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CLAREZA E LEGITIMIDADE: COMO ELEMENTOS DE TEORIA MUSICAL PODEM ILUMINAR A INTERPRETAGAO JURIDICA? Resumo Analogias e da interpretacdo, foram e s80 muito usadas pela doutrina nacional e estrange- tre direito @ musica, quando ambos sao encarados como teorias ra para a explicacdo de ideias complexas sobre fendmenos e institutos juridi- C05, © trabalho se ocupa de justificar por que essa analogia é t8o eficaz, bem ‘ome argumentar que ela transcende o seu mero poder pedagégico. O que se busca investigar 6 como o modo no qual dircito © misica operam se asseme- tha para além da analogia, sendo que juizes e misicos-intérpretes se colocam 5 @ se valem de critérios similares diante de crises interpretativas semetha: para tomada de decisdo. Apés a apresentacao de quatro casos, dois musicals © dois juridicos, o trabalho divide-se em duas etapas: a primeira busca apresentar (0 pontos de conexto ern que misica e direito se aproximam, enquanto teo- rias de interpretacéo, justificando = pertinéncia da analogia; a segunda busca identificar quais valores interpretativos relevantes na misica se espelham (ou deveriam se espelhar) no direito, Palavras-chave Direito, Musica, Hermenéutica. Interpretacdo. Texto. Clareza. Legitimidade. Co- municagao, Linguagem, Abstract Analogies between Law and music, when both are seen as theories of inter pretation, were and are widely used by national and foreign doctrine & plain complex ideas about Law. This work is concerned about justifying why this analogy is so effective, as well as arguing that such analogy transcends its mere pedagogical power. What we seek to investigate is how the way in which Law and music operate is similar to an extent that transcends analogy, since judges and music performers face similar interpretive crises and use similar criteria for decision making. After the presentation of four cases, two musical {and two legal, this work divides itself into two parts: the first seeks to present a {¢Ao Jove JuRISTA 2000 the connection points in which music and Law come together as theories of interpretation, justifying the effectiveness of the analogy; the second seeks to identify which relevant interpretative values in music are mirrored (or should bbe mirrored) in Law. Keywords Law. Music. Hermeneutics. Interpretation. Text. Clarity. Legitimacy. Communi cation. Language. 1. Introducao 11. Uma semente que Teori Zavascki plantou No dia 6 de junho de 2016, Teori Zavascki, ministre de Supreme Tribunal Fede- ral, compareceu a um evento no Centro Cultural da Fundago Getulio Vargas para proferir uma palestra cujo titulo era “Impacto das crises nas instituicoes publicas: credibilidade, seguranca juridica e desburocratizaco". © publico a ‘quem © ministro se dirigia naquela data nao era propria mente versado na lin guagem do direito. A iniciativa da palestra havia sido tomada pela Escola de Administracso da FGV (EBAPE), ¢ 0 seu objetivo era proporcionar um didlogo entre protagonistas da vida publica brasileira que pudesse esclarecer as inime- ras dimens6es da crise que vigorava (¢ ainda vigora) no pals, seja econ6mica, politica, moral, juridica, entre outras. Chamado para falar, © ministro Zavasck’ Informou @ audiéncia de que segmentaria sua fala na dimensso da harmonia © separago entre os poderes. Em outras palavras, 0 objeto do seu discurso era © ativismo judicial sobre as funeées lesislativas. Tratando-se de publico leigo, o inicio da sua exposicao foi marcado por um tom eminentemente pedagégico. O ministro descreveu a platela quais eram as atribuicdes orcinérias do Poder Legislative e do Poder Judiciério. © Poder Le- gislativo, em geral, tem uma atuagao prospectiva, editando textos normativos de cardter genérico @ abstrato para orientar comportamentos sociais futuros. (© Poder Judiciério, por outro lado, tem a atribuig8o de resolver um conflito id existente, editando uma norma especifica e concreta para ambas as partes frente a uma situaco passada® Da mesma forma que o ministro queria deixar 1 Gh Zavascks 2016: “Ativismo judicial do um mado geral, & uma expresso que tem Um Sensido pe;rativo, que seria um sentido de se entender aguelafuncao, aaveleavanco leg {imo da fungSo jurisiciona, da fine30 dos jizes, sobre reas reservades, pelo mens apa" remtemente 9 outras funebes do Estado, Ou 8 funego de legislador ou 3 funcao da Poder Frecstivo, 2 Ch Zavasck’ @20%6) “Todavia, ns vamos ver que hé um cama de crac da norma, que for tose 6 do legislativa, hd um carpe de crac da norma muito amplo, que 6 um campo leaitime para 0 Pocer Judicliro. Eu comeco mostrando isso em qualquer cecisa0 jud= {lal As decisbas jucictas, de um modo geral,consstem num ju2o de valor sobre um fato CLAREZA LEGITIMDADE BY claro que aquela norma concreta, produzida pelo Poder Judiciério, nao era pro- veniente de um absolute livre-arbitrio do julz, explicava que esta norma pro {erida também nao se confundia com 0 texto normativo. A norma é um ato de vontade de quem profere, mas que deve ser orientado por um ato de cognicso. do direito aplicavel. O ministro elucidava que “uma coisa é 0 dispositive da lel outra coisa é 0 significado que se tira desse dispositive, Por isso que na Teoria Geral do Direito se diz que a norma, na verdade, no & 0 que esté escrito, mas aauilo que o intérprete diz que est escrito.” A diferenga entre norma e texto nem sempre ¢ algo de trivial compreen- ‘850 para os leigos. Mas a dificuldade de entendimento sobre essa questo pare- cceu ser rapidamente superada quando o ministro proferiu a seguinte analogia: Tod{o} [texto normative) supe uma interpretaco, assim como uma partitura musical. A musica ndo é a partitura musical A musica ¢ aquilo que o intérprete retira da partiture musical. Ele pode retirar uma boa norma, uma boa musica, @ ele pode nao ser muito fiel & partitura. De um certo modo, a fungso do juiz é semelhante. Quem retira [do texto], dessa partitura criada pelo legislador, a norma, essa musica, 60 intérarete. A func3o de inter pretar e, portanto, de retirar a norma dos textos normativos, essa 6a fungdo do julz* Zavascki, com essa afirmacao, se valeu de uma analogia aue, a fundo, pro- pée uma espécie de equivaléncia mediante a qual o texto normative esté para {a norma assim como a partitura esta para a musica que dela se executa. Ao mesmo tempo que assume essa premissa, defende 0 ministro que 0 juiz, em alguma extensio, se assemelha ao musico-intérprete no processo de toma- da de decisio, especificamente naquilo que concerne & atividade de extracao do significado de um cédigo, uma notacso, que orienta o comportamento do agente-intérprete, Apesar de se tratar de uma metafora intrigante, e suficiente para atingir 2 finalidade de ilustrar a uma platela de leigos sobre problemas intrincados de Teoria Geral do Direito, esta monografia se presta a tomar esta afirmacao nao como um fim, mas como um ponto de partida, ‘ancreto, Néz temos um fata concrato da vida ou uma cise ou uma poss lima concutainconcreta © una norma Ge regulacio de condula editada abst pelo legislador, Guando ha uma passive cise entre. uma erie concreta, entre 2 notma sbstrata © 9 conch ta, em docide 80? Quer rosolve esa cise 0 ju, Iss0 80 ‘eciso ecita uma norma individvalizacs dessa conduta $ Zavasex (2016). Zavascki 2016), ws {GAO JOvEM JuRISTA 2020 Ao invés de esgotar a analogia com a elucidacdo da diferenca entre texto. @ norma, busca-se partir dela para realizar uma anélise mais profunda, uma problematizagSo, sobre a possibilidade de a extracao do significado dos sig- nos que prescrever comandos normativos seguir cénones semelhantes aque: les que so observados na interpretagio musical. Em outras palavras, visa-se responder, sem a pretensio de esgotar sva justificativa, & seguinte pergunta a forma com que se extrai o significado do texto normative para aplica¢o do ireito se assemelha com a que se extrai da notacao musical para a execue30 instrumental? Algumas perguntas-satélite a que formulel anteriormente so: Esta apro- ximacdo ¢ pertinente @ defensavel? Qual é a extensio desta similitude? Faz sentido pensar aue hé posturas de interpretacdo semelhantes para legitimar a ago do Juiz ou do musico-intérprete? 