 0 cranio como as pernas € os bragos. Com pouco tempo de vida, os bebés recebem suas primeiras pinturas eujo valor é ao mesmo tempo estético e profilatico - os espiritos dos mortos temem tinta preta de jenipapo, Genero feminino ‘Uma mulher Mebengokre gasta umas quatro horas para pintar uma crianga com o estilo mais elaborado (este mesmo estilo é usado para adultos no decorrer de ceriménias, veja foto na pagina seguinte). Uma nervura de planta serve de pincel para produzir desenhos geométricos, freqilentemente baseados em algum animal. A pintura corporal constitui um saber feminino requintado.# Era a tinica atividade que as mulheres me julgavam incapaz de realizar. Os urbanites exibem griffes da moda e os Mebengokre estio sempre atentos a questio de quem pintou quem, mapeando relagdes e comparando as habilidades das mulheres. Estudos recentes em etnomatemética®® analisam pinturas, entre outros fenémenos, como manifestagdes de conhecimentos de geometria. Nao posso aprofundar esta questio aqui, mas as mulheres Mebengokre sio habeis geémetras, Sto as mulheres que fabricam (embora talvez nfo exclusivamente) uma série de batogues auriculares de tamanhos crescentes, cujo uso é abandonado quando um buraco relativamente grande é formado. Entre os Suyé (16), Seeger’ associa este proceso de perfuragio a socializagao, ou seja, é isto que capacita as pessoas a ouvir e a entender as normas sociais. Tanto em suya quanto em mebengokre uma pessoa que transgride as normas & tida como "sem ouvido" (amakre ker). ‘Nas duas linguas, também, ouvir ¢ sindimo de entender (ona): isto significa que a manipulagao das orelhas das criangas pelas mies contribui para 0 proceso cognitivo, 0 que se deve manter em mente quando se avalia a fabricago do corpo feminino pelos 34 CE VIDAL, L. Org): Graiomo Inigena, So Paul, Nobel FAPESPEDUSP, 1952. 22 CE WASHBURN, DK. ¢ CROWE, Dir. Synumsrie of Culture: Theory ad Practice of Plane Pater nave Seat, Unrest of Washington Pros 988 GUERDES, Pula 9 Gespertar do pencamento geoméeico. Maputo, Insite Superior Pedagdaice. 151 33 SEEGER, A: Os inctos ¢ nés. Rio de Jansino, Campus. 1980; SEEGER, A Nature and society 1 Comal Braz the Siya Indians of Mato Grasso, Cambeidge Mass, Harvard Un Prose 1981 98 Vanessa Lea homens. Os homens também fabricam a belicosidade dos meninos € rapazes, através da perfuragio do labio inferior, adativamente esticado até comportar um grande batoque redondo. Foi me dito que os homens levantavam os batoques na batalha, escondendo o rosto ¢ assim amedrontavam os inimigos. Uma forte evidéneia contra uma _caracterizagio globalizante dos géneros Mebengokre & 0 fato de que a idade tende a dissolver a distingdo entre os dois sexos. As velhas sio tidas como tio sabias quanto os homens. As mogas pré-puberes comecam a atrair as atengdes dos homens ¢ dai, até a velhice (nfo sei_até que ponto a menopausa é reconhecida nesta sociedade), 0 contato entre qualquer homem e mulher é sempre sexuado, no sentido de que um ar de nervosismo atesta a possibilidade latente de uma relagdo sexual surgir do encontro. Por isto, um homem evita ficar sos com uma mulher se quiser 99 Genero feminino evitar fofoea, e as mulheres fazem grandes desvios para chegar até 0 rio sem passar perto da casa dos homens. Mas quando as. mulheres tommam-se avs, detém o mesmo prestigio que os avés, e até falam em reunides importantes na casa dos homens. E como se a sexualidade se evaporasse na velhice, dissolvendo a distingdo entre homens ¢ mulheres. Hi um ciclo: 1a primeira infancia o tratamento dispensado a ambos os sexos & praticamente neutro com respeito ao género. De uns dois anos de idade em diante até a velhice, a distingdo sexual ¢ acentuada; mas, no final da vida, esta separac3o acaba. Os homens muito velhos praticamente nao vio mais 4 casa dos homens, ficando em casa sob 0 cuidado de sua familia, portanto, tornando-se mais “femininos". Os meninos comegam a ser incorporados na casa dos homens quando ainda sfio pequenos. Embora a segregacio sexual esteja diminuindo, a dicotomia ainda eacontra expressio. ‘Um homem que fica tempo demais em casa esti arriscado a “efeminar-se", 0 que, alidis, esti efetivamente acontecendo de modo global, de acordo com a concepgio Mebengokre, devido a suspensio das atividades guerreiras. Os homens estio se tomando mais mansos (uabore), como caracterizam as mulheres, € a si mesmos, em oposigio aos “indios bravos" (nto pacificados). Antigamente, os homens tinham que ficar de prontidio na casa dos homens para defender a aldeia contra o ataque dos inimigos E a valorizagio do homem enquanto guerreiro que poderia oferecer pistas para entender a violéncia praticada pelos homens contra as mulheres.