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A ARTE DE DESCREVER A ARTE HOLANDESA NO SECULO XVII Svetlana Alpers ‘Tradugao de Antonio de Padua Danesi Copyright © 1983 by The University Press of Chicago Titulo do original em ings: Phe An of Descrbing Dos Intermacionsis de Catalogasio na PublicagSo (CTP) (Chiara Brasilia do Live, SP, Bras) ‘pers, Svetlana ‘A Ane de Descrover: A Arte Holandesa no Séeuko XVI Svedana Alpes; uadugeo Antonio de Padua Dansi So Paulo editors da Universidade de Sto Paolo, 1999, Tht origina: The at of describing ISBN: 85314-04649, 1, Pinter blandess. 2, Pinta moderna ~ Séculs 17 € 18 — Holands 1. Tuo, 9.3574 epp-739.9492 Tacicer para eailogo sitemaeo 1 Pintores holandess: Apreciogio critica 759.9492 Discos em Unguaportaguesa reservados 8 Edoxp — tor ds Universidade de Ss0 Paulo Av, Prof, Laciana Gualbert, Travess J, 374 6 andar ~ Ba, da Atiga Reiia~ Chae Universiria (05508-900 ~ Sto Paulo SP Brasil Pax (O11) 818-4151 Tel. O11) 818-4008 ou 818-4150 vwwwaspuedusp ~ ema: edusp@eduspuspbe Printed in Braait 1999 Foi feito o depo legal 45 1, CONSTANTIN HUYGENS E “O NOVO MUNDO” £ um lugar-comum dizer que se despenderam poucas pa- lavras sobre arte na Holanda do século XVII. Se alguém quiser saber 0 que os holandeses pensavam a respeito das imagens que eles proprios produziam, compravam e contemplavam, terd de se ater a uma parca documentagio: as sete cartas preservadas de Rembrandt comparadas &s centenas de Rubens; Vermeer nao se mostra sendo indiretamente, através dos documentos legais que se relacionam com sua familia; listas de artistas feitas em suai cidades natais, por vezes amplificadas com modestas observagdes adicionais ¢ que so parte das publicagdes comemorativas con- sagradas a cidades especificas. Os tratados te6ricos holandeses subscrevem, pelo menos nominalmente, nogdes de arte desen- volvidas e praticadas fora da Holanda — na Franga e na Itdli ‘Temos poucas informagdes acerca do comissionamento de obras, porquanto a grande maioria delas era produzida para 0 merca- do, ou melhor, para os mereados. Eram vendidas ou na loja do pin- tor, ou em barracas de quermesse ou, se assumissem a forma de gravuras, num livreiro dedicado ao comércio de mapas, livros ¢ gravuras impressas. Obras de arte sfo registradas em inventérios segundo categorias tematicas (como paisagem, cozinha, banquete ou companhia) que dio uma idéia muito palida de como a arte era percebida, usada ou entendida. O fato de a arte holandesa ser quase sempre independente dos textos, que constitufam a base das pinturas hist6ricas, tornava-as também independentes do comen- trio. Tinha razio Reynolds quando se queixava de que é impos- sivel contar a histéria da arte holandesa: tudo o que se pode fazer 6 contemplé-la. Uma causa da atragiio que as inscrigdes em livros emblemiticos exerceram sobre os intérpretes modernos € que, até certo ponto, elas nos facultam algum acesso verbal a obras quan- to ao mais silenciosas'. Um rico e surpreendente testemunho sobre a maneira como 's holandeses concebiam as imagens so os escritos de Cons- tantijn Huygens. Por muito tempo os historiadores da arte citaram a Autobiografia de Huygens em fungao de sua precoce defesa de Rembrandt e de seu gosto pelos artistas holandeses da época. Ignoraram porém um tipo totalmente diverso de preocupagao com as imagens, que se pode detectar no mesmo texto ¢ em outros escritos de Huygens. Constantijn Huygens (1596-1687) era filho do secretério do primeiro governador de provincia da nova Reptiblica Holandesa e sucedeu a seu pai nesse cargo’, Combinou 1, Parn um estado slido © minvcioso dae palavras vssdas pera mencionar of pintores © ss pitas os manvais¢inventrios holandeses da epoca, ver Lyla de Pauw-de Veen, ‘De begrippen ‘sci’ "schilden en “schlderen’ in de zeventiende coun”, Verhandelingen van de Koninklijke. Vlaamse Academie voor Wetenschappen, Letteren en Schone Runsien van Belgie, Klasse der Schone Kansen, 3, 1,22, 1969, As pesquisas do econemista J M, Monti sabre a pradugaoe consumo de ate oa Holanda esto acrescentanda muito a nossa campreenso do medo come opersva o mercado de ane. Mas os est- tiosos de are devem ainda considerar como a fungdo és imagens como mercaria Ines aftava ‘paréacia e a manera como eram vistas na época. Ver J. M. Mons, Avists and Artisans in Delft in the Seventeenth Century: A Socio-Economic Analy, Princeton Univesity Pres, 1982 ( mais intctigente esto geral de Constantin Huygens € ainda ode Rosalie L Coie, Some Thanfuness 10 Constantine, Haia, Martinus Nita, 1986. Pas os peimeiros dias de Huygens na Inglatena, ver A. 46 a7 © servigo ao Estado e a ortodoxia religiosa com uma varieda- de de aptidées artisticas e intelectuais, O alatide, os globos, 0 compasso ¢ a planta arquitetonica que se véem ao seu lado no retrato de Thomas de Keyser (Fig. 1) indicam apenas alguns dos interesses ¢ talentos de Huygens. Versado nos classicos, escritor, poeta e tradutor de Donne, sua biblioteca chegava a quase meta- de do tamanho da que possuia o rei da Franga. Muito viajado, ainda jovem Huygens foi convidado para tocar alatide diante do rei inglés. Profundamente interessado, tanto pela arte como pela ciéncia da época, foi ele quem impulsionou a carreira de seu famoso filho Christiaan. Huygens nao era um holandés comum, mas hé muita verdade na afirmagio de Huizinga, segundo a qual, para entender a Holanda € necessario ler Huygens. Quando 0 Iemos, 0 que nos impressiona é menos a estatura que a amplitu- de do homem. E uma amplitude que permite a Huygens abarcar e revelar em seus escritos muito do que estava em voga no seu mundo. Em 1629, aos trinta e trés anos de idade, tendo percorrido pouco mais de um tergo da jornada de sua longa vida, Huygens consagrou-se a tarefa de langar por escrito a hist6ria de sua vida até entdo. Esse fragmento autobiografico foi escrito em latim e per maneceu inédito até ser descoberto em fins do século XIX°. A fa- milia de Huygens e sua educagio, que seu pai fundiu nos moldes H, Bachrach, Sir Constantine Huygens and Britain: 1596-1687: A Patter of Cultural Exchange, vl. 1596-1619, Leiden University Press, 1962; Londies, Oxford Unversity Press, 1962. Bachrach continuo ‘trablhar sobre Huygens eum trecho dese prximo liv est incido na pblicago do recente sips sio sobre ofilho de Huygens, Cristian, Ver A. GH, Bachrach, “The Role ofthe Huygens Family a Seventcenh-Century Dutch Culture”, Staies on Civistin Huygens, Liss, Swets and Zeiinget B. V. 1980), pp. 27-52. Para eggs modernas dos pocmase cartas de Constantin Huygens, ver De gedchten aun Constantin Huygens, 3. AWorp (ed), 8 Vols, Grocingen, Wolters, 1882-1898, e De briefwiseling Pd), Hai, Martinus Nil, 1911-1918, a Constantin Hagens, J. A. Worp 3.0 manuserito latina, eserito entre 11 de misio de 1629 abril de 1931, encontase hoje na Royal Libary de Hsia 0 texto complet foi publica por JA. Worp, "Fragment cener Autobiogzaphie van Constantin Huygens”, em Bjdragen en Mededeelingen van het Mistorisch Genootschap, 181-22, Uceht, 1897. Mi has referencias erdo a esa wansrigio. Para uma tradugio holandest publicads pel primeira vez tan 1946 e recentemente reditada, ver A. H. Kan, De Jeugd van Constantin Haygens door hemcel? berohreven, Rott, Ad, Donker, 197 1. Thomas de Keyser, Constanta Haygens ¢ seu Arsitente, 1627, com persia dos Coradres da Nationa Galley, Lone. 49 aristocraticos internacionais da época, deu forma ao seu relato. Assim, o adestramento no desenho figura ao lado da lingua, da li- teratura, da matematica, da leitura e mesmo da danga. O texto de Huygens pode ser lido, em certos aspectos, como um manual pe- dagégico. Difere das autobiografias contemporineas, nas quais autores aristocréticos, como Sir Kenelm Digby, dio pouco espaco 2 educaco e dedicam-se, pelo contrario, ao romance da vida, Mas Huygens aproveita a oportunidade que lhe é dada pelo tema edu- cacional para varios comentirios ¢ digressdes que estzio entre as partes mais interessantes do fragmento*. Conhecimento ¢ amor pela arte-mesclam-se