1.2. Contexto, justificativa e divisso metodolégica Antes de se enfrentarem estas perguntas, cabem algumas consideraces sobre ‘© caminho que se fez até chegar a elas @ ao processo de trabalho adotado para © desenvolvimento. Este trabalho é produto de um processo de trés etapas. De inicio, a idela tinha germinado em trocas com © professor Joaquim Falco, que, no seu papel de interlocutor-provocador, criou o ambiente propi- cio para a construgo de uma ideia primeiramente intuitiva: a de que poderia cxistir semelhangas na ratio de como juizes @ musicos interpretam. A primeira etapa do trabalho foi, portanto, uma reflexso introspectiva sobre como cons- truir esse tipo de inter-relacdo, tentar investigar quals varidveis comuns misica © direito compartilham nesse plano e se elas s80 aplicdveis na solucao de pro- bblemas interpretativos, Essa primeira etapa se revelou insuficlente, dando espaco a segunda fase: 8 leitura sistematica de textos. Em programa de interc&mbio proporcionado pela FGV Direito Rio® em Paris, tive acesso a uma vasta literatura, sobretudo na Biblioteca Nacional da Franca, onde existem obras que se detém justamente sobre @ interacdo entre direito e musica no plano da interpretagao." La, tam~ bém encontrei livros de flosofia da miisica que abordam problemas de inter pretacdo musical,” cujos autores, muitos deles, tinham também formacao jurtd- ca. Isso deu um escopo diferente ao estudo, pois jé havia subsidios suficientes Thatitvigge que destaco nos agradacimentos do trabalho Signorl (2017), Rouland (2018) ete Davies (201), Danto (2008) et. Alper (1999, p. 146, nota 2) tate de aivarsos tedricos da masiea com formacao lutieica, \V.também Schenker (2002) Stravinsky, Knodele Dah (1947). CLAREZA E LEGITIMDADE bw na literatura para dar mais consisténcia as ideias que pretendia veicular num trabalho sobre essa temética. ‘A terceira etapa, por fim, foi a mais desafiadora: a sistematizacao de ideias, Ela foi acompanhada de duas frustracdes. A primeira tem a ver com uma di culdade de organizacéo do pensamento, e a segunda foi a de nao poder viabill- zar uma “completude” de tudo aquilo que gostaria de defender neste trabatho. Entretanto, tais frustracdes foram amenizadas com 0 fato de este trabalho no buscar apenas defender idelas, mas também expor dvidas. Explicado 0 caminho metodolégico, voltemos as indagacSes postas no fim da segio anterior. Note-se que estas perguntas se inserem em um contexto gue no é novo na doutrina. Essa afirmagao feita pelo ministro Teori Zavascki, sem prejulzo da sua sensibilldade intelectual, no & pioneira. Inimeros autores ja se valeram da musica para elucidar algum aspecto de Teoria do Direito, em dimensées distintas. O professor Eros Grau, por exemplo, é havia registrado a viabilidade dessa ‘analogia quando sustenta que o dircito no é uma ciéncia em aue o intérprete é capaz de apresentar “uma resposta certa"® Afirma categoricamente que "dé-se na interpretacdo de textos normativos algo andlogo ao que se passa na inter- pretacao musical” Grau, por outro viés, se utiizou da musica para demonstrar do s6 que a atividade do juiz era vinculada, mas que, apesar disso, 0 resultado do exercicio hermendutice feito por diversos julzes ndo necessariamente lovara ‘20 mesmo resultado, Dessa vez, ele se valeu da analogia musical para jogar luz sobre um outro aspecto da teoria do direito, © qual apoia a defesa da impos- sibilidade de a interpretacao Juridica, felta por diferentes juizes, ser univoca. 0 autor estabeleceu um paralelo com a execugao de pecas sinfénicas por diferen- tes maestros orquestras: no hé uma exata, mas hd muitas corretas.” Seguindo a mesma légica, o professor J. J. Calmon de Passos também ja contou com a analogia musical para distinguir a ideia de texto da de norma, Dizia 0 jurista baiano: 3 Dworkin OUR, p, 202-205) nego ser um detensor do sireito natura @ qe, portant, ro: ora uma respasta uniea para cada caso, ranscendente ao dteta postive. "Antecipe uma DSbjocio floss a essas eonclusdes! a de que estou tratanco o dire come uma ‘one Senga ameacadora no frmamento.(.) Povtanto, sere: acusado de adatar 2 ponto de vista {de Guo existe sempre via resposta correta' para uma questo jurid'ca, 9 ser encontrad fo deita natural ou guardada a sete chaves em alguma calxafort transcendental” 10 Grav (2002..30), 1 "No ha uma Umea nterpretacdo correta (exata) da Sexta Sinfonia de Bethoveon: a Pasto: ral regida por Toscanin, coma Sinforiea de Miso, 6 diferante ds Pastoral regiga por von Kraan, com a Flarmdnies de Berim. Nao ebstante uma sea mals romantica male dere ‘aca, a outa mais longline, as duas so autenticas — @ corretas.” (GRAU, 2002, 8. 30), wis {GAO JOvEM JuRISTA 2020 [a] partitura na qual foram consignadas as notacées musi- ais, aue permite reproduzir a melodia por outrem que nio 0 seu criador ou primitive executor, no é melodia, no é som, nd 6 rmiisica, nem harmonia, nem acordes. [..] Também 0 Direito no & © texto escrito, nem a norma que formalmente se infere, [..] nem a5 leis [..].© Direito somente & enquanto processo de sua criag30 ou de sua aplicagso no concreto da convivéncia humana’ E verdade que as analogias, enquanto figuras de linguagem, sao itels para a elucidagio de conceitos homélogos mais complexos. Mas sua funcdo n3o se esgota al. Elas sao ferramentas utels para o preenchimento de lacunas em. todas as areas do saber, sobretudo no direito, em razdo do seu cardter inte- grativo. Elas se prestam & iluminaedo de obscuridades que a lingua pode impor '8 comunicacao, sendo valiosas para a clucidacao de conceitos, muitas vezes revestidos de carster Kidico, mas ndo sé. A analogia transcende o cardter es- tritamente pedagégico, atingindo também a solugo de conflitos. Dai tamanha Importancia que detém para a soluc8o de contlitos no campo do direito, justiti- cada pelo fato deo art. 4* da Lel de Introdugso 8s Normas do Direite Brasileiro determinar (poder-dever) que o juiz se valha da analogia para tomar decis6es ‘quando a le’ é lacunosa, Esta a razio pela qual se assume nesta tese que a analogia entre direlto ‘emasica no plano da interpretagao transconde o carater pedagégico ou ludico, Este 6 0 fundamento por meio do qual se formula 2 hipétese de que a analogia feita por Teori Zavascki & pertinente para se perguntar se uma investigagio sobre se a analogia entre direito e musica poderia trazer resultados utels para problemas de hermenéutica juridica, em uma verdadeira simbiose. A justificativa para essa iniciativa é a possibilidade de se notar que a ana- logia feita por Teori Zavascki, © explorada por tantos outros juristas, parte de uma premissa implicita que é aplicvel tanto ao direito como & musica: a de ‘que ambos podem ser enfrentados enquanto teorias de interpretacdo. Tanto 05 operadores do direito como os intérpretes da musica enfrentam, em seu cotidiano, problemas de hermenéutica. Quando se fala em direite, como exporei adiante, entenda-se que se trata de uma ciéncia dogmética que, “Lalo disciplinar a conduta humana, [se vale de] normas juridicas [que] usam palavras, signos linguisticos que devem expressar © sentido daquilo que deve ser”. Da mesma forma, quanto & musica, assume-se ‘que uma arte cuja realizacSo ¢ orientada por uma notacSo grafica especitica para determinar como um intérprete deve executar certa obra musical. Tr (@000.p.28,grito do auton, 18 oraz J. 2018, 2.210) CLAREZA LEGITIMDADE uw -se de uma dimensdo deliberadamente restrita dos conceitos, & evidente que © conceito de direito e misica no estéo adstritos & interpretagso de cédigos. Esta 6 apenas uma dimensao que se manifesta na realizacSo de ambos, ¢ é nesta dimensdo apenas em que se busca propor um intercdmbio de ideias. © trabalho, portanto, se divide em quatro partes, cada qual com suas subdivisées. A primeira, introdutéria, visa delimitar os conceitos de direito & miisica através dos quais se busca examinar a possivel semelhanca no plano roretativo, Para tanto, sero apresentados quatro problemas, dois musicais, — um da masica classica e outro do jazz — e dois