** Faz parte da ceriménia do milho,** % A questi "Payakin”estouou na imprensa povco tempo aps a redasdo original dese artigo. Seguro fontssatamente confides (MOREIRA, Memslis. "Eup vrs desclpa pars racism) IN Folia de S. Paulo. 15/883, « duas commicarses pessos), ¢ de conhecimesto piblico em Redangio gue Silvia Leticia Ferera que actsou Payakan de estupedl.ora a amaita dele a fpoca A expore dels, Ick tea apres smart do marido ao agra mua stugio amorosa 100 Vanessa Lea cortar os cabelos das mogas (mekurerere) & escolher algumas que sio levadas ao mato por alguns homens para ter relagdes sexuais com eles. E algo temido pelas mogas e atualmente censurado porque "o branco ensinou que nao se deve fazer isto” ‘mas ainda acontecia no decorrer da minha pesquisa. Uma grande ceriménia de nominagdo é realizada, em média, duas vezes por ano, Antes de encerrar a ceriménia ha uma danca do anoitecer até 0 amanhecer, e, durante a noite, qualquer mulher cuja relaclo com uma das criangas festejadas seja de Avarey (uma categoria que inclui a inma do pai e a avé matemna e paterna), sabe que & uma candidata potencial para ter relagdes sexuais com os homens. Eles selecionam algumas mulheres que so levadas a0 mato para ter relagdes sexuais com quem o desejar. Atualmente os homens se censuram, mas a pratica continua. As mulheres pareciam encarar isto como um servigo que elas prestam indiretamente aos seus tabdzwé (0s fills dos inmios e 03 netos). Nao sei se as relagdes sexuais com as mocas na ceriménia do milho € também atribuida alguma eficicia simbilica. E provavel que seja um rito de fertilidade. Uma outra pratica que parece estar sendo abandonada € a de uma troca generalizada de parceiros sexuais no decotrer de determinadas ceriménias (W. Crocker** descreve esta mesma pritica entre os Ramkokamekra- Bayakan fo iterveio para proteper a amante, Uke foi provacada por Silvia Lata por fo ‘poder dar mais fhe ap maids O meuno médico qos ia igado a» Compas de Hsia, om se fcesearmente, fez & acusapto de etypro contra Payakan. A impress, parcalemente a rvisa ‘Nga (GOMES, I. SILBER P.-"A explosio do imtinlo slvazan’, IN Yea tno 5 2 24) 10632), epeou oo sensacionasno para fates com o caso no decomer do mega evento ecogico Eco 92 Irocameats, quem denou 9 escndal fo novamers, uma mulher Mebongek,emcra isto ndo soa rconhocid publican ts hoje 35 Ean connie &relizadsanualmate para acmapaa ilo do mil, deem pio a amadurcemento, A coliefa de mule mica um gore ciclo do calendino anal quando os abengokze votam de suss perambulorées (pots) proongadas no mato (quando visam dos rots da cara da clea para, no decome dos pros meses, comers prods das 0725 M6 CROCKER, WH. 'Estamantal Semel Practices of the Ranksskamlae-Canela Indias an analysis of sociocultural factors", IN Native South Americans: Evology of the least knowns contnene, P- Lyon org) Boston, Lite, Brown + Co. 1974 (196). 10 Genero feminino Canela, um povo Timbira-I8). Cada muther solteira era levada pelo braco para ter relagdes sexuais com um homem maduro cada mulher madura era levada pelo braco para ter relagdes com um rapaz. Um lider afirmou que ele proibia isto porque provocava muita briga por citime, Alidis, disputas em relagio a atengiio das mulheres so tidas pelos Mebengokre como a cauisa principal de conflitos entre os homens, levando até a cisio de aldeias. A iinica explicagdo que consigo encontrar para 0 fato de os homens amedrontarem as mulheres para "mostrar servigo” enguanto seus protetores. Um medo que paira sobre as mulheres € 0 de serem raptadas por indios bravos. Antigamente, aldeias de inimigos Mebengokre também raptavam mulheres. E plausivel que os homens ensaiem sua ferocidade com as mulheres, atestando, deste modo, a eficicia da sua belicosidade. Bamberger’” desereve os "estupros coletivos" ("gang rape") dos Mebengokre como um castigo. Acho absurdo falar em castigo na auséncia de uma ofensa, Bamberger atribui aos Mebengokre uma ideologia masculina expressa na humilhagio ritual das. mulheres.