Você está na página 1de 15

Raciocínio

COLEÇÃO
Probatório
Coordenação:
VITOR DE PAULA RAMOS

PROVA SEM
CONVICÇÃO
Standards de prova
e devido processo

JORDI FERRER-BELTRÁN

Tradução:
VITOR DE PAULA RAMOS

2022

Raciocinio Probatorio-Prova sem Conviccao-1ed.indd 3 20/07/2022 16:54:46


2 • A fundamentação do nível de exigência probatória

2
A FUNDAMENTAÇÃO DO
NÍVEL DE EXIGÊNCIA PROBATÓRIA
DOS STANDARDS DE PROVA

1. AS FUNÇÕES DOS STANDARDS DE PROVA

Os standards de prova são regras que, como já mencionei


repetidamente, determinam o nível de suficiência probatória
para que uma hipótese possa ser considerada provada (ou su-
ficientemente corroborada) para fins de uma decisão sobre os
fatos. Ao realizarem essa determinação, cumprem três funções
da máxima importância no marco do processo de decisão pro-
batória: 1) aportam os critérios imprescindíveis para a justifi-
cação da própria decisão, no que diz respeito à suficiência pro-
batória; 2) servem de garantia para as partes, pois lhes permi-
tem tomar suas próprias decisões sobre a estratégia probatória
e controlar a correção da decisão sobre os fatos; 3) distribuem
o risco de erro entre as partes.

187

Raciocinio Probatorio-Prova sem Conviccao-1ed.indd 187 20/07/2022 16:54:54


PROVA SEM CONVICÇÃO JORDI FERRER-BELTRÁN

Todas essas funções são cumpridas independentemente


do nível de exigência probatória que cada standard de prova
demandar, mesmo que a concreta distribuição do risco de
erro, este sim, dependa do umbral de suficiência probatória
que se estabelecer. Vejamos esse ponto com um pouco mais
de detalhe.

 s standards de prova fornecem os critérios


1.1. O
de justificação das decisões probatórias

Como destacou Gascón Abellán, os standards de prova


cumprem uma função heurística e justificativa277. A primeira,
ao oferecer aos juízes uma guia sobre quais critérios devem
estar presentes no momento da valoração da prova, visto que
desses dependerá a decisão. A segunda, ao prover, precisamen-
te, os critérios que determinam o umbral de suficiência pro-
batória a partir do qual se pode considerar uma hipótese pro-
vada278. Se, no momento de decidir, o juiz não dispõe desses
critérios será impossível cumprir a obrigação legal de motivar
a decisão; isto é, de justificar que, à luz das provas apresentadas
e produzidas, alguma das hipóteses fáticas em conflito supera,
ou não, o umbral de suficiência probatória que a habilita a ser
aceita como provada em seu raciocínio.

277. Vide Gascón Abellán, 2005: 137 ss. No mesmo sentido, entre outros, Nar-
delli, 2018: 291-2.

278. Ambas as funções correspondem aos controles de racionalidade ex ante


e ex post, nos termos de Taruffo (1992: 422). O controle de racionalidade
ex ante permite ao juiz analisar o fundamento de seu próprio raciocínio
à luz das provas; o controle de racionalidade ex post, de seu turno, pro-
duz-se mediante a revisão do raciocínio judicial por parte de terceiros
através da motivação da decisão probatória.

188

Raciocinio Probatorio-Prova sem Conviccao-1ed.indd 188 20/07/2022 16:54:54


2 • A fundamentação do nível de exigência probatória

Diante da tese da necessidade de contar-se com standards


de prova para poder justificar as decisões probatórias, não é
estranho encontrar reações contrárias em nome da valoração
da prova, assimilando os standards de prova a regras de prova
taxada279. Não obstante, do ponto de vista conceitual, não só se
trata de modos diferentes de regular a decisão probatória, mas
também, e inclusive, de modos incompatíveis.

As regras de prova legal indicam ao juiz um resultado pro-


batório que deve ser extraído a partir da presença nos autos de
certos meios de prova. Com isso, o legislador evita qualquer
raciocínio probatório do juiz, que deve se limitar a aplicar a
regra de prova legal uma vez constatado, por exemplo, que se
aportou ao processo um documento público.