com chauvini: mo na passagem, tantas vezes citada, em que Huygens fala de sua educagio artistica e explica a arte e os artistas da Holanda de seu tempo’. Escrevendo sobre sua prépria educacio, Huygens se queixa especificamente de que seu artista preferido, vizinho e ve- Iho amigo da familia Jacques de Gheyn Il, ndio quis ser seu pro- fessor. Dai que ele no tenha tido a oportunidade de aprender a arte de representar rapidamente as formas e outros aspectos das ér- vores, rios, colinas etc., que os setentrionais — como Huygens afirma, e com razio — fazem melhor ainda que os antigos. Em vez disso, Huygens estudou com Hondius, gravador cujos tragos duros e rigidos eram mais adequados para representar colunas, mérmore ¢ estruturas estiticas do que coisas méveis, como grama e folha- gem, ou o encanto das ruinas. Em sua avaliagao dos artistas ho- landeses, Huygens reconhece e elogia em particular as habilidades dos retratistas e paisagistas setentrionais. Diz ele, com agudeza, que esses artistas conseguem representar até mesmo o calor do sol € 0 movimento das brisas. Mas, embora clogiando a perfei Gnica dessas representac6es naturais, Huygens jamais questiona a tradigio artistica mais antiga, estabelecida. E, sem embargo de 4, Por a naureza dos esritos autobiogréfeas da época, ver Paul Delany, British Autabiography in the Seventeenth Century Landes, Routledge and Kegan Pal, 1969 5. "Fragment eener Aucbiographic™ pp. 63.8. sua refinada compreenso dos pintores holandeses, ele concede a Rubens a palma de maior artista da época. O fato de Rubens, que viveu em Flandres, ser considerado por um holandés como artista nativo nos dé uma idéia do panorama politico da Holanda setentrional, Além de revelar sua predilegio por Rubens, isso mostra a concepgao artistica de Huygens. Obvia- mente, ele avalia a chamada pintura hist6rica como a mais alta forma de realizagio artistica, E igualmente notéivel que Huygens distinga Rembrandt como um futuro grande artista — notavel tanto em vista da natureza idiossinerética dos talentos de Rembrandt como em raziio de seus comegos incertos: os primeiros trabalhos de Rembrandt ndo foram nada promissores. Mas esse jufzo ainda alinha-se a uma tendéncia voltada para a pintura hist6rica. A hiper- bolica assertiva de Huygens de que a Grécia antiga e a Itilia ser am suplantadas pelo filho imberbe de um moleiro holandés é feita nfo para questionar, sendo para aceitar o valor e as realizages da grande tradigao da arte tal como ela era vista na época. Em har- ‘monia com isso ele recomendou, embora em vaio, que Rembrandt fosse a Itélia para ver as obras de Rafael e Michelangelo. A arguta distingdo que Huygens faz entre a expressividade de Rembrandt € 0 vigor das figuras produzidas por Lievens, seu colega de esti- dio, esta implicita nos préprios termos em que a grande tradicio era convencionalmente discutida, Huygens atuava com freqiién- cia movido por essas convicgdes. Nos anos de 1630 ¢ 1640 ele negociava com Rembrandt, em nome do governador, com vistas a uma série de quadros representando a Paixio de Cristo, e na meta- de do século juntou forgas com o arquiteto Jacob van Campen, um dos fundadores do classicismo holandés, para trabalhar no progra- ma alegérico das decoragées que celebravam a Casa de Orange no Huis ten Bosch Essa concepedo tradicional da arte s6 se mantém nas passa- gens que Huygens dedicou A sua educagao artfstica e aos art tas contemporaneos. Os historiadores da arte nfo deram maior st atengiio ao resto da Autobiografia. A longa segio sobre arte foi extraida do resto do recém-descoberto manuscrito e, acompanha- da de uma tradugdo holandesa, foi a primeira parte a ser publica- da, Especialmente preparada em proveito dos historiadores da arte, ela precedeu a publicacao do texto latino completo. A tradugio mais recentemente publicada da tradugao holandesa incluiu um apéndice especial sobre Huygens como critico de arte, baseado mais uma vez nessa seco especial’. No entanto, se observarmos como as imagens e seus autores so invocados em outras partes da Autobiografia, encontraremos coisas surpreendentes. Huygens adota uma postura totalmente diversa com respeito a tradicfo em geral e oferece-nos uma compreensio diferente da natureza das pin- turas holandesas. E exatamente por ser ele conhecido como figura cultural classicamente orientada e humanisticamente engajada que 0 seu outro lado é tio surpreendente. E, se 0 que nos interes- sa so os quadros, parece-me que os holandeses eram preeminen- tes naquele aspecto da produgio pict6rica que correspondia, falan- do de modo geral, aos interesses ndo-humanisticos, cientificos, de Huygens. ‘A Autobiografia contém uma passagem de extravagante louvor as obras de dois homens a quem Huygens satida como os maiores pensadores de seu tempo, Francis Bacon ¢ Cornelis Drebbel: “Sempre tive o maior aprego por esses dois homens que ofereceram em meu tempo a critica mais excelente as initeis idéias, toremas e axiomas que, como eu disse, Veterum, quae dixi, inanium notionum, theorematum, axioma- le mea suspexil”. 1 antigos possufam tum censores praestantissimos duos 6, Asegdo selecionada sobre arte fi publicada pel primeira vez por JA. Worp, "Constantin Huygens over fe scildrs van zp, Oud Holland, 9:106-136 191. A.3. Kan, De Jeugd van Constantia Hype Bo. ‘2-147 incl um enstio de G, Kemp, "Constanin Huygens als kunsteriticus”. Para um comentiia ver Seymour S, Slive, Rembrandt and his Cites, Hai ponderalo sobre esa seg do texto de Huy Marinas Nii, 1953. pp. 9-26. Worp, “Fragment eener Autobigraphie", p12. Huygens conheceu, em uma das trés primeiras viagens que fez & Inglaterra, o filésofo inglés — a quem disse venerar com sagrado respeito — ¢ o experimentador holandés. Ambos se vam fora do programa educacional que seu pai Ihe preparara. A certa altura, Huygens precisou inclusive defender Drebbel contra a acusacio, feita por seu pai, de que era feiticeiro. Drebbel, inventor ¢ antigo entertainer da corte inglesa, era de fato uma figura ba tante curiosa.* Fabricou microscépios, inventou uma méiquina que seria capaz de manter-se em perpétuo movimento, criou um clavi~ cérdio que tocava sozinho ¢ construiu um submarino com 0 qual mergulhou nas aguas do Tamisa, para deleite ¢ pasmo da corte, mas que se revelou imitil ao ser experimentado como arma contra os franceses no cerco de La Rochelle, Parte necromante, parte experimentalista, de um tipo muito freqiiente na época, Drebbel chocou os seus contemporaneos como charlatio e pessoa indigna de confianga, € também como homem prodigioso ¢ inventivo — em suma, como impostor ou inventor. Nao é irrelevante para a nossa discussao da arte holandesa 0 fato de que, enquanto Huygens considerava Drebbel admirdvel ¢ suas descobertas fascinantes, Rubens mostrava-se suspicaz ¢ refratdrio, Numa carta de 1629 a0 célebre erudito Peiresc, um amigo com quem compartilhava inte- resses pela Antiguidade e pela ciéncia, o pintor flamengo nos diz, ter visto Drebbel numa rua de Londres. Com base nessa visio e na natureza de suas obras, Rubens sugere ironicamente que ele devia parecer maior visto a certa distincia do que de perto. Diferente- mente de Huygens, Rubens considera 0 aparetho de movimento perpétuo uma bobagem, ¢ mostra-se totalmente desinteressado por seu microscépio. Mas, sempre cavalheiro, ele se interrompe ¢ diz que se deve tomar cuidado para nao confiar nos boatos ao criticar uma pessoa de quem nfo se gosta, Num sentido profundo, nem 0 tipo de homem nem as suas experiéncias tinham qualquer atrativo 8, Sobre Deeb, ver Gest Tiere, Cornelis Drebel, Amster H. J Paris, 1932, €L. Es Harts, The Two [Netherlanders: Humphrey Bradley and Cornelis Drebbel, Leiden, E.. Beil, 1961 52 53 para Rubens. A visio de mundo de Drebbel, técnica e manipulado- ra, acha-se em flagrante contraste com os interesses textuais ¢ pic- t6ricos de Rubens’, ‘A ligacio de Drebbel com o mundo da arte holandesa vinha de Jonge. Em sua mocidade ele estudara em Haarlem com Gol- tzius, artista de proa da geragdo