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A CONSTITUICAO DE UM DISCURSO FUNDADOR: O PREFACIO DE CASA GRANDE & SENZALA Vanise Gomes de Medeiros" “O que vale é a versio que ficou.” Orlandi “Nao existem, nas vozes que escutamos, ‘ecos das vozes que emudeceram?” Benjamin Resumo Viirios sto 6s acontecimentos, as histras, as lendas, os enuneiados que constituem as memérias © as identidades de um pats e que se articulam como diseuisos fundadotes. Com este tabalho pretendemos analisarofuncionamento de um certo discurso fundador —o preticio de Casa Grande & Sengala de Gilberto Feyre-. recuperando. diseutindoalgumas das maress ve oconfiguram, Objetivaanos também refletirsobre asus relag5o com os diseursos que orodeiam e sobre o lugar em que se insere na constituie ‘glo de falas Fundantes sobre o Brasil LE por Falar em Discurso Fundador Todo povo, todo pais tem suas falas fundantes; isto 6, discursos, enunciados, lendas, mitos que 0 “explicam”, que 0 “significam’”, que ihe conferem identidade, Sto discursos que “reverberam efeitos de nossa histéria em nosso dia-a-dia, em nossa reconstrugiio de utoranda em Estudos LingUstieos na UEF. Rua, Campinas, 7; 107-126, 2001 108 Aconatituigio de um discurs fundador: ‘0 preficio de Casa Grande & Sencala nossos lagos socials, em nossa identidade hist6rica”. Refletiremos aqui sobre um certo discurso fundador, a saber, a obra Casa Grande & Senzala (C.G.S.) de Gilberto Freyre. Mais especificamente, iremos nos centrar no pretécio da primeira edigio do livro, No prefiicio escrito pelo proprio autor de Casa Grande & Ser Partimos de uma definigao de discurso fundador como “aquele que instaura a possibilidade de novos discursos, ou seja, aquele que cria novos “sitios de significan (Orlandi, 1993). Tais afirmagdes impoem, de imediato, duas explicagdes. Em primeiro ugar, quanto & questao do movimento. Instaurar a possibilidade de novos discurs0s no implica tio somente uma projecdo para o futuro. Em lugar disso, 0 discurso fundador ‘opera sobre uma meméria ja existente e cria outra(s), ou seja, “ele ctia uma nova tradicho, cle re-significa 0 que veio antes ¢ institu’ af urna meméria outra”®, Movimenta-se, pois, tanto para passado quanto para 0 futuro, Em segundo lugar, quanto & questo da origem. Propor discurso fundador como aquele a partir do qual so produzidos outsos discursos n‘io significa postular que os sentidos tenhiam uma origem primeira, um ponto inicial a partirde um niio-sentido, Ora, 0 que possibilita o dizer € ji-dito,o que possibilita a instauragio de um outro sentido so os sentidos jé fixados em outras memérias. O discurso fundador é, pois, aquele que instaura.a possibilidade de um novo dizer exatamente porque ji hi um dizer, jé ha sentido(s). £ fundador no sentido de reorganizador de uma meméria. E fundador porque “entendido como aquele que cria um outro lugar do qual falar”. A nogdo de fundagao articula-se, portanto, a nogio de re-signitieagto. Um outro aspecto importante desta nocdo diz. respeito & sua fungi. Um discurso fundador pode ter muitas fungGes; uma delas seria da ordem da cigncia: aquele que instaura novos campos do saber, como, por exemplo, 0 livro péstumo de Saussure por seus alunos que reterritorializa conhecimentos € inaugura novas Zonas de produgio de ciéncia, no caso, a lingiistica, Uma outra fungio seria da ordem da formagio de um imagindrio de um pais. Casa Grande & Senzala opera nesses dois terrenos. Trata-se de uma obra comumente apontada como marco de uma época- no caso a década de 30 = e de uma nova proposta de leitura de Brasil vinculada a uma nova érea de saber - a *Osand, 1993 Orlandi idem >Serani, 1993 + Candido, 1980; Costa Lim, 1986; Arajo,1994;e Vian 995, Rua, Campinas, 7: 107-126, 2001 Vanise Gomes de Medeinos 109 sociologia. E nosso objetivo aqui analisar o funcionamento deste discurso fundante evidenciando © discutindo algumas das mareas que nele se fazem presentes: a forma ensafstica e memorialistica, bem como a heterogeneidade que o configura, 2 Por que Prefiicio? Preficios, conforme sinaliza Carpeaux’, ém as mais diversas finalidades: podem servit para clogiar autores novos ou jd consagrados; podem funcionar para situaro autor e seu livto dentro de uma determinada comente, época ou proposta; podem atenua determinadas “ousadias” do autor ou destacar ceitas passagens; podem operar como um texto critico daobia do autor ou somente do livro em questao; podem se constituir como um manifesto Podem ser eseritos pelo préprio autor ou niio, Podem ganhar autonomia em relagio a0 livro, Podem ser cuttos ou longos, Podem ser prélogos ou até epilogos. Ou ainda epititios. Preficios podem nao ser lidos também, Mas, ainda assim, em se tratando de prefaécios de textos fundantes, suas vozes podem ecoar no nosso imagindrio, podem nos significar. ‘Um exemplo da possibilidade de ressonfincia & necessério. Orlandi, no texto Vao suurgindo ssentidos (1993), trabatha com um enunciado citado como pertencente a um determinado texto sem que, contudo, ele esteja de fato presente no texto referido, Trata-sede “Em se plantando tudo dé”, que & sabidamente indicado como fazendo parte da famosa carta de Caminha. Noh, no entanto, em tal texto, o enunciado apontado. E, todavia, ele ressoa ‘no nosso imaginario, Mais do que isso, le significa, ele confere identidade a uma nagio: “Terra Prédiga. Gigante pela propria natureza."