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Considerandos

Tomo II
Autor: Ricardo Ramalho
Design da capa: Bookmundo
ISBN:
2023© Ricardo Ramalho

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Considerandos
Tomo II

Ricardo Ramalho
2023

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Prefácio

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O Sonho do Homem

O sonho é imperativo da vida e quem não o vive acordado


experimenta-o a dormir.
O sonho, tanto o acordado como o adormecido, pode
revelar-se pesadelo. Mas se o vivido traz consequências, boas ou
más, já o dormido acaba sempre em bem. Salvo quando é
interrompido pelo acordar inoportuno.
Esse é o maior trauma do sonhador, ver o seu sonho
arrebatado, no auge da emoção. Prossegue, teima no sonho
quebrado, mas o insucesso parece inevitável, tanto no real como no
imaginário. A persistência no sonho roubado desagua geralmente
no pesadelo, com as consequências já referidas.
Pode parecer patético apostar na fantasia dormida em vez de
a perseguir na realidade. Mas dormir não é uma realidade? Não faz
o sonho dormido parte da nossa vida, tal como o acordado? Não
serão, assim, ambos reais, embora experimentados em planos
diversos e complementares? Se somos carne e ossos, também somos
pensamento e ideias. Se tenho legitimidade para experienciar a vida
vivida na sua ampla diversidade, porque razão me negaria a
possibilidade de experimentar a sonhada?
Cada vez mais o corpo e a matéria vão surgindo como uma
limitação à existência humana. Não é o suor e o cansaço que

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enaltecem o homem, que dão razão ao viver, é a obra e a emoção.
Qualquer delas é fruto do pensamento, é imaterial, existe num
plano totalmente intangível.
Claro que a obra toma forma, é construída, materializada,
mas onde está a criação, no pensamento ou na execução? Será a obra
imaterial menos obra por isso, por não lhe ter sido dada uma
existência física? Seguramente que não, a essencialidade da obra
está na criação, na ideia, na inovação. A materialização é um mero
processo mecânico, cada vez mais afastado da condição humana e
entregue à máquina.
Por isso se fantasia hoje com uma imortalidade espiritual.
Não no reino dos céus, mas no digital. Quando o homem conseguir
digitalizar o seu ser, a sua essência vital cerebral, torna-se
virtualmente imortal. Assim poderá pensar, criar, sonhar,
eternamente.
Não será vida, dirão alguns? Seguramente que não, mas a
vida morre, é temporária, degenera, extingue-se, consome-se em
putrefação. A inteligência não. Essa perdura, é eterna e em vez de
sucumbir ao tempo, acumula. Quanto mais experiência, maior a
sabedoria, maior a ciência, o conhecimento. Quem quer uma vida
quando pode ter a inteligência eterna, o imparável acumular do
conhecimento, a ascensão sem fim da experiência, da sabedoria e do
prazer?
Será o fim da espécie humana? Como forma de vida sim,
seguramente. Mas ser humano é ter carne e ossos? Partilhamos essas
características como muitos outros seres que não são humanos. O
que nos distingue então das outras espécies? A inteligência será
porventura a mais importante distinção, logo será ela que nos define
como humanos, em oposição aos seres que a não possuem, ou a
detêm em muito mais escassa quantidade. Então não será a
inteligência a verdadeira essência da humanidade? Será uma

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inteligência digitalizada menos humana por estar desprovida de
corpo?
O homem, tal como o conhecemos, tem corpo e
pensamento, mas deixará de ser homem se perder o corpo? Não
continuará a pensar como um homem, a criar e a sonhar
humanidades? Como poderia fazer outra coisa? Não é ele um
homem? Nunca poderá ser outra coisa, por mais que lhe alterem os
componentes.
É bem certo que evolui, pelo que ser homem hoje não é
seguramente o mesmo que era ser homem há um milhão de anos
atrás. Tudo era diferente, a ponto de questionarmos se se trataria da
mesma espécie, ou se serão antes espécies diferentes, fases diversas
do processo evolutivo de um ser.
Então se um símio, que pouca inteligência tinha e vivia nas
árvores, desceu à terra e se transformou em homem, que mais não é
do que o estádio seguinte na sua evolução do símio, o qual por sua
vez já tinha evoluído de outro ser anterior, porque razão o homem
físico não poderá evoluir para o homem digital ou simples
inteligência criadora? Pode, deve e tudo indica que vai evoluir nesse
sentido.
A era dos humanos está a chegar ao fim. Segue-se a era
digital, em que os humanos alcançarão finalmente a tão almejada
eternidade e em que não haverá limites ao conhecimento, apenas
estádios. A inteligência eterna aspira ao conhecimento pleno, pois é
dona do tempo, não está sujeita às suas leis. O que é eterno não tem
idade. Basta acumular informação, aprender com ela e criar mais e
mais, num processo permanente de auto aprendizagem.
Cada homem será assim Deus e senhor, criador omnipotente
e omnisciente do seu próprio universo. Autosuficiência e
conhecimento absolutos.
Será quando o homem, finalmente, evoluirá para o estádio
final, o divino.

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29 de Março de 2023

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Além da Existência

Sento-me e ponho a manta em cima das pernas. Se dúvidas


houvesse da minha velhice, este hábito borralheiro seria a prova
definitiva de que estou velho. Nunca se ouviu falar de alguém novo
que ponha uma manta nas pernas, quando se senta. Nem sequer as
mulheres, quanto mais os homens. Umas almofadas no colo sim, é
um hábito de jovem casadoira, ansiosa de aconchego no ventre. Mas
mantas nas pernas ou nas costas é coisa de velhos, disso não restam
dúvidas.
E se digo sento-me também não estou a ser inteiramente
honesto. É mais um deitar que um sentar. O mundo evoluiu no
sentido da posição horizontal.
Antigamente até se dormia sentado. Quando vemos aquelas
velhas camas de museu e nos interrogamos como seria possível as
pessoas dormirem ali, de tão pequenas que parecem, esquecemos
um pormenor fundamental. Dormir deitado é moda nova, fruto de
colchões de molas e de espuma. Dantes sentavam-se na cama,
reclinavam-se sobre um monte de almofadas acumuladas na
cabeceira e assim descansavam. Uma cama mais não era que uma
cadeira de descanso, por isso não carecia de dimensões

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espetaculares. Não era só a estatura dos nossos antepassados que era
pequena, também as suas necessidades de espaço eram escassas,
fosse para dormir, comer ou receber os amigos. Uma enxerga, três
ou quatro cadeiras e uma pequena mesa chegavam para mobilar
uma casa.
Agora não. Dormimos deitados ao comprido e, de
preferência, de pernas e braços esticados, em camas King size.
Comemos sentados à volta de uma grande mesa, com um serviço
completo espalhado. O tempo da malga de sopa ao colo e a côdea de
pão na mão passou à história. Agora há dois ou três pratos, café e
digestivo, copo para a água, para o vinho, cerveja ou sumo,
guardanapos de papel à discrição, serviço de chá ou café, pratos e
talheres de sobremesa e fruta. Hoje todos são reis e rainhas à sua
própria mesa. Mas sobretudo, não se recebe numa cadeira, nem
sequer se lê ou fala sentado em cadeiras, isso é coisa de pobres. O
cidadão contemporâneo tem sofás, amplos, fofos e espalhados pelas
várias divisões da casa, que chegam ao ponto de reclinarem até à
posição deitada, quando não possuem uma chaise longue, que mais
não é que uma cama, acoplada ao sofá. É essa a posição atual de
descanso, em que se lê (os poucos que o fazem), se vê televisão, se
conversa, se fala ou usa o telefone, deitado. Dorme-se deitado,
convive-se deitado e já se vai trabalhando deitado. É nessa posição
mesmo que escrevo estas linhas, ou não fosse eu um homem do meu
tempo.
Só não se come socialmente deitado, mas na solidão da sua
cama ou sofá ninguém faz cerimónia, pelo que não tardará o tempo
em que, como comensais romanos, nos reclinaremos em divãs
durante a refeição ou a receção das novas clientelas. A humanidade
progride, mas na horizontal, em posição de descanso.
Mas como já referi, antes de me perder em considerações
sobre o sentar e o deitar, na sociedade contemporânea, estou velho
e mais do que no deitar na cadeira reclinável, para escrever estas

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linhas, o facto evidencia-se pela manta nas pernas, mesmo na
Primavera, sem esquecer os óculos na cara. Também os olhos se
recusam a ler e enxergar sem ajudas, fazendo das gafas auxiliar
indispensável de quem lê e escreve.
Por isso pergunto-me, curioso e ao mesmo tempo
desconfiado das manigâncias do tempo, se se vive muito mais, se
hoje os octogenários são os sexagenários de outrora, porque razão
precisamos de óculos e dentadura aos cinquenta? Porque motivo o
desejo e o estímulo sexual desaparecem, as carnes vacilam e os
cabelos ficam brancos e caem, quando estamos no pico da
maturidade, o mesmo é dizer, das nossas capacidades criativas e
produtivas?
O prolongamento da vida deveria ser acompanhado de
maior longevidade dos acessórios da mesma, sob pena de nos
transformar numa caricatura de nós próprios ou pior, num
simulacro. Aparência de jovem com desempenho de velho. Dentes
falsos, cabelos falsos, músculos falsos, ereções falsas, lentes de
contacto para evitar os óculos, roupa moderna e colorida e viva o
velhinho, na sua segunda juventude, dos cinquentas. Tudo bem para
quem viva de aparências, mas tudo mal para quem não gosta de
aparentar o que não é, como eu.
E depois temos o permanente controlo da saúde. Os
comprimidos para tudo o que mata, menos a velhice. Temos os
ginásios para quem aspira a enganar a gravidade e a flacidez da
carne velha, as comidas sem calorias, sem sal, sem gorduras, sem
graça. Deixei de fumar há 10 anos mas não parei de contrair novas
doenças desde essa altura. Há sempre alguma surpresa desagradável
nas análises. Se fumar mata, envelhecer mata muito mais, sem que
ninguém esteja autorizado a ceder ao inevitável, há que cultivar a
juventude eterna, sobretudo entre quem dela não tem mais que a
memória, comer saudável, praticar desporto, manter hábitos
salutares, para melhor fazer durar a nossa decrepitude até ao

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decesso final, que se aspira o mais tardio e caquético possível, com
uma remota possibilidade de vida eterna, caso a ciência permita,
finalmente, prolongar a nossa mumificada existência a injeções de
botox e de células estaminais.
Para quê, pergunto-me por vezes? De que vale viver muito
se não se puder comer, beber ou foder, como gente normal? Valerá
a pena durar muito, apenas para chatear os outros, para escrever
linhas irónicas e despeitadas, como estas? Para legar à
posterioridade, nas mais variadas formas e processos, o quão triste,
deprimente e humilhante é a velhice? Eu acho que não.
Por isso, ao mesmo tempo que a ciência cuida do corpo,
prolongando-lhe a vitalidade até à exaustão, assistimos ao declínio
da mente. As doenças psiquiátricas acumulam-se, entre depressões e
ansiedades, obsessões e esquizofrenias, bipolaridade e burn-out
generalizado, demências variáveis domadas a pastilhas, de eficácia
temporária e duvidosa.
Os suicídios, pecados raros e ímpios de outrora, proliferam
na atualidade, tornam-se corriqueiros na sociedade rica
contemporânea, onde as pessoas vivem mais do que querem, do que
gostam, do que precisam. As suas longas vidas são tão chatas e
aborrecidas, para si e para os outros, que a tentação permanente é
de dar-lhes termo voluntário e prematuro, antes que a senilidade o
impeça e nos transforme em vegetais, sentados à sombra da morte,
sem outra utilidade na vida que receber a pensão que dá sustento à
descendência.
Tristes tempos estes, em que a vida superou a própria
existência.

8 de Abril de 2023

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Mitologias de Género
Se os homens são de Marte e as mulheres de Vénus, porque
razão se encontram na Terra?
Claro que a alusão é metafórica e alude ao simbolismo
clássico dos deuses do panteão greco-romano.
Filho de Juno e de Júpiter, Marte é a versão romana do Ares
grego. Considerado o deus do impulso, responsável pelas atitudes
rápidas e determinadas, Marte é também um dos deuses da guerra e
da carnificina, mas principalmente da agricultura, colheita, dos
campos, da vegetação, sendo assim, sempre relacionado com a
fertilidade. Era ainda um deus do trabalho manual e confecionador
de armas. Por tudo isto é facilmente identificável como uma
idealização masculina.
Vénus é o equivalente no panteão romano à grega Afrodite
e era a deusa do amor e da beleza, sendo conhecida também pelo
seu conhecimento. Conta o mito que surgiu dentro de uma concha
de madrepérola, tendo sido gerada pelas espumas. É de uma
anatomia divinal, por isso considerada pelos antigos gregos e
romanos como a deusa do erotismo, da beleza e do amor.
Marte tem o amor da deusa Vénus, e com ela teve um filho
imortal, Cupido (Eros para os gregos) e uma filha mortal, Concórdia
(a Harmonia dos gregos). Mas tratou-se de uma relação adúltera,

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uma vez que a deusa era esposa de Vulcano (o Hefesto dos gregos),
que arranjou um estratagema para os descobrir e prender numa
rede, enquanto estavam juntos na cama.
De tudo isto se retira a mitologia completa das
características e comportamentos tradicionais dos sexos, que apesar
de muito contestada pelas novas gerações, ainda vai vigorando nos
dias de hoje.
Por um lado o homem, impulsivo e determinado, guerreiro
impiedoso, trabalhador manual e procriador. Por outro a mulher,
bela e amorosa, apaixonada mas sagaz, ideal do erotismo. Repare-se
como do mito se extraem ainda outras características facilmente
identificáveis aos sexos, a infidelidade de Vénus, perdida de amores
pelo laborioso mas concupiscente Marte, incapaz de resistir ao apelo
erótico feminino. E destes amores adúlteros nasce o imortal Cupido,
deus romano do desejo e do amor erótico, símbolo dos próprios
amores lascivos dos progenitores, e a mortal Concórdia,
representação da fragilidade da paz e da harmonia, quebradas pelos
amores ilícitos de Marte e Vénus.
E se todos os homens são como Marte e as mulheres como
Vénus, encontram-se na Mãe-Terra, Gaia, elemento primordial e
latente de uma potencialidade geradora imensa. Deusa da Terra,
Mãe geradora de todos os deuses e criadora do planeta. Nascida do
Caos, foi a ordenadora do Cosmos, acabando assim com a desordem
e a destruição em que aquele se encontrava, criando a harmonia.
Sozinha, gerou Urano (o Céu) e Pontos (o Mar); criou, do seu
próprio corpo, montanhas, vales e planícies; fez nascer a água e deu
origem aos seres vivos.
Temos então reunidos os elementos essenciais da mitologia
criadora em qualquer sistema religioso. Uma mãe (que passou a pai
na mitologia judaico-cristã-islâmica) geradora do mundo,
ordenadora do cosmos, criadora dos céus, dos mares e da terra e de
toda a forma de vida, facilmente assimilável a Deus omnipotente e

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ao paraíso primordial. Nele se instalam o homem, impulsivo,
laborioso, procriador, e a mulher, bela, lasciva e conspiradora, para
juntos criarem a eterna paixão e desejo sensual e as frágeis
concórdia e harmonia, feridas à nascença pela sua mortalidade.
A semelhança com os amores proibidos de Adão e Eva no
Jardim das Delícias, do Antigo Testamento, está longe de ser
simples coincidência. Tal como as semelhanças com muitos outros
mitos da criação, oriundos das mais diversas civilizações.
Na Babilónia, Nammu, um abismo sem forma definida,
enrolou-se nele mesmo para alcançar o processo de autocriação.
Nisso, originou An, deus do céu, Antu, deusa da terra. A união
consequente entre esses deuses foi dando vida a elementos vitais da
existência, incluindo a humanidade e até às emoções.
Na mitologia chinesa, a origem do universo teria acontecido
graças à intervenção da deusa Nüwa. Ela é reconhecida como a
deusa criadora, mãe, protetora, irmã e imperatriz. De modo
cuidadoso, ela começou a criação do universo. Possuindo cabeça e
busto humanos, com corpo de dragão, Nüwa parou num rio e
moldou com lama um ser com braços e pernas para caminhar pelo
paraíso. Feito isso, soprou com força a vida, criando os primeiros
humanos que passaram a adorá-la.
No Egito o deus Atum está na origem da criação humana,
sendo ele um dos olhos de Rá. O olho separou-se de Rá
conscientemente e não quis voltar, gerando conflito entre os deuses
Shu e Tefnut, os filhos de Atum, que lutaram para o trazer de volta.
Durante a longa luta, o olho Atum derramou lágrimas sagradas.
Delas nasceram os primeiros humanos tal como a vegetação brota,
quando a chuva cai.
Na mitologia persa, Ormuz seria o mestre e escultor do
mundo. O próprio sol era o seu olho, tornando Ormuz uma
divindade omnisciente. O céu e as estrelas faziam parte das suas
vestimentas, enquanto as águas eram as suas esposas. Ormuz acabou

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criando outras divindades menores, sendo partes dele e responsáveis
pelas variadas áreas da criação Mas, quer ele quer as suas
divindades, possuíam contrapartes malignas, para equilibrar a
existência.
Os crentes preferem ver no mito a razão natural das coisas.
Mas basta um pequeno sentido crítico para questionar se o processo
não será inverso e se não terão sido os homens a criar o mito à sua
própria imagem e semelhança, assim se explicando as semelhanças
dos mitos, nas mais variadas culturas e o modo como facilmente se
integram e justificam na organização social tradicional,
nomeadamente quanto às características e comportamentos
exigíveis ao indivíduo, de acordo com o respetivo sexo.

9 de Abril de 2023

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Apologia do Pé Descalço

Adoro a singeleza do pé descalço.


Cresci de pé nu, ou de chinela de enfiar o dedo, não por
necessidade, mas por opção, primeiro corretiva, depois seletiva.
Ao pé descalço na areia da praia, acrescentei o trepar das
rochas, o correr dos caminhos, das escadarias, do jogar à bola, do
pedalar na bicicleta.
Mesmo em casa, a pantufa é uma tortura. Cai, faz tropeçar,
ganha odores indesejáveis. Gostava de sentir a comichão do tapete,
na sola do pé descalço, o contraste do frio do mosaico com o
aconchego do carpélio e a agressividade firme da alcatifa industrial.
A única alternativa tolerável era a chinela havaiana, o flip-
flop ou simplesmente a chinela de enfiar o dedo, que na verdade se
enfia entre os dedos. Este calçado minimal tem também a magia da
simplicidade. No essencial, mantém o pé descalço. Mesmo a planta
do pé, ganha uma proteção singela de uma fina camada de borracha,
que lhe não nega o sentir da textura do solo, a cada pisar. Atenua as
agressões, mantendo contudo a sensibilidade desperta. E a facilidade
com que se deixa a chinela cair e se caminha descalço, a gosto,
sempre que a ocasião convida. A havaiana é quase como andar
descalço, é preservar a liberdade da sensibilidade pedonal com um

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simulacro de calçado. Ao fim de algum tempo, a chinela confunde-
se com a própria pele e o utilizador nem se apercebe se está calçado
ou descalço. No fundo permanece descalço, com um mero utensílio,
que lhe permite atenuar os riscos, sem prescindir dos prazeres, do
pé no chão.
Há uma inegável sensualidade, associada ao pé descalço. Um
mundo de sensações, das quais as pessoas se privam,
voluntariamente, pelo uso do calçado. O pé tem tanta sensibilidade
como a mão, por isso, calçá-lo é como cobrir as mãos com umas
luvas grossas. Abdicar do prazer do contacto, da sensibilidade táctil,
de sentir cada objeto, cada superfície, o frio, o quente, o suave, o
agreste, cada textura e rugosidade. É um universo de sensações, de
descobertas, de sensualidade a descobrir.
Mesmo esteticamente, não há como a beleza da nudez
pedonal. Nenhum sapato, por mais bonito que seja, se compara com
a sensualidade de um pé perfeito. A sociedade criou o salto alto para
evidenciar os pés femininos, aumentando a altura das mulheres e
dando aos seus pés uma suposta elegância. Passam as modas e há
uma que nunca desaparece e que consegue ser a mais sensual de
todas, o pé descalço. Uma mulher totalmente vestida, de pé
descalço, está nua perante o desejo dos homens. Vejam-se as
revistas de moda, de glamour, e aprecie-se o truque intemporal que
é fotografar uma mulher descalça. É o mais simples e usual artifício
para atribuir sensualidade a uma foto, sem comprometer a decência
do modelo. E mesmo assim, essa nudez pedonal é suficiente para
suscitar um pudor, uma timidez natural no modelo, que mais
acentua a sensualidade da foto. O pé descalço é o primeiro passo da
nudez completa e a mulher já se sente um pouco despida, aos
olhares concupiscentes dos homens, se lhes exibe os pés nus, com a
sensibilidade exposta aos seus desejos viris.
Por tudo isto faço o apelo desavergonhado ao pé descalço.
Libertemos as extremidades da opressão do calçado e permitamos

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aos nossos pés usufruir da sensibilidade mundana, da sensualidade
nua, do prazer táctil, que nos foi ofertado pela natureza e que vem
da nossa origem quadrúpede.
É um passo determinante, rumo à liberdade individual e
sensual, tanto do homem como da mulher.
Viva o pé descalço!