juridicos, em que agentes de suas respectivas dreas enfrentam dificuldades sobre como interpretar um dado texto, tendo de recorrer a critérios que, de uma certa forma, legitimem aquilo ‘que se pretende executar. A segunda parte procura apontar quatro pontos de conexéo entre 0 direito @ a mdsica, ern que a operacdo interpretativa é orien- tada por alguns fatores semelhantes. Em terceiro lugar, Busca-se demonstrar que, em determinados contextos musicais, alguns critérios de como executar/ aplicar um texto s0 ontologicamente semelhantes ao direito. Por fim, busca-se defender que uma dada postura de interpretacao juridica, observado 0 homé- logo musical, & preferivel Dando continuidade, procura-se, na sego seguinte, como se disse, fazer um exercicio de duas etapas, no qual, respectivamente, intérpretes de musica @ direito enfrentam problemas que podem guardar alguma semelhanca. A pri meira etapa revela como um musico-intérprete enfrenta um conflito entre um comando claro, preciso e determinado da partitura musical e uma insatistacso motivada™ da sua aplicagso. A segunda, busca observar como um juiz enfrenta um confiito entre um comando claro, areciso @ determinado de um texto nor- mativo e @ geragso de uma conseauéncia indesejada por ele ou a violacao de uma outra norma juridica, ambas derivadas da aplicagdo daquele comando. CObservem estes exemplos: 1.3. Quatro problemas de interpretagao 1.3.1. Da misica (Os exemplos musicals s8o pessoais, embora guardem alguma semelhanca por ‘aaueles propostos por Jack Balkin e Sanford Levinson, em obra seminal so- bre o tema. Durante muito tempo, encarei como desafio pessoal a execusso de uma peca para piano de Franz Schubert denominada Impromptu in Es-dur (0.889-2), No decorrer do estudo dessa pega, houve uma situacéo que me ge- 1a motivagso pode sor esttica,histérica, macanica ou, até mesmo, arta 15 Balkin @ Levinson (9. V. nota 19 adiante ws ‘COLEGRO JOVEM JURISTA 2020 rou um incémodo, No 70 compasso da pera, no segundo tempo, havia algo {que me soou estranho apés uma primeira leitura. Ao prestar mais atenco, esse “estranhamento” estava em um momento no qual duas notes eram tocadas 20, mesmo tempo, mas que soavam inadequadas & linguagem que o compositor propunha no decorrer da peca ‘Como veremos @ seguir, @ musica é uma arte e uma ciéncia, Seu estudo transcende a fluéncia instrumentistica e requer a construgo de proficiéneia nas suas indmeras ramificagbes. Alguns desses ramos so 0 estudo da grafia musical 0 seu significado, 0 estudo da harmonia e o estudo do arranjo, © que aconte- ceu nesse caso foi que a gratia musical de Schubert indicava que se locasse algo ‘que © estudo da harmonia e do arranjo dizem que poderia ser uma improprieda- de. Em outras palavras, enauanto a gratia, clara, orientava uma conduta, @ minha compreensio do estudo da harmonia e do arranjo orientava outta, Da perspectiva da teoria da musica, o que havia no mencionado compasso era um contraste entre uma nota /é natural, na melodia, que era executada a0 mesmo tempo que um /é bemol, na harmonia, em um contexte que a escolha dessas notas no fazia sentido com a linguagem que o compositor propunha, violando as tals regras de harmonia e arranjo.” Na condicao de intérprete, com- preendi que aquela combinagao de notas soava em conflito com a linguagem ‘que o compositor vinha propondo no decorrer da peca (para ndo cometer a heresia de que assumi uma crenga de que aquela nota era inadequada). Fo! ppossivel construir uma justificativa teérica para a minha defesa de inadequagso do id natural naquele momento da peca, ‘Annota feria uma regra de arranjo que vinha se mantendo no curso da pega. A solucdo para uma situaeao como essa seria executar a peca de maneira diferente do que a grafia propunha, Sao op¢6es, por exemplo, omitir 0 fé emo da méo esquerda, ou substitui-lo por um fé ou um ré, ou até, mesmo, em abor~ dagem mais radical, desvier a nota melédica para Id bemol tal qual se praticou na melodia, Tais op¢Ses se revelam possivels dentro da linguagem que se pro- 16 Diuponivel_ om _htps//wwwmutopiaproect.ora/tp/SchuberF/0888/SchuberF-0899-2- Inmpremptu/SchubersF-D899-2-Imoromptu-od.pdt Acasso or: 25 mat. 2020. 17 Uma objeeto possival feita por alguns profis.onns & que Ito, he verdade, consiste em um efeit te6rico denominade “alsa relacgo” ou um cromatism. Iso procece. Mas, de igual forma, consiste em uma viologso de rograestétiea de harmonise aranjo aunnso, em ‘contexto de fonallamo, se exacuta a sma maior de uma nota no masmo momento qu 3 Sétima menor do mesmo acorde # execitad, 18 CO estudo de harmon funcional tem uma justificativa para essa abjecdo cue apresent. Hs uma rogra de harmonia om ave se deve evita tocar ao mesmo torbo wm acorde dom ante quando a melodia se aovesentar na 79M deste acarda. A 77M, ngo é uma nota que se adequa com acorde domirante, sobretud na contexto da poca que estava exarnande, Note-se que aqui nao estou objetanco aue autres 1egras pedeiam ser lovantadas para regarincidénca a esta (@ de que 018 natural é uma nota de passage, portante poderia Sr tlorada: ou qe esse estannamenta gerado @ propasital), mas sustentande que, 300 @ ‘aide da primeira regra ol ratural¢ incomoativel CLAREZA E LEGITIMDADE ow punha naquela composi¢ao. Em outras palavras, estava sugerindo uma verda- dita intervengao criativa sobre a obra de Schubert. © que fiz, na verdade, fol apresentar uma justificativa baseada em uma teoria de harmonia funcional para no tocar aquilo que constava graficamente do tal 70" compasso, e substituir uma nota por outra. © fundamento que usel para justificar essa intervenco, a despeito de legitimo em alguma extensio, certamente néo é uma unanimidade entre a comunidade de musicos-intérpretes. Poderia eu substituir o que enten- di ser uma “nota equivocada” escrita por Schubert? Imediatamente apés essa pergunta, surge em mente o constrangimen- to: “Que legitimidade tenho eu para dizer que a nota que Schubert escreveu esté Inadequada? Ainda que eu tenha uma fundamentacao para tanto, qual 62 legitimidade que eu, enquanto intérprete da sua obra, tenho de sobrepor aquilo que acho certo frente a um comando claro de compositor?" Pouco de- pols deste pensamento, foi nesta linha que me chamou a atencao a professora que orientava meus estudos. Ela trazia um postulado consigo que vale como maxima na musica classica: “A partitura é um documento, @ 0 compositor 6 2 autoridade maxima sobre aquilo que deve ser tocado.” Assim sendo, mes mo que com todas essas elucubragées tedricas suscitadas para “derrotar” uma determinagao de Schubert 20 intérprete, inclusive proponde alteracao numa peca totémica como essa (que aos olhos de muitos profissionais do mundo de concerto poderia soar herético), 0 correto seria relevar esse estranhamento @ incorporé-lo & minha execugo. Naquele momento, decidi que nao se deve divergir frontalmente da notaco que Schubert registrou, nao importa a razoa- bilidade daquilo que propusesse.* 19 GF Balin Levinson (199), Casos sobre a lesit'midade do intérorate em intersir no co- ‘ando textual de compositores totémicos para relat sobre problemas harmendutices 20 ‘ireta no € de todo uma novdade, Stanford Levinson e Jack Balkin apresencaram cols aos om aue havia problemas interpretatives semethantes.O primero @3 casa do plansta ‘compositor Charles Rosen. No decorrer do estudo co primero movimento da Concerto fT pata Plano de Besthoven, 2 pianist relata em seu Ivra The Shock of Ol que notou {que "nd ura iritante ou Intrigante nota errace na parttura, um fd natural agud onde a ‘otodi obviamente exige ur fd sustenido".