anterior, ¢ se casara com a irma cagula deste, Fez um mapa de sua cidade natal, Alkmaar, em 1597, a0 mesmo passo que se voltava para a criago de rel6gios, sistemas de fornecimento de égua e chaminés com desenhos aperfeigoados. As telages entre as artes e as tentativas de uma nova tecnologia experimental dedicada ao controle da natureza estavam bem con- solidadas na Holanda, O estatuto destes esforgos, porém, era por vezes suspeito. Embora elogiando os experimentos de Drebbel, Huygens criticava acerbamente o flerte de Goltzius com o que ele chamava de “a loucura” da alquimia. Curiosamente, entretanto, Huygens nao faz mengao alguma ao interesse de De Gheyn por pesquisas similarmente questiondveis. Distingdes entre verdade Joucura nem sempre se fazem com facilidade. Nas obras de De Gheyn deparamo-nos com justaposigdes de imagens que parecem expor esse problema, Um eremita-bernardo, por exemplo, de nhado em todos 08 seus erigados pormenores, ao lado de uma espé- cie de sabé de feiticeiras, coloca em termos pict6ricos a complexa relagio entre curiosidade e imaginagio (Fig. 2). A promogiio de Drebbel por Huygens alcanga o seu climax quando ele descreve a ocasiio em que olhou através do microse6- pio de Drebbel. Segundo ele, a princfpio, as pessoas que olham através da lente nada véem. (De fato, essa é uma descrigao correta do que ocorre quando se olha através da diminuta e imperfeita lente de um microsc6pio manual do século XVIL) Em seguida, elas bra- davam que podiam ver coisas incriveis. E um novo teatro da natu- 9, Charles Ruelens e Max Rooses, Correspondance de Rubens et document pistolaires concernant sa vie crocs oanges 6 vole, Antrpa, 1887-1909, 5153, A ertaesté poblicala em Ruth Magu, The Leters Up Peter Paul Rubens, Cambridge, Harvard University Press 1955, pp. 322-323 2. Jacques de Gheyn, Bremita-bemando e Hewaria (pena, tnt ¢ aquarela), Stdelshes Kunstinsitl, reza, um outro mundo. Se De Gheyn tivesse vivido mais, escreve Huygens, poderia ter usado seu fino pincel para pintar aquelas coisinhas, aqueles insetos vistos na lente. Tais desenhos seriam entdo gravados e as gravuras reunidas num livro que ele intitularia O Novo Mundo: Na verdade, objetos materiais que até agora cram classificados como étomos, uma vez que se subtrajam a vista humana, apresentavam.se to nitidamente aos olhos do observador que, mesmo as pessoas totalmente inexperientes, que olham para coisas que nunca tinham visto, queixam-se, a prinefpio, de nio estarem vendo nada, mas logo depois gritam que estio vislumbrando, com seus olhos, objetos maravilhosos, Porque, de fato, tudo isso diz. respeito a um novo teatro da natureza, a um outro mundo, e se 20 nosso venerado predecessor De Gheyn houvesse sido concedida uma vida mais longa, creio que ele teria avangado até 0 ponto para o qual comecei a impelir as pessoas — no contra a vontade delas —, a saber, a retratar os mais diminutos objetos e insetos 55 ‘com uma pena mais fina, ¢ depois reunir esses desenhios num livro que receberia o titu- lo de O Novo Mundo, a partir do qual exemplos poderiam ser gravados em metal [Corpora nempe, quorum inter atomos hactenus aestimatio fuit, omnem huma- ram aciem longe fugienta, inspectanti oculo tam distinete obiecit, ut, cum maxime vi- dent imperiti, quae nunquam videre, nihil se videre questi primo, mox, incredibilia coculis usurpare clamitent. Revera enim istud novo in theatro naturae, alio in terrarum orbe versari est et, si Geinio patri diuturnior vitae usus obtigisset, aggressurum fuisse credo, quo impellere hominem non invitum coeperam, minutissima quaeque rerum et insectorum delicatiore penicillo exprimere compilatisque in libellum, cuius aeri exem- plaria incidi potuissent, Novi Orbis vocabulum imponere]” Huygens olha através de uma lente e procura um quadro. Ao procurar um bom artista para representar o que vé através de uma lente microscépica, ele pressupde que a pintura se presta a uma fungdo descritiva. Ela nfo esta presa a conhecimentos recebidos e consagrados, mas a novas visdes de um tipo muito individual. De Gheyn era um artista que desenhava tanto a flora como a fauna em seus mais infimos pormenores (Fig. 3), ¢ Huygens busca ligar 3, Jacques de Gheya, pgina de um liv de desenhos (aquarela sobre veline), Fondation Costodia (co. Frits Lug’), Instat Néevlandais, Pars essas habilidades & nova tecnologia éptica e aos conhecimentos obtidos gracas a elas. O que é interessante para nés, contem- pladores de imagens, é a imediata conexiio que Huygens estabelece entre a nova tecnologia e os conhecimentos hauridos numa imagem. Essa invocacao das habilidades de De Gheyn é respalda- da por certa concepgio da pintura e da vista: desenhamos aquilo gue vemos ¢, inversamente, ver é desenhar. H uma suposta iden- tidade entre o ato de ver e 0 io de desenhar que se concretiza na imagem do artista, ‘Ao considerarmos o tipo de imagens que Huygens espera obter, nossa atengio se volta para coisas sobre a arte holandesa que pare- cem tio Sbvias que as temos como certas. A arte como registro da imagem na lente envolve qualidades que levaram os comentadores a considerar a arte holandesa como uma descrigdio do mundo extra- ordinéria e pacientemente executada. O simples fato de convocar De Gheyn para desenhar o que est na lente nao constitui base sufi- ciente para uma explicagiio geral da arte holandesa. Mas essa e ou- tras passagens correlatas dos escritos de Huygens sugerem certo espago cultural, que foi, na época, ocupado por imagens holandesas. A arte, como nos mostrou Clifford Geertz, é parte integrante de um sistema cultural, Diz ele que 0 tipo de presenga que a arte tem nao é um fato absoluto, evocivel em termos estéticos univer- salmente validos; é, ao contrario, um fato localmente espectfico: A definigdo de arte em qualquer sociedade nunca é totalmente intra-est6tica, € na verdade $6 0 € de maneira rara e marginal. O maior problema apresentado peto cstranho fendmeno da forga estética, em qualquer forma c em conseqiiéneia de que ha- bilidade for, é 0 de come inseri-lo em outros mods de atividade social, como incorpo- ré-lo na textura de um modelo particular de vida. E essa insergo, a de conferir a obje tos de arte um significado cultural, é sempre uma questio local; o que a arte 6 na China cldssica ou no Isld eldssico, 0 que ela é no sudoeste de Pueblo ou na Alta Nova Guiné, -xatamente a mesma coisa, por mais universais que sejam as qualidacles intrinse- ‘cas que Ihe consubstanciam a forga emocional (e longe de mim o desejo de negé-las) A vatiedade que 0s antrop6logos vieram a esperar das crengas do espitito, dos sistemas de classificagio ou das estruturas de parentesco de diferentes povos — e nfo exata 56 57 mente em suas formas imediatas, mas no modo de estar-no-mundo que ambos pro- ‘movem e exemplificam — estende-se igualmente a seus tambores, entalhos, cantos dangas", A auséncia de um discurso especifico sobre a arte holandesa pode ser uma beneao disfargada, pois nos encoraja a procurar fora da pr6pria arte indicios referentes ao seu estatuto, papel e signifi- cado na sociedade. E exatamente af que a Autobiografia de Huy- gens e seus demais escritos podem-nos ajudar. Eles abrem a pos- sibilidade de definir a natureza particular de uma cultura na qual as imagens desempenham to eminente papel. Ao sugerir a nova autoridade conferida a uma forma visual de conhecer, em oposi¢iio a uma forma textual, Huygens aponta uma razio para o primado peculiar que as imagens tinham na época. Porém, a variedade dos modos pelas quais as imagens cumpriram esse papel ¢ as carac- teristicas que elas ostentaram nesse processo ainda estéio por ser consideradas, Huygens conclui seu fragmento autobiografico olhando atra- vés do microsc6pio de Drebbel e proclamando a descoberta de um novo mundo. Em sua frase final ele expressa 0 desejo de aprovei- tar-se da conversa que tiveram, a mais interessante que ele ji expe. rimentara, Huygens ainda era jovem quando escreveu isso, ¢ tinha pela frente uma vida rica e variada, Mas os interesses