©. Ea isto que se atribui, na AD, a categoria de discurso fundador. Enunciados, textos que, operandona ordem do simbélico, povoam 0 imagindrio de um povo e the fornecem identidade. O fato de terem sido escritos ou no, de terem sido lidos ou ri -xatamente a questio; afinal “no so 6 enuinciados empiticos, s30 suas imagens que funcionam””. A questio portanto, a sua projegio no imaginério de um povo. A questi & a versio que fica, que constitui ‘memiria de um pais. SCarpeau * Orlandi Tide 1993 7-126, 2001 no Aconstigio de um diseuso Fundader: © preficio de Casa Grande & Sencala Para responder, por ora, & pergunta “por que preficio?” (mais adiante a ela ‘retomaremos), recuperemos Orlandi: “os preficios ¢ as notas de pé de pagina visam conter 0 texto nos limites, ou melhor, procuram nao deixar que ele signifique akém de certos limites”. E, no caso do prefiicio, nfo se pode deixar de sinalizar que ele “procura instituir [ao texto] um inicio, uma perspectiva, um modo de leitura ou ao menos procura colocar-Ihe uma referéncia, um inicio particular” Em outras palavtas, preficios podem indicar os caminhos de uma leitura, domesticar ‘0s sentidos de um texto, sinalizartrithas a serem seguidas. Ademais, preficios podem vir também a fornecer material para a construgdo de um imaginério sobre um povo. 3.Um Ensaio Olivro CGS de Gilberto Freyre é publicado em 1933. Um momento em se que vinha tendo, desde o final do século XIX, um debate fecundo em diversas reas sobre identidade brasileira, em que se buscava definir, explicar,justficar o que vinha.a sero povo brasileiro semana de 22, de uma década anterior, € um exemplo da discussao ja existente sobre brasilidade. CGS se insere nessa discussio. ‘Uma das marcas do funcionamento do discurso de Freyre forma de ensaio, por ele mesmo afitmada no primeiro pardgrafo de seu preticio: ‘Em outubro de 1930 occorren-me a aventura do extlio. Levou-me primeiro a Bahia; depois a Portugal, com escata pela Africa. 0 typo de viagem ideal para os estudos e as preacupacdes que este ensaio reflecte.” (Casa Grande & Senzala, pag. IX, La. edicio, grifo nosso) Como observa Candido (1980), & caracteristico da geragdo de 30 a tendéncia ao ensaio como uma forma de escritura que procurava romper com uma traget6ria discursiva sobre o Brasil. O ques tinha entao no ambito da historiografia era uma historia positivist, neutra e objetiva que assumia a Europa como pariimetro para refletir sobre a identidade brasileira e que se articulava tendo como base tedrica o evolucionismo da época. Nada * Orland, 1990 * Orlana, 1990 ua, Campinas, 7: 107-126, 2001 Vanise Gomes de Medeiros MW mais significativo do que o fato de uma nova maneira de abordar a identidade brasileira assumira subjetividade implicita num ensaio em oposicio d objetividade vigente Em contraposigZo 3 proposta de uma historia descritiva, factual e linear, vamos encontrar |iéno preficio de CGS a proposta de uma abordagem fragmentiria, de uma ordenagio dos “fatos’ de maneira ndo eronolégica € de uma narrativa na qual 0 plano onirico também atua fundindo, por vezes, passado, presente e futuro. Nessa outra forma de analisar um pais, ndo mais importa 0 “real”, 0 “fato”, mas o “inteligivel”. Dat o ensaio, nna medida em que se caracteriza como um género no qual a presenga do intelecto é set {ator preponderante, seu fator caracterizador. A subjetividade da proposta ensaistica alia-se a subjetividade da proposta memorialistica: outra marca constitutiva deste discurso fundador. 4/Memérias Aose folhear o prefiicio de CGS, uma outra caracteristica se evidencia -o memorialismo. preficio € escrito em primeira pessoa, 0 livro é dedicado aos seus avds (de Gilberto Freyre); apds a dedicat6ria ha uma foto cam a seguinte referencia “Uma Wanderley do século XIX"; 0 objeto a partir do qual o povo brasileiro serd estudado € a casa", Um eu”, um retrato de farnflia, casa, Memérias e hist6rias. Historias) do Brasil. Qual o(8) efeitos) que estes dados provocam, com o que eles se articulam, que fio eles rompem? Refletindo sobre a distingao entre histéria e meméria, observamos que a segunda se diferencia da primeira por se definir pela presenga do “eu” do escritor. Refletindo sobre a distingdo entre historiador, ficcionista e memorialista, notamos que a questio da verdade os distingue. Enquanto o historiador teria a “pretensio de oferecer a “‘verdade’ sobre seu objeto”, 0 ficcionista nao a teria como limite, € 0 memorialista contaria a propria “verdade”. O memorilista interpde-se, pois, entre os dois. Por um lado, assume um compromisso como leitor de nfo inventar, com isso aproxima-se do historiador e distancia "A casa, elm de se consituir como objeto a patie do qual a sockedade br presente 0 menos de duas maneiras no tule que faz referéacia a duas casas ou entio a uma compo ‘duns partes ; ena planta, ineluida