10 de Abril de 2023

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Espanta Espíritos
Peguei na estrada sem rumo.
Na verdade tinha uma ideia, embora indecisa, do destino.
Vários me passaram pela mente, mas na hora de conduzir, o piloto
automático rumou ao que primeiro pensei, mesmo sem ter a decisão
tomada. O corpo tem destas coisas, às vezes toma decisões sem pedir
autorização ao pensamento e quando damos por elas, já é tarde para
regressar atrás.
Foi isso que me sucedeu esta tarde. Na verdade queria
apenas sair, sozinho, conduzir e apanhar sol. A Primavera chegou e
nada melhor para a depressão que sair, andar, apanhar sol. Era só
isso que eu queria.
Pus-me então a magicar sobre o melhor destino para o
efeito. O plano era simples, pegar num livro, nuns headphones,
nuns óculos de sol, numa cadeira de praia, no telemóvel e esticar-
me a ler e a ouvir música, por tempo indeterminado, à beira do mar
e entregue ao sol ameno, da meia estação. Nada de complicado,
sobretudo num dia de trabalho. A perspetiva de encontrar a praia
repleta era improvável, por isso qualquer uma servia.
Pensei primeiro num local algo distante, que unia o prazer
da vista ao da condução, mas hesitei. Pensei que haveria muitos
outros locais, mais próximos, que serviriam o mesmo propósito e

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pus-me a listá-los de memória, deixando o pensamento confuso,
com mais uma decisão a tomar. A verdade é que o corpo não quis
saber da indecisão da minha mente e pôs-se a caminho. Quando dei
por mim a decisão estava tomada, inconscientemente, e o rumo
estabelecido, ao primeiro destino pensado.
Sucedeu contudo o imprevisto. A meio caminho, as nuvens
começaram a surgir e cheguei a um ponto em que o céu claramente
se dividia em dois, nublado a norte e limpo e solarengo a sul e oeste.
Era tempo de repensar trajetos. O rumo buscava o sol e não uma
localização certa, por isso estava ainda a tempo de inverter a
marcha.
Mas é algo que detesto, confesso. Para mim o caminho só
tem uma direção, em frente. A ideia de recuar é-me estranha,
avessa, mesmo quando estratégica. A minha natureza impele-me
sempre em frente. Uma vez a decisão tomada, enfrentam-se as
consequências, para o bem ou para o mal.
Mas desta vez não fugi em frente, embora também não
tenha recuado. Havia uma terceira opção. Virei á esquerda e rumei
a oeste, onde o sol brilhava e o céu se apresentava despejado de
nuvens.
Passei por caminhos desconhecidos, povoações inauditas,
até finalmente alcançar uma aldeia familiar. Daí rumei, sem mais
surpresas, até um local de poiso habitual, que nem sequer tinha
verdadeiramente considerado para o efeito, mas que se veio a
revelar a escolha mais acertada.
Ao chegar, constatei de imediato a temperatura amena e o
céu despejado, pelo que os principais objetivos estavam alcançados.
Apenas um senão se levantou, a afluência inusitada ao areal, num
dia de semana, sobretudo de adolescentes em grande grupo misto.
Lembrei-me que as férias escolares ainda decorreriam, por mais um
dia ou dois, e que os jovens estariam a atirar os últimos foguetes,
antes do final da festa. Nada que impedisse os meus planos. Não

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pensava instalar-me no areal, mas sim num local aprazível, porém
afastado, onde pudesse gozar a vista e o sol, sem ser incomodado. E
foi isso que busquei, de mochila às costas e cadeira de praia na mão.
Escolhi um terreiro de uma esplanada de praia, vazio e
encerrado, nesta pré-temporada de banhos, e por isso ideal para os
solitários iniciáticos, como eu. Montei a cadeira, tirei os phones, o
livro e escolhi a playlist no telefone, ideal para a leitura, jazz de
câmara nórdico, em leitura aleatória, a partir de um tema conhecido
e pré selecionado. Resultou em cheio.
A dada altura ainda temi que a chusma de adolescentes,
concentrados num canto da praia, desatasse aos pontapés a uma bola
e me obrigasse a fugir dali para fora. Mas foi falso alarme. Após
algumas iniciativas imberbes, a manada rumou para a beira mar,
dispersou em namoricos e conversas privadas e deixou-me usufruir
do sossego, no meu modesto canto cimentado.
O livro era uma surpreendente reportagem escrita, sobre
homens e lobos, nas serras do norte do país. Um tema inesperado,
não só porque nunca tinha verdadeiramente pensado no assunto,
até porque julgava que os lobos estavam extintos, ou quase, na
totalidade do território europeu, mas sobretudo porque me dei
conta que, não apenas não estão (ou não estavam, porque o livro já
tinha sido escrito há uma boa dezena de anos), como ainda existiam
alcateias ativas, que mantinham em sobressalto algumas pequenas
aldeias de pastores, do interior profundo.
Estranhos tempos estes, em que a lei protege uma espécie
em vias de extinção e deixa uma população de algumas dezenas de
pessoas à mercê dos ataques de grupos de lobos, vendo o seu gado
dizimado e sem resposta adequada das autoridades.
A lei criminaliza a morte de um lobo, prefere indemnizar o
pastor pelas cabeças de gado mortas pelos predadores. Mas como a
burocracia também existe na proteção ambiental, os pastores
queixam-se que são obrigados a preservar as carcaças dos animais

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durante semanas, para que a fiscalização se digne certificar a
elegibilidade da morte, e depois são meses ou anos para receber uma
miséria, quando recebem. Os funcionários dizem que não, que os
pagamentos estão todos em dia, mas os pastores mais exaltados
exibem recibos com muitos meses, ainda por pagar.
Preferem por isso pôr mãos à obra e, de vez em quando,
aparece um lobo morto a tiros de caçadeira. As lutas entre homens e
lobos permanecem, reminiscência de tempos antigos, mas desta
feita, de tão poucos que são os lobos e os pastores, a guerra passou
para as secretárias de funcionários, para reportagens de televisão
sensacionalista e para a justiça popular, exercida contra legem e pela
calada da noite, na margem de algum ribeiro, onde os animais vão
beber e morrer.
Os chips, implantados na população protegida, permite
monitorizar integralmente o caminho do animal, o local e até a
hora da morte. Só não consegue identificar o matador. Todos são
suspeitos, porque na boca da povo pastoril o lobo é um demónio e o
único lobo bom é o morto, pelo que todos são candidatos assumidos
a acabar-lhe com a vida, por mais que os doutores da cidade os
queiram convencer do contrário. Ninguém se acusa, nem a si nem
aos outros. Obra bem feita não merece castigo, apenas a admiração
do povo injustiçado. Guerras antigas, que continuam gravadas bem
fundo na memória e no espírito popular.
Enquanto leio a epopeia dos lobos assinalados vou ouvindo
música tranquila e alimentícia do espírito. Reconheço temas, já
muito ouvidos, por entre outros novos, sempre de espírito aguçado,
em busca de uma nova pérola para anexar à coleção.
Estas audições aleatórias, conduzidas a partir de um mote
fornecido inicialmente, revelam-se quase como uma permanente
descoberta. Por entre brilhos conhecidos e outros não tão
brilhantes, surge quase sempre alguma nova preciosidade que é

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preciso guardar na lista, para que se não perca e sirva, ela também,
de semente para novas e promissoras colheitas.
Se há algo que me agrada nesta era da música digital e em
rede é esta permanente descoberta, ofertada ao eterno curioso e
experimentador de sons, que sou e sempre fui.
Lembro-me quando apareceram, há umas décadas atrás,
umas discotecas, que tinham um sistema sofisticado, em que bastava
passar o código de barras de um disco pelo posto de escuta, para
ouvir de imediato um álbum à escolha. Passava horas a ouvir de
tudo um pouco, só pelo prazer da novidade. Agora tenho uma
mundo inteiro da música à mercê do meu telemóvel. Que tempo
fantástico para se ser melómano e fanático da novidade!
À minha frente, a rapaziada convive, com aquela azáfama
que só a adolescência permite. Chego a sentir um pouco de inveja.
Um grupo de surfistas abandona o areal de fatiota vestida e prancha
debaixo do braço. Ao longe as ondas rebentam em novelos de
espuma branca.
Há poucos banhistas, pois a água adivinha-se gelada, mas a
praia está surpreendentemente composta. São os grupos de jovens,
os eternos surfistas, que não têm época balnear pois as ondas
rebentam todo o ano, mas também algumas famílias com crianças
pequenas, a chapinhar no ribeiro, alguns estrangeiros a usufruir
deste sol do sul peninsular e também alguma senilidade, espalhada
pelo areal, ou não vivêssemos no tempo dos velhos. Nesta idade da
experiência, mais de metade da população está velha e reformada,
por isso não há local isento de pensionistas, seja na praia, no campo
ou na cidade, sobretudo nos dias úteis, em que os poucos ativos
estão ao serviço, nem que seja em teletrabalho.
Por entre estes pensamentos dispersos e observações
avulsas, concluí o livro, apanhei um bronze fora de época, mas
apenas na cara, porque o resto do corpo estava protegido. Aposto
que vou ficar com as marcas dos óculos gravadas no rosto.

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Era tempo de recolher a trouxa e regressar lentamente ao
carro, de cadeira e mochila às costas.
Não posso dizer que tenha espantado em absoluto a
depressão, mas pior também não fiquei. Entre o sol na cara, os lobos
e as harmonias nórdicas na memória, alguma coisa ganhei com a
saída. Um tónico para enfrentar o resto do dia e quem sabe, algumas
forças para um novo amanhecer, sempre o momento mais difícil de
enfrentar, para quem tem a tristeza plantada na alma.

11 de Abril de 2023

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Beatos e Gentios

Caminho reflexivo pela Lisboa ribeirinha de passado


industrial, com a memória recheada de fantasmas, alimentada pela
saudade dos velhos.
Vejo a doca da Matinha com dois navios atracados: o Porto e
o Funchal. Também eles meras memórias. Lembranças do tempo
em que eram a nata dos cruzeiros de luxo, disputados pelos
operadores turísticos e pelos novos-ricos sedentos de aventura e
prestígio. Agora estão parados, ancorados longe do mar, obsoletos,
encostados um ao outro suportando-se mutuamente na humilhação
do abandono e da insolvência.
Mais adiante no Poço do Bispo o movimento é intenso, mas
igualmente triste. As carcaças de pequenas embarcações acumulam-
se na doca, decadentes. Mas como a vida não para há outras com
sinais de vitalidade: cobertas, motorizadas, aguardando a subida da
maré para avançar rio adentro. Esta doca denota sintomas de
esquizofrenia. Num lado embarcações ao abandono, lembrando dias
melhores para a faina fluvial e seus artífices; no outro a azáfama
típica de um porto industrial, com navios de pavilhão panamiano
descarregando mercadorias ocultas com o auxílio de gruas de
grande porte. Do lado moribundo pulsam em esforço pequenas

29
oficinas de reparação naval e outras reconvertidas em centros de
inspeção automóvel, fruto dos tempos. Do lado vivaz há movimento
de estiva e de veículos pesados aguardando a hora do frete. Uma
doca bipolar como as marés.
A cidade fabril e cinzenta estende-se atrás das carcaças
navais, também ela aparentemente derrotada e moribunda, como os
velhos armazéns da Abel Pereira da Fonseca em primeiro plano. A
maré baixa assinala a melancolia local, com o lodo omnipresente
entre as embarcações tombadas. Aqui não há iates nem navios de
recreio. Há vestígios de uma arte agonizante e espectros de artistas
remotos, fugidos da míngua. Abandonados, na frente de Golias com
bandeiras de favor, estes pequenos barquinhos são Davis exaustos e
sem esperança, cansados de esperar por um milagre que tarda.
Do lado oposto descarrega-se o Harmony em homónimo
sentimento. Sacas enormes acumulam-se nas margens. Duas gruas
gigantes providenciam a descarga com os silos imensos como pano
de fundo. Uma barcaça longa, com a preciosa carga protegida por
lonas desmesuradas, aguarda a ocasião para, também ela, vazar as
entranhas na doca. No convés elevam-se casernas, dispostas
longitudinalmente pelo titã adormecido, de onde se adivinha a saída
iminente de combatentes e a previsível abertura de hostilidades.
Cordames mastodônticos e gastos seguram estes monstros dos mares
às, aparentemente frágeis, amarrações da doca. Parecem elefantes
presos por trelas. Contra todas as expectativas os paquidermes
aguardam pacientes pela liberdade, sem consciência da própria
força.
Um atrelado parado na margem revela um carregamento de
troncos, ordenadamente dispostos. Parece um jogo de crianças, um
lego cilíndrico num frágil equilíbrio, que exibe os anéis de cada
corte como uma história de vida, amputada abruptamente na flor da
idade. Ao seu lado o casco de um navio onde leio números
crescentes, talvez de profundidade, talvez anéis também de vida

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vivida a sulcar as ondas salgadas, como nos troncos das árvores.
Pneus velhos pendurados da amurada garantem segurança no
atraque mas mais parecem olhos que vigiam atentos os intrusos,
como eu.
Outro atrelado em frente, desta vez uma cisterna de prata
brilhante, reflete ambiguamente a panóplia de troncos, de cordas,
de gruas e de navios por onde espreita, insolente, um fotógrafo
rabiscador. A imagem refletida prende-me como uma atração de
feira. Um candeeiro disforme debruça-se sobre as águas alumiando a
fantasia do andarilho. A calçada ondeia e ziguezagueia como se
flutuasse no mar alto e eu embarco nela buscando porto seguro.
O lodo acumula-se pela rampa da doca acima, atraindo
pombos que aí catam algum sustento. Nela uma escadaria ampla e
regular, ornada de lama e sedimento, ganha contornos surreais
dignos de uma pintura de Dali. Os limos marcam, na maré vasa, a
terra de ninguém nesta disputa entre mar e terra, onde só os
pombos e as gaivotas se aventuram. Homens e embarcações tombam
dolentes, aguardando o aluvião da preia-mar.
Rumo ao Beato cruzo os colossos dos silos de granel,
gigantescos cilindros de betão, encostados uns aos outros, como
flautas de pan aguardando um desmesurado musicista. A seus pés,
como ratos de Hamelin, os vagões cerealíferos repousam inertes
aguardando ordem de carga ou de partida de algum flautista mágico.
São dezenas em profusas linhas paralelas formando longos comboios
de cor flavescente. Uma visão desconcertante a perder de vista, de
longas lagartas de metal fulvo, com milhares de pequenas pernas
suportando cartilagens regularmente interrompidas, até ao infinito.
A coroar esta estranha visão por detrás do espelho de Lewis Carrol
um cartaz do lado oposto da via pergunta-me em inglês: Feeling
like a unicorn? That’s because you are.
Talvez seja, talvez não. O certo é que vejo padrões
excêntricos atrás das árvores primaveris que ladeiam a rua. Paredes

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de cartão perfurado, como num computador arcaico, símbolos de
um estranho alfabeto alienígena, composto por uma dezena de
caracteres regulares ininteligíveis. Sou Lucy no céu sem diamantes
mas com visões bizarras. Sou Alice a correr, alucinada, atrás do
coelho. Vejo bicicletas fantásticas que sustentam vagões amarelos,
decorados a graffiti, contentores empilhados que emergem por
detrás de arames farpados por entre as carruagens estáticas,
silhuetas piramidais de conexões urbanas com uma multidão de
composições ferroviárias a seus pés, em singular adoração profana.
Não me entrego à visão e sigo pela estrada de ferro, que não
tem tijolos amarelos mas carris negros que se multiplicam e
entrelaçam num bailado serpentino emoldurado por uma galeria
interminável de catenárias. De um lado rodados múltiplos
encimados por cabines eretas entre chassis desguarnecidos de
pesados atendendo carrego. Do outro tortuosas teclas de piano em
betão, sem bemóis nem sustenidos, que se contorcem a perder de
vista. Sigo ao centro pela alameda ferroviária deserta, de linhas
cruzadas e sinuosas.
Por entre grades turvas surgem navios em Santa Apolónia
com formas insólitas e tremendas. Um deles exibe orelhas felídias e
esferas ciclópicas que convergem no castelo da proa e me levam de
regresso ao mundo de Alice e do Gato de Cheshire.
São navios de outro calibre que nada têm a ver com os
cadáveres abandonados na Matinha, nem com os obreiros colossos
do Poço do Bispo e do Beato. Estes são aristocratas modernos dos
oceanos onde viajam burgueses reformados em busca da juventude
perdida e de souvenirs de gift shop tax free . Uns atrás dos outros
debitam massas endinheiradas para os armazéns onde celebridades
esquecidas montam restaurantes in a preços out (of this world),
dignos de Hollywood Boulevard e sob a bênção de Santa Engrácia,
Santa Apolónia e tantos outros, beatos como gentios.
Quantos mundos cabem na margem deste rio?

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Quantas estórias de vidas e mortes levadas nas águas que
correm implacáveis para o tempo passado?
Esta é apenas mais uma. E nem sequer das mais
interessantes.

Julho de 2018

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Chover no Molhado

A chuva é uma metáfora da vida.


Impregna o corpo com a fluidez das desventuras passadas.
Dizem que inculca o caráter. Mais as adversidades vivenciadas que a
chuva precipitada, penso eu. E no entanto, se o manante torrencial
encharca com certeza, será que o mesmo pode dizer-se do vigor que
brota da desdita? Há quem tenha o dom de refinar com o
infortúnio. Já outros apenas definham. E por vezes secam.
O mesmo se passa também com a chuva. Se para alguns dá
vigor e fortifica, para outros é mera geradora de gripe,
potencialmente de pneumonia. Resfriado certo versus viço
suspeitoso.
No entanto, olhando a massa ligeira de gente caminhando
na chuva não vislumbro uma tal dualidade.
Pelo contrário, os caminhantes apressam-se sem exceção,
cabisbaixos, evitando obstáculos e distrações. À chuva todos
parecem caminhar de modo inseguro, tímido e fugaz. Todos nos
viram costas, sem desaforo nem enxovalho. A polidez e a
suscetibilidade decrescem na razão inversa do receio e do
incómodo. Não se saúda, não se trocam sorrisos nem palavras
amáveis. Corre-se afobado como quando a vida depende disso e a

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única salvação reside no primeiro tugúrio do trajeto. Aí sim,
resguardados do manancial malfazejo, é possível trocar palavras de
circunstância com algum outro parceiro no azar e na cobertura.
Geralmente alusivas à partilhada fatalidade climática.
Não podem, ainda assim, negar-se simetrias com a
existência. Também ao sol experimentado todos se aviam como
podem, lançados no zelo da sobrevivência, quantas vezes da
abundância, voltando costas aos demais, senão no senso literal pelo
menos no tropológico. Há mais cortesias, fanfarronices e falatório, é
certo. Menos vergonhas, prestezas e acanhos. Mas o ser humano é
fatalmente previsível. O egotismo transborda tanto à chuva como ao
estio vital.
E não serão os guarda-chuvas, também eles, uma metáfora
da vida?
Protegem sem preservar. Adiam o inelutável. Prolongam a
agonia sem evitar a fatalidade. São um bálsamo que prolonga o
sofrimento, uma falsa panaceia (não serão todas?) que urge
desmascarar. E contem comigo para o encargo!
Quem anda à chuva molha-se, ponto. Por mais sombrinhas
que carregue. É uma evidência essencial, uma verdade insofismável.
Por isso eu largo-as em casa e o diabo que as carregue. Se tenho que
molhar-me melhor será fazê-lo com determinação que com
angústia. Abraço os aguaceiros da vida até que algum caudal mais
intenso me arraste até à foz existencial. Afogo-me como os demais,
é seguro, mas com a cabeça erguida se bem que ungida. Morro de
pé, como as árvores do dramaturgo Casona, apenas
embaraçosamente ensopado.
E em maré metafórica, o que dizer da rua e da encruzilhada?
A travessia é alegoria por excelência, representação
simbólica e de poder inegável da dura realidade humana. Ponte que
liga ideias e condições opostas mas que pode também revelar cisão
intransponível. Bifurcação no fluxo primordial que é espelho da

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permanente triagem do livre arbítrio. Por vezes anuncia-se ainda
como obstáculo atroz, superável apenas pela potestade heroica de
mortal semidivinizado.
Na rua a vida flui como água no leito de um rio. Ora lenta e
contemplativa, ora fugaz e turbada. Em ocasiões abundante e
caudalosa, noutras filamento tímido e miserável que anuncia
esgotamento. Mas sempre um permanente manar que supera
obstáculos, galga margens e se reabastece ininterruptamente, num
ciclo interminável, maior que a própria vida. Ao contemplar a
fluência das artérias citadinas tem-se a vertigem da eternidade. O
mesmo sucede com a juventude que vive a perenidade como se
fosse imorredoura enquanto contempla a mortalidade alheia.
Cândida ilusão. Também o fluxo urbano é ilusoriamente infindo,
corrente inesgotável de vida e de gente que corre, grita, chora e ri
ao ritmo frenético do quotidiano.
Porém esta rua metafórica da imagem inspira o ridículo do
contrassenso, porquanto todos parecem estagnados ante a visão
funesta do “dever de todos”. A avenida assume aqui um fatalismo
letal que parece intimidar os transeuntes, a revelação inesperada
mas autoritária da obrigação coletiva. Uma via que em vez de cortar
predispõe, ao invés de rasgar quer dirigir. No lugar da esperança põe
preceito. E o mundo suspende-se diante de tais contradições.
O absurdo alevanta-se e reina indisputado visto que a chuva
deveria estimular a azáfama e apressar o frenesim. O estacar da
multidão sob a bátega é um comportamento inumano, que
transmuta o ser em fria estátua petrificada. Uma inesperada
metamorfose que abala a confiança e as certezas do espetador. Há
mesmo algo de espúrio neste susto coletivo das almas perante a
divisa moralista. Um culto idólatra da autoridade e do poder.
Ou o medo paralisante que deles emana.
Estivessem as gentes em progresso e a tela celebraria a
urgência rotineira, a labuta do sustento que impele o comum mortal

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a percorrer os caminhos do trabalho árduo e da perseverança, sob a
inclemência da intempérie como na impetuosidade soalheira. Mas
assim é um paradoxo. Um desafio ininteligível à lógica e ao senso
comum. Um delito contra a coerência e a harmonia. Um atentado
mesmo à própria civilização moral.
No entanto algumas figuras secundárias movem-se, ao
fundo, mas nenhuma na direção do trem exemplar. Correm
apressadas noutras direções, como que escapando à sentença
austera. Quem não deserta imobiliza-se assombrado diante da
advertência moralizadora. Presas tolhidas pela responsabilidade
comum, mesmo sob a borrasca inóspita.
Uma figura solitária transpõe porém a passagem na nossa
direção.
Não parece apressada, antes um oásis de tranquilidade
perdido por entre o pasmo geral. A sua solitude acentua-se diante
da constatação de que todos os outros nos voltam costas. Estamos
sitiados num mundo indiferente todavia há alguém que se precipita
rumo a nós. Um rosto na multidão anónima e posteriormente
disposta.
Curiosamente o homem, pois a personalidade é
distintamente masculina, percorre a rua em sentido inverso ao dos
demais. Enquanto o grupo se detém ao iniciar a travessia rumo ao
“dever geral” encarrilhado, ele desloca-se pausadamente na rota
oposta, como se transportasse abrigado o encargo consigo e
serenamente o quisesse ofertar à multidão.
Ou dele se afastasse simplesmente.
A placidez da figura transmite conforto, proteção, uma
liderança benevolente que incute a mansidão nos destinatários da
sua travessia prédica. Quase parece santimónia.
Ou será antes subversão?