que aqui se revelam esto muito longe daquilo que esperamos do humanista culto, as voltas com Iinguas antigas, citando a sabedoria consagra- dae celebrando Rubens. O artista e a arte estio ligados, nessa con- clusio, no aos temas nobres, aos corpos formosos e aos gestos expressivos da pintura histérica, mas muito simplesmente a0 mun- do visto, a0 mundo conhecido antes pela visio que pela leitura. Nem aqui nem em nenhum de seus escritos Huygens revela notar qualquer conflito entre os objetivos do saber humanista ¢ 0 novo conhecimento natural, da mesma forma que ndo vé conflito 11. Clifiod Geert, “Art as & Cultura System’, Modern Language Notes, 91475-1476, 1976 algum entre a pintura hist6rica e o que chamamos de arte de descre- ver. Logo depois de sua proclamagio do novo mundo visto através da lente de Drebbel, ele escreve: Nada nos obriga a honrar mais plenamente a sabedoria e 0 poder infinitos de Deus, 0 Criador, sendio que, saciados com as maravilhas da natureza que até agora foram Gbvias para toda mundo — visto que usualmente nossa admiragio arrefece & medida que nos familiarizamos com a natureza mediante 0 contato freqlente —, somos levados a essa segunda tesouraria da natureza, € na mais diminuta ¢ desdenhada das criaturas deparamos com 0 mesmo euidadoso labor do Grande Arquiteto, em toda parte uma majestade igualmente indescritivel{Infinitam Creatoris Dei sapientiamn ae poten- tiam venerari null re magis adigamur, quam si, satiati obviis cuigue hactenus naturae miraculis, quorum, ut fit, Frequent usu ac familiartate stupor intepuit, in alterum hune naturae thesaurum immissi, in minimis quibusque ac despectissimis eandem opificis industriam, parem ubique ct ineffabilem maiestatem offendamus}", Huygens manifesta um extraordinério otimismo com relagio a0 empreendimento da nova ciéncia por razdes teol6gicas tradicio- nais, Ele estava certo de que o grande plano de Deus era ser mais plenamente descoberto nas ligdes do microscépio € do telesc6pio. Esse sentimento confirmador nos traz 4 mente Bacon, o pensa- dor a quem, depois de Drebbel, Huygens mais admirava. Huygens € também um baconiano, na medida em que pensa nos tempos mo- dernos como diferindo do passado em virtude de conhecimentos realizagdes desconhecidos dos antigos. Esse tema é reiteradamen- te abordado por Huygens na Autobiografia, seja com 0 exemplo da superioridade da pregagdo de John Donne, seja com o da nova tec- nologia da lente. A despeito de sua educagio classica e de seu amor pelos autores antigos, Huygens adverte contra a influéncia que os antigos exercem sobre as mentes dos homens, Cita a certa altura um passo da Great Instauration de Bacon acerca desse ponto: Excetuando-se © que esté sob a influéncia de uma unanimidade firmemente arraigada no, por assim dizer, juizo do tempo, dependemos de um sistema de pens 12, Worp, “Fragment eoner Avtobiographie" p. 120. 58 ‘mento largamente falaz e infundado, de sorte que, em geral, ndo sabemos 0 que foi no- tado nas ciGncias e nas artes em diferentes perfodos e lugares e 0 que foi dado a pi bilico, e€ muito menos o que foi empreendido em silencio por individuos ¢ estudos. [Practerquam quod consensu [...] iam inveterado tanguam temporis iudicio moti, ratione admodum fallaci et infirma nitinur, cum magna ex parte notum nobis non sit, uid in scientis et artibus, variis saeculis et locis, innotwerit et in publicum emandrit, ‘molto minus, quid a singulis tentatum sitet secreto agitatum)". Huygens introduz o t6pico antigos versus modernos de um modo surpreendentemente anedético. Diz-nos que desde os de- zesseis anos de idade foi obrigado a usar dculos para ver mais cla- ramente. Aqueles olhos escancarados e protuberantes, que conhe- cemos to bem por seus retratos, eram fracos. Para seu deleite, Huygens conta a sua descoberta — confirmada desde entdio — de que 0 uso de lentes € uma invengdo estritamente moderna. Pode- mos admirar a Antiguidade, mas isso é uma coisa que eles nio conheciam. Numa longa “digresso sobre os culos”, & maneira humanista, Huygens nos fala da histéria e do uso das lentes. Muitos outros costumes, artes e ciéncias que os antigos desconheciam ain- da agora, ressalta ele, estdo sendo descobertos. Huygens passa en- jo de seus éculos a uma breve — conquanto falaciosa — avali- io da Optica e da geografia modernas. O contraste entre os ensi- namentos da Antiguidade e as descobertas da tecnologia e da cin- cia modernas 6 0 mesmo leitmotiv que ressoa em alto ¢ bom som no elogio que Huygens faz a Bacon ¢ a Drebbel"*. Huygens, claro, nfo estava sozinho ao discorrer desse modo sobre os antigos e os modemos, mas hé outra distingdo a ser feita. No complexo tumulto do velho e do novo, da teoria e da pritica, que provocou 0 que se costuma chamar de revolugao cientifica do 13. Adem, p. 113, 1M, Para a digress de Hoygens sobre ox deus, ver Wor, “Fragment eenerAutobiographie™ pp. 100. ‘Sobre © rublema de quem de flo Havent os Glee, ver © exaustivo estudo de Edward Rosen, “The Invention of Eyeglass" Journal ofthe History of Medivine and Alied Sciences, 1:13-306, 1956.0 ara tenia de que as lentes, bora conhecias, ram snteriormenteconsieradasnao-confitves, oi fr tao por Veo Ronchi em algunas de suae umerosaspublicages. Ver, por exemplo,o seu New Opi. Floreng, Le S. Olschki, 1971, pp. 25. século XVII, distinguem-se normalmente dois fatores: a pritica observacional e experimental — no sentido original de experien- cial — promovida por Bacon, de um lado, e a nova matemiitica, de outro. Por mais que se julgue a inovacao ou a contribuigao trazidas por esses dois fatores, € claramente o primeiro que Huygens invo- ca e com o qual se sente mais A vontade. Nisso ele esté de acordo com os seus conterrineos. Seu filho Christiaan, que partilhava dessa tradigdo, fez isso na Franga"®. Essa questo é néo apenas inte- lectual, mas também social. Ela envolve o tipo de pessoas que co- nhecemos e o mundo em que vivemos. O interesse de Huygens pela arte esta comumente relaciona- do com sua cultura geral, Um importante estudo afirma ter sido isso que 0 vinculou tao estreitamente 4 Inglaterra e as coisas inglesas. A. G. H. Bachrach diz: “Sir Constantine [ele foi agraciado com 0 titulo jé em 1622] [...] sentia-se igualmente em casa nos dois mun- dos em que a Inglaterra ¢ a Holanda respectivamente se distin- guiam — o mundo da miisica e da poesia € 0 mundo da pintura”". Embora esse académico holandés encarega 0 lado altivo, aristo- cratico e tradicional da cultura de Huygens, foi — apropriadamen- te — uma americana, a falecida Rosalie Colie, que exp6s 0 outro lado, 0 Huygens que apoiava os pensadores modernos ¢ a nova 15, 0 grupo irigente em Amster er insta a Europa dessa Space por seu interesse mas coca at ‘ais. Pars ura breve mas informativa exposgie sobre ose interes na novidad, que 6 aur chara igulamente de “virtude empresaia", ver Peter Burke, Venice and Amsterdam: A Sid of Seventeenth ‘Century ler, Londres, Temple Sith, 1974, pp 16:78. Sugeriase que mesmo Chistiaan Huygens com pata ds inelnag ies ptcas de seus conerneos Em seu sumiro da recente conferéncia internacional, ‘A. , Hill observ que “ds principss figuras da iénea frien do século XVM, Galiten, assent, Pas cal, Deserts, Huygens, Leibaize Newton, 0 holandés ¢ 0 daico que no € marcadamente un idsofo [Aplicar-he um termo como “postvista” sera, aro est, um anscronisma, de modo que die siplesnsea- tesque sua mente parece ter peferidoo que era concreto factual eevtad a metafsea eas panes expe cules". A. Ball, em Studies on Christiaan Hurgen, Lise, Swets and Zeilinger BX, 1980, p. 308, 16, A. G.H, Bachrach, Sir Constantine Huygens and Briain: 1596-1687, Leiden University Press, 1962; [Landes Oxford University Press, 196, p. 7. Ein tala mais recente, Bachrach parece ter desenvol 0 sinifcnivarnene sua compreensi de Huygens para inclu lanbém a ataglo deste por Bacon © DDrebbe, No entanto, em sus Enfase sobre o pape emblemstico, teal iosico desses ensadores, Bachrach confunde mais uma vez, euido eu, base du sragho de