>* Parece-me que a visio, de tipo gangora, de Bamberger” - caracterizada pela dominag3o e terrorismo masculinos ¢ pela subordinagdo feminina - é uma projegio das condigdes que definem a sociedade ocidental tradicional. W. Crocker que estudou uma sociedade (os Ramkokamekra) muito proxima culturalmente aos Mebengokre, oferece uma interpretagio de priticas sexuais que expressa melhor a visio indigena. Uma mulher que se recusa sistematicamente a ter relagdes sexuais & rotulada de "mesquinha" e isto é uma das 37 BAMBEROER J. Op cit1974, pp. 278 38 BAMBERGER, J: Op cit. 1974, pp. 278. 38 BAMBERGER, J: Op cit.1974, pp. 276 40 CROCKER, WH-Op cit 1974 (1968) 102 Vanessa Lea acusagdes mais pejorativas que existem nas sociedades dos 18 setentrionais. ‘A deserigiio da sexualidade Ramkokamekra pelo casal Crocker! & a melhor etnografia da vida sexual de um povo Jé. Os autores fazem uma associago interessante entre a injuncio cultural de ser generoso com a propria sexualidade e um ethos anti-individualista. Descrevem todo um proceso de socializacao para a aceitacio de "sexo seriado" ("sequential sex") pelas mulheres, refutando a pertinéncia do rotulo de estupro para as ocasides cerimoniais quando uma mulher mantém relagdes com uma série de homens. Na era pés-aids hd uma tendéncia a representar 05 indios como sendo puritanos. Os Crocker®? nio caem nesta armadilha, mostrando que relagdes sexuais so 0 que ha de mais divertido na sociedade Ramkokamekra ¢ aquilo que traz maior alegria na vida cotidiana. Lembro que Verswijver (comunicagao pessoal) achava que a questao da sexualidade poderia contribuir para desvendar a realidade Mebengokre. Ha muito tempo a mulher vem sendo analisada como reprodutora, mas, pelo menos do ponto de vista dos Mebengokre, a preocupacao com as relagdes sexuais € muito mais prevalente, no cotidiano, do que a de procriar. Curiosamente, © homem é sempre visto como "mexendo" com a mulher, sendo 0 oposto inconeebivel, embora isto nio signifique que a mulher nfo possa tomar a iniciativa num flerte. No Alto Xingu, os Kuikiiro diziam para Franchetto** que "a vagina é cara” e, entre os Mebengokre e os Kuiktiro, 0 homem & representado como quem quer ter relagdes simplesmente por 41 CROCKER, W. 1+ The Cola Bonsngtnoug ehip rt, and se Fort Wort Ha ager and Winston. 1998 82 CROCKER, W. 0p cit. 1994 43 FRANCHETTO, B: "A vapinn 6 cara © qutda: Repeosentagies sabre o() saxo(s) 3 semualdade ete os Kuktivo (Karis do Ao Xiagn, MS)" Takao apeseata 4 X2Y Rewiao G2 ABA, Nien, Ri de Fneiro. 1994, 103 Genero feminino deseja-las, enquanto para a nmulher, 0 ato sexual & uma via de acesso privilegiada a bens manufaturados - migangas, pano, sabonete etc. Antigamente, era peixe e carne que os homens davam para suas amantes, 0 que lembra a hipétese levantada por Siskind# a respeito da troca de sexo por proteina. Eventualmente, as mulheres podem dar algum alimento para seus amantes, mas ficou evidente que os Mebengokre acham estranha a idéia de ter relagdes de graga, fora do casamento, Sexo é um servigo que integra 0 pacote do casamento; mas, entre amantes, & algo pago pelos homens. Um homem desprovido de bens que atraiam as mulheres nao conseguiré nenhuma amante; embora uma mulher tenha me contado que um homem tinha feito feitigo contra seu filho por ela ter se recusado a manter relagdes com ele. Nas admoestagdes de um sexo pelo outro, ouvi um chefe solicitar as mulheres que parassem de ficar estipulando o que queriam em troca de uma relagao sexual porque "na cidade tudo esti muito caro". Em outra ocasio, os homens foram aconselhados a retribuir as mulheres na ocasido da relagdo, para evitar pedidos inflacionados depois. Soube de um caso de uma menina que recebeu dinheiro de um amante sem nenhuma conotagao de "prostituigo”. Dinheiro, como qualquer bem, pode ser coneebido como uma dadiva, um presente. Os Mebengokre foram sempre deseritos como monogamicos, sendo que um homem nunca convive com mais de uma mulher. No entanto, as relagdes extra-conjugais so tio prevalentes que a rotulagio monogamica tende a ser enganadora, No livro de Nimuendaju** sobre os Timbira Orientais (também 58), traduzido por Lowie, hé uma categoria de mulheres “4 stsxIND, 5: To fame she morning London, Oxf Univ ress 1973 45 NIMUENDAIU, C: The East Tinbiva Besley e Lox Angels, Uni. of Caifonia Pres ‘New York Kraus Rept Co, 1946(1971), 104 Vanessa Lea rotuladas "wantons" em inglés, um termo pejorative, com conotagies de promiscuidade. Na realidade, parece que Nimuendaju esti se referindo as solteiras - mulheres disponiveis,*6 © 0 significado de promiscuidade varia de sociedade para sociedade ou até de época para época. Para os Mebengokre, o auge da atividade sexual esta na adolescéncia, quando ¢ normal ter muitos parceiros. A partir do nascimento dos filhos, a atividade sexual vai diminuindo, especialmente para as mulheres; sempre rodeadas por criangas pequenas que podem. delati-las ao pai, t&m menos oportunidades do que os homens de terem casos extraconjugais sem serem descobertas. ‘Numa ocasido, ouvi um homem aconselhar as mulheres a ado serem ciumentas, e uma mulher retrucou que os homens so ciumentos "para valet" (Guinhinhi réyts). Os homens traidos costumam bater nas mulheres podendo também agredir o amante, Como as deserigdes de Gregor sobre 0s Mehinaku.