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13 e 14 de Abril de 2018

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Marginalidades

Inicio uma viagem de mistério, de improvisação ao sabor do


tempo, dos elementos, do pensamento que vagueia, como os passos,
sem sentido ou direção definidos.
O mar é a referência omnipresente. Metáfora perfeita do
infindo que me rodeia e do imprevisto que sempre espreita. A
beleza que atrai para engolir de seguida. As rochas dão-me a ilusão
da firmeza e segurança. Depois vem o incerto, o instável, o
profundamente inseguro.
No horizonte o sol espraia a luz benfazeja sobre o leito
marítimo. Um espelho que não reflete a minha imagem, antes a
imagina e desfaz ao sabor das ondas. Uma pequena embarcação
sulca o sol, refletido nas águas, e parte para outras paragens,
deixando anseios nos olhares que o contemplam, em melancolia.
No areal as marcas da terra e do mar sobrepõem-se. Milhões
de partículas comprimem-se neste mar mineral, micro-planetas que
gravitam submetidos à tirania física das ondas e do sol.
Os trilhos dos veículos de limpeza formam círculos e
semicírculos bizarros, órbitas imaginárias que decoram o universal

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areal. Entre elas multiplicam-se pegadas de cosmonautas em fato-
de-banho, percorrendo rotas nesta praia espacial, rumo ao infinito e
mais aquém.
O mar põe divinal ordem nesta azáfama cósmica, limpando
as marcas do tempo, como se estas nunca tivessem existido nem
tampouco os seres que afanosamente as criaram.
Nas minhas costas emerge um cato, verde, inchado,
pesponteado e ameaçador, destacado ante o xadrez lapidar da
muralha. Ao contemplá-lo vislumbro, em sobressalto, uma figura
antropomórfica e triste, prostrada perante a imensidão crepuscular e
voraz do oceano.
Como pipocas, engolidas e regurgitadas pelo monstro
oceânico, saltam surfistas aos magotes. das ondas que se enrolam e
desfazem em espuma antes de morrerem na praia. Mais ao largo
outros aguardam a vaga seguinte, torsos negros de braços aracnídeos
em movimento errático, ao sabor das correntes.
Uma bicicleta reluz encostada ao gradeamento e projeta
uma longa sombra vespertina sobre o passadiço. Perco os meus
passos por entre as sombras da grade e da bicicleta como num filme
a preto e branco ou num jogo de sombras chinesas oferecido a quem
passa, perdido entre as ondas, o areal e a narrativa escrita a
penumbra.
Ainda outra onda traz consigo um surfista empoleirado na
crista, que cavalga sinuosamente o vagalhão como se de um potro
selvagem num rodeo americano se tratasse. O cowboy marinho,
todo vestido de negro, conduz uma prancha malhada com a
destreza de um mustang, por entre a ondulação deste oeste ibérico.
De quando em vez a prancha empina e ele ora controla os ímpetos

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selvagens da singular cavalgadura ora se estatela com estrondo por
entre a torrente, incapaz de a domar.
A presença tutelar do forte recorda-me que não estamos
afinal na conquista do Arizona mas em terra militarizada. Mas
olhando as hordas de índios à tona, nas suas pranchas garridas como
pinturas de guerra, duvido se não estarei mesmo nas guerras apache
envolto nalgum misterioso cerco ao forte de São Julião da Barra.
No areal os mirones acumulam-se, armados de tripés e
câmaras digitais, registando proezas dos cavaleiros marinhos e
ocorrências do cerco ao forte. Já outros passeiam
desinteressadamente, como se a guerra não existisse, tirando selfies
com a batalha que se desenrola nas vagas, para eles invisível, por
cenário.
As gruas das obras vizinhas, salpicadas regularmente por
candeeiros públicos que entre elas se elevam no horizonte terrestre,
perfilam-se como gigantes, filhos de Gaia, enfrentando as forças
olímpicas que desembarcam na praia.
Ao largo vislumbro o Bugio, mesmo em frente ao forte,
enxameado de moscas flutuantes que vagueiam ao sabor das
correntes. A Barra eleva-se altaneira do mar e a pequena fortaleza
insular empertiga-se, assumindo o seu papel de atalaia na defesa
territorial do reino.
Encaro o sol poente e o mar, numa ilusão alquímica, torna-
se prata brilhante e as rochas negras sombras de monstros marinhos
que povoam as profundezas misteriosas, ante o espanto dos que lhes
vislumbram os dorsos ameaçadores. Corajoso, um barquito
insignificante grava no leito argentino um sulco profundo e longo
aproveitando a aparente passividade dos titãs.

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Aproximo-me e os monstros desvanecem. As sombras
proliferam e as formas surgem desafiantes, esculpidas na rocha pelo
cinzel das ondas salgadas. Por entre elas destacam-se lagoas belas e
translúcidas, onde se imaginam universos compostos por uma
miríade de pequenas criaturas aquáticas. Lembro o nascimento da
vida nos mares e a evolução de Darwin. Quantas vidas povoam estes
pequenos charcos primordiais? Quantos universos contidos nestas
poças, onde se agitam as águas espumosas do mar?
Se provas buscasse de que a vida pulula por entre as rocas,
bastava olhar os pescadores de cana estirada, bem segura entre mãos
fortes de quem espera pacientemente por uma batalha de vida e de
morte. As ondas batem estrondosamente contra as rochas,
salpicando-os de espuma e de sal, mas eles não vacilam. São
guerreiros que aguentam firmes a peleja, enquanto o mar os não
engole na sua fúria demoníaca.
As silhuetas urbanas do Estoril e de Cascais perfilam-se ao
longe, espreitando por entre enseadas onde estranhas sombras
antropoides caminham sobre as águas ondulantes.
Em terra perco-me nos múltiplos telhados do Hospital de
Santanna, onde ramos despidos, de árvores invernais, protegem a
fachada dos olhares indiscretos, numa rede milimétrica tecida a
galhos e gravetos. São camadas sucessivamente sobrepostas que
culminam em graciosas pirâmides sustentadas por dedos marmóreos
de esfinge. No topo surgem ainda surpreendentes minaretes de lata,
pintados a verde. Lembram pequenos quiosques lisboetas onde
algum cauteleiro a banhos poderia vender a sorte grande às gaivotas
que passam.
Na Parede a praia foi engolida pela maré. Alguns fiéis
banhistas procuram por entre as vagas as areias sumidas, sem

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sucesso. Uma amurada cinza, encimada por uma fiada de cabanas de
madeira molhada com toldos vermelhos, marca a nova fronteira
entre a terra e o mar, muralha inexpugnável desta Tróia atlante,
postada diante das investidas marinhas de ondas aqueias.
À minha frente um par de pombos pousa no muro e troca
mimos pantagruélicos numa inesperada e idílica cena, digna do mais
enjoativo romantismo. Sigo em frente, ansiando por mais agrestes
visões e não me desiludo. A próxima enseada exibe uma batalha sem
quartel entre as ondas e a rocha. Os despojos da luta acumulam-se
ao fundo das arribas, escavadas impiedosamente pelo turbilhão das
águas. As linhas traçadas no breu pétreo são marcas de sucessivas
vitórias oceânicas exibidas ao viandante. Ainda assim persisto na
ilusória segurança sólida do rochedo. Outros edificam nele
orgulhosas construções que desafiam os elementos e atraem turistas
a bebericar cervejas no topo de penhascos periclitantes, assolados
pelo cerco marinho. É sabido que nada estimula mais o turismo que
a vertigem do perigo e do álcool, à beira-mar plantada.
Uma casa fantástica cresce no meu campo de visão.
Amontoado de pedras marinhas laboriosamente incrustadas, como
bivalves, ostenta uma plangente aristocracia, deposta e exposta ao
desinteresse do trânsito que passa urgente. Fechada, decadente mas
inesperadamente incómoda.
Um pouco adiante, no areal de São Pedro do Estoril, as
massas invadiram a praia, no seu passeio domingueiro. Crianças
correm desenfreadas à frente de progenitores que empurram,
pesadamente, carrinhos basculantes, com mais infantes de colo.
Idosos sentam-se no passadiço e contam silenciosamente as ondas
que morrem na praia. Jovens, de ambos os sexos, convivem na areia,
livres de controlo parental e submetidos ao descontrolo hormonal,

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próprio da mocidade. As esplanadas estão cheias de gente. Gente
sentada e de pé, gente à sombra e ao sol, gente que fala e que ouve,
que vê e que olha, que trabalha e que folga. Gente que vive e gente
que morre. E gente que passa apenas.
Diante deste reboliço de gentes olho para a paz do areal
molhado, que brilha ao sol tardio, salpicado de rochas eternas.
E sinto inveja.

Julho de 2018

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Notas Soltas

Esta é uma experiência nova para mim. Apenas música e


uma folha em branco. Tudo o resto é associação livre, como num
divã de psicanalista.
O difícil nestes casos é sempre começar. Por quê, por onde,
por quem? Não quero começar por mim. Decididamente não quero
começar por mim. Estou cansado de mim, dos meus conflitos, das
minhas psicoses. Tudo menos eu.
A música. É bem melhor. Estou a ouvir e nem sequer penso
quem toca, que composição é esta. É uma sentimento em forma
sonora. Uma batida leve e cadente que perdura, que segue até ao
infinito. Um saxofone que volteia suavemente uma melodia confusa
de traços levemente orientais e um piano que na sua simples
complexidade fornece ritmo e harmonia.
A música é um enigma, um mistério, uma bênção. Toda a
arte será assim mas a música é muito particular, muito especial
porque é universal, ultrapassa culturas, raças, religiões, idades,
séculos, espécies. Não parece haver limites para a música. Acho que
mesmo os completamente surdos, que nunca ouviram um som na
vida, devem conviver com alguma forma musical interior, nem que
seja o silêncio, que também é música, talvez a sua forma mais pura.

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A música é mística. É uma forma de expressão e de
comunhão religiosa. Através da música comunicamos com o que de
mais íntimo existe no seu criador, mas também, de alguma forma,
com o que de mais íntimo existe no mundo. Alguns chamam-lhe
Deus, outros coisas mais estranhas, mas se alguma prova encontrei
de que estamos todos ligados espiritualmente uns com os outros e
com alguma força suprema que sustenta a criação, essa prova é a
música.
A música é provavelmente o mais perto que estive de um
sentimento religioso. Quando oiço uma melodia simples, uma
harmonia bela, uma cadência contagiante, não resisto ao transe e
comungo com a musa ou o deus supremo criador das artes. Seja ele
o autor ou a força interior que o animou na produção da beleza.
Outras artes podem transmitir sentimentos semelhantes. Há
quem alcance transe semelhante através da dança, mas não há
dança sem música, e o transe do bailarino é efetivamente incutido
pela música, a dança é apenas uma demonstração do efeito místico
que a música nele incutiu.
Há também quem comungue com a beleza a esculpir, a
pintar, a desenhar. Ou a escrever. No meu caso, esta prosa
despretensiosa acaba por ser um mero reflexo da beleza musical que
percorre o meu espírito. Nada mais.
Bem que eu gostaria que a escrita brotasse livremente do
meu espírito, jorrasse como um manancial para as teclas do
computador, como uma fonte de água cristalina e pura. É um pouco
isso que estou a tentar que suceda agora, neste registo imprevisto de
sentimentos ao som do piano. Mas o resultado é indireto. O fluxo,
não é propriamente manante e parece ser reflexo e não primário.
Mas também é verdade que não basta pôr a máquina em
movimento, é preciso alimentá-la e que existam uma via, um motor
e um maquinista para a guiar.

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Digamos que estou, qual aprendiz de feiticeiro, a guiar esta
máquina estranha que é a imaginação e a humanidade,
impulsionado e motricionado pela música etérea, na expectativa da
viagem.
Será defeito meu seguramente, mas mesmo o mais belo dos
poemas ou o mais intenso dos romances não me conseguem extrair
a entrega e o êxtase de uma composição musical inspirada. Se não
for defeito é uma predisposição natural.
O que me leva a um conceito bem mais filosófico. Será que
estamos naturalmente condicionados naquilo que somos, que
conhecemos, que produzimos? A ideia parece simultaneamente uma
evidência e uma contradição. Seguramente que sim, pois ninguém
pode ser quem não é. Eu bem poderia querer ser um compositor
brilhante como Bach ou Mozart, mas não há nenhuma escola, nem
nenhum mestre no mundo, por mais brilhante e aplicado que fosse
o estudo, que me poderiam transformar num génio musical. E no
entanto nada me impede de tentar. E se não posso ser Bach ou
Mozart nada me impede de ser quem sou, com a capacidade
adicional de compor belíssimas composições musicais. Ser um génio
não está ao alcance de todos, seguramente, mas ninguém está
impedido de ser um bom músico, um músico excelente até. E de
compor algumas composições geniais, porque não. A genialidade é
subjetiva e não há nenhum excelente músico que ao longo da sua
carreira não tenha escrito, nalgum momento, nalgum lugar,
nalguma ocasião particularmente inspirada da sua vida, uma
composição que alguns e ele próprio reputem de genial.
E se isto é verdade relativamente aos músicos não será
também no que respeita ao comum dos cidadãos? Se eu não
aprofundar os meus conhecimentos na música e me dedicar a outros
conhecimentos mais prosaicos, como por exemplo a programação
informática ou as televendas, estarei porventura excluído dos eleitos
com direito à genialidade? Honestamente acho que não. Qualquer

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um é capaz de um rasgo de génio, ou vários, ao longo da sua vida
que tanto pode manifestar-se na arte, como na técnica, no contacto
com outros seres humanos, com a natureza, consigo mesmo. O
conhecimento é tão complexo e vasto que não há motivo nenhum
para que a individualidade e a originalidade se manifestem apenas e
só num domínio específico. Todos os domínios estão abertos à
genialidade, embora nem todos os momentos de génio sejam
necessariamente apreciados e usufruídos por todos. Podem alguns
deles revelar-se apenas e só no espírito do seu autor, como uma
revelação, uma epifania, um momento único e irrepetível, uma
experiência mística incapaz de ser partilhada mas nem por isso
menos real, menos sentida, menos marcante para quem a viveu.
Uma epifania pela sua raridade e pela importância fulcral que pode
ter no individuo é um rasgo de génio tão único e irrepetível como
uma escultura de Miguel Ângelo ou um poema inspirado de Lord
Byron.
Não banalizo o génio, antes lhe atribuo maior importância,
retirando-o do mundo belo, mas estreito, das artes e das ciências e
conduzindo-o a um destino universal, ao alcance, ainda que
fugazmente, de tudo e de todos. A genialidade é a capacidade inata
de sermos únicos, nalgum momento da nossa vida.
E talvez a genialidade seja a verdadeira divindade. Se Deus é
Criador, então o homem é deus porque cria. E não cria apenas arte,
embora quando o faça consiga frequentemente ser admirado e
venerado como um deus. Cria um pouco de tudo. Cada ofício, por
mais abstrato que seja, importa um ato de criação. Claro que quando
um escriturário se limita a copiar ou preencher um impresso
burocrático, não criou grande coisa. Mas com o seu labor pôs em
funcionamento uma máquina, a qual embora pesada e nem sempre
eficaz, consegue segura e coletivamente, ao longo de décadas, criar
alguma coisa. Organizar a vida dos indivíduos de uma cidade ou de
um país, conceder-lhe cuidados de saúde, acesso à justiça, ao ensino,

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defendê-los de agressões naturais ou humanas. Enfim se um
sapateiro cria um par de sapatos, um padeiro um pão e um mecânico
uma máquina, também um burocrata pode juntar o seu labor
individual à construção de uma obra social coletiva, ajudando a
moldar a organização de uma sociedade melhor, mais justa, mais
confortável e solidária, o que constitui uma criação tanto ou mais
importante que as individuais.

18 de Julho de 2018

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A Plenitude do Silêncio

Ontem pensei no poder da música sobre a mente humana.


Hoje achei que seria interessante discorrer sobre o silêncio.
O silêncio é a paz, mas também a ausência e a solidão. Atrai
com a mesma força com que oprime. Uns evitam-no a todo o custo
enquanto outros procuram-no, anseiam por ele.
Há por isso um evidente paradoxo associado ao silêncio que
justifica a reflexão.
E como de um paradoxo se trata proponho-me fazê-lo ao
som de música para assinalar e acentuar a contradição.
Desde logo não posso deixar de assinalar um paralelismo
entre o silêncio e a morte. Os dois conceitos estão fortemente
ligados porquanto associamos a morte ao silêncio eterno e por isso a
fuga ao silêncio pode bem simbolizar o medo da morte, o apego à
vida, a necessidade de falar, socializar para desse modo afastar os
fantasmas da perpétua ausência.
Também nesta ideia do silêncio como metáfora da morte se
pode compreender a atração que este possa exercer sobre alguns
indivíduos. O chamamento do abismo, a entrega da alma ao criador,
o abraço terno da inevitabilidade ou simplesmente o cansaço
existencial, a certeza de que a vida nada mais tem a oferecer do que

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sofrimento e angústia e que mais vale enfrentar frontalmente o fim
irremediável do que prolongar a agonia. O silêncio como a paz de
uma morte libertadora.
Mas para mim o silêncio não representa a morte, antes
convida à reflexão, estimula o pensamento, faz-me esquecer de que
tenho uma existência material e apenas tomo consciência de que
tenho uma memória e capacidade de raciocinar. Chamem-lhe
espírito ou alma se quiserem. Deixo flutuar o pensamento ao sabor
da ausência e deixo-me envolver pela paz contagiante do sossego.
Evoco tempos passados, sonho com incertezas futuras, imagino
fantasias sem tempo. Ausento-me por tempo indeterminado da
realidade presente e isso agrada-me especialmente.
Por isso não posso deixar de pensar que o silêncio não é
apenas ausência. Que a ausência verdadeiramente não existe porque
para que nos apercebamos dela tem de existir algo, uma consciência,
um olhar, um pensamento. É como a velha história da árvore que
cai na floresta deserta de gente. Será que faz algum ruído se não
estiver lá alguém para o ouvir? E mesmo que faça, esse ruído existe
verdadeiramente, se ninguém o ouviu?
Para sentir o silêncio é preciso vida consciente logo não
pode ser pura ausência, caso contrário ninguém o sentiria.
Por isso no oposto da ausência o silêncio pode bem ser
plenitude. No silêncio tudo pode ser evocado, sentido, sonhado. No
silêncio revivo acontecimentos passados e conjeturo sobre
resultados diversos em ações ou omissões alternativas. No silêncio
sonho vidas que nunca vivi nem viverei, escrevo estórias
imaginárias na minha mente, reescrevo-as, apago o que não gostei,
acrescento pontos e virgulas a gosto. Vivo paixões assoladoras em
segurança, morro e ressuscito a cada momento.
Haverá algo mais pleno que o silêncio?

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20 de Julho de 2018

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Num Terreiro Andaluz

A azáfama era a de um dia de feira. Pessoas e animais


corriam de um lado para o outro com a cidade ao fundo, como
cenário. Mais longe viam-me prédios sem idade à beira-rio, janelas
escuras contra o sol já escaldante da manhã. Vidas pulsavam por
detrás das cortinas de linho branco, escondidas do sol e entregues ao
bulício das banalidades quotidianas.
À esquerda a ponte romana, desgastada pelos séculos da sua
imponência granítica, construída para o desfile de centúrias
imperiais, nos passos perdidos do imemorial e belicoso tempo
mediterrânico, mantida pelos seus filhos impuros, cruzamento
latino com celtas, iberos, bárbaros germânicos, judeus marranos e
sarracenos berberes, fugidos do Rife e das montanhas áridas do
Atlas, onde as cabras trepam as árvores, era agora usada por
camponeses famélicos, em busca do pão nosso de cada dia,
carregados de hortaliças, conduzindo gado com a perícia dos vilões,
procurando a vida que foge nos campos na avidez da cidade, entre
tabernas que tresandam a vinho soez e as mulheres que o
acompanham.
As carroças acumulam-se no terreiro debaixo da ponte,
puxadas por muares suados, tal como os camponeses que os

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conduzem. O ar exala a pestilência única dos odores combinados de
sudação humana e de cavalgadura. Vêm cobertas por uma lona
branca e suja, que protege os ocupantes e a sua mercadoria das
inclemências da sazão, a canícula do verão andaluz. Na parte
posterior, lençóis igualmente brancos e sujos, pendurados como
cortinas, completam parcamente a proteção e escondem tesouros e
virtudes familiares dos olhares indiscretos e ciosos de transeuntes
lânguidos e da concupiscência de quem busca oportunidade para
aumentar a penúria dos miseráveis.
Algumas carroças perderam já cobertura e animália e
converteram-se, por ancestrais artes mágicas de almocreve, em
bancas onde se expõem chouriços ao lado de réstias de cebolas,
arreios vários, couros curtidos e outras maravilhas da vida
campestre, aguardando comprador.
Estes começam a acumular-se, imunes ao pó e às moscas que
invadem o recinto, vestidos com os seus fatos de domingo e chapéus
sebosos. Só os velhos, pois os jovens exibem orgulhosos cabeleiras
negras ao sol impiedoso de verão. Alguns pedestres trazem mesmo
um guarda chuva, não porque temam alguma bátega imprevista,
mas porque nestas paragens as árvores não abundam e uma sombra
em dia de feira é um bem tanto ou mais precioso que as mercadorias
em exibição.
Uma cadeira com fundo de verga revela um par de calças
coçadas e um cinto meio caído por terra. Numa lona ao lado,
estendida no pó, assenta um monte de arreios que aguarda destino.
Um homem vestido com um fato-macaco deslinda, ao espectador
atento, os mistérios da conformação mercantil, aprestando-se para
arrumá-los, ao abrigo dos mais sábios artifícios para a melhor e
profícua vazão.
Veem-se muitos homens, alguns rapazes mas nenhuma
mulher. Estas aparecerão mais tarde, quando a noite adormecer um
pouco o calor e os homens, saciados da azáfama do dia, se

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predispuserem finalmente a acompanhá-las num passeio
noctâmbulo, temperado com farturas, polvo assado e copos de vinho
doce.
Por enquanto este é um terreiro de homens e de animais, de
pó e de moscas, de sol e de suor. Nada nele há de feminal. Por isso
as mulheres resguardam-se deste inferno varonil atrás de cortinas
encardidas, em prédios distantes ou nas carroças por descobrir.
Uma bicicleta e uma árvore, a primeira apoiada
precipitadamente na segunda, mas ambas igualmente solitárias,
destoam no quadro. Alguma criança curiosa não resistiu ao
chamamento precoce do bulício ferial. Ou talvez algum feirante
desditoso tenha carecido da destreza e virtudes mesteirais de um
prestimoso artífice local, chamado para reparações de última hora,
tão urgentes quanto necessárias e onerosas.
Mais adiante dois ginetes da guarda civil, com uniformes
lustrosos e chapéus ridículos, mantêm a ordem, aparentemente sem
grande sucesso. O caos impera e a autoridade apenas se mostra,
como é aliás sua obrigação. Uma tímida mas autoritária
omnipresença por entre a chusma de camponeses.
Um velho parece repousar encostado à sua bengala. Um
suporte abençoado para as pernas cansadas da vida longa e laboriosa
mas também uma verdadeira tribuna, de onde observa o formigar
da vida à sua volta, tão perto e simultaneamente tão longe da sua
senectude. A visão dos jovens azafamados e dos cachopos
endiabrados parece rejuvenesce-lo. É quase uma sangria das muitas
maleitas que lhe azucrinam a vida e uma injeção benfazeja do mais
vigoroso vicejo. Sem esquecer que nunca se é velho demais para
aprender e observando sempre se aprende alguma coisa. Sapiências
de velho.
Um grupo de jovens passa ao largo, cabeças baixas, olhos no
chão poeirento. Uma atitude que contrasta com a balbúrdia do dia.
Quem os observasse desprevenidos pensaria com os seus botões se

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as consciências ou as intenções daqueles mancebos estariam tão
limpas quanto os seus casacos domingueiros. Mas pode ser apenas a
melancolia da inópia, a placidez da penúria perante a ostentação das
bancas e das bestas. É na jactância dos dias de festa que o pobre se
sente mais miserável. Não é no campo entre alimárias e rústicos
condolentes, é aqui na cidade, entre mercadores bazofos e citadinos
assoberbados que o camponês se sente mais lapuz. Enfim, nada que
o vinho barato, bebido à pressa na tasca da esquina, em copos
pequenos e mal lavados, não dirima. A pinga encarregar-se-á
prontamente de soltar as línguas e de arribar os semblantes. Na
embriaguez não há pobreza nem humildade. Todos somos iguais nos
braços de Baco. A bebedeira deve ser a mais antiga e popular forma
de democratismo e o bêbado, o mais sincero democrata.
Adiante um garoto com quatro ou cinco anos olha em
desafio para a turba laboriosa. Mãos nos quadris, atitude
determinada, quase temerária. Um colosso liliputiano para quem a
vida e o momento tudo têm a oferecer. O seu mundo é um apanágio
permanente. O medo é qualidade de velhos.
Ao fundo um ajuntamento de passantes deixa adivinhar
qualquer novel apresentação. Não será certamente a vetusta e semi-
milagrosa banha da cobra, cujas qualidades já não convencem
ninguém. Antes ocorrerá ardil mais corrente, capaz de engrupir os
mais incautos destas e das próximas paragens.
À falta de mais virtudes servirá pelo menos, e como tudo o
mais, neste terreiro de feira, de desenfado para quem o simples
largar da sachola e da enxada é já motivo bastante para
comemoração.
Num terreiro andaluz.

