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homem pelo uso da liberdade, mesmo quando esta não encontra


como ponto de apoio senão parcos elementos intelectuais.
Em suma, deparamos aqui, mais uma vez, com a preponde-
rância da vontade e da liberdade no pensamento de Descartes. O
tema fundamental do sistema é o da liberdade, do qual as variações
em tom maior constituem a ciência e as variações em tom menor, a
moral. O Discurso do Método é uma realização da liberdade para a
criação e para a fundamentação de uma moral certa, se o método a
demonstrar possível; a Moral Provisória não é um banal compro- Tratado das Paixões da Alma
misso com a ordem social, é também uma criação da liberdade.
Neste plano das idéias confusas, a sua racionalidade se salva pela
vontade de procurar os melhores juízos.

I parte
O Tratado das Paixões da Alma é a última obra de impor-
tância de Descartes. Versando assunto moral, poderíamos conside-
rar que é o coroamento de todo aquele esforço que ele anuncia desde "
o início de sua carreira, no sentido de buscar o conhecimento de
tudo o que fosse útil à vida.' Assim, diz-se que o Tratado é a chave
de abóbada de todo o edifício. Sem dúvida é o escrito de Descartes
mais elaborado sobre assunto moral. Temos para nós, porém, que
não é o mais importante de todos, pois que é apenas uma aplicação
de elementos que se acham em outros escritos, e especialmente na
correspondência. Nesta e na metafisica é que se encontram os prin-
cípios, os fundamentos, sem os quais não poderíamos compreender
o Tratado. Em relação As elaborações da metafisica e da correspon-
dência, o Tratado está mais ou menos na mesma posição da "Dióp-
trica", dos 'Meteoros"e da "'Geometria" em relação ao Lliscurso
do Método.
E fácil de ver que o fundamento metafísico do Tratado se en-
contra na teoria cartesiana das substâncias. Na distinção da subs-
tância pensante e da substância extensa em primeiro lugar. Con-
tudo é de fundamental importância notar que essa distinção essen-
cial da rnetafísica, base de toda a física cartesiana, é apresentada
desde o inicio do Tratado apenas para introduzir a concepção da
união substancial da alma e do corpo, que, definindo aquilo que
Descartes chama de "natureza humana", virá a estabelecer, quase