Por outro lado, os standards de prova não só não excluem o


raciocínio probatório do juiz, mas o pressupõem. O juiz deve-
rá valorar a prova e determinar o grau de corroboração que as
provas aportam às diferentes hipóteses sobre os fatos. Somente
depois dessa atividade proceder-se-á à aplicação do standard
de prova para determinar se o grau de corroboração alcançado
é suficiente para considerar provada alguma das hipóteses280.
Regras de prova legal e standards de prova compartilham o
fato de serem tipos de regras sobre a decisão probatória, mas
divergem em todo o resto.

279. Vide, por exemplo, Nieva Fenoll, 2020: 17 ss.


280. Segundo Strandberg (2019b: 140), uma delimitação equivalente dos âm-
bitos da valoração da prova e da decisão probatória como passo subse-
quente, governado pelos standards de prova, é comum no direito e na
doutrina dos países escandinavos.

189

Raciocinio Probatorio-Prova sem Conviccao-1ed.indd 189 20/07/2022 16:54:54


PROVA SEM CONVICÇÃO JORDI FERRER-BELTRÁN

Anderson, Schum e Twining apresentaram uma analo-


gia, que pode ser aqui ilustrativa, com os critérios de decisão
na correção de exames281. Assim, podemos atribuir aos pro-
fessores a tarefa de valorar a qualidade das respostas dos estu-
dantes em dois exames, coisa que somente poderia ser feita no
caso concreto, mas é necessário dispormos de uma unidade
de medida para essa valoração em que esteja pré-estabelecido
qual é a nota mínima para a aprovação na disciplina.
Se, em função do caso concreto, cada professor pudes-
se decidir não só sua valoração sobre o exame do estudante,
mas também a nota mínima para a aprovação, os estudantes
ver-se-iam diante de uma total insegurança jurídica. Por isso,
cada país regulou a escala de avaliação e estabeleceu com qual
nota considera-se que o estudante foi aprovado na disciplina.
E ninguém diz que essa regulação afeta a (livre) valoração dos
exames por parte dos professores.
De fato, será cada professor, em relação a cada exame, que
deverá determinar se as respostas dadas são suficientemente
boas para merecer a qualificação mínima para aprovar. Essa é
uma decisão não submetida a regras jurídicas, mesmo que não
possa ser arbitrária. Entretanto, a nota mínima para a apro-
vação é igual para todos e vai decidida mediante regras que
expressam políticas públicas. Pois bem, os standards de prova
são para a decisão probatória o que a nota mínima é para a
avaliação realizada pelos professores282.

281. Vide Anderson, Schum e Twining, 1991: 281-284.


282. Dessa forma dissolve-se, na minha opinião, o que Tuzet (2014b: 92 ss.)
denomina de “dilema da valoração” da prova, consistente em que seria a
vigência do sistema de livre valoração o que nos imporia a necessidade

190

Raciocinio Probatorio-Prova sem Conviccao-1ed.indd 190 20/07/2022 16:54:54


2 • A fundamentação do nível de exigência probatória

De seu turno, os standards de prova possibilitam o contro-


le da correção do raciocínio probatório mediante os recursos.
Assim, em apelação, por exemplo, o tribunal deverá revisar a
decisão apelada a partir de sua motivação, controlando se a
valoração individual das provas foi adequada, se na valoração
do conjunto atribuiu-se um grau de corroboração correto às
diferentes hipóteses em conflito no processo e se se aplicou de
modo apropriado o standard de prova que regula essa decisão
para determinar se esse grau de corroboração é suficiente ou
não para considerar provada alguma das hipóteses fáticas.

Como espero que já reste evidente a essas alturas, se não se


dispõe de standards de prova que cumpram com os requisitos
metodológicos expostos no capítulo anterior, não é possível
justificar as decisões sobre os fatos e nem controlar a justifica-
ção das decisões de outros. Esse problema observa-se também
em sistemas anglo-saxões com júri.

Assim, por exemplo, nos processos civis norte-america-


nos as partes podem pedir ao juiz profissional um summary
judgment em seu favor, evitando chegar-se a juízo, fundando-
-se na manifesta insuficiência da prova283; ou, com o mesmo
fundamento, depois de recebida a denúncia, perante o júri, as
partes podem pedir ao juiz profissional um judgment as a matter
of law antes de que o júri decida, ou depois284, caso demonstre
que o veredito se baseia em prova insuficiente.

de se dispor de standards de prova (para evitar a arbitrariedade), mas


esses seriam reconduzidos a um sistema de prova legal.
283. Regra 56 das Federal Rules of Civil Procedure.
284. Regra 50 das Federal Rules of Civil Procedure.