*” as relagdes extra-conjugais fazem parte de qualquer casamento Mebengokre. Divoreio ¢ corriqueiro. Tanto a mulher quanto 0 homem pode tomar a iniciativa, se o cénjuge & preguicoso ou bravo, se tiver fome de amantes,*® ou se seus filhos morrem. A separagao ¢ tio freqiiente apés a morte de fillios que parece ser tomada como indicio de que © casamento falhou, Mulheres que sio 46 Womer (WERNER D. ‘“Mulbaes Soltis care os MekranstiKavapo', IN amudrio -Anmopolegice. 198), goa pasquaou os Makranot, 0s Matongokre do Pars, fra que 0 t7mo ‘npr em mebengoke refere especficunana is mies soltoras. Acho que iso ¢ comet is dhscord quan ele as compar a prosuias em nose sociedad Ente os Mebengole, como exite f= Kini doo Xinets sualherrlapdo sl conn ume ama deve sa shi socn a resale. Wemer purer desconiecer info quaado inte na eustéacia de "Pad sex specs (WERNER, D- "Pad sox spanaits among the Melrancti”, IN Journal of srvivopolagical Research (Vol 4083). 1985). 47 GREGOR, T: Mehinalu. Chicago, University ress. 1977 48 yo prim = expos mant fom; ied prim = marido‘amante foe 105 Genero feminino abandonadas no decorrer da gravidez podem recorrer a0 aborto ou infanticidio, embora isso nao seja obrigatorio. Em mebengokre, uma mesma palavra serve para designar tanto a esposa quanto a amante (pro); ¢ uma mesma palavra designa 0 marido e o amante (mied). O ednjuge é distinguido do amante pela qualificagio d=woy, verdadeiro, ou kumre, um intensificador. Kro‘ay ou kadk so sinénimos e sio os qualificadores que designam 0s amantes; costumam ser traduzidos como "falso” ou “inauténtico”, mas a conotagao & mais de distincia ou diluicdo de intensidade. Em outras palavras, © cénjuge é aquele com quem se mora; o amante & uma espécie de cénjuge distante. Os Mebengokre diziam que, no passado, era muito mais freqiiente os homens terem fillos tanto com suas amantes quanto com suas esposas. Teoricamente, uma crianga pode ter n genitores; mas na pritica as pessoas costumam nfo ter mais do que dois. As vezes, ninguém assume a paternidade de uma crianga, falando em tons pejorativos e exagerados que a crianga & "de todos" (mekuni). Conheci um bebé, tido como tendo quatro genitores e que viveu poucos dias. Este caso ilustra 0 perigo de ter genitores demais. O pai, a mae ¢ os irmios de alguém que estiver doente devem seguir determinadas restrigdes alimentares para nao piorar o estado do doente. Quando alguém tiver muitos pais, ha maior perigo de algum deles ignorar o fato de seu filho estar doente e comer algo que acabe por maté-lo. Pessoas distantes de um casal tendem a pressupor que os fillios sejam deles, mas quem for mais préximo saber discriminar com maior detalhe quem sio os genitores de quem. Custei a reconciliar a ideologia uterina dos Mebengokre com a importincia dada 4 deteminagio exata do. genitor. Atualmente, vejo a chave para esta questo mum possivel sistema de alianga matrimonial, sugerida pela afirmagao de que: "E bom 106 Vanessa Lea quando uma mulher se casa com um amigo formal de sua mie." Os amigos formais sio herdados patrilateralmente (ou seja, si0 transmitidos de um pai a seus fills), e, na medida em que isto ocorre do decorrer de n geragdes, constituem-se de fato patrilinhas®® que se engajam num sistema de troca generalizada. Isto evoca o tema da heranca da afinidade que se originow nas sociedades dravidianas do sul da india e ¢ encontrado na Amazénia na forma do ‘dravidianato!s* Na sociedade Mebengokre, sexo (ou casamento) com amigos formais ¢ mal visto: quando acontece, cancela a relacdo de amizade formal.’ Estou pequisando a hipdtese da existéncia de um sistema de alianga matrimonial que poderia explicar o que tem sido deserito como um vies masculino na sociedade Mebengokre. A meu ver, a légica feminina e masculina operam lado a lado; as Casas, sendo exogimicas, trocam homens entre si os homens trocam mulheres, Bourdieu’? j4 mostrou como uma logiea masculina e uma feminina podem coexistir; isto parece ser que ocore com a escolha dos cdnjuges entre os Mebengokre. No caso, a logica oficial € a feminina, mas a instituigdo da amizade formal implica 49 radio es emis go macula signca qu wn cm cas co iba dea seg oral 50 Us ate pain» a “patina” org i evan cocina da spleag gro corer de sas gases, da anasto do argos fm J uh al a Shu fibos Esta queso & tds em mas debe em Lex CLEA, V- "Cases docu lado Stems simulado do alana rfree axe Metegole (3), IN Vives de Cato (or) Esraras Socas ameridias: esd da anropoiogia do parenesc. Rio de Sener, Eto GSUERY Nope) 21 ce VIVEIROS DE CASTRO, E:‘Aleus spect da finda no dinats enanSic! [IN Viveuos de eso e Camere da Cut (orm) dmazéniaetlogu historia vuligana. So Paulo, EDUSP. 1993 5 A login ¢esencihmente tics um hone dando so its oa su aio fons as 208 ania fore ds goes te concn ena spe (oso qu dsp een canis com ‘sda aerate) (CE LEA, V"Cattaedo ou Inds stems smd de bang referent aot Mebengokre (8), IN Vienos de Casto (rg) Exraturas Soes Amarin ‘tudo de crroploga do partes. Rio deni, Ears da UFR) Nope) 3 BOURDIEL, P= Op it. 1977 107 Genero feminino uma légica masculina, mesmo inconsciente, camuflada numa relagio diddica, ou seja, quando o que é enfatizado é que pai e fillio’a compartilham os mesmos amigos formais.** Em trabalhos marxistas, a contribui¢ao das mulheres as atividades econdmicas é considerada um indicador importante de seu status. Da perpectiva das atividades econémicas, as mulheres Mebengokre ocupam uma posi¢ao essencialmente complementar em relagfo aos homens; algo andlogo a nogdo chinesa de vin/yang. A complementaridade sexual € evidenciada pela nogao de refeicao "certa": no é bom comer somente proteina ou carboidratos, deve haver um equilibrio de ambas estas categorias, provenientes, respectivamente, dos homens ¢ das mulheres. Como um chefe aconselhou uma mulher que tinha abandonado seu marido: "Volte. Ele dara came para vocé e voeé Ihe dara carboidratos (dwé).” ‘As mulheres distribuem a maior parte dos alimentos. Quando os homens voltam da pesca, deixam os peixes dentro da canoa para as esposas apanharem. Espera-se que a mulher que ganha proteina de seu marido envie uma parte para a mie e irmis dele, mas ela € a agente da dadiva, As mulheres também dividem © que trazem da roga dentro de sua rede de reciprocidade, incluindo a mie e irmas do marido. Em termos quantitatives, os Mebengokre comem mais alimentos provenientes da roga do que proteina, mas a contribuigdo de ambos os sexos & equilibrada, em_termos ideoldgicos, no sentido de que as atividades de caga sio mais + Ht 18m femminologis Omaha (una tpologa na gual ¢ terminologia Mebengohre se enquséra) wna dominincia do prcpio masculio (HERITIER, F Llewercise dela pares Paes, Gallimard Le Seuil 1981, pp. 480) Os primos cruzads matrlteras si clasificados como os membros da geracio ascendente Os prunos cruzados painlsterats «80 classiicados como os membros da gers descendents (1) O caso Mebengaize nfo conctora esta daminizna do ‘Pincpio masine; ma Ite vive da enmiologin de parentesco parte de ep0 femiina « do $stena onouistico. Temsologia Omaha tenem a ser asocadas com patnkearilade, 20 2 Sstemas com una ibologa de descends erin como os Mbengokre 108 Vanessa Lea valorizadas do que as atividades agricolas. Eventualmente, as velhas (mebengete) saem pata cagar, carregadas de paus, mas isto é excepcional. A partir da aquisigio de anzdis e linha, através da sociedade envolvente, as mulheres comegaram a pescar com este método, mas ainda € uma atividade esporidica para elas.** Os homens derrubam a floresta primiria (as mulheres ajudam com derrubadas mais leves); as mulheres plantam, cuidam das rogas, fazem a colheita e a transportam para casa, Ambos 0s sexos realizam expedigdes de coleta no mato, Cada mulher que dispde dos servigos de um homem para abrir uma roga tem a sua pripria. Havia somente rogas coletivas de arroz (uma aquisigao recente), aos cuidados dos adolescentes masculinos. Nas rogas, cada mulher cuida da sua, Depois elas se reiinem pata dividir os fornos (&i), ou simplesmente para voltarem juntas para a aldeia. A comparagiio de cargas se da espontaneamente, mas funciona como um mecanismo de incentivo e controle social, na medida em que € vergonhoso trazer menos do que as outras, atestando a sua