1 Discours, AT VI, p. 10,l. 9-10.


I
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mas ele não encara, nessa obra, os excessos ou deficiências que são tem uma perfeita consciência de suas limitações." Em consequen-
patológicos: encara aqueles que são produzidos pelo temperamento cia, todos os seus esforços têm de ser realizados na parte propedêu-
ou pelas circunstâncias. Esses excessos são possíveis normalmente tica da medicina, a saber, na Anatomia e na Fisiologia. Era essa a
em consequência da união.8 A expressão que Descartes usa: remé- atitude normal e justa no século XVII. A velha medicina de Hipó-
dios contra as paixões deve, pois, ser entendida à luz desses textos; crates e Galeno (na qual se encontravam algumas excelentes práti-
trata-se da busca do equilibrio moral pelo domínio das paixaes, mas cas, por exemplo, a notável habilidade da Escola de Cos no diagnós-
uma busca que vem das condiçaes naturais do homem, do fato de tico, uma terapêutica nada desprezívela e mesmo algumas intuições
ser um corpo unido a uma alma e não de condições patológicas. de gênio como a de que a febre era uma defesa orgânica)I3 se fun-
Poderíamos, contudo, pensar que, não sendo a medicina so- dava em uma anatomia muito deficiente,l4 em uma fisiologia primi-
mente curativa, mas também preventiva, dar-se-ia o caso de ser o tivp que, não podendo ser descritiva do funcionamento dos órgãos
Tratado uma espécie de manual de higiene ou de medicina preven- do corpo, cuja construção desconhecia, substituía isso pela idéia de
tiva; é possível que de algum modo tal expressão lhe seja aplicável. que toda a atividade vital se explicava pela combinação de elementos
Nunca, porém, no sentido do texto do Discurso acima mencionado. líquidos, os "humores".15
Repetimos: em parte alguma do Tratado se encontra a idéia de tor- Ao tempo de Descartes era exatamente no campo da anatomia
nar os homens mais sábios moralmente, agindo sobre os órgãos do e da fisiologia que se vinham fazendo os maiores esforços. Quanto h
corpo, e nem mesmo sobre o seu temperamento: o que de fato se primeira, já desde o século anterior se assinalavam progressos im-
encontra, em conjunto com os textos que nos apresentam o conheci- portantes, realizados por Leonardo da Vinci, Ambrósio Paré, Eus-
mento que é possível do complexo corpo-alma, é uma série de textos táquio, Vesale e muitos outros, descobridores de até então desco-
em que se fala da ação da alma ou da vontade no sentido de reger as nhecidas estruturas do corpo humano. Quanto à fisiologia, ela se
paixões e com isso contribuir para o bem-estar do corpo. Se há, pois, modifica também profundamente em consequência de duas razões:
no Tratado alguma medicina preventiva ou alguma terapêutica é a) Primeiramente, o progresso da própria anatomia, eliminando er-
uma psicoterapia, isto é, uma busca do bem-estar do corpo e mesmo ros que com ela se tornaram patentes, e apresentando fundamento -
a cura de alguns males do corpo9pela ação da a1ma.lo mais adequado a novas idéias sobre a fisiologia, como por exemplo a
Como explicar, porém, essa transposição do ponto de vista de respeito da circulação do sangue. b) Em segundo lugar, as novas
Descartes ao publicar em 1637 o Discurso, tão cheio de esperanças idéias físicas e cosmológicas, tendentes a substituir a física aristoté-
fundadas no progresso da medicina, para o ponto de vista de 1649, lica, que explicava a universalidade dos fenômenos pela combinação
data em que publicou o Tratado? dos quatro elementos e das quatro qualidades a eles correspondentes
Já mencionaníos em outro lugar os textos em que Descartes se - o quente, o frio, o seco e o úmido. Ora, a fisiologia humoral já
confessa desapontado em relação aos seus próprios esforços no mencionada, do sangue, da bile, do fleugma e da atrabile, que cor-
campo da medicina. Um estudo mais aprofundado da evolução do respondia exatamente a essa física,ló com ela começou também a
seu pensamento nesse terreno explicará claramente sua posição no declinar. Descartes tem desde 1630 já bem arquitetada a sua Física
Tratado. fundada exclusivamente na extensão, ou matéria, e no movimento
Na verdade, as aspirações de Descartes expressas na parte VI de suas partes, que elimina também todas as concepções de caráter
do Discurso não poderiam levá-lo desde logo à busca de uma tera- animista correntes na física e na fisiologia aristotélicas. Nada de
pêutica. Sem querer fazer injustiça it medicina do seu tempo, ele
11 "Il est vrai que celle (a medicina) qui est maintenant en usage, contient peu de
8 Cf. o texto do art, 141 do TP (AT XI, p. 443) em que Descartes declara que não choses dont l'utilité soit si remarquable ... i1 n'y a personne même de ceux qui en
poderia haver excesso no amor e na alegria se a alma existisse separada do corpo. font profession, qui n'avoue que tout ce qu'on y sait n'est presque rien, h cornpa-
Cf. também o art. 211, em que se fala de como "corriger les défauts de son na- raison de ce qui reste à y savoir ..." Discurso, AT VI, p. 62, 1. 20-26.
turel" (AT XI, p. 4 8 6 , l . 6). Todo esse artigo pressupõe o indivíduo normal. 12 Dreyfus-Le Foyer, ob. cit., p. 238.
9 A Elisabeth, julho de 1647, AT V, p. 65, 1 . 5 - p. 66,s. 4. 13 Dreyfus-Le Foyer, ob. cit,, p. 254.
10 "Tandis que le Discours de la Méthode fonde la morale sur la médicine, les lettres 14 Dreyfus-Le Foyer, ob. cit., p. 238.
à la Princesse Elisabeth et le Traité des Passions non seulement dégagent la liberté 15 Dreyfus-Le Foyer, ob. cit., p. 239.
morale de tout empire organique, mais encore déduisent d'une attitude morale 16 Dreyfus-Le Foyer, ob. cit., p. 239.
lacure des maux physiques", Dreyfus-Le Fayer, ob. cit., p. 260.

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