€ possivel falar ue na composic8o de Bee: fhoven nd uma “nota errada"? Evidents que todo intérprete musical errega consigo uma bagagom teériea que Ihe permite compraonder 6 funeamanto teenies por mele de alo compositor produsiu acusla obra Ela n2o @ procuta de uma crardo espontanea (ou, pelo ‘nos, no 6 em gora), & masiea carrega consigo inomeros dogmas, que 830 proprios do Som, permitinds que o musice que estudou nozdes de harmonia, ompos'¢s0 ou arranio ‘musicals possa pordiorar sobre as oscothasfetas pelo compositor. Ao afar Gue a nota fest8 errada porque 8 melodia exige outra, Rosen certamente notou uma incompatiolidade sonora deseo fd natural com 0 contexte no qual ele se insore. Ha uma justifieativa técnica, Portanto, para que el ulgue que a note ests ervada. Mas alem do provavelestranhament onoro, 20r ma's que fosse da maior sutleza, Rosen levanta airla uma justicatva Ms erica: pouca antes de Bethoveen pubicar essa composicao, 05 pianos No liaham essa fecla, 0 f5 sustenido ¢ a nota imodiatamente acima oo f naturale esta ora a lima co piano na épaca, Segundo ele, apesar do posterior avanco tecnotigico que proporcionou 8 ‘aumento do numero de teclas no pian, que ocorrau pouce depais da publicacao da pera, ~ 20 ‘COLEGRO JOVEN JuRISTA 2020 Contraste essa narrativa com outra, atravessando © mundo clissico para 0 jazz. Em agosto de 2019, tive a oportunidade de participar da quarta edicso do Internal Compass Seminar of Jazz em Mitzpe Ramon, Israel. Trata-se de um ‘curso de verdo de miisica naquela pequena cidade em algum ponte do deserto do Negev. Naquela ocasiso, renomados professores de musica de variadas na- ionalidades ofereceram diversos cursos de teoria e pratica, Na programacao, além das aulas que se dividiam por instrumentos ¢ priticas de conjunto, cada um dos professores ofereceria uma aula magna — uma masterclass — para todos os alunos, Uma dessas aulas magnas foi ministrada pelo professor e pianista bra- sileiro, residente em Nova York, Henrique Eisenmann, que tratou do tema da interpretacdo musical. Ele trouxe como caso gerador das reflexdes um dile- ma que enfrentou quando decidiu estudar havia alguns anos a composigso ‘Monk's Mood, de Thelonious Monk, um dos mais célebres compositores de jazz da histéria, com um professor da universidade onde foi aluno. Eisenmann ex- plicou que, apesar de ter uma enorme atracéo pela peca de Monk, havia dois momentos da composicso — dois compasses, para ser mais preciso — de cue ele simplesmente nao gostava. Ele relatava 0 quanto se incomodava em ter de enfrentar aqueles compassos escritos na partitura, até que concluiu que ele gostaria de interpretar a composicao sem os tais fragmentos, em detriment absoluto daquilo que estava prescrito na obra original de Monk Ele apresentou esta ideia 20 seu professor com algum receio, pelas mes- ‘mas raz6es do caso Schubert. Thelonious Monk é um dos maiores composite res da histéria do género, a quem se deveria ter respeito e deferéncia: que legi- timidade teria um intérprete de interferir em sua criago? Eisenmann ressaltava ainda que o receio de propor essa ideia a seu professor era ainda maior porque este eva aficionado pelo compositor, raze pela qual temeu uma reprimenda, Parecia-ine, até aquele momento, que consideracdes pessoais nao poderiam se sobrepujar 2quilo que a composi¢ao exigia dele enquanto intérprete. Em outras palavras, existia um receio de ir adiante com a inten¢o de tocar algo diferente othoveen no emendou sua composieso om Tazo dso. Balen o Levinson aind narram mais um episéaio, que fecha essa secao de proolemas de interpreters musical. Tamém fm Schubert narram os autores que Alfred Brendel. renomado pianist. nfo se soto ma ‘Sbngacae de acatar um sinalde repet cao que pode ser encontrado nas utimas sonatas do ompostor S80 duas as justifietivas qe leriam sido dados pelo autora primeira & due 2 repaticao inna a fnaldade de que © auvinte memorzasse aquele Tragmento da compa- Sigdo, © que, nos tempos de hoje, ndo se faz necossério, Ou ja se conhoce om funedo da leadigse que essas pecasfemaram ou pode-se simplesmente comorar uma gravaca para juvria novamente. O segundo argurnanto tom a ver com um pragmatism. Uma voz que 3 praticas contamooraneas de concerto se dasenvolvaram no sentido de estabalecer due 2 trés sonatas devo ser apresortadas om um intervalo do duas horas, a adoro desses Pontos de rencticzo Tornara © concerta excershvamente longo e trustrara esse ajetiva ‘ue se concretizou na modernised, CLAREZA LEGITIMDADE ane daauilo que o compositor escrevera, com a agravante de que 2 justificativa para tanto era apenas 0 gosto pessoal, sem recorrer a nenhum fundamento tedrico, historico ou qualquer outro que fosse. Para sua surpresa, a0 narrar sua proposta de ignorar aqueles compassos & tocar a peca como se eles nem sequer existissem, o professor o observou com admiracdo, assentiu e imediatamente os riscou da partitura, Notendo que El- ‘senmann no esperava essa reacSo, seu professor fez um comentério cujo teor 6 semelhante a0 seguinte: “O que torna a sua interpretacdo interessante no 6 fazer mais do mesmo, mas imprimir sua vis8o sobre a composi¢o, senso eu ‘vou ouvir 0 préprio Monk. Isso é de fundamental importncla.” A lig8o que se extrai desse caso, portanto, é que, sob esta éptica, a forca do texto deve ser harmonizada com uma atividade proativa do intérprete, culo @xito na performance pode estar intrinsecamente ligado a posturas que con- trastam com os comandos claros da notaco musical, E imprescindivel destacar, por outro lado, que 0 contexte no qual se inse- re 0 intérprete musical tem absoluta relevancia na forma com que manuseia a notacdo que esta interpretando, tal como seré abordado em uma das secdes deste trabalho. Mas independentemente da substincia das justficativas® tra- zidas por cada um dos protagonistas destes dois casos, ambos enfrentaram perguntas da mesma natureza: Qual é a legitimidade que um intérprete possui para no aplicar um comando claro, preciso e determinado do texto na sua interprotagao? E realmente necessério que oles a justifiquem?” (© que se viu foi que, em contextos diferentes e por justificativas diferen- tes, um intérprete se sentiu & vontade para “derrotar” um comande claro da notacdo musical e 0 outro, nao. 1.3.2, De direlto A fim de viabllizar a conexéo desses problemas com o direito, contrastem-se aaueles casos com outros dois, desta vez juridicos, a partir dos quais sela pos- sivel iniciar uma investigardo teérica. A preocupagio dos casos a seguir, de acordo com a mesma légica dos casos anteriores, ¢ explorar problemas nos uals os intérpretes, desta vez do direito, encaram dificuldades na interpreta- ‘980 de textos normativos claros, cuja aplicaéo poderia ensejar questionamen- tos sobre se de fato promoveu o melhor resultado ao caso concreto. © primeiro tem como protagonist 0 juiz Cezar Peluso, nos tempos em que ‘era magistraco de uma vara de familia no Estado de Sao Paulo, décadas antes, de ingressar no Supreme Tribunal Federal. O caso @ ser narrado fol apresentado por Peluso na ocasise do projeto Histéria Oral do Supremo, realizado pela Fun- 120 Gejaa justicativatundamentada em superte te 2) Balkin @ Levinson (1991p. 1599). relevante au um mero “no gost wn {GAO JOvEM JURIST 2020 aco Getulio Vargas, Na ocasiéo, Peluso concedeu uma longa entrevista sobre sua trajetéria desde o inicio da carreira até sua vida apés a aposentadoria do Su- remo Tribunal Federal, Ele é magistrado de carreira, tendo sido juiz de direito © desembargador do Tribunal de Justica do Estado de S40 Paulo até a indicacso para a vaga do ministro Sydney Sanches no Supremo Tribunal Federal Em dado momento da entrevista, pediu-se que o juiz narrasse um caso. que o marcou em sua carreira antes de ir para o STF. Ele respondeu 0 seguinte Nao € um caso grandioso do ponto de vista das suas reper- cussées politicas, e econémicas ou sociais, mas ¢ relevantissimo do ponto de vista da vida pessoal, Era uma balana, que moveu uma aco contra aquele que constava no registro como pai dela, © contra © Irmo dele que no constava no registro. © que tinha acontecido? Eram dois irmaos. Um deles teve essa filha fora do ca- samento, ¢ 0 outro irmSo, para no causar problema para a mulher do pai, que era casado, assumiu a paternidade da menina,¢ ali eles passaram a conviver como se ele, 0 tio, fosse 0 pai dela, Sé que © psiquisme tem uma coisa que alguns chamam de pantominésia do inconsciente, que é © seguinte, que é base hoje da teoria que nao se pode esconder nada de quem é adotado, nada, porque 0 adotade mesmo que née fale, 0 incansciente capta que ele no & fllho daquela pessoa, ele capta aquilo. E ela captou