preguiga perante seus deveres. ‘A caca & mais valorizada do que o trabalho na roga porque é um esporte e imprevisivel. Os homens sentam no patio, 4 noite, contando as aventuras das expedigdes de caga. Com excegio de acontecimentos como pragas, 0 trabalho na roga & rotineiro e previsivel, nfo dé muito o que falar. No entanto, as idas e vindas das rogas poderiam ser deseritas como uma espécie de reunio feminina ambulante. As mulheres viajam em grupos, fumando cachimbos para afastar os espiritos e conversando longamente sobre quaisquer assuntos de interesse naquele dia. 55 Dascola (DESCOLA, P- La Nature Doméstique. Pars, Bd. de lx Mason des Scenes de Toran 1986) nota que na scisiads Achar. Eqaor ee mlhees pesca com anzieembora 1s tomb jamais empreavem arcos © lcs Oferce umn interretagso interessnte,ssgerindo aos a posca com auzl concebida como waa expace de cola e portato aad camo snd Shloge ents rdicionalment emi, 109 Genero feminino Outro local de reunides femininas é a Agua; entre outras coisas, elas comem batatas dentro d'égua, refrescando os bebés & conversando entre si, As mulheres também se retnem para se pintarem. Os homens se queixam de que as mulheres fofocam no mato e, efetivamente, o isolamento relativo de um grupo de mulheres oferece oportunidades para abordar assuntos que seriam impossiveis na aldeia, As fofocas constituem um fendmeno de micro-politica, para arejar assuntos que podem ser resolvidos neste nivel informal; um determinado assunto pode toma-se de conhecimento piiblico, sendo entio discutido na casa dos homens, de onde pode ser levado a coletividade. Até a época da pacificagfo, as mulheres construiam as casas. Estimulados pelos Villas Boas a copiar o estilo regional, de casa de pau-a-pique, os homens passaram a construir as casas. ‘As mulheres ainda transportam palmeira para cobrir 0 teto, e na aldeia Mebengokre de Gorotire (Para), vi mulheres transportando tijolos para construir casas com o dinheiro proveniente do garimpo de Cumaru, ‘As mulheres cortam e carregam lenha, machado num ombro e bebé no outro. A idéia, freqitentemente aceita em nossa sociedade, de que a gestagdo ea amamentagao determinam a alocacdo de tarefas na divisdo sexual de trabalho nfo se sustenta no caso dos Mebengokre. Embora os proprios Mebengokre considerem que os homens fazem as tarefas mais pesadas isto freqiientemente se reduz a retorica hoje em dia. Quando a caga era mais abundante, os homens tinham que transportar antas, caitetus ete, através de longas distincias, No local da minha pesquisa de campo, a pesca era mais abundante do que a caga e 0 peixe era transportado de canoa, mas antigamente se comia mais came do que peixe e nio havia canoas. Quando os homens andam pelo mato, as mulheres carregam pesadas cestas de produtos da roga; os homens andam de espingarda no ombro, 110 Vanessa Lea com as maos livres, de prontidio para defender as mulheres de animais, ou indios bravos. E interessante a afirmago de Vidal:* de que atualmente as mulheres Xierin (também Mebengokre) trabalham muito mais do que os homens Uma atividade que poderia ser perfeitamente compativel com 0 cuidado de criangas pequenas, mas que é realizada pelos homens, é a fabricaco de artesanato - cocares, cestos e esteiras ete. A complementaridade simbélica dos dois sexos & evidenciada no artesanato, na medida em que qualquer item fabricado por um homem leva pingentes de algodio, ou usa algodao na sua estrutura, como cocares. Algodio é um produto exclusivamente feminino, fiado pelas mulheres, ¢ entregue aos homens de graca ou em troca de algo, conforme a relagio com 0 homem. Ha uma complementaridade sexual no fato de que os homens herdam o direito de comer determinadas porgdes de came enquanto as mulheres herdam o direito de criar determinadas espécies de animais. As mulheres criam filhotes trazidos do mato que entram e saem das casas como totens ambulantes. Se um animal de estimagao morde alguém de outra Casa, a vitima mata 0 animal e pode comé-lo, A dona do animal chora sua perda com se fosse um filho. Os Mebengokre lembram uma oposigao feita por Ortner (apud. Mukhophadyay:”) entre Iife-giver e life-taker (quem dé e quem tira a vida), com o titimo sendo mais valorizado. Os homens abatem drvores, animais inimigos, as mulheres nutrem criangas, a terra e fillotes de animais $6 VIDAL, L: "A muther indigens Kayapé" IN Mensageiro (2 63, abrifmaiofunin). Publicado do ConslioIndigenista Mission (CIM, Belem 1990, 57 MUKHOPADHVAY.CC. 2 HIGGINS, PJ: "Autvopological studies of womens stats revisited 1977-1987", IN dua! Review of snthropology (#217). 