Huygens por cles Ver sua contribu Studies on Christiaan Hayes, pp 46-48 60 61 tecnologia contra 0 saber e a arte tradicionais, 0 Huygens cujo mundo inclu‘a Bacon, mas também Drebbel, “menor na hierarquia, mas néio no intelecto”, como ele préprio disse. Huygens tinha uma das maiores bibliotecas de seu tempo, mas também colecionava lentes, comprou uma camara obscura vinda da Inglaterra e patroci- nou Leeuwenhoek junto A Royal Society. Ambos os paises desta- cavam-se por uma cultura visual e tecnologicamente orientada, muito embora os ingleses tenham contribuido para ela mais com seus textos ¢ os holandeses com suas imagens, como veremos. Huygens no questionou a arte como transmissora de valo- res tradicionais. A longa segio da Autobiografia consagrada a sua propria educago artistica e ao inventirio dos artistas holandeses testemunham isso. No entanto, ele também pensa nas imagens co- mo destinadas de um modo muitissimo conereto ao registro dos novos conhecimentos do mundo visto. As imagens esto, pois, li- gadas a um avango do saber, na frase de Bacon, que Huygens ope especificamente & sabedoria do passado. ‘A mais extensa afirmagio disso € 0 grande ¢ inspirado Dagh- werck, ou O Trabalho do Dia”. Trata-se de um longo ¢ complexo poema de mais de dois mil yersos, com um comentario em prosa. Huygens comegou-o em 1630, em homenagem a sua esposa Su- sanna, a quem era dedicado, como um registro de sua vida didria com ela. O Daghwerck oferece uma versio atualizada da educa do exposta na Autobiografia. Dessa vez, porém, a educagio € de sua propria lavra, criada por Huygens para a sua esposa. Nela, Huygens leva as descobertas da nova ciéncia para dentro de casa, para deleite comum, educagio ¢ admiragao de ambos. Se Susanna nao tivesse morrido tragicamente apés 0 nascimento de um filho, em 1637, Huygens deveria ter continuado a fazer um inventério 17. A publieaso de A.J. Wop desse poema em De Gedicuen foi suplanada por uma nova ego ana, ‘pogh-werck van Constantin Hagens, FL. Zaatn (org), Assen, Van Gorcum and Comp. BLY, 1973. Minhas rcfetacas serdo aos nimers de vesos e 0 carespondente comentirio de Huygens que sio commune a ambus as eigses poético das ocupacdes prazeres cotidianos — esportes, jardi: nagem, misica, pintura etc. — em sua vida, A conversagao que Huygens terminou com Drebbel no fim da Autobiografia se dé aqui, a0 contrario, com sua esposa. Nela, somos conduzidos através do mundo pelo microscépio ¢ pelo telesc6pio, com um levantamento do corpo humano e seus remédios, € entio 0 poema termina abruptamente em desespero. Ha algo de muito holandés no fato de um poeta usar a inti- midade de sua prépria casa e seu casamento como uma imagem central da vida, do mesmo modo que ha algo de holandés na eqia- nimidade de Huygens para com as implicagdes da nova ciéncia. O cendrio do poema de Huygens lembra-nos as imagens da casa, do (0 freqiientes na arte setentrional, a confortavel interiores lar e da familia, residéncia de uma Virgem de Van Eyck ou Campin nos do século XVII. E aqui, no aconchegante, intimo, privado cenério do lar que a experiéncia é recebida e literalmente assimilada. Esse cenério determina seguramente a definicdo e a percepeao daquilo que a natureza da experiéncia humana 6. Enquanto a Autobiografia conduz Huygens através do canal a Inglaterra, tragando sua expe- rigncia dos livros e das idéias, dos homens e dos acontecimentos no vasto mundo, o Daghwerck, pelo contrério, traz 0 mundo para den- tro de casa. Ele domestica a cosmografia — em harmonia com 0 costume holandés de decorar as paredes das salas com mapas do mundo, como veremos mais adiante. Uma figura que Huygens emprega para explicar esse fato a sua esposa exprime isso e implica ainda mais: Tenho noticias agradaveis que Ihe darei af em casa. Assim como num quarto escuro se pode ver, pela agdo do sol, através de um vidro tudo (embora invertido) 0 que acontece Ié fora. [Hebb ick aengename niewe tidingen, ick salse u binnens huijs voor- brenghen, gelijckmen in een duijstere Camer door een geslepen Glas bij sonneschija verthoont ‘tghene buijtens huijs om gaet, maer aeverechts}"™ 18. Daghwerc, comentitio em prosa de Huygen sobre os verso 550-558 62 63 Esta 6 uma anotagiio em prosa de Huygens para uma pas- sagem de seu poema, na qual ele fala de levar noticias a sua mu- Iher em casa, assim como um vidro leva 0 mundo exterior aos que estiio 14 dentro. A anotagiio deixa claro que o vidro mencionado 6 uma cdmara obscura — literalmente, um “quarto escuro”. Esse era o nome que se dava a um instrumento que permite & luz passar através de um orificio — no raro equipado com uma lente numa caixa ou quarto escuro para projetar sobre uma superficie uma imagem do mundo Id fora (Figs. 18 ¢ 23). O principio é 0 mesmo da camera, mas a imagem nio pode ser preservada. Esté perfeitamente de acordo com tudo o que sabemos de Huygens 0 fato de cle recorrer & cAmara obscura para levar noticias do mundo a sua esposa. E “a nova verdade, recém-nascida na claridade da luz. do meio-dia” (“de nieuw-geboren Waerheit / Niewgeboren inde Klaerheit / Van des middaghs hooghen dagh”)®. E 0 conhecimento que toma a forma de uma imagem. A fascinagdo de Huygens pela camara obscura pode ser remontada & sua visita a Drebbel durante sua estada em Londres, em 1622. O instrumento, que durante sé- culos fora conhecido sob outras formas, tornou-se uma curiosi- dade em toda a Europa nos séculos XVI e XVII. Enquanto outros tinham nele interesses que eram astrondmicos ¢ cénicos, 0 de Huygens era puramente pict6rico — interesse compartilhado por seus conterraneos, Sua capacidade de produzir pintura fascinava-o, como fascinava De Gheyns. A carta que ele escreveu aos seus pais, falando da beleza da surpreendente imagem projetada pelo in: trumento de Drebbel € uma parte consagrada dos modernos estudos sobre o uso holandés da camara obscura: ‘Tenho em minha casa outro instrumento de Drebbel, que certamente produ efeitos admirdveis na pintura ctiada pelo reflexo num quarto escuro. Nao é possivel descrever a beleza dela em palavras: toda pintura € morta em comparaglo a essa, pois aqui € a propria vida, ou algo mais nobre, se a palavra para exprimi-la ndo faltasse. Figura, contorno e movimento encontram-se af naturalmente, de um modo que € con- 19, Adem, WV, 362-56, juntamente agradével,[J'ay chez moy l'autre instrument de Drebbel, qui cores fait des cffets admirables en peinture de reflexion dans une chambre obscure: il ne m’est pos: sible de vous en declarer la beauté en paroles: toute peinture est morte au prix, car c'est icy la vie mesme, ou quelque chose de plus relevé, sila parole n'y manquoit, Car et la figure et le contour et les movements s'y rencontrent naturellement et d'une fagon grandement plaisante)”. ‘A imagem é um desatio direto para o pintor, mas serve tam- bém como modelo para a sua arte, Embora em outro momento Huygens sugira a sua utilidade como valioso atalho para a produ- cdo de imagens, 0 que o fascina aqui ¢ a sua natureza pict6rica. As palavras nao podem dar uma idéia justa, explica ele, de uma imagem que é a propria vida, ou algo com um relevo ainda maior. Esta é a mesma observacdo que Reynolds faz a respeito da arte holandesa quando desiste de fazer um relato interessante dela. O movimento que Huygens exalta lembra seu elogio da habilidade holandesa para representar as coisas naturais. O que o delicia nao siio acontecimentos ou narragées humanas, mas a representagao do movimento da propria natureza. A receptividade de Huygens para a representac&o natural do mundo na camara escura pode ser con- vincentemente relacionada ao seu elogio da naturalidade das pin- turas paisagisticas holandesas da época. Um circulo se fecha com esse instrumento, que oferece uma confirmagdo tecnolégica de um gosto que sabemos que Huygens teve. Podemos aprender muito com o fascinio dos holandeses pela cAmara obscura, produtora de imagens como as deles préprios, & voltaremos mais extensamente a esse ponto no capitulo seguinte. Aqui, visto que ele se