aquilo. Como cla no tinha certeza absoluta e no tina uma certezs formal, ela desenvolveu como defesa uma [..] bronquite asmética psicogé- nica. Gerada por um contlto inconsciente. Ela entrava em crise, entrava em bronquite. Terrivell A moca sofrendo pra burro. Ela entrou com uma acdo em So Paulo porque ela estava morando fem S80 Paulo, o férum dela, e ficou provado por depoimentos de todos, inclusive do tio, que ela era filha dele, do irmao, que estava, presente. E ola cuviu toda a instrucdo do processo, ouviu as tes- ‘temunhas, ouviu depoimento, entdo ela tomou conhecimento de ue ela era realmente filha do que constava come tio, mas que era © pal. Acontece que ela tinha perdido o prazo de decadéncia para reconhecer 3 paternidade, é um prazo de quatro anos depois que completa a maioridade. Ela tinha perdido 0 prazo. odia declarar isso mais. No podia. A lel impedia. O Cédigo Civil impedia. Aio que me ocorreu? "J4 sei como vou fazer isso aqui." tainha, Siva e Almeida (2015, p. 88-89). CLAREZAE LEGITIMDADE ae Antes de examinarmos a resposta a que chegou 0 entdo juiz Peluso, par- tamos do exercicio hipotético de que nés assumimos 0 seu lugar para julgar © caso, a fim de exeminar quais s80 as regras incidentes no caso concreto © decidi-lo. Suponhamos que os fatos desse caso tenham ocorrido na vigencia da Constituicdo de 1988. Ha um enunciado normative que exige do intérprete seu enfrentamento, que vai definir os rumos da decisso. Tal como Peluso falou, © Cédigo Civil ndo permitia prosseguimento do caso por uma razéo: ha prazo decadencial excedido. O prazo decadencial de quatro anos a que Peluso se re- feria consta no art, 362 do Cédigo Civil de 1916, cujo texto foi reproduzido em termos idénticos no art. 1614 do Cédigo Civil de 2002. Sua redaco é a seguin- te: "Art. 362, 0 filho maior no pode ser reconhecido sem o seu consentimento, @ © menor pode impugnar o reconhecimento, dentro dos quatro anos que se seguirem & maioridade, ou a emancipacso.” Assumindo a narrativa do juiz Peluso como um relatério, nés, na sua po- igo, estarfamos aqui diante de um caso facil do ponto de vista técnico. Isso quer dizer que a lel (0 texto normativo) oferece uma resposta clara, precisa @ determinada para a solucdo do caso concreto, Assim sendo, enveredande num exercicio silogistico tipico da mais elementar doutrina de Teoria do Direito, a premissa maior 6 a de que configura decadéncia quando 0 prazo para o ajuiza- mento da aco de quatro anos & descumprido; a premissa menor & a de que i se passaram mais de quatro anos da maicridade da autora para o ajuizamento da aco de impugnacao de registro de paternidade. Logo, a conclusdo seria a de que 0 direito da autora restaria fulminado e, assim, seu pedido deveria ser julgado impracedente. Esse seria o resultado no caso de a regra de decadén- cla ser a Unica fonte juridicamente relevante para produce da norma no caso conereto, Contudo, ainda na posicso do juiz Peluso, considere-se que todo o softi- mento, toda a dor pela qual passava a autora — sem prejuizo do real peso que possui — fosse suficientemente relevante a fim de atrair uma justificativa juridi- ca que pudesse derrotar a regra de decadéncia. Que isso atraia algum principio constitucional. Ou, ainda que 0 sofrimento da autora nao fosse relevante, que seria possivel cogitar que um fato manifestamente verdadeiro néo poderia ir de encontro 2 um registro publico, © que constituira justificativa suficiente para negar incidéncia da regra decadencial no caso concreto, Esse debate no nenhuma iconoclastia. A despeito de restar pacificado na doutrina majoritéria que prescric3o e decadéncia so institutos infiexiveis, ‘emerge na comunidade juridica, notadamente com a Constituicéo de 1988, a preeminéncia crescente da ideologia do direito civil-constitucional. Sobre os institutos de prescricao © decadéncia,fila-se 8 possibilidade de abertura para um exame casuistico dos institutes 0 jurista Anderson Schreiber, defensor da ws (COLEGAO JOVEM JURISTA 2020 Corrente mencionada. Argumenta o referide doutrinador que, come © princt- pio da seguranca juridica 6 0 vetor que norteia a existéncia dos institutes de prescri¢ao e decadencia, regras desta natureza no poderiam ter imperativida- de absoluta. Ainda segundo Schreiber, © principio que fundamenta tais regras tem igual estatura a de outros principios constitucfonais, como, por exemple, a Gignidade da pessoa humana (art. ¥, Il, CRFB/B8), ou mesmo o principio da verdade real dos registros pblicos, aue, segundo 0 préprio STJ, é uma face do préprio principio constitucional da seguranca juridica."* A derrotabilidade desta norma parece possivel neste raciocinio. Isto ¢ t&o verdadeiro, que o Superior Tribunal de Justi¢a, o qual antes mantinha a aplica- (680 da regra decadencial em casos semelhantes,” reformou seus precedentes para construir a tese de que "nao atinge 0 direito do filno que busca o reconhe- cimento da verdade biolégica em investigagso de paternidade ¢ a consequente anulagéo do registro com base na falsidade deste" ** Ha, portanto, uma justifi- cativa sedimentada na jurisprudéncia para aue, a despelto de haver 3 rears a ser aplicada no caso concreto, ela possa ser derrotada pelo Juiz em razio de principios abstratos que julgou relevantes o suficiente para afastar sua incidén- Cia, © que assim possa ser feito. Flavio Tartuce & defensor dessa postura em conereto, nos seguintes termos: Em relagdo & segunda parte do art. 1614 do Cédigo Civil — que consagra prazo decadencial de quatro anos para o filho menor impugnar seu reconhecimento a contar da maioridade —, {a previsio tem sido afastada pela jurisprudancia, Isso porque o direito & impugnacao envolve estado de pessoas ¢ a dignidade 25 R materia encontra-se, todavia, am abarto no campo de refexses 6o cWilsta contempo- ‘neo. se 2 seguranga jriica, principal inspiragao da preserigo © decadénela, & tode © tempo ponderada luz de ovtros nteresses constitucionalmente proteg dos, qual sfeta dessa panderaedo sobre os prazos prescriconas ¢ decadenciais? Reconhecer lal espace ‘Ge ponderacdo ndo significa arvunaro instituto da prescricao nem larcd+lo em um pro- Esto progress vo de ‘decedénes. Muito a0 eontraro: a seguranes dos brazos fos Soré mmaramente iiséia se sua aplicarae for desacomeantada de qualqusr prescupacaa com 2 realizacso dos prinelpios fundamentals 60 ordenamnto jurdico brasileiro. DecsSes {ical que, amparadas em um exarcico genuino de ponderacdo, detahadamente mat ‘ado, afastar, em dads nipotoses, oF ofetos drstieos do dacurso dos prazos legals ho Fepresentam aberracdes nem arbiariedades, podendo ser deoabdas ( Yeformads) por mmoio dos recursos proprios, como lt corre em tantos campos onde 9 aplicacio drote {dos rincnies constitucionaisimpBe um controle judicial da ponderacda efetuada em sede legislative” (SCHREIBER, 2020, p, 445-446), 24 ST Resp 112811, Rel Min. Lus Felipe Salomso. DJe 071020100 principio da verdade real nortea registro pislicoe tom per fnalidade a segurana jurcica Par isso que necos- Sita espetnar 2 verdace xistentee tual endo apenas aquela que passou.” 25. Por oxemplo, S14, RESP. 8.856/5, Rel Min. Salvi de Figueiredo Teixora, D214 26 STJ, REsp 987.987. Rel Min, Nancy Andrighi Ole 05.09.2008, inno CLAREZA E LEGITIMDADE aN humana, nao estando sujeito a qualquer prazo. [Cita precedentes do STII” Voltando principios, reconheceremos que, do po! facil, A regra de decadéncia orienta para uma resposta clara, precisa © deter minada a0 caso conereto. Todavia, come foram levantados principios que vio de encontro a aplicago dessa regra a0 caso concreto, caberia ao juiz escolher se a resposta juridica mais adeauada seria aplicar o texto normativo citado, ou derroté-lo mediante a construgao teérica desenvolvida a partir da manipulacso. dos principios impostos pela Constituicao. E como Peluso decidiu? 