1988, mn Genero feminino Ha algumas distingdes entre a fala feminina e a masculina, embora isto talvez no seja tio marcado como é 0 caso com linguas Tupi-Guarani. Para dar apenas um exemplo, as mulheres exclamam beri tuka enquanto os homens exclamam beri be. E também significative que somente as mulheres dangem nos funerais femininos e somente os homens dancem nos funerais masculinos, ‘Vidal’* menciona que as mulheres no falam em piblico. As mulheres Mebengokre no fazem discursos notumos em piiblico, como fazem alguns homens, mas o género de fala feminina corespondente 4 oratéria masculina é 0 choro ritualizado.*? As mulheres Mebengokre costumam falar em tons meio rispidos, e 0 choro ¢ feito em tom agudo. O choro ¢ uma arte altamente estilizada, acompanhada de toda uma performance teatral, Cada vez que uma mulher é lembrada de algum parente proximo defunto, reeém-morto ou nio, ela se di pancadas de facio no topo da cabeca, fazendo escorrer sangue pelo corpo. Logo em seguida, a mulher se joga no chiio para tras; levanta-se e joga-se novamente, podendo repetir isto imimeras vezes até que algumas mulheres resolvem intervir, apropriando-se do facao e segurando a mulher. Embora raro, mulheres chegam a morrer deste jeito. Elas acham que as brancas reagem friamente & morte de seus filhos porque nfo fazem isto, Vidal fala na oferenda de sangue, mas acho que esta afirmagao nao se sustenta na medida em que ninguém me fez nenhuma mengo de algum espirito com SSDAL Ls Me eva de macnn air Sa Pa, at 17 59° comparivel com o choro de carpideira mas no ¢ anilogo As mulheres choram quando qual pets nt ou haben mam agus dan Petia o chron ln ne Eis Far pre, tanto, de qalgnr gre comin quo amber nam de sas ‘poor Prom ree, pblr sms donor miso xe eer fle 6OVRDAL, L: Op. cit 1977. pp. 147, 188 12 Vanessa Lea sede de sangue. Tampouco posso oferecer uma explicagio melhor. © choro de bebés encarado como algo patologico; deve ser evitado a0 maximo. Mas 0 choro das nmulheres adultas & reconhecido como um dos saberes femininos. As mulheres velhas também realizam um género de canto conhecido como "grande choro" (maré kati), atestando a desnaturalizacao e elaboracio simbélica do choro nesta sociedade. As mulheres carregam pesos enormes na cabega mas nao sofrem de angistias existenciais. Durante muito tempo, me incomodava no conseguir avaliar_ a posigo da mulher Mebengokre, mas agora enxergo melhor a complexidade do problema, A velhia nogio hierdrquica estitica, do tipo gangorra (dominagao/subordinagao), obscurece mais do que ihimina. O conceito de englobamento permite uma visto mais nuangada; ora a mulher engloba, por exemplo, quando seu choro ¢ ouvido pela aldeia inteira; ora ¢ englobada, por exemplo, quando os homens tomam decisdes relativas ao mundo dos brancos. Em termos de agency, espero ter mostrado que a mulher Mebengokre ¢ muito mais do que aquele rosto timido e submisso que contempla o forasteiro inicialmente. Nao conheci a jovem Tuire, para saber precisamente como chegou a fazer o que fez em Altamira, mas ¢ Gbvio que ela se comportou como uma velha. E nao foi a primeira vez que ouvi falar que as mulheres instigam os homens a brigar. Atualmente, homens jovens fazem discursos na casa dos homens em uma dade menor do que fariam antigamente. Quem detém saberes do mundo dos brancos se acha automaticamente mais. sibio globalmente, legitimando a precocidade. Por alguma razo, Tuire bancou a velha em Altamira, cativando uma platéia internacional. 1B Genero feminino Godelier*', como Bamberger,® acha que a subordinagio feminina € universal, mas suas reflexdes contém uma idéia sugestiva, © autor considera que as representagdes simbélicas que super-valorizam 0s homens podem funcionar para compensi-los pelo fato de no serem eles que pdem novas vidas no mundo. Ele se pergunta se o desejo do pénis, atribuido as mulheres por Freud, no etnocéntrico, "uma vez que em numerosas sociedades slo os homens que vivem..a falta da capacidade criadora da vida que as mulheres tém”.