191

Raciocinio Probatorio-Prova sem Conviccao-1ed.indd 191 20/07/2022 16:54:54


PROVA SEM CONVICÇÃO JORDI FERRER-BELTRÁN

Situações muito parecidas apresentam-se também no pro-


cesso penal. Entretanto, como pode um juiz profissional justi-
ficar a manifesta insuficiência probatória – i.e., que nenhum
jurado racional poderia considerar satisfeito o standard de
prova a partir da prova apresentada – se não se dispõe de stan-
dards de prova que ofereçam os critérios intersubjetivamente
controláveis de suficiência probatória285.

Uma dupla circunstância cultural, nos países de common


law e de civil law, teve como consequência que não se prestasse
a devida atenção a essa função dos standards de prova, que,
como vimos no capítulo anterior, os vincula estritamente ao
direito ao devido processo e ao Estado de direito.

Por um lado, nos países de common law, a existência do


dever de motivar as decisões sobre os fatos, que, erroneamen-
te, parece retirar a importância de que se disponha de crité-
rios de justificação intersubjetivamente controláveis de tais
decisões. Por outro lado, nos países de civil law e, em especial,
nos latinos, o abandono dos sistemas de prova taxada levou a
uma radical assunção da liberdade do juiz para valorar a pro-
va, entendida como atividade não submetida a qualquer regra
que não seja o livre convencimento. Ambas as circunstâncias
culturais estão, de fato, permeadas pelo mesmo padrão: uma
concepção persuasiva ou subjetivista da prova286.

285. Isso acarretou sérias objeções à justificação dessas decisões dos juízes
profissionais norte-americanos, pela indeterminação dos critérios de
correção dessas. Vide sobre o tema Pardo, 2009: 1097-9 e a bibliografia
ali citada.
286. Essa é, de fato, uma das teses que reaparecem ao longo de todo o livro.
Como argumentarei no terceiro capítulo, não há grande diferença en-
tre a forma habitual de enfrentar o raciocínio probatório nos países de

192

Raciocinio Probatorio-Prova sem Conviccao-1ed.indd 192 20/07/2022 16:54:54


2 • A fundamentação do nível de exigência probatória

 s standards de prova cumprem uma fun-


1.2. O
ção de garantia para as partes

Ao mesmo tempo em que oferecem critérios e guias para


os julgadores, os standards de prova constituem uma garantia
para as partes, em diversos sentidos. Como argumentei no ca-
pítulo anterior, a predeterminação do nível de suficiência pro-
batória mediante regras que cumpram os requisitos metodoló-
gicos ali analisados é uma das condições do devido processo e,
por extensão, do Estado de direito.

Somente se as partes podem conhecer o umbral de sufi-


ciência probatória poderão tomar decisões racionais antes e
durante o processo acerca da estratégia de defesa de seus inte-
resses287: em primeiro lugar, decidindo se alegam ou não judi-
cialmente uma questão de fato, no processo civil, levando em
conta as provas que possuem à sua disposição; ou calibrando
as possibilidades de um acordo com a parte contrária e o valor
de reserva ou limite até o qual estejam dispostos a ceder, no-
vamente em função da solidez das provas de que disponham.
Pois bem, uma vez mais deve-se recordar que essa solidez não

common law e a dos de civil law, mesmo que nos primeiros tenha sido
muito mais habitual o trabalho com e sobre os standards de prova do
que nos segundos. Tanto naqueles como nesses a concepção majoritá-
ria da prova vincula o fato provado vinculado à convicção do julgador,
como já mostrei até aqui. E esse é, precisamente, o grande erro. Para
a concepção racional da prova, de seu turno, a convicção do julgador é
irrelevante do ponto de vista justificativo e, portanto, os standards de
prova não podem ser considerados tendo por base uma graduação
dessa convicção.
287. No mesmo sentido, vide Anderson, Schum e Twining, 1991: 286 ss. e Allende
Sánchez, 2021: 156-7.

193

Raciocinio Probatorio-Prova sem Conviccao-1ed.indd 193 20/07/2022 16:54:54


PROVA SEM CONVICÇÃO JORDI FERRER-BELTRÁN

depende unicamente das provas em si, mas sim de sua capaci-


dade de elevar o grau de corroboração da hipótese fática sus-
tentada pela parte até superar o umbral de suficiência probató-
ria exigido pelo standard de prova aplicável288.