0 juiz era absolutamente sensivel& literalidade da regra a despeito de ela criar uma situaco no mundo que frustrava a sua expec- tativa, O fato de © caso ter acontecido no ido final dos anos 1970 coloca o julz, ‘em uma situac3o em que o peso das regras — daquilo que esté escrito no texto normative — quande providas de tamanha clareza, nao daria tanta margem principiolégica para desviar de sua aplicacao, @ despeito de atualmente se ne- gar eficdcia & regra* Peluso, decidindo 0 caso magistralmente, sustentou que 2 autora tinha diteito subjetive, como obiter dicta, mas afirmou que o direito objetivo nao the garantia esta prestacao jurisdicional, n verbis: ‘caso concreto, se nao se sensibilizasse a incidéncia desses de vista técnico, se trata de um caso Eu doi uma sentenca dizendo tudo isso: “Ela 6 filha dole, sim, Por i850, isso, isso." Ai cheguei ao fim e disse: "Mas, infelizmente, no posso declarar isso na sentenca, tal, julgo a ago improce- dente”. 0 advogade dela, falecido, ele chegou para mim e disse assim: "Nés nao vamos recorrer da sua sentenca’, Eu falei: "Por que?” “Porque do ponto de vista juridico é inutil, do ponto de vis t2 pratico, para nés 6 suficiente, Pra ela, ela vai ser curada dessa bronquite s6 com essa sua sentenga", Porque isto que interessava para ela, uma declaracao formal de que era filha do outro. Entao isso no tem repercussso nenhuma, mas do ponto de vista do exercicio profissional, pra mim fol importantissimo. Conforme sera examinado mais adiante, na secao 3.2 deste trabalho, ob- serva-se aqui uma tipica situaco em que o direito oferece uma resposta clara para 0 caso, mas cujo resultado se reputou ruim. Embora o julz Peluso tenha By Tartuce 2076, 8.1545). 28 Vale lembrar que 2 Constituico de 1967, om seu a 29. Fontainha, Siva ¢ Almeida 2015, p. 89). 150, 83%, rata da seguranca jrsica 8 {cho Jove JURIST 2000 feito consideracdes nesse sentido e redigido acerca da verdade fética em obi ter dictum, aplicou-se a regra a despeito do seu resultado. © segundo caso juridico, que trata de interpretagSo constitucional, envol- ve um tema que fixou a atenco de juristas e leigos no Brasil por sua sensivel gravidade: a possibilidade de execucdo proviséria da pena apés a ultima dect- 80 em segunda insténcia, A despeito de se tratar de um assunto controvertido no desenvolvimento jurisprudencial do Supreme Tribunal Federal, o objetivo de apreciar esse caso nao tem a ver com os inimeros debates juridicos que s8o travados para a solucdo do problema, mas to somente examinar alguns aspectos do tratamento hermenéutico dado a uma regra especifica que tem, centralidade a discussio: 0 art. 5, LVIl, da Constituicao." Apesar de a dimenséo que aqui se quer examinar estar adstrita a0 exame da interpretagso e aplicacso de uma Unica regra constitucional, é pertinente um breve panorama acerca do desenvolvimento do tema desde que a Consti- tui¢do de 1988 passou a vigorar. Entre @ sua promulgagéo ¢ 0 julgamento do HC 84,078/MG, 0 primeiro Julgade notavel sobre o tema, era pacifico o entendi- mento de que a execu¢So proviséria da pena prescindia do transito em julgado, Esse entendimento era escancarado na Sumula n® 9, do Superior Tribunal de ustica, cuje teor era o seguinte: "[a] exigéncia da prisdo proviséria, para ape- lar, no ofende a garantia constitucional da presungo de inocéncia © tema se traveste de tamanha sensibilidade, porque o préprio Supre- ‘mo Tribunal Federal, em um intervalo de exatos 10 anos (entre 2009 ¢ 2018), mudou de entendimento trés vezes, alternando-se entre os dois polos verti- calmente antagdnicos de admissio ou inadmisséo da execuco antecipada da pena em segundo grau." A primeira vez foi em 2009, no ambito do ja citado HC 84,078/MG (Rel. Min, Eros Grau). Na ocasiéo, o tribunal, por maioria de 7 votos 4, entendeu que a execugéo proviséria da pena feria © art. %, LVIl, da Consti- tuigdo.* Na segunda vez, em 2016, por ocasiéo do julgamento do HC 126.292/ SP (Rel, Min, Teori Zavasckiy" e das medidas cautelares nas ADCs 43 44 (Rel nistras da Corte de oferecer um caminno Intermedisr em que 3 pena podria ser Brov- toriamante executada a pertr da nagativa de seguimento do recurso especial perante © Superior inbunsl de Justca alga que © ministre Marco Aurela chagou a sustentar coma flemativa no seu voto na ADC 45-MC Cf, BRASIL, ADC 43 0 42, Rel Min, Marea JE 06.08 2018, p. 25 (p. do voto do minsto). 32. Obsorvewso 0 caberalno da ementa: “HABEAS CORPUS, INCONSTITUCIONALIDADE DA CHAMADA “EXECUCAO ANTECIPADA DA PENA”. ART. St, LVIl, DA CONSTITUICAO DO BRASIL, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, ART. PII, DA CONSTITUIGAO DO BRASIL, (ites posses) 135. Transcreve-so 2 ementa: “CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS, PRINCIPIO CONSTITU: CIONAL DA PRESUNCAO DE INOCENCIA (CF. ART. 5%, LVID. SENTENCA PENAL CON- DENATORIA CONFIRMADA POR TRIBUNAL OE SEGUNDO GRAV DE JURISDICAO, CLAREZA LEGITIMDADE ae Min, Marco Aurélio) quando 0 tribunal fixou que & execuso proviséria da pena no violava a regra constitucional examinada. Em ambas, de igual forma, or maioria: 7 votos a 4, ¢ 6 votos a 5, respectivamente, Por fim, em 2019, no julgamento de mérito das ADCs 43 ¢ 44, em sede abstrata e erga omnes, ret nou-se ao estado de coisas inaugurado pelo habeas corpus relatado por Eros Grau em 2009. 0 julgamento, mais uma vez, foi por maioria de 6 votos a 5 Esta sucesso de controvérsias por apertadas maicrias demonstrou a di- ficuldade de © tribunal pacificar 0 tema. Apesar de diversos dispo: titucionais e infraconstitucionais serem aplicaveis & matéria, no havia duvidas de que o grande vetor da decisio se fundamenta no art. 5, LVIl, da Constitui- {¢40, sob 0 qual todos os ministros examinaram sua interpretagao e travaram um debate profundo sobre a clareza do dispositive e sua aplicacao. € esta a dimensSo da discussio em que se busca, descritivamente, se ater. © art. 58, LVIl, da Constitui¢ao no possuia enunciados semelhantes nas constituicées brasileiras anteriores* sendo verdadeiramente uma nova regra constitucional de tratamento do réu que se tornaria relevante enquanto fonte de direito para a concluséo sobre o tema. A questéo é que as manifestacdes, de alguns ministros revelaram criticas profundas acerca de como interpretar 0 dispositive. De um lado, defendeu-se que o dispositivo é claro e autossuficiente, sendo ‘que sua néo aplicagéo poderia enselar até mesmo a inutilidade da Constituicso. Foi como se manifestou o ministro Eros Grau na primeira assentada de 2009: Retome porém o fio da minha exposicso repetindo ser in- completa a noticia de que a boa doutrina tem severamente criti= cado @ execucdo antecipada da pena, E isso porque na hipétese EXECUGAO PROVISORIA, POSSIGILIDADE, 1 A execugio proviséria de acdrdéo panal condenatério proferide em grau de apelacdo, ainda que sujelto a recurso especial ou fextraordindrio, ago compromete 0 prinipio constituconal da presungso de Inacéncla afirmado pelo artigo 8 Incso LVIl da Constitulo Federal, 2. Habeas corpus deneaade, Cortes nesses). ‘54 ranscrove-se a ementa: "MEDIDA CAUTELAR NA ACA DECLARATORIA DE CONST TUCIONALIDABE. AlT. 283 DO CODIGO BE PROCESSO PENAL. =XECUCAO DA 2=NA PRIVATIVA DE LIBERDADE APOS 0 ESGOTAMENTO DO PRONUNCIAMENTO JUDICIAL EW SEGUNDO GRAU, COMPATIBILIDADE COM © PRINCIPIO CONSTITUCIONAL DA PRE- SUNGAO DE INOCENCIA. ALTERAGAO DE ENTENDIMENTO D0 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO JULGAMENTO D0 HC 126.292, EFEITO MERAMENTE O=VOLUTIVO DOS RECURSOS EXTRAORDINARIOS € ESPECIAL. REGRA ESPECIAL ASSOCIADA A DISPOS! CAO GERAL 00 ART, 285 DO CPP QUE CONDICIONA & EFICACIA OOS PROVIMENTOS UURISDICIONAIS CONDENATORIOS AO TRANSITO EM JULGADO. IRRETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS GRAVOSA, INAPLICABILIDADE AOS PRECEDENTES JUDICIAIS CONSTITUCIONALIDADE DO ART, 28 90 CODIGO DE PROCESSO PENAL. MEDIDA CAL: TELAR INDEFERIDA.”(grifos nossos). 