7 e 8 de Abril de 2018

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O Enigma da Alegria Desvanecida
dos Sorrisos Infantis

Três crianças, rapazes de tenra idade, um chapéu de chuva


partido, um autocarro obsoleto e uma aldeia perdida no tempo e no
espaço, ao fundo.
Um quadro realista na sua mais pura expressão. Um
realismo engajado de compromissos, socialmente consciente até
elitisticamente vanguardista.
A singeleza da infância é aqui exacerbada pela miséria
notória, expressa nas vestes coçadas e nas botas rotas dos petizes, na
sombrinha arruinada, no chão poeirento e sujo, na provecta viatura
do pós-guerra, equipagem da fuga desenfreada dos campos para as
cidades, da fome para a esperança vã das cinturas industriais, do
bucólico rústico para o urbano betonado, mas também pelo
desalento das casas desertas e sombrias na aldeia abandonada,
cenário desolador do êxodo.
E no entanto os meninos sorriem.
Mais do que sorrir, galhofam, desfrutando intensamente da
ocasião, da pose imprevidente perante a lente socialmente
empenhada do fotógrafo.

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Riem antes de mais porque são crianças e ser gaiato é
condição que merece ser desfrutada. Riem da afetação do momento,
da postura fixa para a posteridade, na qual sempre irão estar juntos,
ter cinco anos e rir desbragadamente. Mas nisso não pensam ainda e
também por isso sorriem. Riem do guarda-sol improvisado e
escangalhado, que de nada os protege, nem do sol nem do ridículo
que mais os faz rir. Riem das botas destruídas pelas correrias nos
campos, nos ribeiros, nas escadas e nos becos da infância, pelas bolas
chutadas e pelos golos marcados e defendidos, pelas batalhas de
piões de madeira balanceando nos terreiros da aldeia. Riem dos
joelhos esfolados nos jogos juvenis, às escondidas e à apanhada, aos
berlindes, abafados nas covas terrosas dos quintais, nas escaladas de
muros pedregosos, nos penedos trepados e conquistados após lutas
épicas tremendas. Riem dos figos surripiados da árvore da vizinha
avarenta e comidos lambuzados em vãos esconsos, dos ovos pilhados
em ninhos e capoeiras desabrigadas, partilhados entre sussurros
secretos de tesouros escondidos, do batráquio verde e viscoso
introduzido sorrateiramente em casa do velho prior, um feito ufano
a que se seguiu fuga desenfreada e risota geral e que irá perdurar na
memória de todos per saecula saeculorum. Riem porque vivem,
porque têm cinco anos e porque está sol e um forasteiro lhes quis
tirar o retrato. Porque não haveriam de rir? Haverá momento mais
aprazível do que este nas suas vidas?
E no entanto a foto, ao invés dessa alegria juvenil, parece
revelar tristura. Um presente pardo, algures entre um passado
alvacento e um futuro grisalho. Para onde terá ido a cor vibrante
que deveria brotar da euforia e do gargalhar infantil?
Talvez tenha partido naquele autocarro soturno, em
segundo plano, numa manhã chuvosa e fria, rumo à guerra sem
retorno que devastou a existência de tantas paragens. Quem sabe se
partiu no mesmo transporte rumo a uma usina distante, numa urbe
negra e fumacenta, transbordante de almas perdidas, fugindo da

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míngua em demanda de alento. Quiçá terá partido para a eternidade
impostora da memória dos homens que sucede ao vil sepulcro da
ossatura ou então para o eldorado transoceânico que suga as vidas e
as almas desvalidas dos que nada têm a perder senão tudo.
Porventura estará ainda na aldeia cinzenta, mas
dissimulada. Escondida no luto das velhas sem idade que choram
finados relapsos, para todos menos para elas. Encoberta pelos
cortejos lúgubres dos dias de festa, paramentados por litanias
plangentes e turíbulos enjoativos. Solapada entre decoros e
vergonhas de fachada que calam obras veladas de cariz profano e
carnal. Acobertada nos calos das mãos esforçadas de camponeses,
que ganham o pão e gastam a existência revirando a terra de sol a
sol, ano após ano, vida após vida.
Acaso estará presente, mas apenas oculta da objetiva do
retratista? Às vezes de tanto vislumbrar misérias e desgraças, o
observador perde a capacidade de captar o contento dos
protagonistas e limita a sua valência à mostra de pesares e
padecimentos, suscitando a condolência ou mesmo a indignação dos
demais. Talvez seja astúcia ou propensão artísticas. Ou até
deformação profissional. Possivelmente com tal força testemunhou
a tristeza nos olhos cavados dos migrantes arrojados nos burgos
industriais da periferia das grandes cidades que o fotógrafo
enxergou os seus filhos enjeitados, largados nas ruas poeirentas dos
lugarejos desertos por eles despovoados, com o mesmo vislumbrar
sofredor, pardacento e triste dos progenitores. Ou pode ser
nostalgia, o desconsolo que brota da lembrança dos tempos passados
em que ele próprio era garoto de calções rotos e joelhos encrostados
pelas tropelias da infância, pulando e gargalhando no chão
pulveroso diante de um forasteiro abelhudo, tal como os petizes
eternizados na foto.

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Será finalmente que, por artes herméticas de necromante,
aqueles efebos olham-se hoje, longevos e enfermiços, fixados no
tempo a preto e branco, e relembram risos imaturos?
À lembrança vêm-lhes memórias dos que já partiram deste
mundo, uns cedo demais, deixando saudade sem fim, outros
demasiado tarde, legando um fim sem saudade. Surgem-lhes ainda
imagens dos que restam, náufragos da vida, destroços da juventude
encalhados no desfecho da vivência, de olhos cansados, cabeleiras
alvas ou ausentes, pernas alquebradas e trémulas.
Os edifícios derribados de antanho renascem dos escombros
na foto e ressurgem nublados, reavivando devaneios desaprendidos.
A reminiscência, quase platónica, reconstitui as belezas perdidas, os
amores incumpridos, os desgostos perenes. Outras construções,
desta feita imateriais, desabadas pelo devir inexorável da existência,
ressuscitam em cascata, renovando padecimentos provectos,
reavivando remorsos e penas que há muito julgavam cumpridas.
Perante um tal caudal de emoções é possível que a alegria
dos cachopos se tenha esbatido da fotografia e perdido para sempre
no tempo pretérito. Ao presente comparece, herdeira envolvente, a
melancolia que jorra da contraposição do que fomos e do que
somos, do que fizemos e do que (não) fazemos, do que rimos e do
que chorámos. A morte espreita implacável por entre a
contemplação da vida já vivida, como um coto de vela que teima em
arder vacilante e frouxo, anunciando a escuridão eminente.
Num momento de lucidez a realidade impõe-se atroz. Eu
também sou um daqueles fedelhos. Tal como o leitor e o fotógrafo e
todos aqueles a quem for concedido o bem precioso da vida
duradoura. Aí reside a solução óbvia para o enigma da alegria
desvanecida dos sorrisos infantis e talvez a confirmação absurda
que, citando Stendhal, as lágrimas são mesmo o supremo sorriso.

10 e 11 de Abril de 2018

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O Fantasma do Flatiron

O perfil colossal do arranha-céus destaca-se por entre a


sombra indistinta de um passante, enquanto a neve meio derretida
se acumula no pavimento e a rugosidade do alcatrão esconde, com
surpreendente pudor, a identidade do transeunte refletido no lençol
de água, deixado pela última chuvada.
A fragilidade humana sobressai assim do confronto com os
elementos. O frio adivinha-se na neve e nas vestes hiemais da
figura. O monstro de betão impõe a sua presença intimidante, como
um gigante ameaçador refletido na pureza do espelho de água. O
alcatrão por sua vez invade a humanidade na foto como na vida.
Rouba-lhe a identidade. Impõe o anonimato uniforme das sombras
a quem deveria ter um nome, uma vida, um rumo.
A textura perturba, qual pesadelo construído com gotas de
chuva e grãos de gelo que pungem, formigantes, a pele. A realidade
torna-se difusa, onírica e opressiva.
Um pé levantado do pedestre evoca porém uma sensação de
leveza diáfana. A realidade escapa-se por momentos pelo reflexo
esvoaçante entrando em seu lugar a utopia na imaginação do
espetador. Também ele voa com o viandante por entre florestas de

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betão obscuro, reflexos de brancor hibernal e legados diluviais no
breu urbano. Uma breve pausa no pesadelo.
Lentamente o edifício identifica-se. O perfil inconfundível,
qual ferro de engomar, revela a sua individualidade velada: o
Flatiron Building de Nova Iorque.
Tal revelação incrementa, se possível, o constrangimento
circunstante. O titã centenário foi pioneiro na conquista dos céus
urbanos pelo betão e os seus ornamentos neobarrocos, ao estilo
beaux-arts, incutem reflexões aziagas no contexto funesto e
penumbrado do retrato.
Também a revelação da cidade não traz alívio algum, pois
não há metrópole mais anónima, álgida e misantropa que a
Babilónia americana, onde Lou Reed nos convida a dar uma volta
pelo seu lado selvagem. Essa parece aliás ser a mensagem subjacente
à foto. Também a imagem vislumbra um lado selvagem, para o qual
e sem prévio invitamento, arrasta o espírito do mirone, num
turbilhão aflitivo, construído de sombras e nevoeiro, qual evocação
kafkaquiana de Woody Allen, onde impera a frieza, tanto a física
como a metafórica, e o medo e a ansiedade desaguam na
pusilanimidade.
Se os elementos se revelam um após outro: neve, gelo,
alcatrão, chuva, Flatiron Building, Nova Iorque; a humanidade essa
mantém-se distante e incógnita. Chega a duvidar-se da sua
existência.
De repente constata-se que da manga do casaco não
sobressai uma mão e que o que se supunha ser um gorro parece
flutuar no ar frio e húmido. Até mesmo o pé que há pouco quase
nos reconfortou, provocando, com a sua irreal trajetória etérea, um
assombro fugaz de otimismo, parece transmitir agora dúvidas onde
antes existiam certezas. Existirá de facto ou será um reflexo
falacioso? Poderá ser uma exposição macabra de horror e mutilação?

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E que direção toma o personagem? Será que vai ou que
vem? Que parte ou regressa? Está em fuga ou em perseguição? Da
dúbia silhueta percetível só restam incertezas e névoas turvas. Um
vulto na penumbra sem sentido nem alcance.
Mas eis que uma ideia aflora a mente abismada. Será um
fantasma?
Num rasgo o detetive policial que há em todos nós começa a
matutar. O Flatiron Building? O estilo beaux arts? É curioso...
Uma rápida consulta à internet revela factos históricos
incontornáveis. O edifício foi inaugurado em 1902, desenhado pelo
arquiteto e urbanista Daniel Burnham. O projetista, que ficou
famoso pela direção da Exposição Universal de Chicago de 1893, era
um confesso discípulo da reforma perpetrada por Georges-Eugène
Haussmann na capital francesa. Chegou mesmo a afirmar, num
ímpeto de ousadia, que pretendia transformar a futura cidade dos
gangsters na Paris das pradarias, com fontes, boulevards radiais e
outras inspirações urbanísticas do segundo império francês e do
artista demolidor, o prefeito de Paris, Barão Haussmann.
E é aqui que o leitor aprendiz de investigador, num lampejo
plagiado do lendário Arquimedes de Siracusa, tão precipitado como
inoportuno refira-se em abono da verdade, exclama perspicaz:
Eureka!
Qual é o edifício parisiense, considerado justamente como a
maior obra-prima da arquitetura do seu tempo, do estilo beaux-arts
e do neobarroco, devido ao engenho delineador do Barão
demolidor? O Palais Garnier claro, inaugurado em 1875 e que
alberga desde então a Ópera de Paris.
E os silogismos não param, frenéticos, na cabeça do detetive
amador. Não é na Ópera de Paris que se passa a história do famoso
fantasma deformado e genial que monta covil nos calabouços do
edifício e espavoriza com a sua obsessão amorosa a diva da
companhia?

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Um regresso apressado ao computador confirma tudo e
lança ainda mais achas na fogueira da imaginação desenfreada do
perquiridor. A obra prima “O Fantasma da Ópera” publicada por
Gaston Leroux, o Edgar Allan Poe francês, em 1910, foi
precisamente escrita nos anos da construção e inauguração do
Flatiron Building de Nova Iorque e é inspirada em factos históricos
ocorridos na Ópera de Paris durante o século XIX. Ao que parece foi
escrita depois de Leroux ter visitado o Palais Garnier e conhecido o
seu lago subterrâneo, quase se perdendo no labirinto de portas e
escadas das galerias sinistras do edifício.
Não é preciso perscrutar mais, a explicação salta à vista de
todos e lança-se desenfreada aguilhoando o espírito romântico
renascido no íntimo juízo do leitor, recém transformado em
impetuoso detetive. No final do romance de Leroux, Erik renuncia a
Christine e morre de amor. É enterrado a seu pedido num local
onde nunca possa ser encontrado. A sua morte é anunciada
laconicamente num jornal parisiense: Erik está morto.
Poderá o Flatiron ser o túmulo ignoto de Erik? Terá
Burham, no seu furor gálico e haussmanniano, dotado a sua obra-
prima de um fantasma trasladado das obras magistrais de Garnier e
de Leroux e da sua amada Paris romântica? Será esse o espectro
captado pela lente do incauto fotógrafo?
E pensar que na mesma rua, a algumas centenas de metros
de distância, milhares de pessoas assistem diária e extasiadamente à
adaptação musical da história dos amores obsessivos do estropiado
Erik e da cândida Christine, na famosa adaptação de Andrew Lloyd
Webber.
Se querem emoções fortes esqueçam o musical. Avancem
mais alguns metros pela Broadway até ao cruzamento com a rua 23
e a 5ª avenida e preparem-se para o inconcebível.
O genuíno, sinistro e singular espectro nova-iorquino:
O Fantasma do Flatiron.

68
8 e 9 de Abril de 2018

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O 5 de Outubro
ou como um golpe falhado derrubou a monarquia.

Ao ler uma obra curiosíssima sobre a revolução que


implantou a República em Portugal, no ano de 1910, "A Revolução
Portuguesa, o 5 de Outubro (Lisboa, 1910)", de Francisco Jorge de
Abreu, Edição da Casa Alfredo David, 1912, disponibilizada online
pelo Projeto Gutenberg, fiquei com algumas ideias assentes sobre a
Revolução, que não correspondiam exatamente à imagem que tinha,
desse facto fundamental da história recente deste país.
Desde logo, o que não correspondeu propriamente a uma
surpresa, foi a de que a queda da monarquia era um facto inevitável,
pelo menos desde o 31 de Janeiro de 1891, que só pecou por tardio.
O clima de conspiração era tal, a rejeição do regime estava
tão enraizada, não apenas nas classes populares, mas em toda a
sociedade, incluindo a alta burguesia e vários membros influentes
da aristocracia, que a revolução foi uma ameaça quotidiana, que
durou décadas a amadurecer, de golpe falhado em intentona
abortada, mas que inevitavelmente aconteceria, mais tarde ou mais
cedo.
Há um longo processo de derrube da monarquia, que surge
com a ascensão dos ideais republicanos na sociedade urbana do

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Portugal do final do século XIX, e se torna claramente dominante
após a crise do ultimato britânico, episódio que acaba,
definitivamente, com o pouco prestígio que o regime monárquico
ainda teria na altura.
A revolta cresce e rompe mesmo no Porto, a 31 de Janeiro
de 1891, como reação à cedência da coroa ao ultimato britânico e
também inspirada na recente proclamação da república no Brasil (a
15 de Novembro de 1889). Apoiada sobretudo por sargentos e
praças, a revolta falha por falta de apoio das lideranças.
Mas a ideia republicana prossegue e alastra, embora o
desfecho inglório do 31 de Janeiro tenha tido duas consequências
evidentes para a ideia republicana. Por um lado a convicção de que
era necessário envolver as chefias e a população civil numa revolta,
para que esta tivesse sucesso. Por outro deixou o regime receoso dos
republicanos, o que levou a um progressivo endurecimento da
política de segurança, ao envolvimento do rei na política, que
culminou na ditadura de João Franco, que durou desde a greve
académica de 1907 e a retirada do apoio ao governo pelo Partido
Progressista (em Maio de 1907), até ao regicídio em Fevereiro de
1908.
E é aqui, precisamente, que começa a história do 5 de
Outubro, de acordo com a referida obra de Francisco Jorge de
Abreu. Como reação republicana à ditadura, que engrossa o
descontentamento geral e as fileiras revolucionárias.
É neste contexto que se dá a segunda tentativa
revolucionária de derrubar a monarquia, o 28 de Janeiro de 1908,
também conhecido como o golpe do elevador da biblioteca.
Este elevador ligava a praça do município ao largo da
biblioteca, atual academia das belas artes e foi desmantelado em
1920, quem sabe se pelas conotações políticas associadas.
O golpe visava o assassinato de João Franco e a abdicação de
Dom Carlos e foi gizado de colaboração entre os republicanos e a

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dissidência progressista, de José Maria Alpoim. Enquanto as
brigadas carbonárias neutralizavam as forças fiéis aos regime (a
cavalaria do Carmo, a guarda municipal e o cabeço da bola), os
marinheiros de Vale do Zebro tratariam do presidente do conselho
e de forçar o rei a abdicar.
Os notáveis do golpe liderariam a intentona a partir do
elevador da biblioteca, local estratégico para o desenrolar das
operações e junto aos paços do conselho, onde proclamariam a
república, logo após o triunfo da revolta.
Mas o golpe foi planeado com tanto à vontade que, após a
denúncia da polícia, o governo tratou de prender, na véspera,
António José de Almeida, Luz de Almeida e João Chagas, deixando
o golpe nas mãos dos restantes cabecilhas, Afonso Costa, José Maria
Alpoim e o Visconde da Ribeira Brava, que ainda convergiram para
o elevador, que até estava avariado, apenas para verificarem, com
desalento, a inação das forças revoltosas. Acabaram também eles
presos pela polícia, juntamente com outros revoltosos que afluíram
ao elevador (como Egas Moniz).
Não obstante o debacle, os carbonários, desiludidos com a
ineficácia do golpe, ainda tentaram tomar várias esquadras de
polícia pela cidade, com escaramuças e trocas de tiros no Rato, onde
cai morto um polícia, no Campo de Santana e em Alcântara.
Nesta altura é já evidente que a principal força por detrás da
revolução é a Carbonária.
Fundada em Portugal por volta de 1900, com ligações
estreitas à Maçonaria e profundamente anticlerical, esta sociedade
secreta atraiu sobretudo membros das classes populares e estudantis.
Liderada por Luz de Almeida, a Alta Venda, nome pelo qual era
conhecida entre os seus correligionários, associou-se à ideia
republicana e contribuiu decisivamente para o seu alastramento nos
quartéis, sobretudo entre praças e sargentos, estando na base da
sublevação das forças militares, em 1910.

73
Em 1908 porém, a tropa ainda não estaria suficientemente
conquistada pelos primos (nome porque se conheciam, entre si, os
membros da organização), razão pela qual só saíram à rua brigadas
de paisanos, ainda que armados e munidos de bombas artesanais.
Aliás, o fabrico e depósito de armas e bombas era corrente
em Lisboa, tendo ocorrido, nos anos que antecederam o regicídio,
pelo menos duas graves detonações acidentais de explosivos em
residências particulares, que vitimaram alguns revolucionários
(numa delas escapou por pouco Aquilino Ribeiro) e alertaram a
polícia para a iminência da revolução.
O que nos leva ao regicídio, episódio, tudo indica, reativo ao
insucesso do 28 de Janeiro.
Perdida a oportunidade da revolução, alguns extremistas
descontentes decidem pôr mãos à obra e matar o rei, ou o
presidente do conselho, segundo algumas versões. Como este último
era especialista em evitar atentados, conseguiu mais uma vez
escapar, recaindo a iniciativa no rei e no príncipe herdeiro, escassos
quatro dias após o malogrado golpe de estado.
Muito se especulou sobre o regicídio e continua a especular.
Francisco Jorge de Abreu fala em cinco revoltosos que foram vistos
nos cafés da Praça do Comércio em acesa discussão e iniciativa
política, onde se integravam os dois conhecidos regicidas, o
professor primário Manuel Buiça, o assassino de Dom Carlos, a tiro
de carabina, e o empregado de comércio Alfredo Costa, que terá
morto o príncipe Luís Filipe, a tiro de revólver. Um terceiro
homem, não identificado, teria tentado trepar para a carruagem e
foi rechaçado pela rainha, a golpes de um bouquet de flores, ato
amplamente difundido e representado, com desenhos imaginativos,
nos jornais da altura. Falou-se, na época, que seria o filho do
Visconde da Ribeira Brava, mas tal boato foi desmentido pela
própria viúva de Dom Carlos.