Em segundo lugar, se nos encontramos em um processo


penal, o conhecimento do standard de prova aplicável permi-
tirá ao membro do ministério público avaliar quão sólida é a
acusação que pretende formular, o que deveria desincentivar
a apresentação de acusações sem o devido fundamento pro-
batório. No que diz respeito à defesa, o conhecimento do um-
bral de suficiência probatória adquire uma importância capital
no marco dos mecanismos de plea bargaining (ou, em alguns
países, extinção antecipada, sentença de conformidade, juízo
abreviado etc.).

Nessas situações o imputado encontra-se na posição de


ter que aceitar ou não a oferta de uma pena reduzida (em troca
de sua admissão dos fatos) sem conhecer as regras de sufici-
ência probatória que lhe serão aplicáveis em caso de recha-
çar a oferta289. As condições mínimas para poder tomar uma

288. Para que essas decisões possam ser tomadas com informação minima-
mente completa, é imprescindível que o sistema preveja mecanismos
de discovery, que permitam às partes conhecerem as provas de que a
parte contrária dispõe e que evitem o uso surpreendente dessas duran-
te o procedimento.
289. E, ainda pior, em muitos países, sem conhecer as provas de que dispõe
a acusação. Resulta, aqui, tremendamente ilustrativa a ideia proposta
por Langbein acerca da perversão das garantias processuais por parte
dos operadores do direito. Assim, recorda Langbein (1978:4-5) que na
Europa medieval o aumento das exigências probatórias para a con-
denação no processo penal (demandando a confissão do acusado ou
duas testemunhas de acusação) levou à generalização da tortura como
mecanismo para a obtenção de confissões. O que era uma medida

194

Raciocinio Probatorio-Prova sem Conviccao-1ed.indd 194 20/07/2022 16:54:54


2 • A fundamentação do nível de exigência probatória

decisão racional nesse contexto são que o acusado conheça as


provas disponíveis favoráveis e contrárias e que possa estimar
a probabilidade de que com essas se satisfaça o standard de
prova requerido para o caso.

Isso, é claro, pressupõe que o standard de prova deve ser


conhecido e estar formulado de acordo com os requisitos me-
todológicos apresentados nesse trabalho (em especial, que
seus critérios não dependam de elementos subjetivos do jul-
gador e que sejam suficientemente precisos na determinação
do umbral de suficiência probatória). A rapidíssima expansão
dessas modalidades de extinção antecipada do processo e a
alta porcentagem de casos penais que são decididos com essas
torna especialmente importante essa função dos standards de
prova290.

que pretendia diminuir as falsas condenações degenerou-se para um


mecanismo perverso. Uma situação parecida ocorreu em nossa época;
assim, desenhamos um julgamento muito garantista para o imputado,
começando pelo exigente standard de prova para a condenação, mas
encontrou-se também o mecanismo perverso que faz com que essas
garantias não sejam efetivas: o abuso do plea bargaining, mediante
o qual a acusação pode muito mais facilmente lograr condenações
(Langbein, 1978: 8-11).
290. Sobre as condições de racionalidade das decisões dos acusados nes-
se tipo de conformidades vide Bibas, 2004: 2469-96 (que analisa diver-
sas distorções estruturais que incentivam a aceitação da culpabilidade
por parte de inocentes), Bowers, 2008: 1125 ss. (que analisa os vieses
de que sofrem os acusados reincidentes) e Lascuraín Sánchez e Gascón
Inchausti, 2018; sobre o impacto desses procedimentos no risco de falsas
condenações vide Gilliéron, 2013; sobre as condições de legitimidade,
vejam-se Duff, 1986: 141, McEwan, 2004: 58 e Veleda, 2021; e sobre a
evolução histórica da instituição no common law, vide Alschuler, 1979.
Nos Estados Unidos a exigência de que o ministério público leve a co-
nhecimento da defesa, no juízo oral, tanto as provas favoráveis quanto
as contrárias de que dispuser foi estabelecida como um requisito do
devido processo a partir de Brady vs. Maryland, 373 U.S. 87 (1963). Não

195

Raciocinio Probatorio-Prova sem Conviccao-1ed.indd 195 20/07/2022 16:54:54


PROVA SEM CONVICÇÃO JORDI FERRER-BELTRÁN

Considerando-se a dependência que outras regras de de-


cisão probatória possuem em relação aos standards de prova,
a correta determinação desses últimos converte-se, também,
em garantia da correta aplicação das primeiras. Assim, por
exemplo, as regras que determinam os ônus da prova (em sen-
tido objetivo) – é dizer, quem perde se não há prova suficiente
– pressupõem que o umbral de suficiência probatória esteja
determinado. E o mesmo ocorre com as denominadas presun-
ções iuris tantum, cuja aplicação pressupõe que essas não te-
nham sido derrotadas por prova suficiente em contrário.