na edigfo, que apresenta as partes de uma lira ser anaisada, est de rani com sou anexo asonzala, Costa Lima (1996) ‘Rua, Campinas, 7; 107-126, 2001 2 Aconslituigio de um discurso fandador: 6 preficio de Casa Grande & Senzala se do ficeionista - afinal, 0 espaco da invengio &a ficgao, o da verdade é o du hist6riae dameméria, Por outro lado, na medida em que narra sua propria histéria, distancia-se da neutralidade pretendida pelo historiador, mas nfo da ficeao, jé que esta no tem tal ambigio. A ilusfio do memorialista € afirmar o fato por té-lo vivido, Eo viver que atest oque diz. Eo viver que produz o efeito de legitimago do seu dizer tanto quanto 0 fato, consideradio em sua neutralidade, legitimava o fazer Historia, Em CGS encontram-se ao lado de um “eu” que asstime sua posicio discursiva, uma tradigo atestavel - a foto de um elemento da familia, de uma ‘Wanderley’ -,¢ um lugar também empitico - a casa. A vor. do narrador niio esté sozinha. A tradigio familiar & a cconcretude da casa funcionam aqui como elementos que irdo garantir a autoridade de ‘quem fala. Indo mais adiante,o passado que vai se nasrar e que vai se analisar é sustentado poralguém que o viveu através de uma dupla experiéncia. Uma, temporal, que Ihe atesta a tradigo familiar. Qutra, que se apresenta ja no parigrafo de Freyre citado anteriormente, que € a experiéneia concreta: a viagem pelo mundo (Bahia, Africa, Portugal ¢ também EUA®) em busca do saber e da confirmagao ¢ legitimacao desse saber. ‘Um primeiro efeito, pois, seria o de o preficio funcionar como veiculo de legitimacao do proprio livro, Nele se apresenta 0 que vai set exposto marcado por duas instincias da cexperiéneia: da vida edo saber. Mas, hi ainda um outro efeito que se produz ao se recuperar o passado através de sua tradigdo familiar: o de identificagio afetiva com seu objeto de estudo. Se, wo assumir-se como “eu”, prope a leitor um pactoem torno da “verdade”; ao identificar-se afetivamente com seu projeto, propée a este um envol vimento emocianal com seu passado hist6rico. ata-se de uma dupla sedugio: participar de uma histéria que é ao mesmo temapo pessoal e coletivac participar através da emogio, Se relacionarmos a maneira de narrar a histéria que se tinha no século XIX com a proposta por Freyre, podemos perceber um deslocamento da autoridade que advinha dos fatos, com a histéria se articulando por si propria através deles e sem oenvolvimento do escritor, para a autoridade do narrador que os articula e que a eles esté diretamente envolvido. E aqui que se entrecruzam ensaio € memoria: ambos sio mareados pela "A formagio erica que Ihe posiblitou olivto fo, segundo afirmaem seu preffcio, devorrente de seus estos a Universidade de Colimbia eom professor Franz Boas, que The servi de mest uz, Campinas, 7: 107-126, 2001 Vanise Gomes de Medeivas 13 subjetividade e operam no sentido de se contraporem A tradigao historiogrifica de até en Duas stio, endo, as observagdes sobre o funcionamento do prefiicio de Freyre em CGS, que servem também como respostas & pergunta “Por que prefaicio?” Uma se refere ao modo como seri lido CGS: o preficio direciona um determinado modo de enyolvimento como texto, um determinado modo de leitura do texto. A outra diz respeito 20 fato de CGS se tratar de um discurso fundador. Uina das caracteristicas de um discurso fundador & que ele “busea a notoriedade e a possibilidade de criar um lugar na histéria, um lugar particular. Lugar que rompe o fio da ist6ria pata reorganizar os gestos de interpretacao”". Reflitamos um pouco sobre 0 nosso material, a partir desta afirmacao. Quando discutimos questiio da forma ensaistica, observamos que o prefiicio (prenunciando 0 corpo do livro) € articulado se opondo a uma historiografia neutra, Dissemos também que CGS se inseria em uma discussio sobre identidade brasileira que 44 vinha ocorrendo desde 0 século XIX. B, acabamos de fazer notar que no prefécio & proposto nfo apenas um outro modo de se envolver com o livro como também, aliado a esta proposta, um novo objeto para se pensar a identidade brasileira: a casa, ‘Nas casas-grandes foi até hoje onde melhor se exprimiu 0 caracter brasileiro; a nossa continuidade social. No estudo da sua histéria: intima despreca-se tudo 0 que a histéria politica e militar nos offerece de empolgante por wna quasi rotina de vida; mas denivo dessa rotina é que melhor se sente 0 caracter de um povo."