74
Porém, a ligação da Carbonária e do próprio visconde da
Ribeira Brava no fornecimento de armas aos conspiradores, parece
evidente. As armas do golpe falhado de 28 de Janeiro foram
alegadamente transportadas para casa dos Ribeira Brava e algumas
foram parar às mãos dos homicidas.
Os cinco do terreiro do paço terão sido afinal, e segundo
versões mais modernas, oito. Além dos dois homicidas mortos,
Manuel Buiça e Alfredo Costa, estariam emboscados José Maria
Nunes, Fabrício de Lemos, Ximenes, Joaquim Monteiro, Adelino
Marques e Domingos Ribeiro.
Mas há quem assegure que existiam outros grupos
posicionados em Santos e em Alcântara, dispostos a repetir o golpe,
se o primeiro grupo falhasse, no Terreiro do Paço, cobrindo assim
todo o caminho da família real, até ao Palácio das Necessidades.
Não parece ter existido um planeamento republicano do
regicídio, como consequência direta do falhanço do golpe de 28 de
Janeiro. Mas especula-se sobre o possível envolvimento de José
Maria Alpoim, ao tempo já fugido para Espanha. É também um
facto que, nem Alpoim, nem o visconde da Ribeira Brava,
conseguiram singrar no novo regime republicano, apelidados de
Buissidentes, isto é, coniventes com o Buiça, o assassino do rei.
Aquilino Ribeiro confessaria, muito mais tarde, ter estado
envolvido no golpe e conhecer os assassinos, embora negasse a
participação direta na iniciativa.
O regicídio parece assim ter sido uma revanche pelo
insucesso do golpe de 28 de Janeiro, levado a cabo por membros
mais radicais das hostes carbonárias, com apoio logístico de alguns
dos cabecilhas do golpe republicano, alegadamente de Alpoim e
Ribeira Brava.
Quem eram os membros do segundo e terceiro grupos do
plano do regicídio (se é que existiram esses grupos) e se o plano
sempre fora o de matar o rei ou o presidente do conselho, são

75
provavelmente segredos que os insurretos levaram para a cova e
sobre os quais só podemos especular.
Mas o regicídio teve por efeito imediato a queda do
governo. Saiu João Franco, cujo autoritarismo foi responsabilizado
pela tragédia e, com o novo rei, entra também um governo
regenerador, tentando acalmar a populaça, depois da crise que,
numa semana, viu suceder uma tentativa de golpe de estado, o
assassinato do rei e do príncipe herdeiro, a coroação de um novo rei,
a queda da ditadura e a nomeação de um novo governo conciliador.
Primeiro é empossado o Almirante Ferreira do Amaral por
aclamação partidária, mas, nos 33 meses em que reinou, Dom
Manuel II daria posse a mais cinco primeiros ministros, o que diz
bem do insucesso da política regeneradora e da decrepitude do
regime monárquico. A Ferreira do Amaral sucederam Campos
Henriques, Sebastião Teles, Venceslau de Lima, Veiga Beirão e
finalmente, António Teixeira de Sousa.
Apesar de ter deixado a política para os partidos e para o
parlamento, D. Manuel envolveu-se, provavelmente por iniciativa
dos seus conselheiros, liderados por José Luciano de Castro, na
chamada questão social, que visava atrair para a coroa o apoio dos
socialistas, minando assim um dos pilares dos republicanos, o
proletariado urbano.
Apesar das aproximações a Aquiles Monteverde e a Azedo
Gneco, líderes socialistas, e da criação de um Instituto de Trabalho
Nacional, com vários socialistas em cargos dirigentes, destinado a
reformar as leis laborais, a nova revolução republicana, decidida no
congresso de Setúbal, a 25 de Abril de 1909, impediu o
desenvolvimento da iniciativa.
A revolução estava pois em marcha, mas demorou a chegar.
Depois dos fracassos de 1891 e de 1908, a carbonária intensificou a
sua ação, captando cada vez mais apoios civis e militares,
preocupando-se com a captação de financiadores da revolução,

76
entre a alta burguesia, e de altas patentes militares, para liderarem
as praças e sargentos, há muito conquistadas para a causa
republicana e impacientes da república que tardava.
O braço militar da organização era liderado pelo Almirante
Cândido dos Reis, secundado pelo Comissário Naval Machado
Santos, também ele alto dirigente carbonário e líder da Maçonaria,
uma loja, alias “choça”, carbonária, nome porque eram conhecidas
as lojas da Carbonária portuguesa.
A agitação propagandista republicana era grande e nela se
destacaram nomes como Miguel Bombarda, líder da Junta Liberal,
outra das principais “choças” carbonárias, assassinado na véspera da
revolução, num ato que serviria de rastilho para que o movimento
revolucionário se desencadeasse, finalmente, na madrugada de
quatro de Outubro de 1910.
Mas antes disso várias revoluções foram sucessivamente
adiadas, por um motivo ou por outro.
No epicentro da revolta estava a Marinha de Alcântara,
centro carbonário das forças armadas, sempre impaciente em fazer a
revolução, apesar das cautelas e sucessivos adiamentos, impostos
pelo diretório republicano e pelo Almirante Cândido dos Reis,
temerosos da repetição dos desaires anteriores.
No seguimento do assassinato de Miguel Bombarda o povo
levanta-se e começa a revolta da rotunda. Os líderes revolucionários
decidem avançar com o golpe programado para a madrugada
seguinte, aproveitando o clima de levantamento popular, hostil ao
regime.
Contudo, apesar de cuidadosamente planeado, nada sai,
mais uma vez, conforme o plano gizado e a revolução parece
destinada ao fracasso, até que a inépcia do adversário e uma
conjuntura favorável de acontecimentos leva à improvável vitória
dos revoltosos.

77
O líder dos militares revoltosos foi Machado Santos. Em
Infantaria 16, um cabo carbonário levanta os colegas contra os
oficiais e a maior parte da guarnição revolta-se, matando o
comandante e um capitão a tiro. Seguiram depois, sob o comando
de Machado Santos, para Artilharia 1, onde o capitão Afonso Palla e
alguns sargentos já tinham sublevado o quartel.
Formaram-se então duas colunas, sob o comando dos
capitães Afonso Palla e Sá Cardoso. Uma avançou para Infantaria 2
e Caçadores 2, esperando que também eles se tivessem sublevado,
para depois rumarem à marinha de Alcântara e tomarem o Palácio
das Necessidades.
Mas a Guarda Municipal estava no caminho, defendendo a
residência do rei, e as duas colunas, novamente reagrupadas.
inverteram a marcha e rumaram à rotunda, juntando-se aos
populares, e ai ficando entrincheirados, desde as cinco horas da
manhã de 4 de Outubro até às 8 horas da manhã do dia seguinte,
com menos de 300 praças de Artilharia 1, meia centena de praças de
infantaria 16 e uns 200 populares, muitos deles armados e com
bombas artesanais.
O corpo de marinheiros de Alcântara também se sublevou,
sob a liderança do tenente Ladislau Parreira, impedindo a saída do
esquadrão de cavalaria da guarda municipal.
Dois dos navios da Armada, ancorados no Tejo, também se
amotinaram, um sob o comando do tenente Mendes Cabeçadas, o
Adamastor, e outro sem comando, porque os oficiais não aderiram
ao golpe e foram aprisionados, o São Rafael. Foi o tenente Tito de
Morais, designado por Ladislau Parreira, quem foi comandar o São
Rafael e seriam estes dois navios revoltosos quem decidiria a sorte
da revolução.
A tripulação do Dom Carlos I também se amotinou, mas os
oficiais ficaram entrincheirados, na defesa do navio, até que
reforços, vindos do São Rafael e liderados pelo tenente Carlos da

78
Maia, tomaram o navio a tiro e obtiveram a rendição dos oficiais
lealistas, engrossando assim a armada revoltosa com um terceiro
navio.
Os revoltosos contavam assim com mais de mil homens em
Alcântara, mas com apenas 400 na rotunda, metade deles civis. As
comunicações eram escassas, pelo que se desconhecia, quase em
absoluto, o que passava nos outros regimentos.
O plano que visava colocar o Almirante Cândido dos Reis na
chefia da armada revoltosa falhou ridiculamente. O Almirante
embarcaria na madrugada de 4 de Outubro no cais do gaz,
juntamente com outros altos oficiais revoltosos, para chefiar a
Armada amotinada. Mas o navio que os deveria transportar não
tinha a fornalha acesa. Tentaram tomar outro, igualmente sem
sucesso, e dispersaram convencidos do falhanço do golpe.
Também as brigadas carbonárias, a quem competia evitar a
saída das tropas de cavalaria do Carmo, falharam redondamente,
algumas simplesmente porque encontraram portas fechadas e não as
conseguiram arrombar, para tomar posição.
Outros regimentos, de quem se esperava adesão à revolta,
não saíram, ou juntaram-se aos defensores da monarquia, no Rossio.
Na rotunda, os oficiais concluíram que a revolta estava
perdida e abandonaram a posição. Só Machado dos Santos se
manteve, entre os oficiais, sozinho à frente de um grupo de praças e
de civis, decidido a lutar até à morte pela república.
A convicção da derrota era tal que Cândido dos Reis se
suicidou, com um tiro de pistola, numa azinhaga de Arroios, para
impedir a desonra.
Do lado dos monárquicos as tropas estavam de prevenção,
sob a liderança do general Gorjão Henriques, com reforços de
Santarém, de Tomar e de Queluz. Uma parte defendia o Palácio das
Necessidades, a outra o Quartel General, no Rossio.

79
Durante todo o dia 4, a situação esteve num impasse, com
escaramuças inconsequentes de parte a parte. Até a bateria de
Queluz, liderada por Paiva Couceiro, tentou surpreender os
revoltosos a partir da penitenciária, mas sem sucesso, pois foram
recebidos à bomba pelos populares entrincheirados e sofreram
algumas baixas, pelo que, também ela recebeu ordens para rumar ao
Rossio, para mais tarde se colocar no Torel, de prevenção, a
qualquer investida dos revoltosos e de apoio a um eventual ataque
das forças leais ao rei, concentradas no Rossio.
Tanta incompetência na defesa do regime foi mais tarde
justificada pela simpatia republicana de muitos dos soldados,
sargentos e oficiais das forças defensoras. Um dos oficiais
responsáveis pela inatividade dos monárquicos terá sido o general
António Carvalhal, que impediu o assalto à rotunda e foi nomeado
pelos republicanos, logo no dia seguinte, chefe da Divisão Militar,
apesar de ter dirigido as forças monárquicas na véspera.
O impasse só foi ultrapassado pelos três navios revoltosos,
comandados por três tenentes e que, tendo embarcado tropas em
Alcântara, rumaram ao Terreiro do Paço, decididos a bombardear os
ministérios e as forças monárquicas concentradas no Rossio.
De caminho, aproveitaram para bombardear o Palácio das
Necessidades, obrigando o rei a fugir para Mafra, onde se lhe foram
juntar as rainhas, D. Amélia, viúva de Dom Carlos e D. Maria Pia,
viúva de D. Luiz, ambas alojadas em Sintra, à data da revolução.
Foi quando as forças do Rossio se viram sob ameaça de
bombardeamento naval, que a república efetivamente venceu.
Os regimentos monárquicos, vendo-se abandonados pelo rei
e ameaçados pela marinha, impuseram tréguas para negociar a
rendição, recusando levantar armas contra os camaradas da
marinha, mesmo contra as ordens do general Gorjão Henriques, que
ficou estupefacto, quando viu aparecer diante dele um emissário da
marinha revoltosa para negociar os termos da rendição.

80
A tudo isto assistiu de camarote o presidente brasileiro
eleito, Hermes da Fonseca, no couraçado São Paulo, ancorado no
Tejo, em visita oficial a Portugal e que, ainda na véspera, estivera
num jantar com o rei, no Palácio das Necessidades.
Outro incidente diplomático, curioso e decisivo, envolveu o
representante diplomático alemão, alojado no Hotel Avenida Palace
e apanhado assim, em pleno campo de batalha. Pediu um salvo
conduto ao general Gorjão Henriques, chefe das forças defensoras
da monarquia, para poder atravessar as linhas inimigas, às quais se
dirigiu com uma bandeira branca. O povo e os revoltosos, tomando
a bandeira como sinal de rendição das tropas monárquicas, desatou
em vivas à república e tomou a revolução por finda, com a vitória
dos republicanos, o que mais ajudou a desmoralizar as tropas do
Rossio, já mais fiéis à República que aos seus comandantes.
Esta falsa rendição não impediu os revoltosos, liderados por
Machado Santos, de festejar a vitória e descer a avenida rumo ao
Rossio, rodeados de povo, que ia aumentando pelo caminho, dando
vivas à República, o que confundiu os monárquicos. A confusão era
total e Machado Santos pede a rendição a Gorjão Henriques, que
recusa, mas permite que o comando passe para António Carvalhal,
que, como sabemos, era republicano.
Às nove horas da manhã, os líderes do partido,
proclamavam a República nos Paços do Concelho. A revolução
saldara-se assim por meia centena de mortos e outros tantos feridos.
Entretanto o rei, informado da derrota, rumou à Ericeira
para embarcar no iate real Amélia, que já tinha trazido o seu tio e
herdeiro da coroa, D. Afonso, desde a cidadela de Cascais. Julgava
D. Manuel que rumaria ao Porto, para daí organizar a
contraofensiva. Mas foi desaconselhado desse intuito e rumou antes
para Gibraltar, onde tomou conhecimento que o Porto também
tinha aderido à República, pelo que seguiu depois para o exílio, em

81
Inglaterra, mandando devolver o iate ao governo português, por ser
propriedade pública.
Eis como uma revolução falhada instaurou a República em
Portugal.

17 de Abril de 2023

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O Viajante Compulsivo

Neste mundo globalizado em que vivemos, há uma nóvel


modalidade de adição que se tem apoderado, expressivamente, das
novas gerações, a do viajante compulsivo.
Claro que, no passado, existiram Lord Byron, P. B. Shelley,
o casal Fitzgerald ou até o nosso Eça de Queiroz que, entre viagens
recreativas e profissionais, correram mundo (ainda que, no caso do
Eça, tudo redunde numa quinta no Douro, em a Cidade e as Serras,
o seu testamento literário), já para não falar no Marco Polo, no
Fernão Mendes Pinto, no Dr. Livingstone ou na dupla Ivens &
Capelo.
Mas as longas viagens do passado ou eram feitas por
aventureiros, com fins militares, científicos ou comerciais, ou então
por aristocratas e membros da alta burguesia ociosos, que se podiam
dar ao luxo de correr mundo, esperando o cheque das rendas ou dos
dividendos na próxima dependência do Lloyd's Bank ou de outra
qualquer instituição financeira global da época.
Essa raça de viajantes já não existe. Mesmo os marinheiros,
os aventureiros pobres que se engajaram em navios para ver o
mundo, hoje são pouquíssimos (os navios têm tripulações
minúsculas), oriundos quase exclusivamente de países pobres

83
asiáticos, e o pouco mundo que vêem, resume-se às instalações
portuárias de algumas metrópoles, por vezes sem sequer saírem do
navio, para evitar tentações e despesas imprevistas. O mesmo se
poderá dizer das tripulações aéreas, que quando não regressam de
imediato, ficam dois ou três dias, no máximo, no destino,
geralmente a descansar no hotel ou na praia, se o clima for
convidativo.
Em compensação, há toda uma nova raça de viajantes, que
corre o mundo como nunca antes ninguém percorreu, na história da
humanidade. Alguns chamam-lhe os back packers, por viajarem de
mochila às costas, mas o termo é redutor, porque há cada vez mais
géneros distintos de mochileiros e nem todos encaixam naquela
imagem tradicional, do turista de pé descalço, que começou a
invadir o nosso país no final da década de sessenta do século XX.
Hoje o grande desafio, para toda uma nova geração de
viajantes compulsivos, é precisamente o financiamento das viagens,
que decorrem a um ritmo alucinante, de vários meses por ano, sem
terem que recorrer à mendicidade ou outras formas menos dignas
de sobrevivência.
O truque começa sempre pela redução significativa dos
custos. Bagagem limitada à mochila e ao que nela caiba, passagens
aéreas low cost ou, se possível, recorrendo ao comboio, ao autocarro
ou á boleia, alimentação limitada à sobrevivência (sanduíche, fruta
e água da fonte), sem esquecer a possibilidade, sempre agradável, de
contar com a hospitalidade dos indígenas, gente que sempre aprecia
o interesse dos estrangeiros pelo seu país e cultura. O viajante
compulsivo tem assim que ser um relações públicas, falar com
todos, alimentar amizades fáceis, porque disso depende a sua
própria sobrevivência, graças às muitas comidas e dormidas
gratuitas que aufere, com a sua disponibilidade e simpatia.
Para as deslocações, uma simples bicicleta coaduna-se
perfeitamente com a mochila às costas, a roupa e o corpo a pedirem

84
lavagem e a tenda individual, para o caso do teto gratuito não se
mostrar disponível. E hoje em dia não há metrópole que não tenha,
ao dispor dos visitantes, uma enorme oferta de veículos de duas
rodas de aluguer barato, com ou sem pedais, motorizados ou não. É
só escolher, aliás, o ideal é experimentá-los todos.
E chamo-lhes viajantes compulsivos porque, para esta raça
de globetrotters, o que conta é juntar mais um destino à coleção. É
gente que tem um mapa em casa, afixado na parede, mas
reproduzido informaticamente em todos os aparelhos que o
permitam, para partilha com os amigos e comparsas do vício, onde
estão assinalados todos os locais, do mundo, que já visitaram, e o seu
maior sonho é percorrer todo o globo, mesmo sabendo que isso é
impossível. Mas competem, entre si, sobre quem mais locais visitou
no mundo, trocando informações preciosas e programando
mentalmente as próximas deslocações, que ocorrem com
periodicidade plurianual, dependendo da disponibilidade de cada
um, temporal e financeira.
Há profissões que ajudam a alimentar este modo nómada de
vida. Os músicos, por exemplo (e outros artistas em geral, embora o
tempo das pialgatas já tenha passado à história), não precisam de ser
famosos, nem de tocar grande coisa, para correr mundo. É arranjar
um carrinha e meter-se à estrada com os instrumentos. Em
qualquer boteco se contrata um gig, nem que seja em troca de
comida e dormida grátis. Se ainda ajudar a pagar o gasóleo da
carrinha, melhor ainda.
Outro grupo atreito à mochila são os fotógrafos. Correm
mundo em busca de fotos e reportagens que possam vender, aos
muitos meios de comunicação social de todo o mundo, jornais,
revistas, televisões, sites, YouTube, bloggers e tudo o mais que
esteja disposto a dar algo por conteúdos de viagem, fotografias,
filmes, sons, reportagens, livros ou outra coisa qualquer, desde que
valha dinheiro para alguém.

85
Mais recentemente, o surf serve também para financiar a
vida nómada, não apenas para os profissionais, que vão correndo
competições e vivendo dos prémios, mas também para os amadores,
que se agrupam em carrinhas, correm as costas do mundo, em busca
dos melhores spots, e conseguem sobreviver dando umas aulas de
surf, tirando fotos ou fazendo filmes, que depois vendem ou
publicam na NET, recebendo receitas de publicidade ou royalties.
Alguns destes freelancers até são empresários de sucesso,
com patrocínios que lhes permitem viajar com algum conforto
(tetos em vez de tendas e carros ou motos em vez de bicicletas) e
com o produto já previamente vendido, mas serão uma minoria. Os
outros, são meros goldiggers. A maioria das vezes não conseguem
sequer cobrir as despesas da viagem mas, nunca se sabe, algum dia
podem encontrar uma pepita de ouro em forma de foto, filme ou
reportagem e ganharem o suficiente para viajar o resto da vida, em
condições de conforto, onde lhes dê na veneta.
O modo de vida destas novas gerações também sofre, com
esta compulsão pelas viagens. É óbvio que ninguém pode partir, a
cada três meses, para África, para a Cochinchina ou para a Terra do
Fogo, se tiver um emprego na função pública, uma mulher ou
marido, um par de filhos a estudar, uma casa e um carro para pagar.
Mas esse é um modo de vida antiquado, rejeitado pelas
novas gerações. Casamento, filhos, hipotecas e prestações de carros
são coisas de velhos. Os novos arrendam quartos, vivem em
comuna, juntam-se alternadamente, para fins meramente
recreativos e culturais e não se reproduzem. Tudo o que ganham,
geralmente como profissionais liberais, gastam em viagens e
equipamentos para as mesmas, como tendas, mochilas high tech,
calçado de trekking, biclas, máquinas fotográficas, palmtops ou
ipads, pranchas de surf, e outros artigos essenciais às aventuras de
mochila às costas.

86
Longe de mim a ideia de criticar este modo de vida. Este
texto é uma reflexão e não uma censura. O que interessa é que a
pessoa se sinta feliz e realizada. Se o faz colecionando viagens,
relações amorosas, selos ou canetas de tinta permanente é algo que
não me diz respeito. Todas as opções são válidas, se isso deixar a
pessoa feliz.
O mais que posso dizer é que não sinto esse apelo pela
viagem. Gosto de viajar, mas com conforto, com segurança e
sobretudo, com calma. Não troco a família pela febre da mochila,
não gosto de campismo e caravanismo e não tenho vontade
nenhuma de percorrer muitos quilómetros de bicicleta, por entre
terras e gentes desconhecidas.
E depois tenho um defeito enorme, para esse tipo de vida,
sou tímido. Não gosto de meter conversa com as pessoas, nem que
desconhecidos me dirijam a palavra. Fujo das pessoas e refugio-me
na leitura, na escrita, na música, na arte. Essas viagens seriam
experiências extremamente solitárias, para a minha personalidade
fugidia, razão pela qual nunca poderiam ser muito duradouras. Três
ou quatro dias à aventura, de carro, pela província, já chegavam
perfeitamente. Desde que tivesse comida e dormida decentes, em
cama e roupa lavada, obviamente.
Mas serve todo este discurso, apenas e só, de pretexto para
comentar um livrinho que li hoje, de reportagem de viagem, que até
nem estava mal escrito, mas padecia de um mal essencial, que me
suscitou toda esta reflexão. Era totalmente contraditório com o
espírito aventureiro do viajante, o que só poderá compreender-se à
luz desta necessidade imperiosa de financiar o vício das viagens,
pelo que qualquer pretexto é válido, desde que ajude a pagar a
viagem.
Não vou citar nomes de obras, autores ou locais de visita,
para não ferir suscetibilidades, pois nem o caso será único nem a
obra é indigna, apenas ilógica, no meu modesto ponto de vista.

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Trata-se de viajar para terras longínquas, por vários meses,
em busca de compatriotas, para consignar, em reportagem escrita, as
experiências de cada um deles, por terras exóticas.
A ideia até faria sentido se fosse encomendada por um
jornal, revista ou televisão. Nesse caso, um ou vários técnicos e
jornalistas partiriam com uma missão definida, encontrar e
entrevistar portugueses residentes nessas terras distantes e, desse
material, construir uma reportagem, escrita e/ou em imagem, foto
ou videográfica.
Mas a simples ideia de partir à aventura, de mochila às
costas e bicicleta, para entrevistar portugueses remotos e com eles
partilhar experiências lusitanas, em terras exóticas, parece-me tão
absurda como escrever sobre as virtudes e defeitos do cozido à
portuguesa, consoante seja confecionado em Lisboa, no Rio de
Janeiro, em Newark, em Joanesburgo ou em Caracas. Com mais ou
menos morcela e orelha de porco, cozido à portuguesa será sempre
cozido à portuguesa, em qualquer parte do mundo.
Quem se mete à estrada e à aventura da viagem solitária,
não vai em busca de portugueses, porque para isso não valia a pena
sair de casa. Vai procurar outros povos, outras culturas, outros
climas, outras gastronomias, filosofias de vida diferentes. Viajar para
a Sibéria, para encontrar portugueses que nos digam onde se pode
comer um caldo verde ou um pastel de nata decente, num raio de
cem quilómetros, parece-me uma perda de tempo, uma total
incoerência.
Faz-me lembrar aqueles turistas portugueses, que todos já
encontrámos no estrangeiro, que não se cansam de comparar o que
veem com o que têm na sua terra. Nós também lá temos disto em
Portugal! E a comida e bebida da nossa terra são as melhores do
mundo. Nada do que se come ou bebe no estrangeiro se compara
com a nossa sardinha assada, o bacalhau com grelos ou o tinto
diretamente do lavrador.