Isso é particularmente importante no processo penal, no


que diz respeito à presunção de inocência, como regra de jul-
gamento, que somente pode ser erigida em uma garantia para
o acusado se é possível conhecer o umbral de suficiência pro-
batória a partir do qual a presunção é derrotada.

Por fim, a existência de regras que determinem os stan-


dards de prova aplicáveis em um processo cumpre uma impor-
tante função para controlar a correção das próprias decisões.
Isso permite às partes avaliarem a viabilidade de apresentarem
recursos contra essas e, muito especialmente, formularem suas

obstante, surpreendentemente, não há um critério uniforme sobre se a


mesma exigência é aplicável no pre-trial para efeitos do plea bargaining.
Mesmo que a doutrina se pronuncie muito majoritariamente a favor de
considerar também como condição do devido processo que a defesa
tenha conhecimento das provas favoráveis de que a acusação dispuser
para fins de poder tomar uma decisão informada sobre a aceitação ou
não de um guilty plea, o mesmo não pode ser dito sobre a jurisprudên-
cia dos diferentes circuitos. Sobre o tema podem-se ver Blank, 2000,
Petegorsky, 2013 e Bibas, 2004: 2495, quem muito claramente afirma que
“o resultado de uma inadequada revelação de provas [discovery] é que
as partes acordam com os olhos vendados”.

196

Raciocinio Probatorio-Prova sem Conviccao-1ed.indd 196 20/07/2022 16:54:54


2 • A fundamentação do nível de exigência probatória

alegações para mostrar a falta de justificação da decisão recor-


rida. Assim, poderá a parte argumentar erros na identificação
do standard de prova aplicável, ou mesmo, se o standard tiver
sido corretamente individualizado pelo julgador, erros em sua
aplicação.

O caso mais comum dessa última possibilidade é aquele


em que a parte sustenta que, à luz das provas admitidas e pro-
duzidas no processo, a hipótese que se declarou provada não
alcançou o umbral de suficiência probatória, ou, pelo contrário,
que alguma hipótese que se declarou não provada na verda-
de alcançou esse umbral. Entretanto, esse tipo de controle e de
alegações em sede de recurso não é possível se os critérios de
justificação da decisão, naquilo que diz respeito à suficiência
probatória, não estão predeterminados ou não são conhecidos.
Assim, em resumo, a indeterminação desse umbral de suficiên-
cia esvazia o conteúdo do próprio direito ao recurso das partes
no processo, no que diz respeito aos aspectos fáticos desse.

 s standards de prova distribuem o risco de


1.3. O
erro entre as partes

As duas primeiras funções dos standards de prova (i.e.,


aportar critérios de justificação das decisões e servir de garan-
tia para as partes) não dependem do nível de exigência proba-
tória concreto que cada standard impuser: cumprem-se pelo
mero fato de sua existência, desde que se cumpram os requisi-
tos metodológicos para sua formulação.

A essas duas, não obstante, agrega-se uma terceira fun-


ção dos standards de prova, que é consequência do umbral de

197

Raciocinio Probatorio-Prova sem Conviccao-1ed.indd 197 20/07/2022 16:54:54


PROVA SEM CONVICÇÃO JORDI FERRER-BELTRÁN

suficiência probatória concreto estabelecido por cada stan-


dard de prova: a distribuição do risco de erro entre as partes.
A doutrina majoritária, especialmente a anglo-saxã, centrou
sua atenção nessa última função dos standards de prova291.

Essa é, todavia, um dos equívocos que eu gostaria de des-


tacar neste trabalho: enfatizar unicamente a função que os
standards de prova possuem de distribuição do risco de erro
(ou de distribuição dos erros, de acordo com alguns autores),
obscurece o papel fundamental que esses possuem como crité-
rio de justificação das decisões judiciais e como garantia para
as partes; em outras palavras, deixa de lado o fato de que dis-
por de standards de prova corretamente estabelecidos é parte
substancial do devido processo.

Pois bem, para fins de decidir o ponto no qual situar o


umbral de suficiência probatória, é imprescindível compreen-
der adequadamente a relação entre essa decisão e a distribui-
ção do risco de erro entre as partes. O ponto de partida, como
já mencionei na introdução, é que o objetivo institucional da
prova no processo judicial (da mesma forma como no proces-
so administrativo) é a apuração da verdade, mas as limitações
epistêmicas que afligem qualquer raciocínio sobre os fatos
impedem de atribuir mais do que uma probabilidade (indu-
tiva) determinada de que as hipóteses fáticas em litígio sejam
verdadeiras.