refere a Drebbel, quero notar uma curiosa au- séncia ou exchisio: 0 que os holandéses nao tém em mente no seu fascinio pela cdmara obscura, Estamos hoje tio acostumados a as- sociar a imagem projetada pela cAmara obscura com o verdadeiro aspecto da pintura holandesa (e, depois disso, com a fotografia) que 20, Huygens, De Brifwisseling 1:94 Esse clio 2 ivengbo no & contrat, como Bs vers se di, pela renga ¢ desabonadora erica que Huygens fz wo uso ca elma esura pelo asa holandés Torrents Huygens objet a0 sgio da opcragio, eno 0 vs do propio invent 4 65 tendemos a esquecer que essa era apenas uma das facetas do ins- trumento. Ele podia prestar-se a diferentes usos. Tais usos — e isto 6 significativo — nao tiveram eco nas pinturas holandesas, ¢ deve- mos examinar 0 porqué. Um dos outros maravilhosos instrumentos que Drebbel engenhou foi um espetéculo de lanterna méigica, se- melhante na construgdo & camara obscura, mas tendo em mira um desempenho humano. Hé entre os papéis de Huygens, com efeito, uma carta de Drebbel descrevendo a transformagéo tornada pos- sivel quando ele se projetava a si préprio de diferentes maneiras: Fico dentro de um quarto, e obviamente ninguém esté comigo. Primeiro mudo ‘a aparéncia da minha roupa aos olhos de todos os que me véem. Visto-me inicialmente com veludo preto e, daf a um segundo, rpido como o pensamento, com veludo verde, com veludo vermelho, mudando-me em todas as cores do mundo. E ni é tudo, pois ‘mudo minha roupa de modo a parecer vestido com cetim de todas as cores, depois com roupas de todas as cores, ora com roupa de ouro, ora com roupa de prata, © apresento- ‘me como um rei, adornado de diamantes e todos 0s tipos de pedras preciosas, ¢ entio, ‘num instante, torno-me um mendigo, deixando toda a minha roupa em farrapos.”" Drebbel passa de rei a mendigo e depois, num estilo mais leve, continua a se transformar, agora numa érvore, depois numa verda- deira colegdo de animais: ledo, urso, cavalo, vaca, cameiro, bezerro, porco. Essas transformagées também se aproximam da arte. Mas aqui Drebbel esta mais pérto das méscaras que deleitavam a corte inglesa do que das pinturas dos holandeses. O principio da camara obscura é empregado para criar uma representagio teatral, que se compée das transforniagdes de Drebbel ou das narragdes dele pr6- prio, Essa representagio difere da representago da natureza, to lou- vada por Huygens, em dois de seus aspectos: primeiro, por seu ca- iter performativo ou teatral, e, segundo, pelo fato de que o produtor da imagem, em vez de participar como espectador, introjeta-se na no meio dela, Jé as pinturas holandesas evitam essa representagio teatral no interesse de abarcar 0 mundo descrito. Por isso nao sur: 21, A pasagen € cited, em tradugo, por Rosalie 1. Cole, Some Thankjunesse to Constantin, Us ‘Mastnas ijhom, 1956.97 4. Jan de Bray, Um Casal Representado como Ulisse e Penélope, 1668, Cl. J.B. Speed Art Museum, ousvilla, Kentucky, Foo: Prodence Cuming Associates Lid, Lonkes preende que Huygens e seus conterraneos fossem fascinados pelo aspecto descritivo da camara obscura. Um breve excurso sobre um exemplo pictorico ligado a esse aspecto pode ajudar-nos a esclare- cer um pouco mais esse ponto em sua relagio com a arte holandesa, Um género favorito de retrato na Holanda era o chamado retrato historiado®, Pode-se supor pelo seu nome que os holande- ses, como Drebbel na Inglaterra, se compraziam na transformagao. Muitas vezes nos surpreendemos, hoje, ao ver as identidades his- t6ricas que os modelos holandeses gostavam de assumir: um mer- cador e sua mulher como Ulisses e Penélope (Fig. 4); Jan de Bray 22.0 primero tudo moderne consogrado a exe tip de aalho ¢ de R. Wishnevsky, "Studien zm ‘por trait histori’ in den Nrederlanden® (ese de dotorado), Munique, 1967, Ver tamibém Alison MeNeil Kettering, “The Batavion Aredia: Pastoral Themes in Seventeen Cetury Dutch Ar” (ese de doutorado), University of California Berkeley, 1974 66 o7 5. Rembrandt van Rijn, A Noiva Juda, Conesia de Rijksmseur-Stichting, Amster retratou um homem e sua esposa como Ant6nio e Cle6patra. Po- rém, mais surpreendente que a escolha da personagem é 0 modo de apresenté-las. E aqui o contraste com 0 uso que Drebbel faz da cfmara obscura ficara mais claro. Todos esses modelos que posam para retratos historiados, quase sem excegio, se distinguem por parecerem antes vestidos com elegancia do que transformados. Diferentemente de Drebbel, eles podiam afirmar que néio estavam iludindo ninguém. Hé um conluio entre retratado e retratista. E como se a insistente identidade dos modelos holandeses, presente em suas fisionomias, e sua significativa postura doméstica combi- nasse com o modo insistentemente descritivo com que o artista os representa, tornando-os assim incapazes de parecer outra coisa que nao cles mesmos. E Rembrandt, dnico neste aspecto como em tantos outros, com seus retratos misterioros e perscrutadores, que 6. Rembrandt van Rin, Mendigo Sentado 7, Rembrandt van Rij, Au retro, 1658, © Prick Collection, Nova York em uim Momiculo de Terra (égus-for 12), museu Teles, Haarlem vai redimir 0 género. Um trabalho de Rembrandt desse tipo niio raro suscita a insoldivel questo de saber se temos diante dos olhos um retrato ou uma pintura hist6rica. O caso nao-resolvido da cha- mada Noiva Judia (Fig. 5) revela o grau em que ele pode introduzir individualidades contemporaneas na vida imaginada de outros tempos e, inversamente, conferir presenga e individualidade as fi- guras imaginadas da histéria®, (Uma comparagao de seu canhestro 23, Christian Taupe! afirmou que a pints € modo paticular de Rembrandt representa a cena bien 68 69 Saskia como Flora [fase imatura] com 0 espléndido Hendrijcke como Flora [fase madura] sugere que até mesmo Rembrandt nem sempre é bem-sucedido nisso.) Esse sentido das propensées drama- ticas de Rembrandt — conquanto notavelmente ndo-gestuais — também nos fornece um meio de entender a extraordinéria varie- dade de auto-retratos que ele fez.no decorrer de sua vida. E isso nos reconduz a carta de Drebbel e & sua lanterna mégica. Se seguirmos Rembrandt desde os seus primeiros auto-retratos gravados com Agua-forte, como o Mendigo Sentado em um Monticulo de Terra (Fig. 6), no qual ele se veste de farrapos, com o porte régio que ele assume no Auto-retrato da Colegao Frick (Fig. 7), estaremos cer- tamente testemunhando antes a lanterna magica de Drebbel que a descrigao do mundo de Huygens. Voltemos ao ponto em que deixamos Huygens ao lado da cAmara obscura em seu Daghwerck. Um meio basico de conheci- mento nesse poema é o olho. Ele é louvado como uma das maiores dadivas de Deus ao homem. 6 vés que dais os olhos e 0 poder, Dais olhos através desse poder: Olhos que se tornaram alertas, Que véem a totalidade de tudo que ha para ver. 0, die d’oogen en “tgeweld geeft, Oogen gett bij dit geweld: Oogen eens ter wacht gestelt, En die all’sien soo der veel'sien do Isaac ¢ Rebeca mediante una seleyo(Hersussung’) ds figuras centrais com base na narativa 4H Buchs, argumeutando de um ponto de ita formal ou ecco (o que el cham de voordracht), em Vez tis iconogrdic, propoe que Rembrandt permite histca bia reaaro que de fato 6 um retato. Ver CChastan Tampeh,"Stoden zr Ikonograptie der Histrien Remeandis: Deut und lnerpratation der ‘itginhalte, Nederlands Kunshitorisch Jaarboek, 20:107-198, 1969, €R.H. Pics, “et nga Joodse rv en het prableem van de vo0 1 Rembranats weik", Tijdschrift voor Geschiedenis 2482-493, 196. 