(Casa Grande & Senzala, pag. XXX e XXXI, La. edigdo) E hora de irmos mais adiante: esta nova forma de refletir nos indica que, mais do que contruibuir para o debate sobre identidade brasileira, Freyre se propbe a dar uma resposta a0 que vem a ser 0 “carter do brasileiro”. CGS apresenta-se como um resposta is ‘questies vigentes. O fio que CGS rompe é com uma certa maneira de se “fazer historia” © com 0 objeto a ser privilegiado. Nao mais grandes fe randes batalhas, 1 intimidade que uma casa propicia. CGS pretende, pois, reorganizaros sentidos em cena, © Orland 19, Rua, Campinas, 7: 107-126, 200 la ‘A constugio de um diseurso fundador 0 proficio de Casa Grande & Sencala 5 A Heterogeneidade Afirmamos no inicio que, para a AD, 0 que toma possivel o dizer é o jé-dito,e isto indica que, para uma palavra ou tm discurso significar, é necessario que ja signifique. Hi, pois, um ja dado, uma meméria, a partir do qual se instaura 0 dizer (@ sem 0 que o sentido nao seria possfvel). E essa meméria do dizer, considerada em AD como interdiscutso, que permite que o discurso signifique. Em outras palavras, estamos sinalizando que um discurso significa em relacao a algo que Ihe antecede ¢ que lhe constitui - 0 interdiscurso -, ¢ que interdiscurso pode ser entendido como um voz. que ecoa através do discurso. Postular que hi uma voz que perpassa qualquer discurso equivale a postular que todo discurso é marcado pela heterogencidade. Uma hneterogencidade que Ihe é constitutiva: o interdiscurs. Além da heterogeneidade constitutiva, no diseurso podem se fazer presentes outras vozes, recuperadas de lugares outros e acolhidas sob a forma de citagdes ou utilizadas sob a forma de aspas, por exemplo, Trata-se de um outro tipo de heterogeneidade: a mostrada'’, Com o objetivo de analisar 0 funcionamento de um discurso fundador, no caso 0 preficio de CGS, assinalamos jé duas das marcas que 0 configuram como tal: sua aurticulago como ensaio ¢ como meméria. H4, ainda, uma outra marca: as vozes que nele operam, sta heterogeneidade. O prefiicio de CGS, de 35 paginas, ¢ prolixo, extenso e diverso no que se referea vozes outras. Hi iniimeras referencias e citagdes (tradu patcialmente traduzidas ¢ em outras Linguas) no compo do texto, bem como em notas de pagina (que também sao infimeras). So vozes que tém uma importante atuagiio ao lado da voz, em primeira pessoa, do narrador. H4, pois, no prefiicio, um “eu” (ou como veremos mais adiante virios “eus”) e os “outros”. H4 também um “nds”, Cada um esses grupos de vozes apresentam-se com fungdes distintas. 5.1 0s “ens” Cinco sdo as manciras como o narrador se apresenta, isto é, cinco so as maneiras como 0 “eu” se articula em fungiio do verbo: ora como complemento de verbos como ando aqui como helerogencidade mostrada a que se coloea em relagio a0 outro, em relagioalteridade (Authier, 1998) ‘Rua, Campinas, 7: 107-126, 2001 anise Gomes de Medeiros us “dependesse de mim” ou “me revelou” (trata-se do grupo com maior mimero de ‘ocorréneias); ora como sujeito e complemento de yerbos reflexivos como “Jernbro-me” ‘ou “familiarizei-me"; ora como sujeito de verbos como “aprendi” ou “conheei , ora ‘como sujeito de sintagmas verbais como “tive a fortuna de realizar” ou “tive 0 gosto de ver confirmados”. Por fim, ha também um “eu” que se transforma em “ns”, € que ird configurar um outro grupo. Observando 0s verbos do primeiro grupo, notamos que 6 narrador se coloca como passivamente determinado, como predestinado a algo. Recupetando os sujeitos de tais, vyerbos, notamos que fatos, acontecimentos e por vezes pessoas Vio do set encontio. Por exemplo: “ocorreu-me a aventura do exilio”; “foi surpreender-me (..) 0 convite Universidade de Stanford’; “cursos que me puseram em contato com grupos de estudantes (...) animados da mais viva curiosidade intelectual”. H4 um trecho que resume esta postura de predestinado: “Era como si tudo dependesse de mim..(pag. XID". O que significa ser predestinado? ‘Ser predestinado significa ter sido destinado, por outras instancias, a fazer algo. Ser predestinado significa ter um destino tracacdo e uma tarefa a cumprir, estando ja implicito que sera exemplar na sua realizagao, desde que seja de fato predestinado, O predestinado 6, pois, tanto aquele que & destinado, “enviado” para realizar algo, como aquele que serve de exemplo, que “guia”. De “enviado” & “guia” hé um processo do qual faz parte também a confirmagio da predestinagio Se tomarmos odiscurso religioso (sobretudo catélico) como referencia para pensarmos o estatuto da predestinagio, observaremos que o predestinado é primeiramente sinalizado como “enviado”; em seguida, passa por tum processo de aprendizagem que iré confirmar sua designagao; por fim, passa a exercer ocorre um passagem da instincia que ampara, legtima 0 “guia, E enquanto “enviado” que o “guia Portanto,aassungdo do “guia” deve considerara instincia do “enviado esse jogoe aceitara mscara do “enviado™ Voliemos as formas como aparece o “eu” do narador. Os verbos do primeiro grupo anunciam 0 “enviado”, 0 que recebe a tarefa. Os do segundo grupo (“lembro-me de ter aprendido”; “fariliarizei-e”, por exemplo) alguns do tereiro grupo como “aprendi” se faz. presente. deve respeitar ua, Camspinas, 7: 107-126, 2001 116 A constituigio de um discursoFundador: © prefécio de Casa Grande & Senzala (vale observar que se tem af um sujeito semanticamente paciente) evidenciam a fase de aprendizagem que prenunciam a terceira fase: ser “guia. Nesta fase, nao se trata, como ji vimos, de assumir-se plenamente como sujeito; mas de um jogo que mascara esta ostura, © narrador € sujeito em verbos como “regressei”, “deixei”, "possuo” -ecordarei; ou seja, em verbos que no denotam um fazer, um realizar, Os verbos que denotam aparecem através de constru , tive o ss como “tive a fortuna de realizar”, gosto de ver confirmadas”, em que o substantitvo, ao adiar 0 ato de realizar ou fazer, ‘modaliza o carter que seria ser “guia”. Este ndo aparece em sua forma plena de “guia”, mas sim de “enviado" guia”; afinal, 6a instancia de “enviado” que garante o ser “guia”. 