291. Sirva de exemplo, por todos, o que diz Laudan (2016: 103): “(…) a razão de
ser de um standard de prova é, precisamente, dispor-se de uma regra
de decisão que distribua os diferentes resultados do acordo com seus
respectivos custos”.

198

Raciocinio Probatorio-Prova sem Conviccao-1ed.indd 198 20/07/2022 16:54:54


2 • A fundamentação do nível de exigência probatória

Não sendo possível, pois, fundar certezas racionais sobre


os fatos, sempre e em qualquer caso haverá a possibilidade do
risco de erro da decisão, que somente pode ser evitada não se
decidindo. Mesmo que não seja o único tipo de erro relevan-
te no raciocínio probatório, aquele que aqui nos interessa é o
erro material292. Estaremos diante de um erro de falso positivo
quando se declarar provada uma hipótese falsa, e diante de um
erro de falso negativo quando se declarar não provada uma
hipótese verdadeira.

Pode perfeitamente ocorrer de essas serem as conclusões


corretas à luz das provas disponíveis, o que mostra que o erro
material não precisa necessariamente ser causado por um erro
inferencial do julgador em sua decisão. Tudo que temos que
assumir aqui é que, se o objetivo da prova é a apuração da ver-
dade, estaremos diante de um erro toda vez que aquilo que
se declarar provado ou não provado não coincidir com o que
realmente ocorreu no mundo.

A relação entre os standards de prova e os erros nem sem-


pre foi bem entendida e, não obstante, se trata de uma peça
fundamental da política processual. Por isso, começarei por
desfazer alguns mal-entendidos.

a) Quanto mais exigente for o standard de prova, menor


será o risco de erro. Não é estranho encontrar quem sustente
a tese de que um standard de prova exigente diminuiria o nú-
mero de erros sobre os fatos. Assim se expressa, por exemplo,
Gascón Abellán:

292. Também, como será visto mais adiante, pode haver erros inferenciais,
que são lógica ou empiricamente independentes dos erros materiais.

199

Raciocinio Probatorio-Prova sem Conviccao-1ed.indd 199 20/07/2022 16:54:54


PROVA SEM CONVICÇÃO JORDI FERRER-BELTRÁN

(…) quanto mais exigente for o standard para


provar um fato, mais racional será a decisão que
declara provado esse fato, pois um SP [standard
de prova] muito exigente minimiza a possibi-
lidade de erro e maximiza a possibilidade de
acerto293.

Essa é uma conclusão, todavia, apressada, baseada na ob-


servação de um só tipo de erros, os falsos positivos ou con-
denações falsas, desconhecendo ou ignorando o fato de que
ao lado desses também são probatoriamente errôneos os fal-
sos negativos ou as absolvições falsas. Usarei nessas próximas
páginas um modo de apresentar graficamente o impacto de
situar-se o umbral de exigência probatória em um ponto ou
em outro, que pode nos servir para mostrar esse ponto294.
Vejamos:

293. Gascón Abellán, 2005: 130. No mesmo sentido Vergès, Vial e Leclerc, 2015:
103 e Tichý, 2019b: 297. Muito possivelmente, também, essa seja a ideia
que subjaz à ideia de Ferrua, que debati no capítulo anterior, de que por
debaixo do standard para além de qualquer dúvida razoável somente
há suposições e suspeitas, não se podendo, em qualquer caso, falar em
prova. Reyes (2020: 5 ss.) atribui àquela que ele denomina “concepção
tradicional” (“received view”) dos standards de prova que uma de suas
funções é a de minimizar o risco das decisões. Não resta claro se para
Reyes essa seria uma função de todos os standards de prova ou de al-
guns, e o escasso apoio bibliográfico utilizado para caracterizar essa
concepção tradicional não ajuda no esclarecimento do ponto. Em qual-
quer das interpretações, como será visto, trata-se de uma tese errônea.
294. Tomo o tipo de gráficos de Bell, 1987: 570 ss. Esse modo de apresen-
tação também foi utilizado por outros autores, como DeKay, 1996: 101;
Laudan, 2006: 109-10; Allen, 2014: 204 ss. e Eyherabide, 2021: 191 ss.

200

Raciocinio Probatorio-Prova sem Conviccao-1ed.indd 200 20/07/2022 16:54:54

Você também pode gostar