24, Dagherok, WW. 2502 O olho € 0 meio pelo qual Huygens reporta o novo conheci- mento do mundo, Ble viaja até os céus ¢ depois regressa 2 terra, onde contempla flores, mosquitos e formigas. As menores coisas, antes invisiveis, podem agora ser vistas com a ajuda das lentes de aumento: De Florznhas, Mosquitos, Fonmigas © Acaros tirarei minhas ligdes. Com ajuda do microsedpio, partes dsets mais mindsculas das eriaturas, até agora invisieis, tomaramse hoje conhecidas {Uyt Bloemkens, Moggen, Mierenende Sieon sal ek mij lessen tecken, Want der Keinste schpselen tot noch toe ongesiene deelenzija nu bekent geworden, door hulp van onse Korte vergroot Billa) Embora se diga que nio se podem vé-las com os olhos, isso agora é possfvel — das estrelas no céu aos gritos de areia na praia Huygens repete entusiasticamente a viagem com os seus olhos: E discemnindo todas as coisas com os olhos, como se estivéssemos tocando-as com as maos, viajamos através do mundo de minsculas criaturas até aqui desconheci- das, como através de um continente recém-descoberto do nosso globo. [Bnde onderscheidende alles by onse ooghen, als oft wij "t met handen tasten, ‘wandelen door cene tot noch toe onbekende wereld van kleine schepselen oft het een niew ontdeckt gedeelte van den Aerdbodem waere)*. Somos realmente como deuses, conclui outro poema, poi podemos ver todas as coisas, deste ponto mais clevado dos céus até as criaturas mais mintisculas da terra, Sobre o Telescépio Finalmente poderio os mortais, por assim dizer, ser como det Se puderem ver longe e perto, aqui e em toda parte. 25, Idem, comentiria x VV. 14041157. 26, Idem, comentisio a WV. 1192-195, 70 a In Telescopium [Dijs, dicat,liceat tandem mortalibus esse, Si procul et prope, et hic esse et ubique queunt.|” O tom da afirmacdo de Huygens nao representa um desafio, mas um tributo A criagio de Deus. Ele adota uma atitude positiva em relagéio ao que era, para muitos na época, uma perigosa nova visio do lugar do homem no mundo. Talvez Huygens sugira certa incerteza quando, como Milton depois dele, entrega um telese6pio a0 Deménio: Sobre os Mesmos culos {lentes} (Quem pode dizer que o Tentador Nao tinha o uso dessa lente, Desde que mostrou ao Senhor Todos os Reinos da Terra? Des Mesmes Lunettes [Qui dira si le Tentateur Nault Pusage de ce verre Des lors qu'il monstra au Seigneur Tous les Rojjaumes de la Terre?) Mas a verdadeira questo no eram as mos onde as lentes foram parar, Essa rima oferece uma explicagio racional de como Jesus capacitou-se a ver. A questo era, antes, 0 lugar do homem ‘ou, mais especificamente, sua dimensao nesse novo mundo. Seguia-se, como parte da primazia dada & vista, que a questio da escala, ou da avaliago do tamanho relativo, se tornara premen- te, Um resultado imediato e devastador da possibilidade de trazer até os olhos dos homens as mais diminutas dentre as cois vas (os organismos vistos através das lentes do microsc6pio), ou as as 27, Huygens, De gedichen, 2236 28. Ide idem. maiores e mais longinquas (os corpos celestes vistos através da lente telescépica) foi o questionamento de qualquer senso fixo de escala e proporgao. O problema correlato de como percebemos a distancia e avaliamos o tamanho ainda ocupa os estudiosos da per- cepedo. Qualquer que possa ser a solugao, a conelusio geral é a de que os olhos nfo podem, por si 6s, avaliar distancia e tamanho. E isso 0 que os telesc6pios e os microscépios deixam claro no sécu- lo XVII, Para muitos, isso parecia um deslocamento devastador da dimensdo do mundo anteriormente admitida, ou, em sintese, do homem como a medida do mundo. O simples entusiasmo com que Huygens satida esse deslocamento do homem € espantoso. Parte da passagem em que ele elogia Drebbel, na conclusio da Auto- biografia, diz. o seguinte: Quando mais nfo seja, aprendamos isto: que a medigiio que geralmente fazemos do tamanho das coisas & varidvel, no confivel e fata, na medida em que acreditamos poder eliminar qualquer comparagao0 e discernir qualquer grande diferenga de tamanho pelo mero testemunho dos nossos sentidos. Aprendames, em suma, que & impossivel cchamar a qualquer coisa “pequena” ou “grande”, salvo por comparacao. E entio, como conseqlncia, estabelegamos firmemente a proposigiio de que a multiplicagio de cor- pos [..] € infinita; desde que aceitemos isto como regra fundamental, entio nenhum corpo, mesmo o mais diminuto, podera ser to grandemente aumentado pelas lentes ssem que haja razio para dizer que ele poder ser aumentado mais por outras lentes, € depois por outras, ¢ assim por diate. [Si non aliud, hoc sane edocti, quae magnitudinis rerum vulgo aestimatio est, fluxam, futilem ct insanam esse, guatenus omiss& comparatione aliquo sensuum indi- cio absolute discern creditur. Tandem hoc sciatur, nihil usquam parvi aut magni extare nisi ex parallelo; denique ex hoe statuatur, multiplicationem istam corporum esse et, his rei principiis traditis, nullum de minimis corpusculum tantopere vitris augeri, quin asserendi locus sit, in immensum ais item atque item atque aliis auctum iri)”. 29. Worp, “Fragment eener Autbiograpie" p. 120, Colie a patir dat fundamenta as atitudes racionalistas ‘de Huygens em seu breve estado sobre o stage deste aos aipios dedidos da sparéacia 6o Grande Cometa de 1681. Ver Rosalie L. Coli, "Constnijn Huygens and the Ratonalist Revolution”, Tischrift oor Nederlandse Taal en Ltterkunde,73:193-209, 1955, 8, Pauls Por, © Touro Jovem, 1647, Mauritshuis, Hai Huygens se compraz em oferecer exemplos especificos da perda de medida e proporgao em seu Daghwerck — mais uma vez, stou tirando minha citagio do comentario em prosa com o qual arece suas idéias: Por exemplo: a porta de uma cidade tal como a vemos hoje no passa de uma comparada a uma fenda tal como a vemos através das lentes de aumento, que @ faz parecer um enorme portal. E, se a vissemos com uma daguelas lentes de 360 graus, encontrarfamos nela espago para mil milhas, em vez de espago para quinze, [Bij voorbeeld: Een’ Stads poorte, soo wijse nu sien, is maer een splete, by een splete door het vergrootglas, die sich als een onmatighe Poorte verthoont. Ende alsmen ‘met sulcke Brillen eenen van de 360, graden besagh, men souder ruijmte in vinden voor 1000 mijlen in plaets van15}". ‘A justaposigiio de uma fenda mintiscula e de uma enorme por- ta de cidade, ou a expansao do grau numa vista panordmica, traz & 30, Daghwerck comentrio & VW, 1198-1200. mente aspectos caracterfsticos da arte holandesa, O famoso Jovem Touro de Paulus Potter avulta contra uma diminuta torre de igreja ¢ ostenta uma pequenina mosca sobre seu vasto flanco (Fig. 8). Os panoramas de Philips Koninck transformam a pequena amplitude da terra holandesa numa vastidio que rivaliza com as dimens6es do proprio globo (Fig. 86). A curiosa imagem do artista se reflete freqiientemente em miniatura sobre a superficie de uma jarra de vinho nas naturezas-mortas pintadas por Abraham van Beyeren (Fig. 9, 10). A equiparagiio, pela justaposigao, do perto ¢ do longe, ou do pequeno e do grande, ocupou os pintores setentrionais desde pelo menos Van Eyck. Ele pintara a si mesmo em miniatura refleti- da em suas obras (Fig. 11) e justapusera as maos do Chanceler Rolin contra as torres de uma cidadezinha distante. Daf nos per- guntaremos: serd que os artistas do Norte postularam, um dia, algu- ma medida ou proporgao fixa? essa questdo que forma a base da famosa queixa contra a arte do Norte atribuida a Michelangelo. E a frase final dessa pas- sagem que nos interessa: Em Flandres eles pintam visando & exatidiio externa ou a coisas que nos podem alegrar © das quais no podemos falar mal, como, por exemplo, santos e profetas. Pintam objetos e alvenarias, a grama verde dos campos, as sombras das drvores, rios & Pontes, a que chamam paisagens, com muitas figuras deste lado e muitas outras daque- le. E tudo isso, posto agrade a certas pessoas, é feito sem razdo ou arte, sem simetria ‘ou proporedo, sem escolha ou audicia e, finalmente, sem substincia ou vigor" Lembramos geralmente a énfase que nessa passagem se colo- ca sobre a descri¢do pormenorizada. Mas, significativamente, 0 autor atribui tal detalhe a uma falta de razao, arte, simetria e pro- porcdo. Alberti escrevera que “grande, pequeno, comprido, curto, alto, baixo, largo, estreito, escuro, claro, sombrio e quejandos, que 0s filésofos denominaram acidentes, porque podem ou nao estar 31, Francisco de Hollands, Four Dialogues on Painting, tra. ing Aubrey FG. Bel, Loodkes, Oxford University Press, 1928 p. 16 x 7 presentes nas coisas — tudo isso s6 pode ser conhecido por com- paragao"™. Mas, diante de tal relativismo, ele assevera confiantemente que o homem proporciona a medida de um modo que determina e assegura a natureza das pinturas italianas: “Sendo o homem a coisa mais conhecida do homem, talvez Protgoras, ao afirmar que o homem é a escala e a medida de todas as coisas, estivesse querendo dizer que os acidentes em todas as coisas devem ser comparados aos acidentes no homem e conheci- dos por meio desses mesmos acidentes”®. Huygens nao aceita esse raciocinio. Pelo contrario, sua cele- bragdo da conjungao de pequeno e grande, de perto e longe, admite a auséncia de qualquer proporgao fixa ou medida humana. O que durante muito tempo foi caracteristico da arte setentrional tornou- se a condigao humana comprovada no século XVII. Veremos nos capitulos seguintes que nao foi s6 a esse respeito que as pinturas setentrionais anteciparam certos modos de compreender © mundo no século XVI. Aceitar a relatividade do tamanho, tal como ela se revelava ao olho fortalecido pelas lentes, suscita a questo da verdade ou estatuto da visio. Vemos uma fenda de um modo quando é ampli da por uma lente até atingir o tamanho de uma porta de cidade, ¢ de outro modo quando ela parece muito menor do que uma porta de cidade. Qual visio € a verdadeira? Como definir a identidade das coisas no mundo quando elas parecem tio varidveis em tama- nho? Podemos confiar nos nossos olhos? (As lentes foram re: jeitadas antes desse tempo exatamente porque se pensava que elas confundiam ou distorciam a verdadeira visio.) O interesse de Huygens pela questio insoltivel do tamanho significa que ele acei ta 0 fato de que, ao produzir uma imagem, nossa vista opera um 32 Leon Battista Alben, On Paining ant Sclptre, ed eu. inl Cel Grayson, Londkes, Pn Press, 1972, p53. 233. Heo, tide. truque. Aceitar as descrigées da vista, e a propria vista, como um artificio util, 6, paradoxalmente, uma condigao de sua concentra ingénua na vista e nas coisas vistas. Isso se evidencia particular- mente na atenedo que ele dava & questo da verossimilhanga das imagens naturais. O problema ocupa Huygens a certa altura de sua Autobiografia e, em menor extensio, no Daghwerck. Antes de tudo, ele da a entender que ele mesmo executava pinturas para en- ganar os olhos. Descreve prazerosamente sua natureza-morta com avelas, um cachimbo, uma vela e uma grande mosca & maneira de De Gheyn. Com inquieta excitagiio, descreve a temfvel veros: Ihanga de uma cabeca de Medusa de Rubens. Ela desperta tanta incerteza no espectador quanto ao seu estatuto — real ou pintada — que 0 amigo que possufa o quadro conservou-o coberto e, por assim dizer, apaziguado. Embora Huygens use a Medusa para dis- cutir a relagdo da beleza com a feitira ou o horror, o problema basi- co diz respeito A verdade de tal representagio. E esse tema que Huygens aborda em suas observagdes sobre artistas contempora- neos quando se volta para o retrato e para o retratista holandés que ele considera o maior de todos, Michiel van Mierevald. Ao tentar analisar a qualidade natural de seus retratos, Huygens conclui que, no fim das contas, como escrevera Séneca, a verossimilhanga da arte é inferior & realidade. Mas ele nao abandona o problema af. Continua a dar exemplos da complicada relagao entre © modelo a representagao, ou entre a vida e a arte. Acrescenta uma frase de Tacito para dizer que a arte confina diretamente com a fraude, “breve confinium artis et falsi”™, Mesmo quando verdadeiro, um ar- tefato humano confina com a falsidade. A “arte” (no sentido do arte- fato humano) que Técito caracterizara desse modo foi uma predi- do de certos astr6logos na qual se acreditou, sem no entanto com- preendé-la’S. Assim, quando ela se realizou, fé-lo de inesperadas imi- 34, Worp, “Fragment cener Auobiographia" 75. 35. Tésito, Anais, 458.3, 78 "9 maneiras e foi considerada falsa. Essa anedota, como 0 seu mote citado por Huygens, sugere quo perto esto um do outro a verdade eo erro, O que desejo enfatizar aqui é a preocupagiio de Huygens com © problema da verdade de uma representagio. Esse é um problema que ele levanta quando clogia a cAmara obscura de Drebbel na Autobiografia. E na natureza da camara obscura que ele apruma © mundo que nela se reflete: a imagem que ela projeta é invertida, a nao ser que se faca algo para endireité-la. Embora 0 proprio Drebbel tenha afirmado ser incapaz de cortigir essa imperfeigao, a falsificagao era perturbadora para Huygens. O instrumento cuja produgio de imagens ele enaltece é falsificador. Em meio & evo- cago da cAmara escura como portadora de novas verdades para a esposa no Daghwerck, Huygens se interrompe para adverti-la desse perigo. De fato, da figura da verdade ele passa ao seu opos- to. Huygens prossegue relacionando a inversio do mundo pela cfimara escura com a inversdo das verdades ou mentiras produzi- das pelos homens — os historiadores entre outros — no mundo™. ‘A preocupagao com a natureza dessa imagem € parte de uma pre- ocupagdo continua com a verdade das imagens. O exemplo de uma representagio de aparéncia real, mas ainda falsa em certos aspectos, € situado diretamente naquela fronteira entre realidade & artificio que, com base no testemunho de seus quadros que iludiam © olho, intrigou 0s holandeses. Longe de minimizar a importancia das imagens, isso sugere 0 quanto eles dependiam delas. Com sua rara combinagio de servigo piblico, grande saber e talentos diversos, Constantin Huygens poderia ser descrito como lo uma figura renascentista transportada para a Holanda do si XVII, Mas em importantes aspectos ele esta completamente & von- tade em seu tempo e lugar. Ele passou dos conhecimentos esta belecidos € dos textos do passado para as mais novas descobertas 36, Daghwerck, WV. S60 6s que se faziam no campo do conhecimento natural. Sua confianga ilimitada nas tecnologias que fortaleciam a vista humana levou-o a valorizar imagens ¢ visdes de todos 0s tipos como a base para 0 novo conhecimento. Seu entusiasmo assumiu formas absolutamen- te priticas. O vinculo entre representacio pictérica e conhecimen- to natural nos escritos de Huygens nao se baseia na matemética ou ha teoria cientifica, mas sim em observagdes, em procedimentos experimentais e em seu resultado pritico. O que o interessava era ‘a medicina, a drenagem de terras, a confecciio de mapas ¢ os ani mélculos vistos através das lentes de Lecuwenhoek”. Eis por que era perfeitamente natural para Huygens associar a arte, ou a pro- dugdo de imagens, com essas tarefas priticas. Na Autobiografia, como parte de sua discussao geral sobre a educacio artistica para ele planejada por seu pai, Huygens preco- niza a utilidade de uma habilidade no desenho. Oferece 0 exemplo do tipo de registro de uma viagem que se pode fazer desde que se saiba desenhar. A Autobiografia é, obviamente, um esbogo de uma educagéio adequada. Desenhar j4 foi considerado uma habilidade conveniente aos ricos nos tempos antigos. Huygens estabelece isso citando Plinio, a quem podemos aduzir 0 exemplo de O Cortesdo de Castiglione, que também recomenda desenhar. Mas, talvez. por causa do peso te6rico dado internacionalmente ao disegno (0 pa- pel conceitual do desenho na invengao de imagens), 0 oficio ¢ a utilidade social do tekening (a palavra holandesa para desenho*) nao foram definidos. Hé varios indicios, datados dos séculos XVI ¢ XVII, de que a arte servia como registro ou descrigao pictérics Huygens nos conta em sua Autobiografia como o seu tio-av6, Joris, Hoefnagel, viajou largamente na Europa de 1560 até 1590, prepa- rando desenhos de cidades para uso na grande obra Civitates Orbis * No inglés drawing IN. dT 37 Para uma eiscussto do interesse de Huygens pelo conhecimento natural, ver Ignaz Matthey. "De Be: \chenis van de Natwor en de Nataurwetenschappen voor Constantin Huygens”, em Constant Huygens “Zin Plats in Geleend Europa, Hans Bot (orgy Amsterdam Unversity Press, 1973, pp. 334-439. 80

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