5.2 Os “nds” Em varios momentos aflora no prefiicio um “nds”, E através dele que iremos observar como a heterogencidade, no caso a mostrada, articula-se no texto. Podemos dividir os trechos em que se tem um “nds” em trés grupos. (© primeiro caracteriza-se por conter um “nds” associado a um fator deveras significativo: a utilizagio do materialismo hist6rico como contribuigao te6rica aanflise que esti se empreendendo. “Por menos inclinados que sejamos ao materialismo historico, tantas vezes exaggerado nas suas generalizagdes - principalmente em trabathos sectarios e fanaticos - temos de admittir influencia consideravel, embora rem sempre preponderante, da technica da producdo economica sobre a estructura das sociedades; na caracterizagao da sua physionomia moral. E uma influencia sujeita & reaegdo de outras; porém, poderosa como nenhuma na capacidade de aristrocratizar ou de democratizar as sociedades (..) (Casa Grande & Senzala, p. XI e XIIL, 1a, edigio) ‘Nao que estejamos a suggerir uma interpretagdo ethnica da formacao brasileira do lado da economica. Apenas acerescentando a um sentido puramente material, marxista, dos factos, ou antes, das tendencias, um sentido psychologico.” (Casa Grande & Senzata, p. XVII, 1a. edigio) Rua, Campinas, 7: 107-126, 2001 Vanise Gomes de Medeiros 7 © primeiro trecho se inicia com uma negagio - “Por menos inelinados” -e uma critica = “tantas vezes exaggerado (...) em trabalhos sectarios e Fanaticos” - ao materialismo istérico. A ressalva contida em “Por menos inclinados” (primeiro trecho) ¢ em “Nao que estejamos a suagerit” (segundo trecho) sobrepde-se uma evidéncia “temos de admit” mas no uma aquiescéneia “admitimos”, Tem-se, portanto, para com o materialismo histérico uma adesio neutralizada por uma ressal¥va que explicita os limites de sua adesao. O plural - nds - e a evidéncia a que se deve curvar ocultam o “eu” e fancionam como Justificativa da tomada de posigdo e como legitimagao do material tedrico por vezes utilizado. A assertiva “temos de” coloca os estudiosos da identidade brasileira como impotentes diante de um fato que se atestaa si mesmo - data afirmagio impessoal que se segue - “E uma influéncia sujeita& reagio de outras; porém, poderosa como nenhuma. © que, por isso, ind estar presente no ensaio de Freyre. As vinculagies dessa adesio. parcial a uma posieao marxista sero tratadas mais adiante. (O segundo grupo vincula-se proposta de uma reconstrugio memorialistica do passado ravés do envolvimento pessoal ¢ coletivo com a histéria, tendo a casa como objeto central “Estudando a vida domestica dos antepassades sentimo-nos avs powcos nos completa: & outro meio de procurar-se 0 “tempo perdido”. Outro ‘meio de nos sentirmos nos outros - nos que viveram antes de nds: e em ‘cuja vida se antecipou a nossa. E um passado que se estuda tocando em nervos; um passado que emenda coma vida de cada wm; uma aventura de sensibilidade, ndo apenas um esforgo de pesquisa pelos archivos.” (Casa Grande & Senzata, p. XXXI, 1a. edigio) A este grupo outras vores silo chamadas a se juntar para confirmar ou legitimar seu trabalho: "O estudo da historia intima de um povo tem alguma coisa de introspecgito proustiana; os Goncourt ja 0 chamavam “ce romain vrai". O architecto Lucio Costa, diante das casas vellas de Sabard, Sdo Jodo d’el Rei, Ouro Rua, Campinas, 7: 107-126, 2001 Ls A constiuigio de um discurs fundador: © profiio de Caso Grande de Senzala Preto, Marianna, das velhas casas-grandes de Minas, foi a impressao que teve: “A gente como que se encontra... Ese lembra de cousas que a gente nunca soube, mas que estavam dentro denés isso di nao sei- Proust devia explicar 10.” (Casa Grande & Senzala, p. XXX, 1a, edigio) Instaura-se no uso do “nés” neste grupo uma pluralidade de vozes diferentes elaboradas ‘em um movimento de espiral cada vez mais abrangente: uma vor sugere algo que remete para outra vox que adensa 0 que foi dito € que, por sua vez, remete para outra voz que retoma o que disse a primeira. Sao vério 0 "ns" de estudiosos das coisas brasileiras, o “nds” de autoridade de Goncourt, do arquiteto Liicio Costa e do critor Proust, 0 “nds” de leitores que, como um turbilhdo, vo eriando 0 efeito de it adentrando cada vez mais no passado, embaralhando-o com o presente da narragiioe assim remetendo-o ao futuro, Um jogo de projegdes infinitas que tem na casa o ponto de encontro ¢ de irradiagio, e cuja conseqiiéncia é a instauracio de um passado que continua até o presente, “um passado que emenda com a vida de cada um...", um passado inequivoco, comestatuto de verdade, de tradigto, Trata-se, pois, de um jogo que instaura e legitima u \ria sobre 0 que seria a identidade brasileira. ‘Se recuperarmos em Foucault a nogio de tradigio, observaremos que tal nogio tem a fungao de “isolar as novidades