55. CLBRASIL. ADC 45, 44/MC —Rel. Min, Marco Ruri, Red p/ acérdlo, Min Edson F UE. 06.03.2018, p. 117 ©235, ws {GAO JOvEM JURIST 2020 do se manifesta somente antipatia da doutrina em relacso 8 antecipagéo de execuco penal: mais, muito mais do que isso, aqui ha oposi¢o, confronto, contraste bem vincado entre o tex- to expresso da Constituicso do Brasil e regras infraconstitucio= nais que a justificariam, a execu¢o antecipada da pena. (grifos rnossos), Ac enfrentar 0 argumento de que “os advogados usam e abusam de recur- 505 € de reiterados habeas corpus, ora pedindo a liverdade, ora a nulidade da ago penal sustentou ainda 0 ministre Ora, fu] a prevalecerem esas razées contra o texto da Constituigso, melhor sera abandonarmos o recinto e sairmos por ai, cada qual como seu porrete, arrebentando a espinhaeacabeca de quem nos contrariar. Cada qual com o seu portete! Ndo recuso significago ao argumento, mas ele ndo serd relevante, no pla no normativo, anteriormente a uma possivel reforma processual, evidentemente adequada ao que dispuser a ConstituicSo. Antes disso, se prevalecer, melhor recuperarmos nossos porretes...” © ministro Marco Aurélio, j4 na ocasiéo dos julgamentos ocorridos em. 2016, adotou tom semelhante ao do ministro Eros Grau, soja na defesa da cla~ reza do comando do dispositivo como também na gravidade de se abandonar este sentido “claro” oferecido pela Constituigdo, in verbis: 57, BRASIL. HC 84.078, Rel. Min (© abandono do sentido univoco do texto constitucional gera perplexidades, presente a situagéo veiculada nestas acSes pretende-se a declaracao de constitucionalidade de dispositive ‘ue reproduz o prescrito na Carta Federal, Néo vivéssemos tem= pos estranhos, o pleito soaria teratolégico; mas, infelizmente, a pertinéncia do requerido nas iniciais surge inafastavel. [1 Descabe, em face da univocidade do preceito, manejar ar- gumentos metajuridices, a servirem & subversio de garantia constitucional cujos contornos néo deveriam ser ponderados, ‘mas, sim, assegurados pelo Supremo, enquanto ultima trinchel- ra da cidadania, Consoante fiz ver a0 analisar o habeas corpus, rn 126.292 CLAREZA LEGITIMDADE 2 (© preceito, a meu ver, ndo permite interpretagses, Hé uma maxima, em termos de no¢So de interpretacio, de hermenéutica, segundo a qual, onde o texto é claro e preciso, cessa a interpretacao, sob pena de se reescrever a norma juridica, e, no caso, 0 preceito constitucional. (grifos nossos). \Veja-se que ambas as posturas se assemelham aquela que se adotou no ‘caso Peluso: uma abordagem hermendutica em que o direito se opera median- te um apego ao texto normative, sendo de importancia secundéria, ou mesmo irrelevante, as razBes que motivam a existéncia do enunciado.” De outro lado, uma postura antagénica, que impende apresentar, haja vis~ ta @ profunda controversia acerca da interpretacéo do texto normativo exa- minado, exige que este texto seja lide em conformidade com outras variéveis relevantes que impéem limites a essa clareza enxergada pelos ministros Marco Aurélio e Eros Grau. Como se depreende dos votos da ministra Ellen Gracie em 2008) @ do ministro Edson Fachin (em 2016), consideram que a clareza do ‘enunciado deve ser examinada em conformidade com outros elementos que so relevantes para a tomada de decisso. ‘A ministra Ellon Gracie sustenta que seo art. 5¢, LVIl, da Constituicso nao fosse lido em conformidade com outros dispositivos, chegar-se-ia a uma interpretacde equivocada. Dat possivel inferir, por consectério, que se néo fossom estes outros dispositivos, o texto do art. 5, LVI, da Constituigao seria claro naquilo que su Eequivocado afirmar que o inciso LVIIdo art. $*da Constituigso Federal exige 0 esgotamento de toda a extensa gama recursal, para que, s6 ento, se d@ consequuéncia a sentenca condenatéria 2 extensa gama recursaljé fol designada em o\ oportunidade pelo Ministro Francisco Rezek como extravagancias barrocas do processo penal brasileiro. © inciso LVII do art. 5* da Constituicso Federal deve ser lido em harmonia com o que dispdem os incisos LIV e LXVI do mesmo dispositive, os quais autorizam a privacéo de liberdade desde que obedecido o devide processo legal e quando a legislacao nao admita a libercade proviséria, com ou sem fianga (HC 84.078, acérdao, pp. 124 e 125). (Grifos nossos). 3eGRASIL, ADE AS, 44/MC, Rel Min, Marco Aur, red. p/ acbrdBo Min, Edson Fachin, JE (06.05.2018 1s, 39. Leal 2017». 106). ~ 30 {GAO JOvEM JuRISTA 2020 ‘Ao propor uma leitura conjugada do art, 5, LVI, da Constituico com ou- tros dispositives, entende a ministra Ellen Gracie que aquele texto normative 1ndo tem seu significado esgotado por sis6, ¢ justificou essa letura em razso de um resultado no mundo que seria, a seu ver — citando ainda 0 ministro Rezek — uma “extravagancia barroca’. Na mesma linha segulu @ ministro Edson Fa- cchin na ocasido das cautelares das ADCs 43 e 44, a0 sustentar que o resultado da aplicago “absoluta” da norma que é invocada implicaria em um resultado teratolégico do sistema, nos seguintes termos: Se pudéssemos dar & regra do art. 5#, Lvll, da CF, carater absoluto, teriamos de admitir,no limite, que a execugao da pena privativa de liberdade sé poderia operar-se quando 0 réu se conformasse com sua sorte e deixasse de oper noves embar- gos declaratérios. Saltam aos olhos, portanto, os limites e as possibilidades que se podem dar & dicedo do art. 5, LVIl, da Constituicso da Repdblica, ao mencionar ‘transite em julgado’ (ADC 43, 44-MC, acérd80, p. 40). (Grifos nossos). © que se ve, portanto, sao duas formas distintas de tratamento em relacdo {a0 que reza 0 art. 5% LVI, da Constituigso. Enquanto 0 comportamento adotado or Marco Aurélio e Eros Grau é formalista, ou seja, quando 0 texto & claro, “ele se toma referéncia suficiente para a deciséo, bloqueando a consideracdo de outras raz6es capa7es de justificar uma deciséo em sentido contrério",® aquele adotado por Ellen Gracie e Edson Fachin é no formalista, quando varidveis juridicamente relovantes advindas da aplicacdo Iteral do texto geram resultados que contlitam ‘com outras variéveis que reputam relevantes, ais como 0 propésite do autor do texto normative ou a viabilidade fética da sua aplicagsio ne mundo real Divergéncias sobre como votar no debate constitucional suscitado s80 le- gitimas e razoaveis, porquanto haverd argumentos suficientemente persuasives para se adotar cada uma das posic6es firmadas.“ Independentemente do resul- tado 2 que se cheque em cada escalha jurisdicional nos casos expostos acima, 0 ‘que se quer demonstrar aqui é que ao intérprete juridico podem afigir proble- ‘mas hermenéuticos semelhantes Aqueles que so enfrentados em interpretacso. musical: quando um texto é claro, preciso e determinado, qual é a legitimidade de um intérprete para no aplicar 6 seu comando em raz8o do seu resultado 40 Leal 2a, p.107 441 Leal 2017, p. 107), ras tendo como “carro-chefe”o controle de eanstitiionalidage, Todavia,nSo ¢ineornimn {ue juzes se vatham de outras vias ~ ou usem o controle de cansttclonalidage diuso inadequacamente ~ para daxar de apicar textos normativos incdentes a0 caso concrete, CLAREZAE LEGITIMDADE aw Note-se que o simples fato de ter havido uma semelnanca da natureza dos problemas que afligiram tanto o intérprete juridico como 0 intérprete musical nos casos suscitados, implica dizer que 2 analogie utilizada pelo ministro Teori Zavascki no & um mero artificio retérico. Além da sua pertinéncia, sua devida investigagao tem a expectativa de poder trazer algo de util para a construcso de avancos na solugso de problemas de interpretaco do direito. Entretanto, 10 @ prépria prudéncia sugere, hd de se ter parciménia na elaboracdo desse contato entre direito ¢ misica, porquanto a conexao entre duas realidades dis tintas no é dbvia e requer demonstracao, Dessa forma, este trabalho prossegue em duas partes sucessivas. A pri- meira é descritiva, Buscam-se identificar e desenvolver alguns pontos de cone- x80 entre direito e musica no campo da interpretagao, mas sem qualquer pre- tensio de esgoté-los. A segunda parte é normativa, visando defender, partindo da validade das premissas tomadas no plano descritivo, que a observacao de posturas hermenéuticas adotadas no plano da musica itil para iluminar al- guns vetores que crientam a interpretago no direito. A justificativa da parte descritiva se deve a0 fato de que nao se pode propor 2 utilidade de mecanis- mos de solugo de problemas de interpretagéo musical para a hermenéutica juridica sem que a devida imbricagso seja demonstrada pelo menos em algu- Por essa razéo, so apresentados alguns pontos de conexso que entendo cexistirem entre direito ¢ musica no plano da interpretacdo, sem, no entanto, pretensso de esgoté-los. 2. Pontos de conexéo 2.1. Considerac6es inici {Quaiquer esforco em se proper que direito e musica possuem pontos de cone- x40 que viabilizem 0 estudo de uma aproximacso deve ser precedido de um Cuidado teérico. Tanto direito como musica so vocébulos que abrigam uma miriade de conceitos em distintas dimensdes, Por isso, ¢ de suma importancia que se delimitem as de que ndo se comprometa nenhum dos pontos de interseg’io que se busca propor nessa se¢o do trabalho. Para que se possa precisar qual é @ noo de direito que se aborda no mas pelas quais se compreende direito musica, a fim presente trabalho, recorre-se a Tércio Sampaio Ferraz Jr., que, em sua obra Introduséo ao estude do direito, orienta 0 exame da ciéncia do direito por dois, enfoques tedricos: o dogmatico e 0 zetético. Enquanto a abordagem zetética do direito esta notadamente mais preocupada com uma observacdo descritiva wn {¢Ao Jove JURIST 2020 do direito (ou seja, 0 que é 0 ireito), a dogmatica ests mais preocupada com uma fungéo prescritiva do direito (ou seja, 0 que deve ser 0 direito).