88
É precisamente para esses portugueses que se dirigem estas
reportagens. Para ficarem satisfeitos em saber que na Papua Nova
Guiné (onde quer que isso seja), também há portugueses a viver,
que têm umas vidas de sucesso (como todo o emigrante que se
preze, senão já teria regressado a casa) e que também lá há onde
comer um pão de ló de Ovar ou um choco frito à setubalense.
Esta universalidade lusitana, enche de orgulho o nosso
patriotismo provinciano, evoca a epopeia das descobertas, o
Eusébio, a Amália e o Cristiano Ronaldo e deixa toda a gente
satisfeita, desde os políticos, ao leitor, passando pelo editor de
sucesso que publicou a reportagem.
Até satisfaz o viajante, que embora preferisse, mil vezes,
andar a entrevistar indígenas e a aprender alguma coisa da cultura
local, sujeita-se ao provincianismo lusitano, como forma de ajudar a
financiar o seu vício da viagem.
E, quem sabe, talvez paralelamente à reportagem bacoca,
sobre os descendentes dos Lusíadas, se disponha também a escrever
um livro decente de viagem, sobre a cultura e a experiência de vida,
por terras exóticas.
As poucas que ainda subsistam, neste mundo globalizado,
cada vez mais parecido entre si e descaracterizado pelo turismo
massificado e pela economia global.
Mas se calhar é só azedume da minha parte, que, mesmo
viajando pouco, me considero um cidadão do mundo e tenho alergia
e tudo o que sejam nacionalismos, patriotismos e generalizações
abusivas em razão da raça, da história ou da nacionalidade.
Essa ideia de que os portugueses são assim ou assado, faz-me
espécie, porque nunca conheci dois portugueses iguais. Uns são
pobres e outros ricos, uns brancos e outros pretos, uns trabalhadores
e outros preguiçosos, uns são homens, outros mulheres, outros
ainda, ao que parece, as duas coisas ou nenhuma delas.

89
Uns até têm o vício das viagens, enquanto outros nunca
saem de casa. Por isso, vá-se lá saber como são os portugueses? São
como todos os outros povos, uns melhores, outros piores, com
defeitos e virtudes, como todos os seres humanos. E nem todos
gostam de fado, de sardinha assada, de bacalhau com grelos ou de
tinto diretamente da pipa.
Eu, por exemplo, não gosto de nada disso.

17 de Abril de 2023

90
Reescrever o Passado

Gostaria de deixar bem claro, desde o início, que o passado


já está escrito, por isso não se reescreve, apenas se pode
reinterpretar.
Claro que se podem obter novos documentos históricos, à
luz dos quais se reescreve um passado, que estava mal escrito. Mas
mesmo assim não se reescreve o passado, mas sim a forma como era
visto ou interpretado. A realidade não muda, porque já passou e
nada pode alterar os factos. O que muda é a perceção do intérprete,
seja alargando o seu conhecimento sobre os factos, seja ainda
aplicando os seus valores atuais aos factos passados. É precisamente
a esta última atividade que se chama, por vezes e incorretamente,
reescrever o passado.

Será legítimo ao intérprete aplicar os seus conceitos morais


ou éticos aos factos passados? Ou, pelo contrário, deverá munir-se
de uns óculos, fora de moda, e olhar para a história com os olhos
dos que a viveram?

91
Por muito que eu gostasse de olhar para as coisas com os
olhos dos meus antepassados, porque seria, sem dúvida, uma
experiência extremamente enriquecedora e aumentaria
substancialmente a minha capacidade crítica, de ler e interpretar a
história, a verdade é que esses óculos não existem e por isso é
impossível olhar para o passado com os olhos dos seus
contemporâneos.

Somos produto do nosso tempo e, como tal, só podemos


olhar para as coisas com os olhos que temos. Qualquer tentativa de
imitar os olhares pretéritos, está condenada ao fracasso, é um
simulacro, uma máscara, não nos aproxima dos factos, só nos afasta.

Como poderemos então conhecer os factos passados, sob o


olhar dos seus intérpretes? Recorrendo à sua própria interpretação.
Seja a que nos foi legada, através de documentos históricos, seja
ouvindo as vivências dos mais velhos, que têm, sobre o passado, o
conhecimento de quem o experimentou e não apenas de quem o
interpreta retroativamente.

Isso significa que ao mais jovem está vedada a interpretação


do passado? Seguramente que não. Os factos estão sempre sob
escrutínio e todos têm legitimidade para o fazer.
É tão legítimo ao jovem interpretar o passado como ao que o
viveu. Mas é fundamental que o jovem alargue a sua visão sobre os
factos, conhecendo, tanto quanto possível, a visão dos seus
contemporâneos, para que possa fazer uma interpretação
fundamentada, caso contrário emitirá uma mera opinião avulsa e
gratuita, sem qualquer sustento histórico e contextual.
Isto não significa, obviamente, que não possa fazer a critica
das interpretações contemporâneas. Pode e deve fazê-lo, se concluir

92
que o quadro ético em que foram emitidas está viciado, carecendo
assim de crítica, de reapreciação dos factos, à luz dos valores, que
considera corretos. É uma análise necessariamente subjetiva e
datada, como todas, mas perfeitamente legítima, desde que
fundamentada, baseada no conhecimento dos valores vigentes,
atuais e à data dos factos.
Com isso não reescreve a história, porque essa, como
comecei por referir, já está escrita e não pode ser alterada. Apenas
reinterpreta os factos que a integram e, desse modo, produz uma
nova visão histórica, atualizada, mas não adulterada, porque os
factos analisados são os mesmos. Foram os olhos que os veem que
mudaram.
Não há porque se escandalizar com essas reinterpretações.
Sempre assim foi. Sempre os historiadores olharam para o passado
com os olhos do seu presente. Se analisarmos a história antiga e o
modo como foi interpretada ao longo dos tempos, concluímos
obviamente que o modo como os romanos interpretavam a sua
história é muito diferente do olhar medieval, o qual por sua vez
difere do renascentista, do modernista, do positivista, do marxista,
do contemporâneo e tantos outros que poderíamos acrescentar. Não
há uma história, mas quase tantas como os intérpretes.

A história está sempre a ser reinterpretada, geração após


geração, e aqueles que julgam que o saber histórico se cristalizou, no
conteúdo dos seus livros escolares, desenganem-se. Basta olharem
para os livros escolares dos seus filhos (ou dos seus pais) para
perceberem que não há uma história, mas múltiplas interpretações
da história, que variam em função do tempo e dos valores do
intérprete.

93
Um exemplo passou recentemente sob os meus olhos. Uma
crítica ao realismo literário, no caso concreto ao alentejano, porque
só teve olhos para as consequências económicas do tempo,
esquecendo, ou pior do que isso, desculpando, os aspetos pessoais e
sexuais traumatizantes, existentes na época.

Com isto se pretende criticar quem, ideologicamente, só viu


no Alentejo a exploração do trabalho dos pobres pelos ricos, que
levou ao êxodo, esquecendo que essa exploração não era apenas
económica, mas também sexual, privilegiando o abuso pelos ricos
das jovens pobres e originando uma abundância de bastardos e das
consequentes segregações sociais, também elas motivadoras do
êxodo.
Temos aqui um exemplo evidente de como o olhar mudou,
em função dos valores geracionais. Não é que os escritores realistas
desconhecessem essa realidade, tanto assim que alguns até se lhe
referem, nas suas obras. A diferença é a valoração. Para eles o
comportamento marialva dos homens era um facto universal,
indigno de valoração política e ideológica. O que lhes interessava
era a exploração económica, essa sim de essencial denúncia para que
o sistema mudasse e se libertassem os pobres do jugo explorador dos
ricos. Tudo o resto viria como consequência necessária das
mudanças estruturais, políticas e económicas.
Já as novas gerações, que não viveram esses tempos de
miséria, tendem a desvalorizar o fosso económico e a luta de classes
em detrimento dos valores, muito mais atuais, da liberdade e da
autodeterminação sexual.
Para eles, parece mais grave que um poderoso assedie
sexualmente uma empregada e lhe faça um filho bastardo, do que a

94
explore economicamente, usando a sua força de trabalho e
mantendo-a num nível de vida imoralmente miserável.
No caso concreto eu gostaria de acrescentar que a análise
falha, na sua circunscrição à paisagem social alentejana. Não era
uma questão de local, mas de mentalidade. O abuso existia, não
apenas nas casas senhoriais alentejanas, mas também no resto do
país, incluindo os centros urbanos. Não era uma consequência das
relações sociais, especificamente alentejanas, mas fruto da
mentalidade da época que, por pudor e moralismo hipócrita,
desvalorizava os comportamentos sexuais, remetendo-os ao silêncio
e ostracizando as vítimas, em vez de punir os violadores.

Era um problema generalizado, que atingia todas as regiões


e extratos sociais, que tanto existia na província como na cidade.
Estando, aliás, longe de ser um problema exclusivamente português,
ou sequer de um derivado da ditadura.

Naturalmente que, quanto mais ignorante é um povo, mais


sujeito está aos abusos da falsa moral e do silêncio.

O Portugal dos nossos avós era maioritariamente analfabeto,


com maior incidência no campo que na cidade, por isso estava
particularmente exposto ao abuso. Mas a ignorância também existia
nas cidades e noutros países. Se recuarmos cem anos, vemo-la
disseminada por quase toda a Europa. Foi um processo longo e
lento, que transformou os trabalhadores braçais analfabetos de 1900
nos mestres e doutores da atualidade.
Um processo, ao longo do qual, se viveram duas guerras
mundiais, totalitarismos fascistas e comunistas e, finalmente, uma
sociedade de consumo rica, que produz mais doutores do que
precisa e não sabe o que lhes há de fazer.

95
Um processo ao longo do qual se evoluiu da sardinha para
três para o rodízio de peixe e carne, da fome para a obesidade
mórbida e, naturalmente, dos bastardos para a criminalização do
assédio sexual.
E só assim se pode compreender a história, com uma visão
abrangente e atenta ao devir social. Olhar para o passado com os
olhos postos no caso particular, e apenas à luz dos valores atuais,
produz necessariamente uma visão grotesca e disforme, que pouco
contribui para o seu estudo e compreensão.

20 de Abril de 2023

96
Identidades

Aquilo que somos depende, afinal, muito menos de nós


próprios, do que gostaríamos de admitir.
Desde a conceção, somos influenciados por fatores externos.
Eu, por exemplo, sou incapaz de comer laranjas, sendo um facto que
a minha mãe não só as adora, como comeu abundantemente
laranjas durante a gravidez, como se nada mais a satisfizesse.
Estarão os dois factos relacionados? Estou convicto que sim, embora
não possa de todo fundamentar essa convicção.
Depois do nascimento, a influência externa aumenta. A
mãe, em primeiro lugar, depois o pai, os avós, os irmãos ou irmãs, se
existirem, os amigos, vizinhos, parentes, colegas, etc, etc, etc,
durante o resto da vida.
Mesmo no leito de morte, aos cem anos de idade, se
tivermos um mínimo de lucidez, estaremos a receber influências
externas na nossa personalidade, da enfermeira, dos visitantes, do
padre, do médico.

97
Por isso, uma identidade é algo de único e extremamente
complexo. Se assim não fosse, dois irmãos, criados igualmente,
seriam duas pessoas, se não iguais, pelo menos muito parecidas, e
qualquer indivíduo que tenha experimentado a parentalidade ou a
irmandade, sabe que Isso é totalmente falso. Os irmãos, mesmo
quando partilham semelhanças físicas, o que nem sempre acontece,
têm profundas diferenças de personalidade, entre si.
Por isso, podemos facilmente concluir que, se as heranças
cultural e biológica exercem uma influência óbvia na construção da
identidade de um indivíduo, estão longe de constituir as únicas, ou
sequer as principais, influências. São duas, entre milhões de outras
influências, sofridas ao longo da vida e que, no seu todo, constroem
a identidade de um indivíduo.
Por isso desconfio das identidades dominantes, das
generalizações excessivas, das consciências de classe, nacionais,
regionais, sexuais, religiosas e de todas as outras, em que se
pretende, à força, espartilhar a identidade individual numa
qualquer tipologia geral.
Nunca conheci dois indivíduos iguais, por mais identidades
comuns que partilhassem. Mesmo os irmãos gémeos verdadeiros, e
conheci alguns em criança, ao fim de poucos dias de contacto, já são
totalmente destrinçáveis, pela simples maneira de falar, de vestir, de
agir, de pensar. Cada ser humano é único, independentemente das
suas origens e percurso de vida.
Não obstante, as pessoas procuram a sua identidade no
passado. Não apenas no seu, mas também no da sua família,
buscando em supostas generalidades familiares, regionais, sociais,
políticas, culturais, económicas, nacionais, as explicações para a sua
individualidade particular.
É uma pura ilusão. Todos temos percursos de vida distintos
e diversos e se, nalguns, a origem regional, por exemplo, pode
determinar características individuais notórias, como o sotaque,

98
noutros ela é totalmente impercetível. O mesmo se poderá dizer de
todas as outras influências sofridas, em maior ou menor grau, ao
longo da vida.
Por exemplo, eu passei cinco anos da minha vida num
colégio católico e autoritário. Alguns dos meus colegas, de então,
acharam a experiência tão positiva que lá puseram os filhos a
estudar, quando a oportunidade surgiu. Eu detestei a experiência,
saí de lá a odiar religião e autoritarismo e seria o último local onde
eu colocaria os meus filhos a estudar. A mesma vivência originou
experiências e individualidades opostas.
Tudo influencia, é certo, mas nem sempre da mesma
maneira, dependendo da conjugação incontrolável de fatores, que
contribuem para a formação de uma personalidade.
Vem esta reflexão a partir da leitura de um livro, Alentejo
Prometido, de Henrique Raposo, que gostei bastante, apesar de não
me identificar, de todo, com aquela busca desiludida, do autor, pela
sua identidade alentejana, que acaba por rejeitar perentoriamente,
talvez até em demasia.
Em mim, o livro teve o enorme mérito de tornar evidentes
algumas supostas características alentejanas da minha identidade,
que eu nunca assumira como tal, talvez por a minha experiência
alentejana ter sido, fundamentalmente, diferente da do autor.
Temos percursos com pontos de contacto. Ambos nascemos
em Lisboa e crescemos na periferia da capital, ambos temos
ascendentes alentejanos e ambos passámos períodos da nossa
infância no Alentejo, em contacto com familiares que lá
permaneceram e outros que, como nós, lá regressavam
regularmente, em dias de festa.
Mas também temos algumas diferenças significativas de
percurso. Para começar eu sou 11 anos mais velho que o autor, o
que deveria proporcionar uma visão diferente do Alentejo da
infância, o meu passado nos anos 70 e o dele nos anos 80. Todos

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sabemos o quão diferentes foram os anos 70 e 80 do século XX em
Portugal, particularmente no Alentejo.
Curiosamente esta diferença, que se anunciaria abissal,
dilui-se quase por completo, com as recordações invocadas a
sobreporem-se frequentemente, como se tivéssemos sido
contemporâneos.
Isso deve-se, na minha opinião, a dois fatores importantes,
que igualmente afastam as nossas experiências. O local da origem,
ele do litoral alentejano eu do interior raiano, e os
condicionamentos socioeconómicos, ele descendente de foreiros e
jornaleiros rurais, eu de pequenos proprietários urbanos (porque
nem todos os proprietários alentejanos são latifundiários).
Estas duas diferenças importantes, fizeram com que o seu
Alentejo dos anos oitenta, fosse muito parecido com o meu Alentejo
dos anos setenta, o que seria aparentemente pouco provável.
Mas também há diferenças significativas no percurso de
vida, que mudaram a visão pessoal do Alentejo de cada um de nós.
Ele, embora filho e neto de alentejanos, criado na periferia de
Lisboa, casou com uma nortenha e passou a frequentar o norte e a
experimentar a familiaridade do norte, comparando-a com a do seu
Alentejo.
Eu, embora filho de alentejano e de minhota, criado
também na periferia de Lisboa, casei com uma lisboeta e nunca tive
grande contacto com o norte, nem mesmo com a família materna,
dispersa pelo mundo e de laços quebrados, ao contrário da
alentejana que esteve sempre bem presente, até à idade adulta.
Para ele o Alentejo é secretista (fala abundantemente da
omertà alentejana, comparando o Alentejo à Sicília), é desconfiado,
quase antipático, é de fraca afetividade, de laços frágeis de
parentesco, de fraca religiosidade, anticlerical, machista e marialva,
incentivando as uniões de facto e a bastardia, ainda que tolerante
com as mães solteiras, e sobretudo é deprimido e com elevada

100
tendência ao suicídio, vendo-o genericamente como uma liberdade
e um direito, perfeitamente legítimos e frequentemente elogiados.
Tudo isto em clara contradição, obviamente, com o norte a que se
converteu, concluindo pela renúncia perentória à identidade
alentejana e pela constatação de uma mestiçagem, onde entram as
poucas reminiscências alentejanas, a juventude suburbana e as
novas influências do norte sociável, católico e solidário.
Há aspetos citados que coincidem com o meu Alentejo,
como o anticlericalismo que, embora afastasse uma grande afluência
da missa, não impedia que, todos os anos, se fizesse uma longa
procissão, que percorria toda a vila, e à qual as pessoas
compareciam, mesmo vindas de Lisboa, ou esperavam às varandas,
de colchas estendidas para engalanar a cerimónia.
Concordo que há alentejanos desconfiados, mas nunca senti
grande dificuldade em quebrar essa desconfiança inicial. Basta citar
o nome da família ou de algum amigo local para se abrirem as portas
e os sorrisos e os meus alentejanos sempre foram acolhedores,
hospitaleiros e simpáticos. Aliás a minha mulher lisboeta aderiu de
corpo e alma à simpatia e hospitalidade alentejanas, achando-as
muito superiores às que encontrou noutras regiões do país, onde
tinha ligações familiares, como a Beira Baixa. Experiências pessoais.
No que respeita ao secretismo, machismo marialva e
bastardia, devo dizer que a minha experiência pessoal é exatamente
oposta à do autor do livro. É na minha família nortenha que tenho
um bisavô fugido para o Brasil, que deixou a mulher com quatro
filhos para criar sozinha, na miséria, que se viram na contingência
de trabalhar a servir, desde crianças e, no caso da minha avó, a ser
"enganada" pela família do patrão, com uma filha ilegítima,
concebida na Maia, nunca assumida pelo pai, e criada às escondidas,
entre a avó na aldeia e um colégio interno em Lisboa. Foi por isso
que, na minha família nortenha, sempre senti os laços quebrados, a
frieza nos sentimentos e um contacto inexistente entre os

101
familiares. A minha mãe nunca conheceu o pai nem o avô. Nunca
teve uma ligação afetiva com a mãe. Nunca conheceu os primos
direitos. Muito menos eu. E quanto a segredos posso dizer que a
minha mãe só conheceu o nome do pai em adulta e não foi por
intermédio da mãe. Esse episódio da vida da minha avó foi tabu
durante toda a sua vida e as escassas informações recolhidas pelos
descendentes vieram de terceiros. Afinal parece que no Minho e na
Maia também havia omertà.
Em contrapartida, na minha família alentejana, tenho vários
casamentos consanguíneos (entre primos e várias gerações das
mesmas famílias) mas nunca lhe conheci uniões de facto, nem filhos
bastardos (nem divórcios confesso, concordando neste particular
com o autor). Conheci todos os meus primos direitos e um grande
número de primos afastados. Éramos visita habitual de casa uns dos
outros, onde muitas vezes comi e pernoitei, quer no Alentejo, quer
em Lisboa.
Também reconheço que o alentejano gosta da liberdade e,
como é pouco religioso, tem tendência para lidar facilmente com o
suicídio. Não tenho suicídios conhecidos na família, mas conheço
famílias alentejanas que os tiveram. Mas não vejo nisso um defeito,
muito pelo contrário, vejo-o como um apego à liberdade individual
e uma insubmissão à moral católica vigente no norte, valores com
os quais me identifico totalmente.
Neste particular sou alentejano assumido. Ponho o valor
liberdade acima da vida e considero o suicídio uma opção
perfeitamente legítima, para qualquer indivíduo.
Concluo portanto que o meu Alentejo não é seguramente o
mesmo que o de Henrique Raposo, da mesma maneira que o meu
norte não é nada parecido com o dele.
Por isso, embora também eu seja um mestiço, no sentido em
que incorporei na identidade individual elementos dispersos,
oriundos, alguns deles, do Alentejo interior, outros dos subúrbios de

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Lisboa, outros ainda da própria vivência urbana da capital (muito
poucos do norte, apesar de ser filho, neto e bisneto de minhotos),
não renego de todo a minha herança cultural alentejana. Muito pelo
contrário, prezo-a, vivo-a e partilho-a sempre que posso, com a
minha mulher, filhos e amigos.
Aliás, tenho primos nascidos em Lisboa, que já fizeram o
contra êxodo rural e foram viver, casar e procriar na terra de origem
dos pais. E eu próprio, embora nunca tenha vivido no Alentejo e
hoje ter pouca família a viver lá, dou comigo frequentemente a
sonhar com um regresso às origens, talvez na reforma, não
necessariamente à terra do meu pai, mas pelo menos ao Alentejo, à
cultura alentejana, onde me sinto bem, onde me sinto muito mais
em casa do que em qualquer outro local do país.
São questões muito complexas, as que determinam a
identidade de cada um, por isso há que ter muitas cautelas com as
generalizações, sobretudo quando têm por fundamento experiências
individuais.
É que o paraíso de uns é frequentemente o inferno de
outros.