em um fundo de permanéneia”, de anular as dferencas, de Fixar-se sob o dominio do mesmo, Tal postura caracterizaria um resgate de cardter conservador, Se pensarmos na nogio de discurso fundador, observaremos que um discurso fundador “cria uma tradig&o de sentidos (...) trazendo 0 novo para o efeito do permanente. Instala-se irrevogavelmente. E talvez esse efeito que o identifica como fundador: aeficécia em produzit ‘ocfeito do novo que se arraiga, no entanto, na meméria permanente (sem limite). Produz 0 efeito do familiar, do evidente, do que s6 pode ser assim.” Passemos ao tiltimo grupo dos “nds” antes de juntarmos 0s fios que esto sendo deixados a0 longo da nossa tecitura. Bis dois dos fragmentos que o caracterizam: Roucaull, 987. Oran, 1993, wa, Campinas, 7: 107-126, 2001 Vanise Gomes de Medeiros 119 ‘As confissdes e denuncias reunidas pela visitagdo do Santo Officio ds partes do Brasil constitwem material precioso para o estudo da vida sexual € de familia no Brasil do seculo XVI e XVI. Indicam-nos a edade das mogas casarem (..) Deixam-nos surpreender ...)(Casa Grande & Senzata, p. XXXII, la. edigio) ‘Detallies que nos esclarecem sobre aspects de vida colonial, em geral desprezaulos pelos outros chronistas. Néo nos devemos, entretanto, queixar dos leigos que em chronicas como a de Pero Magathaes de Gandavo e a de Gabriel Soares de Souza tambem nos deixam entrever flagrantes expressivos da vida intima nos primeiros tempos da colonizacdo. (Casa Grande & Senzala, p. XXXVLe XXXVI, La, edigio) Nestes fragmentos, a primeira pessoa do plural aparece como objeto (“indicam-n0s”, “deixam-nos surpreender”) ¢ como sujeito e objeto ao mesmo tempo (“*ndio nos devemos queixar”), assim como ocorreu com a primeira pessoa do singular do primeito e segundo ‘grupos analisados na parte referente ao “eu” assumido no prefiicio, Recuperando um dos fragmentos daquele grupo (da primeira pessoa do singular), veremos que Id ja estava previsto um “nds” Era como si tudo dependesse de mim e dos de minha geragio; da nossa ‘maneira de resolver questdes seculares."(Casa Grande & Senzala, p. XU, stifo nosso) Noutras palavras, ndo apenas o narrador estava predestinado a realizar uma tarefa, conforme expusemos, mas também os de sua geracio, Havia uma questio a ser investigada; uma resposta.a ser dada a questdes seculares. O material que nos apontaria aresposta, 0s “fatos” que nos revelariam 0 fragmentos deste grupo em que aparece 0 “nds”: as confissdes, as demtincias, os detalhe Além desse material novo, havia também certos caminhos a serem trilhados pelos estudiosos para respond: Rua, Campinas, 7: 107 120 [Aconstituiglo de wm eiscurso fundador: ‘0 preficio de Casa Grande & Sencala “A todo estudioso da formagdo patriarchal e da economia escravocrata do Brasil impde-se 0 conhecimento do chamado “deep south'."(Casa Grande & Senzata, p. XI, aspas do autor) Ou seja, a questo a ser tratada jé estava mareada por quem poderia faz8-Io, pelos meios como respondé-la, e por um modo: 0 confronto com a eseravidiio no sul dos EUA Hi ainda uma outra observagao a ser feita em relagio a esse “nds” intelectuais (“eu € os de minha geragiio). Ele configura também a mancira pela qual Freyre se insereve ‘como estudioso, como intelectual, instituindo um lugar para sie para os de sua geragio, mas a parti daf,distinguindo-se, dignificando-se, assumindo a autoridade que a condigio de predestinado, da qual jétratamos, Ihe confere: “Creio que nenhum estudante russo, dos romanticas, do secuto XIX, preoccupou-se mais intensamente pelos destines da Russia do que eu pelos do Brasil." (Casa Grande & Senzala, p. X11) Véirias sio as fungdes que a maneira como o narrador articula as vozes em primeira pessoa (singular ou plural) exercem. Elas apontam diregdes ¢ materiais a serem considerados: relativizam a importancia de um certo material te6rico ao mesmo tempo que indicam seu uso; instituem um lugar ao narrador; legitimamsIhe a autoridade; e, sobretudo, conferem ao seu relato 0 carter de tradigiio e de verdade. A heterogeneidade nfl se esgota aqui. Ha mais vores no preficio de CGS. 5.3 Os “outros” ‘Ags trechos marcados pela presenga do narrador intercalam-se outros eujo locutor & {mpessoal (por exemplo, em um mesmo fragmento tem-se “nos sentirmos” ao lado “um passado que se estuda” ou “quando se consegue penetrar na intimidade mesma do pasado"). Ou seja, a trechos de cunho pessoal pospdem-se trechos de um discurso impessoal. Em ambos encontram-se virias vozes: sob a forma de citagdes ou de simples referéncias, articuladas em discurso direto ou indireto, no corpo do texto ow nas indimeras notas de pé de pagina. Nestas vozes encontram-se tanto representantes de uma intelectualidade quanto ndo-tepresentantes de uma intelectualidade. ug, Campinas, 7: 107-126, 2001 anise Gomes de Medetros 12 No primeiro caso estio os autores, escritores, estudiosos do Brasil. Por exemplo: “Como diz Splengler, - para quem o po de habitagdo apresenta valor historico-social superior ao da raga - & energia do sangue que imprime sracas idemicos atravex da successao dos seculos deve-se acerescentar a forca “cosmica, mysteriosa que enlaca num mesmo rythimo os que convivem estreitamentee unides” (Casa Grande & Senzala, p. XIX) “‘Anchieta tamenta nos natives, 0 que Canes jélamentara nos portugueses + ‘a falta dos engenhos'.” (Casa Grande & Senzala, p. XXX, aspas do autor) No segundo caso, estio, por exemplo, os moradores de um regitio, a cozinheiras, as donas de casa, Nem mesmo a ficeio, o imaginar a fala de senhor de engenho Ihe escapa: "Houve senhores sem escrupulos que, accettando valores para guardan Jingivam-se depots de extranhiose desentendidos: ‘Vocé estd matuco? Dew- ‘me ld alguma cousa para guardar?’