* Quando se fala om direito nesta pesquisa, foca-se tSo somente na pers- pectiva dogmatica, Isso impée uma observacao ao objeto dlreito orientada na exigéncia de uma vinculaco a normas, que se manifestam através de enuncia- dos normativos, © uma press8o pare decidir conflitos frente 8s possibilidades que estes textos oferecem.“ © recorte se faz mais profundo quando Ferraz Jr nos alerta de que a viséo dogmética do direlto se divide em trés dimensoes ‘que guardam fronteiras muito opacas: a normativa, que compreende a ciéncia, Girelto como produte de uma ordem sistematizada de regras para obtengso de decisées; a empirica (ou deciséria), em que se encaram as condicées de possibilidade de uma decisdo hipotética para um conflito hipotético; e a her- menéutica, que se preocupa com a extraco de um sentido dos simbolos das palavras que veiculam um comando normative frente a um conjunto de fatos sobre os quals uma decisdo é exigida. € sobretudo com este ultimo prisma que se preocupa esta pesquisa. Quando aqui se fala em direito, fala-se, portanto, ‘em uma compreenséo do direito enquanto uma ciéncia dogmatica hermenéu- tica, na qual o intérprete — 0 operador que protagoniza essa acao — nao pode esconsiderar um texto normative para tomar uma deciséo e precisa dominar um instrumental teérico para extrair um significado legitimado por mecanis- ‘mos candnicos de interpretagso® No plano musical, atribui-se & musica um conceito convencional de que se trata da “arte de combinar os sons simulténea e sucessivamente com ordem, equillbrio e proporgio dentro do tempo" Além de ser uma arte, a misica também é uma cléncia, que exige um conjunto de competéncias que transcen- de a capacidade de bem executar um instrumento musical. Sobre isso, 6 valiosa a ligdo de Bohumil Med, na introduco de sua obra Teoria da musica. Lé, apre- senta as diversas disciplinas agasalhadas por aquilo que chama de Teoria geral da misica, Essa teoria, segundo 0 autor, revela 0 conjunto de competéncias exigias de um musico para que realize sua atividade plenamente, in verbis: Alguns instrumentistas limitam-se a dominar a técnica do Instrumento. Esses ounca vo atingir a perfeicao. Junto com a habilidade mecanica, precisam dominar a ciéncia musical, cue se estrutura em varias disciplinas: teoria (biisica) da miisica, sol fejo, ritmo, percea¢o melédica, ritmica, timbrica e dindmica Faves Jr QO, p. 18-29). 444° Foray Jr. (2018.28. 45. Fort Jr (2018p. 64-55). 48 Med 1996, p. 1. CLAREZA LEGITIMDADE uw harmonia, contraponto, formas musicais, instrumentos musicais, Instrumentagio, orquestracso, arranjo, fonética e fisiologia da voz, psicologia da musica, pedagogie musical, historia da musica, acustica musical, anélise musical, composigéo, regéncia e técnica de um ou mais instrumentos musicais” (Negritos do autor; itli- cos nossos). Dentro desse conjunto de competéncias que se exige de um musico para exercer seu oficio em plenitude, 0 autor insere aquilo que chama de teoria ba sica da misica. Bohumil Med entende por esse concelte, que é um subcon- junto do que chamou de teoria geral da musica, aquilo que se preocupa em compreender a grafia musical e 0 seu significado e os sistemas musicais (con- ceitos elementares que compdem a linguagem musical (ex: acorde, escalas, intervalos, modos, tons etc.}). E, portanto, no 4mbito da grafia musical e seu significado que se estabelece a nocao de miisica através da qual se pretende ctiar uma ponte com pontos de conexéo com o direito, sendo que este tem seu significado limitado na dimensao daquilo que se entende gor uma ciéncia dogmiética hermenéutica Em sintese, esta se¢do busca demonstrar a viabilidade de aproximar dire to e masica encarando-os como teorias de interpretago, o aue faz com que se assuma um conjunto de premissas semelhantes, sso significa que se defende © argumento de que ambos se preacupam com praticas interpretativas orien- tadas pelo texto, além de comportarem debates sobre a legitimidade dessas interpretagoes.* Conforme ja salie mos identificado nos casos narrados na seco anterior que os respectivos pro- tagonistas so intérpretes enfrentando problemas de decisio, seja no direito, ricos de sua formacao para poder solucionar esses problemas, Em razdo de termos observado que do, essa investigacao é consequéncia do fato de ter- soja na mdsica. Cada qual vai recorrer aos artificios tanto o intérprete musical como 0 do direito se fizeram a mesma pergunta so- bre a legitimidade de melhanca supde que os cénones de Interpretacdo musical para enfrentamento mar uma decisdo em sentido diverso do texto, essa se- do problema poderiam iluminar, em alguma extenséo, a juridica (e vice-versa). Todavia, nao ¢ possivel buscar uma similitude musical em problemas de in- terpretagio juridica se no forem identificados os pontos de conexdo entre di- reito e musica no plano da interpreta¢o capazes de justificar esse intercambio. Para iniciar essa investigacao, retomemos a analogia apresentada pelo ministro Teori Zavascki, a0 dizer que a norma nic é aquilo que esté escrito, Wed (986, 5. 810) 48 anderson (20M. ws {GAO JOvEM JURIST 2020 ‘mas 0 que o intérprete diz que esta escrito, Nessa mesma ldgica que seguia 0 ministro, infere-se que, de igual forma, a partitura néo 6 a musica, mas aquilo que © intérprete extrai dela, A metafora envolve a presenca de trés elementos relevantes: “aquilo que esté escrito”, “o intérprete” e, implicitamente, aquele que vai receber a interpretacao felta pelo intermediério. Uma deducao possivel dessa ideia apresentada é que, tanto no direito como na musica, hé uma intera- So entre o texto (e seu criador), aquele que extrairé seu significado e aquele que receberd a interpretacao feita. Balkin denomina esse circuito “criador-tex- to/intérprete/receptor” de tridngulo de performance Além desses trés ele- mentos, estou propondo que hé um quarto: a influéncia da ideia de estética na Interpretacdo musical, o que ¢ intuitivo, mas também, e sobretudo, na juridica Cabe, portanto, examinar um a um 2.2. Texto, linguagem e comunicagéo © primeiro dos trés elementos de semelhanga trazido por Zavascki é “aquilo que esté escrito”. Em cutras palavras, é 0 texto. © texto é um elemento intrin= seco a dela de direito, sobretudo om sistemas juridicos cujo modelo de tomada de decisdo seja orientado em regras e principios inscritos em diplomas pro- mulgados (ou outorgados) pelo poder competente (em oposigso ac modelo cconsuetudinato). © adequado manuseio do texto ¢ imprescindivel para que 0 direlto cumpra a sua razo de ser, sob pena de se tornar um mero instrumento para arroubos arbitrérios dos seus aplicadores, porque a razéo de ser do texto 6 exatamente impor um limite, Tal como nos ensina Fernando Leal [0] apelo ac texto remete a um conjunto de significados apreensiveis, independentemente de qualquer atividade cons- trutiva, que, se no determina completamente os espacos de 4S Babin GOIS.p. 1690.

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