* Considero esta idéia atraente porque, em vez de atribuir 0 monopélio masculino de certas atividades ao fato de a mulher estar imersa em tarefas ligadas a sua fungdo reprodutora, permite vislumbrar as mulheres como tendo uma superioridade inata que os homens tentariam compensar. Isto é compativel com o argumento do "relative expendability" dos homens, articulado por Friedl (1975, apud Mukhopadhyay), © que poderia explicar seu monopolio de atividades violentas e petigosas. Ou seja, os homens sio relativamente mais "descartiveis” do que as mulheres, porque menos homens do que mulheres s40 necessarios para produzir e manter a prole. ‘Uma leitura dos Mebengokre que parte da violéneia praticada pelos homens contra as mulheres (como Bamberger), ou do fato de que os homens so sempre os porta-vozes oficiais perante 0 mundo dos brancos, acaba privilegiando um viés ‘masculino, Mas uma leitura que focaliza a ideologia uterina, subjacente as Casas, como constituindo a base da organizacio 81 GODELIER M: "HomenyMulber IN Enciclopécia Einaudi (n@ 20): Paretesco, Lisboa, Inrensa Nasional - Cas da Moeda. 1989. 82 BaMBERGER 1. "The mth of matriarch: why men rule in primutve society" IN Zn Tomer, CCulne and Sacieny M Rasaldo cL. Lamphore (orgs) Stenford, University Pres. 1974 © GODELIER M: Op cit 1989. pp. 162 64 MUKHOPADHYAY. HIGGINS, PJ: "Autvopslogical studies of womens stats ‘ented: 1977-1987", IN al Review of Anivopology #217). 1988. 14 Vanessa Lea social, permite detectar um viés feminino. A valorizagao, pelos proprios Mebengokre, do conhecimento das mulheres € da sua agency relativa ao sistema onomistico, pintura corporal, choro cerimonial a horticultura, evidencia o fato de que o rétulo de subordinagdo é inapropriado, Um lider Mebengokre me afirmou que "so as mulheres que mandam, mas com delicadeza, Nao se deve recusar o pedido de uma mulher." Nao estou querendo argumentar que as mulheres dominam a sociedade Mebengokre, mas tampouco séo vitimas passivas de agentes masculinos. GENERO FEMININO MEBENGOKRE (KAYAPO). desvelando representag-esdesgastadas Rest E.ie artigo tenta reconciliar representa des cpsstas das mulheres Mebengokre segundo sua caracterizayio na literatura antopoldgies e nos meios de cousunicacao de massa - como inupotentes ou muito poderosas, Desae aproximadamente uma ddécada atras, as teministas abandonaraa a nogao simplista da dominagao universa’ das mulheres, substituindo-a por uma perspectiva mais sofisticada que resultou do entendimento de que tanto as mulheres como o contesto da sua vida cotidiana sto multi-facetados. A nogdo de agency $ um instrumento ctil para reconsiderar a posigio ocupada pelas mulheres na sociedade E feita uma tentativa de analisar a construcao social de género na sociedade Mebengokre. E questionada a validade da dicotomia cléssica da antropologia referente aos J2/Bororo, entre uma esfera publica, cerimonial e politica monapolizada pelos homens ¢ uma esfera feminina periférica, privada e domestica, A sociedade Mepengokre & uma sociedade de casas no sentido Levi-Straussiano. As pessoas pertencem a Casa, cada qual ocupando uma porsao fixa no curculo da aldeia, Em 1s Genero feminino suma, as Casas, que implicam em uma ideologia uterina, foram ignoradas por outros antropélogos. Reconhecidas como © traco fundamental da organizacao social, transformam nossa visto das mulheres Mebengokre. GENERO FEMININO MEBENGOKRE (KAYAPO): unvellng wasted representations Abstract: This article attemps to reconcile opposed views of Mebengokre women as they have been portrayed in the anthropological literature and in the mass media - as powerless or as mighty forces. In the last decade or so, feminists have abandoned the simplistic notion of the universal domination of women, replacing this with a more sophisticated perspective stemming from the realization that both women and the context of their daily lives are multi- faceted. The notion of agency is a useful instrament for reconsidering the position occupied by women in society. An attempt is made to analyse the social construction of female gender in Mebengokre society. The validity of the classical anthropological JBororo dichotomy between a public, ceremonial and political sphere monopolized by men and a peripheral, private, domestic female sphere is called into question. Mebengokre society is a house-based society, in a Lévi-Straussian sense. People belong to their mother’s House and all heritable prerogatives and wealth belong to Houses, each occupying a fixed portion of the village circle. In sum, Houses, entailing 2 uterine ideology have previously been overlooked by anthropologists. Faken as the major feature of social organization, they alter our view of Mebengokre 116

Você também pode gostar