23 de Abril de 2023

103
104
Paradoxos

A vida é composta de absurdos. Está é uma realidade que


rapidamente se conclui, pela experiência e pela observação da
vivência, própria e alheia.
Mas à medida que envelheço constato que os absurdos se
multiplicam na vida, não sei se por mera consequência direta da
idade, ou se por melhoria da perceção, decorrente da maturidade
(seria presunção chamar-lhe sabedoria).
Um dos paradoxos da vida atual decorre da maior
longevidade. Vive-se inquestionavelmente mais. No espaço de uma
geração acrescentaram-se pelo menos quinze anos à esperança
média de vida dos seres humanos. Mas isso significa que se vive
melhor? O que fazemos com esses anos extra, que a medicina nos
ofereceu? Algo de relevante, de fundamental, na nossa vida ou na
sociedade?
Bem entrado nos cinquentas, confesso-me totalmente
impreparado para enfrentar a velhice. Tal como as mulheres se
queixam de nunca terem sido preparadas para a menopausa, ao
contrário do que sucede na puberdade, em que as mães
exaustivamente as advertem, para os perigos e consequências do
início da sexualidade. As mães não preparam as filhas para as

105
consequências da menopausa. Algumas porque já cá não estarão
para o fazer, mas a maioria, muito simplesmente, porque não saberá
o que dizer às filhas, porque elas próprias ainda estarão a aprender a
lidar com a sua nova realidade sexual, pós menopausa. Geralmente é
dominada pela simples ausência, um completo vazio, que nem por
isso deixa de constituir um problema psicológico grave a resolver,
para o qual não se sentem minimamente apoiadas, ou sequer
devidamente informadas.
Pois passa-se exatamente o mesmo com os homens, embora
com uma particularidade, em relação às mulheres. Enquanto estas
últimas se conformam, geralmente, com a ausência de vida sexual e
vão gerindo, como podem, as consequências psicológicas da
amputação do que deveria ser uma parte importante da sua vida, os
homens ignoram-na, fingem que tudo está na mesma, mentem
descaradamente, uns aos outros, sobre a sua vida sexual, e
continuam a tentar seduzir mulheres, como se tivessem trinta anos.
É verdade que, graças aos químicos, já é possível ter ereções
pós andropausa, ainda que tímidas e à custa da saúde coronária. Mas
os resultados, pelo menos de acordo com a minha experiência
pessoal, ficam muito aquém das expectativas. E depois é preciso
contar com a disponibilidade sexual da parceira, sobretudo se for da
mesma faixa etária.
Por outras palavras, também a mim ninguém me alertou
que, após os cinquenta, o sexo seria um problema. E quem ouve
conversas de homens, dessas idades e superiores, fica convencido
precisamente do contrário, porque continuam a falar de sexo como
se nada tivesse mudado e estivessem no pico das suas capacidades
eróticas.
É simplesmente ridículo, de tão ostensivamente falso. Tal
como em tantas outras coisas na vida, vive-se da aparência e o
homem está habituado a mentir sobre sexo desde o momento em

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que tem a primeira ereção. Porque razão haveria de mudar aos
cinquentas?
Mas não é só o sexo que nos é vedado na velhice, é também
a saúde, em geral. Cada um no seu género, é evidente, mas pouco a
pouco, vemos fugir os prazeres da vida, um a um.
O sexo, a comida e a bebida que gostamos, a disposição, a
autonomia, as capacidades cognitivas e locomotoras, tudo, até
ficarmos um perfeito vegetal, dependente de terceiros, a menos que
tenhamos a sorte ou a coragem de morrer antes.
Temos assim um quadro negro de paradoxos sucessivos e
sobrepostos em que, quando mais se dura, menos se vive.
É preciso reaprender a viver após cada nova limitação,
acrescentada ao rol. Da mesma maneira que um acidentado, que
perde o uso de parte do seu corpo, tem que reaprender a viver com
as suas limitações, assim a velhice nos vai amputando pedaços da
vida, a cada nova limitação, doença ou incapacidade, que não são
fáceis de gerir psicologicamente, com a enorme diferença que, o
incapacitado abrupto, tem geralmente acompanhamento
psicológico e terapêutico, para reencontrar um equilíbrio na sua
nova vida limitada, enquanto os velhos são deixados à sua própria
sorte, à ignorância e à decrepitude, sem que ninguém os ensine a ser
velhos, totalmente expostos à bazófia e à ignorância, de uma
sociedade cada vez mais competitiva e desumanizada.
Não admira que se entreguem à solidão, à depressão e
quantas vezes ao suicídio, por falta de capacidade em lidar com as
limitações e aviltamentos crescentes da velhice. Não é por acaso que
é nas sociedades em que se vive mais que existem maiores taxas de
suicídios.
É pois fundamental que se pense na educação para a velhice.
A educação sexual não é necessária apenas para os jovens que
iniciam a sua sexualidade mas também para os que a terminam, sem

107
saber muito bem como viver, após o fim ou o decréscimo do desejo
e do estímulo sexual.
Da mesma maneira, não basta dizer aos velhos que têm de
deixar de comer quase tudo o que gostam e estão habituados e
mudar radicalmente as suas dietas, para coisas saudáveis, sem
perceber que comer e beber é um dos principais prazeres da vida e
que essa mudança radical, equivale a tirar a nicotina a um fumador,
o álcool a um alcoólico ou as drogas a um toxicodependente.
A reação imediata é de recusa, de incapacidade. A segunda é
de que não vale o sacrifício, porque se para viver mais tempo tiver
que renunciar a tudo o que me dá prazer na vida, então prefiro
viver menos e gozar os poucos anos que me restam.
Só um apoio psicológico, adequado e gradual, poderá ajudar
a reequacionar as prioridades da vida e a tentar descobrir novos
prazeres a cada nova limitação. A maioria das pessoas não tem essa
capacidade de adaptação e das duas uma, ou viola a dieta ou
renuncia à vida, sem prazeres sucedâneos. Mais tarde ou mais cedo.
Até lá, vive deprimido, ansioso, infeliz, refém da medicação.
Não espero milagres dos psicólogos e psiquiatras, mas a total
ausência de acompanhamento não é seguramente solução. Há que
buscá-la em colaboração com o paciente, pois cada caso é
seguramente diferente, dependendo da personalidade e das
limitações físicas e psicológicas de cada um.
Assim, vão-se arrastando os velhos pelos cafés e bancos de
jardim, discutindo o absurdo e adiando inutilmente uma morte
anunciada, numa completa improdutividade e crescente
estupidificação, desperdiçando a sociedade todo o saber e
experiência acumulados na sua, cada vez maior, faixa etária mais
idosa.
A velhice, como tudo na vida, não tem que ser só um
problema, também pode ter as suas virtudes.

108
Mais um paradoxo da vida. Quanto mais se sabe menos se
pode ou, como escreveu Saramago, nem a juventude sabe o que
pode, nem a velhice pode o que sabe.

28 de Abril de 2023

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Um Texto Reacionário Sobre
Emigração

Não sou, nunca fui e, provavelmente, nunca serei


emigrante.
Esclareço que nada me move contra a migração, seja escrita
com e ou com i. É uma opção tão legítima como qualquer outra e,
como já referi por diversas vezes nestas e noutras páginas,
considero-me um cidadão do mundo. Por isso, seria uma tremenda
contradição manifestar sentidos recriminatórios contra os que
partem, ou xenófobos contra os que chegam.
O que me irrita, especialmente, é a cultura emigrante.
Eu passo a explicar. Há uma certa mentalidade, que
prolifera, não apenas entre os muitos que partem para o estrangeiro,
mas também entre os estudiosos do fenómeno, antropólogos,
sociólogos, historiadores e outros cientistas, que tende a ver no
emigrante, um escorraçado do seu país, em fuga à miséria,
maltratado e traumatizado por todos, que foge da fome, do
desemprego, da guerra ou simplesmente da sachola, enchendo os
bolsos de traficantes clandestinos, para ser enfiado em contentores

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de alguma periferia urbana, e explorado até ao tutano, por patrões
sem escrúpulos.
Entre os que emigram, domina o sentimento da saudade, do
sacrifício, da abnegação, do risco, tudo para amealhar uns tostões e
construir uma maison de luxo na sua aldeia, no meio da serra, onde
vivem doze pessoas. Paradoxalmente, para se dedicarem, na
reforma, à mesmíssima agricultura, de que fugiram na juventude.
Já entre os eruditos, o fenómeno é sempre encarado como
consequência nefasta de más políticas, que não criam emprego para
os nacionais, empurrando-os para o sacrifício da emigração, na
maioria das vezes em condições deploráveis e frequentemente, para
serem alvo de burlas e abusos de redes de angariação de trabalho
ilícitas, que cobram fortunas, a troco de empregos que não existem
ou, quando existem, oferecem metade das condições e dos salários
prometidos.
Estes comportamentos migratórios dos portugueses, são
ainda frequentemente atribuídos a uma índole aventureira dos
lusitanos, que teve origem nos descobrimentos, e continua bem
viva, na alma deste povo irrequieto, que nunca perde uma
oportunidade para tentar a sorte, em terras estrangeiras, embora
pareça, quase sempre, pouco vocacionado para desenvolver o seu
próprio país.
Desculpem o desabafo, mas esta retórica já deu o que tinha a
dar e não só não me convence, como não me comove também.
Desde logo porque é falaciosa. Se a vida no campo é difícil e
o dinheiro pouco para alimentar a família, quem se sacrifica mais?
O que fica de sacola nas mãos, a fazer pela vida e a tentar melhorar
as coisas, ou o que parte sozinho, deixando a mulher e os filhos
entregues à caridade, em busca do eldorado em terras estrangeiras,
quantas vezes invejoso do sucesso do irmão, do tio ou do primo, que
voltam todos os anos de carro novo, para as festas da aldeia?

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Depois, porque em cada emigrante há uma história
diferente para contar. A ideia de reduzir a emigração a um
fenómeno de camponeses analfabetos, que partem para fugir à
miséria da agricultura de subsistência, é falsa e tem por base
experiências com mais de cinquenta anos de idade.
Conheci e conheço muitos migrantes, com e e com i. Há
quem tenha saído, para fugir à tropa e para viver em casa de
familiares no estrangeiro. Há quem tivesse empregos modestos na
cidade e tenha rumado a França ou à Alemanha, em busca de
trabalho mais bem remunerado. Há quem tenha ficado insolvente,
em Portugal, e tenha emigrado para fugir aos credores. Há quem
tenha ido estudar para o estrangeiro e por lá tenha ficado a
trabalhar. Há quem tenha formação especializada e tenha optado
por ofertas de emprego no estrangeiro, por serem mais atraentes, e
alguns deles até estão hoje a viver, a maior parte do tempo, em
Portugal, em teletrabalho. Há quem tenha perseguido sonhos
artísticos em terras estrangeiras, em busca de fama e sucesso. Há
quem parta, simplesmente, à aventura, experimentando culturas
exóticas e climas diferentes. Há quem tenha casado com
estrangeiros e acompanhado os cônjuges para o país deles, muitas
vezes para regressarem todos a Portugal, mais cedo ou mais tarde,
porque o clima é melhor e a vida mais barata. Há quem use a
formação que tem para correr mundo, em busca de experiência e
aventura, como freelancers. Há quem tenha profissões
independentes, que passa temporadas num país e noutro e mais
outro, ao sabor dos contratos ou das oportunidades surgidas.
Há milhares de motivos para emigrar e tanto emigram os
portugueses, como os outros povos. Será que os franceses, norte-
americanos, ingleses, romenos, brasileiros, senegaleses, indianos,
chineses, nepaleses, argentinos, cubanos, moldavos, ucranianos (que
já cá estavam aos milhares antes da guerra), bielorrussos, italianos,
australianos, sul-africanos, cabo-verdianos, angolanos, guineenses,

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bengalis, paquistaneses e tantas outras nacionalidades que
compõem, atualmente, a população deste país, também têm todos
sangue do Vasco da Gama ou do Pedro Álvares Cabral, também
fogem da guerra colonial e do salazarismo, ou das políticas
neoliberais, que privilegiam o crescimento económico em
detrimento da criação de emprego e permitem o outsourcing de
toda a indústria, para os países em desenvolvimento, deixando
apenas para os nacionais o turismo e os hipermercados?
O emigrante não é um pobre coitado, que foge da miséria
para se encontrar com o inferno dos oportunistas. Infelizmente há
casos desses, não nego, que vão sendo combatidos, na medida do
possível, pelas autoridades nacionais e internacionais. Mas são as
exceções.
A grande maioria dos emigrantes, nacionais e estrangeiros,
são pessoas normais, que decidem tentar a sorte em terras
estrangeiras, em busca de sonhos de carreiras, de riqueza, de
benefícios fiscais, de descanso ou simplesmente de aventura. Alguns
regressam, ao fim de algum tempo, ou porque a experiência não deu
os frutos desejados, ou porque já deu os frutos suficientes para
considerarem o regresso a casa, no papel de endinheirados. Mas a
maioria, ou não volta, ou anda num permanente vai e vem, ao sabor
das oportunidades e das ocasiões, das necessidades pessoais e
familiares, dos investimentos e dos mercados. São nómadas
modernos, cidadãos do mundo, que hoje trabalham em França,
amanhã no Dubai, para a semana que vem no Japão e no ano
seguinte nos Estados Unidos ou no Brasil ou na Rússia.
Esse é o futuro.
Quando olho os meus filhos, carregados de diplomas
técnicos e universitários, a falarem inglês com tanta ou maior
fluência que o português e com colegas e contactos, um pouco por
todo o mundo, fico perfeitamente ciente que o seu futuro passa pelo

114
estrangeiro e que a minha geração, que nasceu, cresceu, estudou,
trabalhou e morreu na mesma cidade, está em vias de extinção.
Para as novas gerações a nacionalidade é um papel passado
na conservatória, que serve para viajar. A sua pátria é o mundo.
A cultura emigrante é cada vez mais uma recordação do
passado. Subsiste apenas nos refugiados, que chegam de mãos a
abanar, em busca de sobrevivência. Esses são os únicos que partem a
salto, nos dias que correm, em perfeita miséria e na dependência da
caridade e da assistência internacionais.
Mas, até esses, merecem que os olhem como cidadãos,
válidos e qualificados, a integrar nas sociedades de acolhimento, e
não como miseráveis, pobres coitados que se acumulam em campos
de concentração, enquanto esperam uma casa num bairro social e a
atribuição de um subsídio estatal de reinserção.
Em vez de gastar dinheiro a reprimir a migração, a expatriar
e a suportar os custos da improdutividade, melhor seria que os
governos inscrevessem toda essa gente nos centros de emprego, a
ocupar os postos de trabalho que os nacionais não querem exercer,
por excesso de formação e por alimentarem sonhos de grandeza, em
terras prometidas.

30 de Abril de 2023

115
116
Eutanásia, Um Problema de Ricos?

A morte é um tema traumático para a maioria das pessoas.


Basta analisar o modo como a reagem, quando lhe falam em
agências funerárias. Há quem se benza, quem faça uma careta de
nojo, quem mostre o desagrado com gestos ou ditos de superstição,
do tipo "cruzes, canhoto" ou "bater em madeira", ou quem
simplesmente mude rapidamente de conversa, descontente com o
rumo presente.
Poucos são os que encaram a morte com a naturalidade que
tem, ou com o interesse que deveria merecer, pois todos
morreremos um dia e todos viveremos, mais tarde ou mais cedo, o
drama da morte, da dos que nos estão próximos, até que chegue a
nossa própria.
Esta atitude, de negação da morte, sempre me surpreendeu.
Sobretudo entre pessoas que se manifestam crentes e religiosas.
Convenhamos que um crente ter medo da morte não mostra muita
fé, ou nele próprio ou no seu Deus. Pelo contrário, são os ateus
quem mais facilmente aceita que a morte é o fim, geralmente com a
naturalidade que tem.
Talvez por nada terem a perder, se porventura estiverem
errados.

117
O meu caso pessoal é particularmente curioso, porque não
só sou ateu, e sempre assim me assumi, desde o final da infância,
como sempre estive, direta ou indiretamente, ligado ao setor
funerário. Pelo que, não só me habituei, desde cedo, a ver urnas,
cemitérios e cadáveres, como me habituei também a encarar, com
alguma banalidade, todos os rituais da morte.
Talvez esta minha frieza, relativamente à morte, tenha
contribuído para que nunca manifestasse grande interesse
relativamente à questão do suicídio assistido e da eutanásia.
Para mim a questão sempre foi simples. A vida é minha e
tenho o direito de dispor dela como e quando muito bem entender.
Por isso, se um dia estiver cansado de viver ou achar que a vida que
me resta, não vale a pena ser vivida, existem milhares de formas de
lhe pôr termo, sem incomodar muita gente, sem gastar dinheiro
nem recorrer a profissionais da arte.
Talvez levianamente, sempre encarei a questão da eutanásia
como um problema daqueles que não têm coragem para praticar o
suicídio e, por isso, carecem da ajuda de terceiros para o efeito.
Mas a verdade é que nem sempre é assim. Há quem queira
matar-se e não possa, simplesmente porque não tem capacidade
física para o fazer e precisa da ajuda de terceiros.
Nestes casos, como é óbvio e por uma questão de coerência,
terei sempre que privilegiar a vontade individual. Desde que o
indivíduo esteja na posse das suas capacidades de decisão,
informado, fisicamente incapaz de o fazer pelos seus próprios meios
e expresse de forma inequívoca a vontade de morrer, parece-me
totalmente desprovido de sentido, até do ponto de vista jurídico,
criminalizar quem lhos proporcione. Afinal de contas o suicídio é
legal, logo ninguém deveria ser punido por ajudar alguém a praticar
um ato legal.
Mais difíceis são os casos em que a pessoa perde a
capacidade mental de decidir o seu destino. Sobretudo se tal ocorre

118
de forma abrupta e inesperada, sem dar tempo a que a questão seja
sequer equacionada pelo paciente. Aqui não há como conhecer ou
sequer presumir a sua vontade, a menos que tenha deixado
instruções inequívocas nesse sentido, como num testamento vital.
Parece abusivo permitir a um familiar, ou a um médico, o direito de
decidir por ele.
Já nos casos de doenças prolongadas em que a pessoa,
mesmo informada das consequências previsíveis ou mesmo
inevitáveis da sua doença, opta por nada fazer e submeter-se
voluntariamente aos tratamentos, eu serei obrigado a presumir que
essa pessoa não quis abreviar a morte e, pelo contrário, pretendeu
estender a sua vida até onde fosse medicamente possivel. Por isso,
por maioria de razão, não faria sentido permitir que um familiar, ou
um médico, tomassem uma decisão, aparentemente, contrária às
convicções individuais do moribundo.
Mas a questão não se esgota nestes casos mais óbvios,
porque não só a realidade trata sempre de encontrar excepções para
as regras, como há questões éticas importantes a considerar.
Um argumento muitas vezes citado, é a possibilidade da
pessoa mudar de opinião. Parece-me, honestamente, uma falsa
questão. Se a pessoa manifestou uma opinião expressa, não faz
sentido questioná-la, precisamente quando se verificam as
condições previstas para a sua aplicação. Claro que, se a pessoa tem
lucidez, está sempre a tempo de mudar de ideias e de revogar o seu
testamento vital. Mas se não está, e se se deu expressamente ao
trabalho de deixar indicações expressas do que fazer, nessa
circunstância, seria criminoso, na minha opinião, ignorá-las,
desrespeitando a vontade do próprio, sob o pretexto falacioso que
ele poderia ter mudado entretanto de opinião. O mesmo argumento
poderia ser aplicado em sentido contrário, para justificar abreviar a
morte de alguém, que o não desejaria, porque poderia ter mudado
de opinião entretanto. É um absurdo.

119
Mais difícil é saber se será eticamente correto deixar uma
pessoa sofrer, indefinidamente, só porque existem meios médicos
que a permitem manter artificialmente viva, por meses ou anos, e
porque nunca teve oportunidade de se pronunciar (ou não quis)
sobre o que fazer nessa eventualidade. E mesmo que se entenda que
é um caso moralmente justificável de eutanásia, quem o deverá
decidir? A família, o médico, o juiz?
A recente pandemia de SARS-CoV-2 colocou os médicos em
situações de manifesto dilema moral e de eutanásia passiva
quotidiana.
Se um hospital tem três ventiladores e dez pacientes a
necessitar deles, a quem devem ser atribuídos? Muitos médicos
vieram a público manifestar o trauma de serem confrontados,
diariamente, com opções desse tipo, e muitos afirmaram,
peremptoriamente, que davam primazia aos mais novos e saudáveis,
chegando mesmo a ser emitidas recomendações, da direção geral de
saúde, sobre a prioridade na afetação dos recursos em caso de
necessidade.
Nesta altura, ninguém se preocupou com a eutanásia. No
entanto, dar um ventilador a um jovem de 20 anos de idade, em vez
de o dar a um velho de 80 é um ato de eutanásia passiva. O mesmo
se dirá, se a escolha incidir sobre um indivíduo mais saudável do
que outro. Aparentemente será mais saudável, mas não poderá o
diagnóstico estar errado? Não poderá morrer amanhã, de outra coisa
qualquer? Ou o preterido recuperar, inesperadamente?
Na gestão de meios escassos, como por exemplo órgãos para
transplante, ou até cirurgias, no nosso serviço nacional de saúde,
sempre se praticou a eutanásia passiva. Escolhe-se quem tem
prioridade no transplante ou na cirurgia e deixa-se os outros à
espera da morte, sem data prevista para a intervenção.

120
E mesmo fora de situações extremas de pandemia, em que
estas escolhas foram diárias no pico da crise, não terão os médicos
que fazer estas opções frequentemente, nos hospitais?
Se tivermos todos os ventiladores ocupados e entrar um
grupo de sinistrados a precisar deles, não terá que ser feita uma
escolha, entre quem fica com o ventilador e quem é transferido ou
fica sem ele, o mesmo é dizer, entre quem sobrevive e quem morre,
por falta de equipamento? Também aqui estamos perante atos de
eutanásia passiva, isto é, pessoas que morrem, por lhe terem sido
negados cuidados médicos essenciais.
Dir-se-á que a questão é a disponibilidade e que uma coisa é
negar voluntariamente o tratamento e outra diversa é ver-se
impossibilitado de o disponibilizar, por falta de meios
Mas então andam a cometer-se crimes diariamente, nos
hospitais. Se o critério é o da disponibilidade, então serve-se quem
chega primeiro, mesmo que tenha 90 anos de idade e uma esperança
de vida de dias ou horas.
Ora a prática confessada pelos médicos e recomendada pela
direção geral de saúde é no sentido de ser feita triagem, e se
estabelecerem prioridades na atribuição de ventiladores ou outros
equipamentos vitais.
Daqui se depreende que o tal velhote de 90 anos vai ser
privado da máquina e ver a sua morte acelerada, se entretanto
aparecer um paciente mais prioritário, para o uso do ventilador.
Será que se praticou um crime, ao desligar um doente de um
ventilador, para ligar outro, mesmo seguindo as recomendações
regulamentares vigentes?
Parece-me evidente que a eutanásia passiva é, e sempre foi,
uma prática quotidiana dos hospitais, pelo menos em países, como
Portugal, onde os meios hospitalares são, e sempre foram, muito

121
limitados, onde os médicos são obrigados, com frequência, a fazer
escolhas, a quem distribuem os escassos meios disponíveis.
Essa ideia de manter uma pessoa artificialmente viva,
durante décadas, é uma prática que só é justificável por questões
financeiras. Porque o cliente é rico, e pode manter-se
indefinidamente numa pseudo vida artificial, por incapacidade dos
familiares em aceitar a irreversibilidade da situação, ou porque o
hospital é gerido com intuito lucrativo e tem alguma coisa a ganhar,
com essa prolação inútil.
E quanto à eutanásia ativa? Essa parece-me manifestamente
ilegítima, salvo se a pessoa manifestou expressa e inequivocamente
a vontade, de forma livre e informada.
Mas será que, com a escassez de meios sempre existente,
haverá espaço para muitos casos em que a eutanásia ativa seja uma
possibilidade real e plausível em Portugal?
Perdoem-me o cinismo, mas acho que isso só sucederá
naquelas clínicas especializadas, com intuitos manifestamente
lucrativos, como algumas famosas associações suissas. É um
problema de ricos.
Quem recorrer ao serviço nacional de saúde, não tem que se
preocupar muito com isso.

2 de Maio de 2023

122
Ao Arrepio

Constato a existência de uma tendência para o uso da


expressão arrepiante, por tudo e por nada, o que considero parvo,
como a maioria das tendências, que decorrem de absurdos
sentimentos de integração social.
O arrepio é essencialmente uma reação ao frio ou ao medo,
um calafrio. Sente-se, geralmente, quando se tem febre ou se
enfrenta uma descida abrupta de temperatura e não se obtém, em
tempo útil, o indispensável abrigo ou agasalho. Ou então, na reação
incontrolável ao medo, ao susto, como num filme de terror.
Mas o novel uso eufemístico, ao arrepio da definição e,
desconfio, fortemente influenciado pela gíria futebolística, acha
arrepiante qualquer manifestação coletiva, que provoque emoção.
Um estádio de futebol cheio, a gritar golo ou a cantar o hino
nacional (por mais pobrezinho que seja, no poema e na música) é
arrepiante.
Uma sala de espetáculos cheia (ou até, meramente
composta) a cantar, em simultâneo com o artista, ou mesmo sem
ele, uma moda famosa, é arrepiante.