.” (Casa Grande & Senzala, p. XXV, do autor) “E tinha-se tanta liberdade com os Santos que era a elles que se confiava «@ guarda das terrinas de doce e de melado contra as formigas: “Em louvos de 5. Bento que ndo me venham as formigas cddentro” escrevia-se num papel que se detvava d porta do guardda-comida." (Casa Grande & Senzata, p. XXII) pois, dois grupos de vozes distintas que tém funcdes diferentes no desenrolar do prefécio. As primeiras dao ao seu trabalho o cariter ciemtifico. S20 recuperadas “falas” suutorizadas sobre 0 Brasil, que server de apoio 20 que esti sendo proposto, que servem pata refutar uma certa idéia, para sinalizar o que deve ser considerado, ou ainda para promover um deslocamento sobre uma certa concepsao. Elas the conferem, portanto, 0 ua, Campinas, 7: 10% 126, 2001 122 A consttuigto de um discurso fundador: © preficio de Casa Grande & Sencala estatuto de um discurso da cigneia, As segundas so 0 material que atesta seu trabalho. ‘Sto vozes anénimas, recuperadas da coletividade através das histérias de moradores, dos casos andnimos, das cantigas, dos receituarios de bolo, etc. E a partir delas que o natrador se langa para o passado; € a partir delas que se instaura uma ligagio afetiva com ‘pasado e com o leitor, Elas presentificam 0 passado ¢ eternizam-no, Elas constituem a meméria ea sedugiio proposta desde o inicio, 60 Rompimento e a Manutencao ‘A nogio de discurso fundador vincula-se 4 possibilidade de um novo significincia”. Isto nfo significa, contudo, que o discurso fundador seja auto-fundante, j {que o sentido, paraa AD, nao é proposto como origem em si mesmo, mas como po devido a uma meméria do dizer. Esta memdria do dizer, ou seja, a vor. que ja fala para possilibitar um outro (ou nao) falar € o interdiscurso. No interdiscurso, varios sentidos reverberam; mas niio impunemente. O(s) recorte(s) a essa massa multiforme € feito pelas formagdes ideolégicas - que reportam as relagdes de classe -, que engendram as formagées discursivas, que, por sua vez delimitam 0 “que pode e deve ser dito”. Vale destacar que as formagbes ideol6gicas se compoem de varias formacoes discursivas. E isto que possibilita a migrago de sentido, a mudanga, o deslocamento. Fazer sentido & pois filiar-se a formagées discursivas. ‘A pergunta agora é: a quais formagoes discursivas CGS se filia e com quais rompe? Dissemos que a proposta de Freyre se colocava no bojo de uma discussiio sobre identidade brasileira que vinha se articulando desde 0 século XIX, De acordocom Viana pensar o Brasil era preciso como forma de buscar uma identidade para responder a questiio do que nos fuzia diferentes dos europeus, ou mais exatamente, Yo que nos fazia piores que os europeus””. Em outras palavras, o que Viana sinaliza é que a pergunta jé trazia.no seu bojo uma diregao a ser respondida: apontar os meios para uma cura. , para se apontarem os meios para a cura, era necessirio descobrir as causas, Havia, pois, uma ireg3o de estudos sobre brasilidade inserida em uma determinada formagio ideol6gica © Pcheux. (Haroche ct al, 1971) Vina, 1995, em, Rua, Campinas, 7: 107-126, 2001 Vanise Gomes de Medeivos 123 que buscava saber o que vinha a ser identidade brasileira jd entenclendo-a de antemio como contaminada, como em desvantagem: “A identidade devia ser descoberta para ser curada"™®, E neste cenrio que temos a publicagio de CGS, O livro de Gilberto Freyre teve seu germe, segundo o autor, a partir da problemstica ‘da miscigenagao: 'E dos problemas brasileiros nenhum que me inguietasse tanto como 0 da miscegenagdo.” (Casa Grande & Sencala, p. XID) Mais especiti smente a questio motivadora era a da degenerescéncia da raca: Vi uma vez, depois de mais de trés annos macissos de ausencia do Brasil, um bando de marinhciros nacionaes - mulatos e cafusos -descendo indo me lembro si do Sao Paulo ou de Minas peta neve molle de Brooklyn. Deram-me a impressio de cavicanuras de homens. E veio-me élembranca phrase de wm livro de viajante inglés ow americano que acabara de ler sobre o Brasil: ‘the fearfully mongrel aspect of population’. A misceneganagdo resultava naquito. Faltou-me quem me dissesse entdo, como em 1929, Roguette Pinto aos aryanistas do Congresso Brasileiro de Eugenia que ndo eran simplesmente mutatos ou cafusos os individuos que julgava representarem o Brasil, mas cafusos e mulatos doentes. “(Casa Grande & Senzala, p. XIl, grifo e aspas do autor) Importa destacar que CGS se articula de maneira a refutar a tese dos arianistas. estes, a degenerescéncia devia-se & miscigenagZo, mistura. Freyre nao aceita explicagdo e se propde a resgatar os elementos negro ¢ indio como constituintes da sociedade brasileira. F, 20 proporo resgate da mistura, a tese de Preyre parece caminhar em uma direedo contréria a posturas racistas tal como, por exemplo, a dos arianistas, © que esté se tentando sinalizar € que no preficio de CGS se faz presente uma proposta de “explicagao” da nossa sociedade que se afasta de uma certa formagao discursiva: a que explica a degenerescéncia como decorrente da miscigenaetio, a que explica a desvantagem como produto da mistura. Mas, por outro lado, continua atrelado dem, ue, Campinas, 7: 107-126, 2001 128 ‘Aconsttuigio de um diseurs fundador: 19 proficio de Case Grande & Sencala A mesma formactio ideoldgica que prevé a degenerescéncia, a doenca a ser tratada, Sua resposta, no entanto, & que provocard um certo deslocamento: a ‘doenga’ se deve as condigdes s6cio-econdmicas. Daf sua adlesio, parcial, ao materialismo histérico: tal aparato te6rico Ihe permitia justificar a degenerescéncia sob um outro prisima. 10 trecho destacado do prefiicto. Sua primeira Recuperemos uma vez mais este tl impressao acerca de matinheiros brasileiros que havia visto aps uma auséneia de mais de trés anos do Brasil (“deram-me a impressio de caricaturas de homens) é desdobrada na voz do outro, do viajante americano” (the fearfully mongrel aspect of population’) que o leva a uma constatagio (““A miscegenacio resultava naquilo”). Ou seja trata-se de um processo em que o narrador veladamente se mostra (através de uma impressio) € se oculta ao se desdobrar na vor do outro. Vale notar, neste caso, que se trata de um dduplo masearamento: na voz.e na Kingua do outro. O trecho continua com a lembranga de um outro dizer, agora para ensiné-lo a como vera questo. Podemos esquematizar este processo da seguinte maneira: o narrador (X) tem uma primeira impressao, « partir da diz.o que uma outra voz diz.(Y) em inglés. Em seguida, relata 0 que uma terceira vor (Z) refutou de uma quarta voz (W) e que servi para ensind-lo (narrador, X) a concluir: doentes. Trata-se, pois, de um processo de airibuigdo do dizer no qual diversas vozes vio sendo capturads para operarem como mediadoras do seu dizer. Mais do que isso, elas veiculam idéias colocadas como ja existentes e tomadas, por conseguinte, como consensuais. O narrador passa entio a se posicionar como veiculo de transmissio de uma idéia consensual; qual seja, a da degenerescéncia da raca que pressupde um racismo & qual Freyre parece se por. Ou seja, se, por um lado, CGS nao se filiava & formagdo discursiva que explicava a degenerescéncia como oriunda de uma mistura ractal e que estaria dirctamente atrelada a uma postura racista, por outro lado, 0 trecho resgatado serviu para demonstrar que ele Wo se afasta desta formagtio. Apenas desloca a resposta. Ehora de terminarmos, de unir os fios que ficaram. CGS rompe com um certo modo de se fazer hist6ria, procurando responder a uma questio (secular, como afirma) sobre a identidade brasileira. Sua resposta, embora promova um deslocamento, jé vem, no entanto, marcada pela pergunta que coloca a identidade brasileira como problema, como algo a ser eurado. CGS, portanio, permanece numa mesma rede de questdes: inscreve-se em Rua, Campinas, 7: 107-126, 2001 Vanise Gomes de Medeiros Ls uma formagao ideol6gica que, ao discutir brasilidade, confronta o brasileiro ao europeu ‘ou mesmo ao americano, colocando-o desde o inicio em desvantagem. ‘Sio, conforme ja afirmamos, vérios os emunciados que constituem 0 imaginério de tum povo e que Ihe conferem identidade(s). CGS, sem dtivida, contribui para aconstituigo do processo de produc do simbético que nos significa, Instaura-se como fundador. Mais do que isso, ao propor um resgate dos elementos negro e indio na constituigao da sociedade brasileira, promove novas redes que nos significam, possibilita outros enuinciados como “todas os brasileiros tém um pé na Africa” ou “todos tém um sangue indio”. As injung iagdes destes outros enunciados jé € proposta de um outro trabalho. Résumé existe divers événements,histoites égendes ct énoncés constituant les mémoires els ident d'un pays qui s'anticulent comme discours fondateurs. Dans ce travail nous avons intention & analyser le fonctionement dun certain discours fondatcur — la préface de Casa Grande & Senza Ue Gilberto Freire —, ot en récupérant et en commentant sur certaines marques le consttuant. Note but est aussi ‘de nélechir su sa relation avce les autres discours qui 'entoutent ct su a place qu'il eceupe dans la constitution des enoneés fondateurs propos du Bes Bibliografia Araijo, R. B. (1994) Guerra e Paz, 34. Rio de Janeiro. ‘Authier-Revuz, J. (1990) “Heterogeneidade(s) Enunciativas(s)”. In: Cadernos de Estudos Lingitisticos: 19, julldez, Campinas, Unicamp/IBL. Authier-Revuz, 1. (1998) Palavras incerias. Editora da Unieamp. Benjamin, W. (1985) “O narrador; consideragdes sobre a obra cle Nikolai Leskov”. 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