123
Sempre que um grupo alargado de pessoas comunga de um
sentimento ou o exprime em simultâneo, há, aparentemente, quem
sinta calafrios.
Provavelmente, os milhares de pessoas que saudavam os
discursos racistas de Hitler, de braço estendido, na saudação
regulamentar, também sentiriam arrepios, em tamanha partilha de
emoções coletivas.
No fundo, o ser humano aspira à integração num grupo.
Quando se sente rodeado de uma multidão a dizer, a fazer, ou a
sentir o mesmo que ele, comove-se, vem-lhe uma lágrima ao olho, e
como chorar não é para homens, na mentalidade viril do nosso
subconsciente atávico, prefere sentir arrepios.
As mulheres nem tanto. Têm arrepios de frio e calafrios de
medo, mas quando se emocionam, por qualquer motivo, não têm
vergonha em assumir as suas emoções. Dizem que ficaram
emocionadas, que choraram até, com a emoção.
Os homens não. Sentem arrepios. Assim, se lhes vierem as
lágrimas aos olhos, não é por mariquice emotiva, mas sim porque o
ambiente era arrepiante.
Embora eu nunca tenha tido arrepios que me enchessem de
lágrimas, parece que há por aí muita gente que chora com o frio.
Não é que eu seja imune aos eufemismos, afinal sempre nos
foram incutidos, desde a infância, como expressão de respeito, de
polidez social e mais recentemente do execrável politicamente
correto. Mas não gosto deles, sobretudo quando se impõem como
modas absurdas, que alteram, nas mentalidades ignorantes, o
próprio significado das palavras.
O eufemismo, como expressão literária, pode ser bonito,
mas como meio de afirmação social, é grotesco.

124
E este arrepiante eufemismo, acho-o especialmente
irritante. Primeiro, porque desconfio das manifestações coletivas de
sentimentos, acho-as manipuladoras, redutoras, ofensivas da minha
individualidade.
Mas também e principalmente, porque prefiro a clareza das
expressões.
Se alguma coisa me emociona, sinto-me na obrigação de
assumir que é emocionante e não refugiar-me no vírus eufemístico
do arrepio.
Já basta quando tenho frio.

8 de Maio de 2023

125
126
Viver Para os Filhos

Há uma forte tendência, entre os meus concidadãos, para


ver nos filhos o principal, senão mesmo o único, sentido para a vida.
Esta é uma conclusão inevitável quando ouvimos expressões
como: "vejam lá, matou-se, com filhos pequenos para criar!", ou
ainda, "vê lá, cuida da tua saúde, lembra-te dos teus filhos".
Portanto, para estas pessoas, a vida justifica-se plenamente
pela existência de filhos. Eu vivo para fazer filhos, para os criar,
para os ajudar a serem adultos, para ver os netos, os bisnetos, etc.
Calculo que exista um limite nesta lógica, pois quando uma pessoa
tiver dez filhos, vinte netos, quarenta bisnetos, imagino que nem os
consiga reconhecer a todos, quanto mais ter-lhes amor. Mas essa
será a excepção. A regra é ter um ou dois filhos, dois ou três netos e,
por isso, o amor vai chegando para todos, na maioria dos casos.
Esta lógica, da vida se justificar pelo amor aos filhos, é
atraente e dá conforto a muita gente, mas não deixa de ter as suas
falhas.
Não posso, desde logo, deixar de constatar que há pais e
filhos que demonstram uns pelos outros o mais profundo desprezo,
que chega a ser ódio. É sabido que o amor e o ódio vivem de paredes

127
meias, por isso não há ódio como aquele que as pessoas nutrem
pelos que lhes estão próximos, os pais, filhos, irmãos. Há coisas
imperdoáveis, sobretudo quando praticadas entre pessoas que se
deveriam amar. Se algum amor existiu, transforma-se em ódio, que
dura até à morte.
Como poderão viver então, os pais desavindos com os
filhos? Da esperança de uma improvável reconciliação?
Mas, como aliás já ficou implícito, num parágrafo anterior,
também há quem se mate e deixe filhos, por vezes pequenos. Quer
isso dizer que não amava os filhos? Ou que o ódio à vida superou
não apenas o amor próprio, mas também o amor à descendência?
Na verdade, há quem se contenha por amor aos familiares.
Quem diga que só não se mata para não dar esse desgosto aos pais
ou aos filhos. Aqui o amor aos outros é maior que o amor próprio.
Evita o suicídio ou, pelo menos, adia-o para momento mais
oportuno, por amor alheio.
Mas noutros a falta de amor próprio supera qualquer outra
forma de amor, designadamente à descendência, e culmina mesmo
na morte voluntária.
Às vezes essa morte voluntária nem sequer se expressa de
um modo abrupto, num ato de desespero terminal, mas antes num
suicídio prolongado, expresso em vícios recorrentes que matam
lentamente, com plena consciência do próprio e total desprezo pelas
consequências.
Há tempos um amigo confidenciou-me que descobriu uma
foto antiga dos pais, em que aparecia a mãe de cigarro e o pai de
copo na mão. Constatou, com alguma ironia, que essas seriam,
efetivamente, as causas de morte dos dois, passados alguns anos.
Toda a gente sabe que fumar mata. Mas há quem continue a
fumar, desprezando as consequências. Toda a gente sabe que o

128
álcool mata, no entanto muitos continuam a beber, contra o
conselho de todos e o próprio senso comum. Porquê
Essencialmente porque têm maior prazer em fumar ou
beber do que em viver. Viver sem as poucas coisas que lhes dão
prazer seria insuportável, por isso mais vale morrer assim,
lentamente, a fumar ou a beber, do que prescindir dos poucos
prazeres que têm na vida e acabar de vez com ela.
Claro que os fundamentalistas da descendência
argumentarão de imediato: "mas essa gente não se lembra que tem
filhos?"
O amor é um sentimento variável de indivíduo para
indivíduo e se, para alguns, pode ser a principal razão para viver,
para outros está longe disso, porque têm pouco amor para dar e
receber.
Além disso coloca-se hoje uma questão nova, desagradável
mas essencial. Com o prolongamento da vida humana em décadas,
como tem acontecido no mais de meio século que levo por aqui, o
viver mais, não exprime necessariamente um grande amor pelos
filhos. Não me refiro sequer às heranças, ponto de eterna discórdia e
que, até por deformação profissional, me levam a duvidar
seriamente dos vínculos amorosos que unem os membros mais
chegados de uma família. Refiro-me ao trabalho, ao desgaste físico e
psicológico que acarreta tratar de um incapaz e demente durante
décadas. Não há dúvida que essa dedicação exprime amor filial,
quando existe, porque, na maioria dos casos, os filhos abandonam os
velhos em lares, entregues ao cuidado alheio, alegando
impossibilidade de o fazer pessoalmente, e deixam-nos morrer,
entre desconhecidos, com visitas relâmpago nos aniversários e festas
de maior devoção.
Mas haverá amor parental em querer deixar tamanho
encargo aos filhos, pelo prazer de viver para conhecer os netos, os
bisnetos e mais descendência?

129
Não seria uma maior expressão de amor parental morrer aos
sessentas, a fumar ou a beber, e deixar os filhos libertos do fardo de
cuidar de mais um progenitor moribundo e demente?
Viver para os filhos, até ao limite, não será um ato egoísta,
que enche a descendência de encargos e trabalhos inúteis, no
constante adiamento de uma morte inevitável e em que a qualidade
de vida do moribundo é absolutamente inexistente?
Chamem-me egoísta, mas eu prefiro evitar esses trabalhos e
despesas aos meus filhos. Acho uma forma mais adequada de lhes
expressar o meu amor do que expô-los à minha degradação, como
ser humano, além do é suportável por eles e por mim.
Antes a morte, que tal sorte.

3 de Junho de 2023

130
Civilizar a Europa

Ao ler o Continente Selvagem, de Keith Lowe, é impossível


evitar a ideia de que o ser humano é essencialmente perverso,
apesar de algumas excepções, quantas vezes meramente temporárias
e à medida de interesses pontuais.
Convenhamos que, depois das atrocidades cometidas pelos
nazis e os seus aliados, durante a segunda guerra mundial, é preciso
coragem para criticar os heróis vencedores do mal, que puseram
termo a um terrível regime de terror, violência e genocídio.
Mas a verdade é que os vencedores, em diferentes graus de
responsabilidade, obviamente, tiveram para com os vencidos e
muitos civis inocentes, que apenas tinham o azar de pertencer à
nacionalidade ou etnia errada, o mesmíssimo comportamento que
os nazis.
A única diferença significativa é que os nazis praticaram o
genocídio de forma planeada, organizada, minuciosa e
superiormente programada, como política de regime, enquanto os
massacres genocidas do pós guerra aconteceram, sobretudo, de
forma espontânea, como reação, aparentemente incontrolada, dos
vencedores e libertos, contra os seus carrascos.

131
Mas seria incontrolável? Por vezes os ocupantes tinham
meios insuficientes para conter a populaça ou as milícias armadas,
mas muito frequentemente limitaram-se a fechar os olhos, deixar a
violência acalmar, para restaurar a ordem a seguir. Quantas vezes
incentivaram, permitiram ou mesmo participaram, sem pudor,
dessa tremenda violência.
Aliás, a sucessão de mortes civis, de violência gratuita, de
violações e massacres em massa, tem um rastro indelével na história
do rumo dos exércitos aliados até à Alemanha derrotada e
prosseguiu descontrolado, muito tempo depois do final da guerra,
praticado contra civis, mulheres e crianças refugiados, em busca de
um lugar seguro, após a destruição massiva das suas aldeias e
habitações.
O destino dos bastardos de guerra, os que não foram mortos
durante a gravidez ou a seguir ao parto, até foi objeto de legislação
em vários países. A Noruega negou a nacionalidade aos filhos de
soldados alemães e tentou deportar as crianças para a Alemanha,
sem as respectivas mães. Já os filhos de polacas, alemãs, húngaras,
violadas pelo avanço do exército vermelho, foram criados no
silêncio da vergonha coletiva dos derrotados.
Para o vulgar cidadão, nada de mais justo. Cá se fazem, cá se
pagam, olho por olho, dente por dente. A vingança é legítima,
quando os crimes têm a gravidade dos praticados durante a guerra.
Mas nem a justiça é simples retorsão, nem as vítimas dessa
violência eram igualmente culpadas. Algumas só tinham a culpa de
falar a língua dos derrotados ou pertencer a uma nacionalidade ou
etnia colaboracionista.
Quando se matam mulheres e crianças aos milhares, em
pelotões de fuzilamento improvisados nas ruas e florestas, em
campos de concentração superlotados sem comida, assistência
médica ou sequer os mais básicos cuidados de higiene, quando se
obriga velhos, grávidas a crianças de colo a marchas forçadas de

132
dezenas de quilómetros, no meio do frio e da neve, frequentemente
para a morte, quando se enfiam milhares de pessoas em vagões de
gado, às vezes durante semanas, sem comer ou dormir, não há
desculpa possível, não há vingança justificativa, não há retorsão
admissível.
Os horrores praticados em campos de concentração na
Polónia, após o final da guerra, rivalizam com os executados pelos
nazis durante o conflito.
As perseguições aos judeus regressados, pela simples
reivindicação dos seus bens, entretanto vendidos e revendidos pelos
sucessivos ocupantes, não têm justificação moral possível. São fruto
de simples cobiça e racismo.
Somos mesmo levados a concluir que, em casos pontuais,
como no do regime croata dos Ustasha, durante a guerra, e na
resposta posterior dos partisans comunistas de Tito, existiu mesmo
uma política oficial de genocídio recíproco, que apenas divergiu do
nazi nos meios usados e proporção. A ordem era clara, tanto entre
croatas e sérvios, como entre polacos e ucranianos, dizimar as
populações, encontrar uma solução final para o problema das
divisões étnicas, dentro das nações. A nomenclatura é nazi, mas foi
repetida oficialmente por muitos exércitos vencedores, como o
polaco ou o dos partisans jugoslavos.
As migrações massivas de croatas e eslovenos rumo á
Áustria, para se renderem aos mais tolerantes britânicos ou
americanos, teve por resposta a deportação forçada e subsequente
entrega ao exército de Tito, que sistematicamente assassinou, sem
piedade, quase todos os prisioneiros, civis ou militares, homens,
mulheres ou crianças.
Se o objetivo principal da política de Hitler era a limpeza
étnica da Europa, então podemos afirmar, sem receio, que, apesar
de derrotado, o nazismo alcançou totalmente os seus objetivos. Os
vencedores procederam ao fim do genocídio e deportação massiva

133
de populações inteiras, iniciados pelos nazis, acabando com a
diversidade cultural existente, sobretudo na Europa de leste.
A Polónia, onde conviviam há séculos, católicos, ortodoxos,
protestantes e judeus, transformou-se numa nação quase
exclusivamente católica.
Os povos germânicos que existiam, em maior ou menor
número, um pouco por toda a Europa central e oriental, foram
assassinados ou deportados, à força e despojados dia seus bens, para
a nova Alemanha ocupada, deixando praticamente de existir
alemães fora da Alemanha.
Os judeus foram simplesmente erradicados da Europa. Os
que escaparam ao genocídio nazi foram empurrados, pelos
vencedores, para fora dos seus países de origem, rumo à emigração,
para a América ou Palestina.
Se o sonho nazi de uma Europa dominada pelos germânicos
não se concretizou, já o ideal de uma limpeza étnica, por toda a
Europa, que colocasse cada povo e etnia no seu canto, esse foi
integralmente alcançado no pós guerra, por efeito de políticas
genocidas e deportações massivas dos novos governos.
Uma parte significativa da Polónia ficou na posse dos
soviéticos, que deportaram toda a respectiva população, não eslava,
para a nova Polónia. Para compensar esse esbulho soviético, os
aliados entregaram aos polacos uma parte significativa do território
alemão, obrigando as populações locais a deslocarem-se para dentro
das fronteiras da nova Alemanha.
A população germânica dos Sudetas e de outras regiões da
Checoslováquia foi privada dos seus pertences e deportada à força
para a nova Alemanha.
Os italianos que habitavam a Eslovénia e a Croácia foram
aprisionados, usados em trabalhos forçados e os sobreviventes

134
remetidos, anos depois, pelo governo comunista de Tito, à nova
Itália.
A Hungria pagou o preço de apoiar os nazis com a ocupação
violenta pelos soviéticos e a deportação massiva de toda a população
germânica.
Só para os judeus e os ciganos não existia um lugar na nova
Europa. Os sobreviventes, ou emigraram, ou viveram como párias
até hoje, indesejados por todas as nações do continente.
A Jugoslávia, confluência de todas os choques culturais da
velha Europa, com católicos, ortodoxos, muçulmanos e judeus a
viverem sob a mesma bandeira, ainda manteve alguma pseudo
diversidade étnica, sob a ditadura sérvia, comunista e
internacionalista, de Tito. Mas tudo se desmoronou após a queda do
regime. A febre da limpeza étnica renasceu em força e a região
completou os genocídios e deportações massivas do pós guerra,
durante a guerra civil dos anos 90.
É este o Continente Selvagem que reivindicou, para si, a
liderança da civilização mundial, durante séculos.
Desde a reforma e a inquisição que os povos europeus lutam
entre si pela limpeza étnica e religiosa de cada nação. Após séculos
de violência e genocídio conseguiram-no, nos destroços da segunda
grande guerra.
Agora que o continente está a ser posto outra vez à prova,
com novas diversidades culturais, decorrentes dos processos
migratórios sul-norte, oriundos das ex-colónias, dos refugiados das
guerras africanas e do médio oriente e bem assim de migrações de
países em desenvolvimento, do extremo oriente, do subcontinente
indiano, de África e da América Latina, será caso para preocupações
acrescidas?
Até hoje, os povos europeus nunca toleraram a diversidade
cultural. Mataram-se sistematicamente uns aos outros, até

135
conseguirem arrumar cada etnia no seu canto minúsculo do
continente.
Como irão as novas gerações conviver com a globalização e
a nova diversidade cultural?
Terão os europeus aprendido alguma coisa com a sucessão
horrenda de crimes de ódio do passado?

8 de Junho de 2023

136
Fátima Mística
Haverá milhares de motivos para que tanta gente se lance
no caminho do santuário da Cova da Iria, e se muitos passarão pelas
tradicionais promessas, favores pedidos ou retribuídos à Virgem,
outros revelam-se muito mais místicos e introspectivos.
Há quem nem acredite nos certificados milagres e aparições
e mesmo assim se ponha a caminho.
O que levará um agnóstico ou, mais frequentemente, um
teísta, desconfiados da igreja, da mise en scéne, das hierarquias e
dos rituais, a empreender uma caminhada, quantas vezes sós, por
mais de uma centena de quilómetros, expostos à chuva, ao cansaço,
à míngua, à caridade alheia?
Há quem nada peça a Nossa Senhora, até ache interesseiro
esse negócio sinalagmático com Maria, dá-me um milagre que eu
em troca vou todos os anos a Fátima.
Vão pelo chamamento, pela viagem, pela necessidade de
acreditar em algo, que transcenda a vida triste, de infelicidade
quotidiana, que levam habitualmente.
É frequente usarem a palavra paz, para descrever o
sentimento da peregrinação a Fátima.
Não é só a fé, nem Deus, nem a Virgem e muito menos os
milagres interesseiros, que os chamam ao santuário. É a busca pela

137
paz. Até pode haver quem reze pela paz no mundo e pela
compreensão entre os povos, mas a paz que a maioria busca na
peregrinação é muito mais pessoal, é íntima, é a paz de espírito,.
O isolamento do percurso (mesmo quando partilhado), as
horas de introspecção, a abnegação em prol de um objetivo simples,
concreto e árduo, o cansaço, a solidariedade experimentada nas
dificuldades, a comunhão de sortes, a partilha de experiências, a
descoberta de outros peregrinos, quantas vezes embrião de futuras
amizades, tudo isto faz de Fátima um fenómeno que ultrapassa em
muito a religião, a Virgem Maria e as Aparições aos pastorinhos.
A peregrinação é um retiro espiritual. Uma pausa
prolongada da banalidade e a entrega à aventura. Um regresso à
juventude, de mochila às costas, pouco dinheiro no bolso e o
coração aberto à experiência, à amizade, à descoberta da
espiritualidade.
E quando finalmente chegam, exaustos mas de consciências
limpas, de pensamentos claros, de cabeças frescas e uma enorme
sensação de otimismo, da superação do desafio, da partilha da
experiência, da comunhão com os outros viajantes, do
conhecimento acumulado pelo cansaço e pela troca de conversas, o
santuário é Jerusalém renascido, o Eldorado sonhado, Shangri-la
reencontrado, um Nirvana em trânsito. A paz a que tanto
ambiciona o ser humano, por oposição à luta permanente pela
sobrevivência, pela competição, pelas adversidades por superar.
Por isso repetem a experiência. Alguns fazem o percurso
três e quatro vezes por ano. Outros fazem-no ininterruptamente, há
mais de cinquenta anos. Já nem sabem bem porquê. Apenas porque
sim, porque a caminhada é um retiro no deserto, uma oportunidade
única para pôr a cabeça em ordem, para priorizar valores e
contabilizar vivências, para refletir sobre os mistérios existenciais,
sobre Deus, o mundo, os outros e o nosso papel no universo.
Há até quem se disponha a fazer o percurso por procuração.
Qualquer pretexto serve para se fazerem à estrada. Se nada mais

138
tenho a pedir por mim, há tanta infelicidade no mundo, tanta
doença, tanta miséria, posso sempre pedir pelos outros, os que me
pedem para o fazer e os que eu me lembre que necessitam. Há que
limpar os pecados do mundo com o suor dos peregrinos.
A caminhada transforma-se assim num vicio benfazejo,
como uma estadia nas termas, uma semana na praia, um retiro
espiritual, sozinho ou em comunhão grupal.
No fundo, pouco importa se o percurso leva a Fátima, a
Santiago, a Lourdes, ou até a destinos mais ímpios, como festivais de
rock, concentrações de motards ou à festa do Avante.
É preciso andar, caminhar, percorrer a terra, em busca da
solidão, do tempo que sempre falta, para refletir, para acalmar
humores e carregar baterias. É preciso largar periodicamente a vida,
colocá-la em suspensão, para viver outro ser, excepcional,
desconhecido, espiritual.
Para quem vive na rotina, a peregrinação é o reencontro
com o gosto pela vida, com o prazer das coisas simples, com o
convívio desinteressado, solidário mesmo. É a renovação periódica
da fé na vida, humana ou divina, que tão esquecida anda, no dia a
dia.
É esta a Fátima de que vale a pena falar.
A outra, feita de pedra e mitras, de velas derretidas e
incenso, a disfarçar o cheiro a suor, de giftshops e excursões, de
hotéis cheios de turistas, de relíquias de trazer por casa, também
existe, é certo, mas é demasiado pequenina para o verdadeiro
peregrino.
Na verdade, pouco difere do consumismo selvagem da black
friday norte-americana ou das iluminações de Natal. É um circo de
parasitas, que se alimentam uns dos outros.
O sacrossanto capitalismo, mas abençoado pelo Papa.

14 de Junho de 2023

139
140
Entre Espanhóis e Castelhanos
Acho francamente curiosa a facilidade com que os meus
compatriotas designam por espanhóis os nuestros hermanos, sem se
preocuparem minimamente com a sua origem. Tudo o que venha
do outro lado da fronteira e fale castelhano é espanhol e pronto. É
quanto basta para um português, até porque de Espanha, nem bom
vento, nem bom casamento, como diz o povo.
Eu, no entanto, tenho um enorme pudor em usar o adjetivo
espanhol. Faço questão de chamar os castelhanos e a sua língua pelo
nome que têm, tal como os catalães, os bascos, os galegos e os outros
povos peninsulares, mesmo quando falam a mesma língua dos
castelhanos.
É que espanhol, em rigor, também eu sou, apesar de ser
português.
A Hispânia era uma antiga província romana que chegou a
incluir, durante alguns séculos, a totalidade da península Ibérica. E
muitos eram os povos que a habitavam. Havia os Iberos, os
celtiberos, os vascões, os lusitanos, os galaicos, os ástures, os
cântabros, os váceos, os ilergetas, os lacetanos, os edetanos, os
contestanos, os bastetanos, os turdetanos, os cónios, os célticos, os
vetões, os túrdulos, os oretanos, os carpetanos e os vetões, entre
muitos outros que foram desaparecendo, sem contar com os Ilhéus

141
das baleares e com as colónias fenícias, cartaginesas e romanas, que
por cá se estabeleceram.
Os gregos deram à península o nome de Ibéria, que ainda
hoje conserva, mas o romanos chamaram-lhe Hispânia, por
influência do nome Ispânia, como era designada entre os
conterrâneos dos Barcas, a quem Roma conquistou as primeiras
províncias ibéricas, durante as guerras púnicas.
Mas se a Hispânia foi das primeiras províncias romanas a ser
conquistada, no início das segundas guerras púnicas, em 219 A C.,
durou quase duzentos anos a ser totalmente dominada, o que
sucedeu já com Augusto, em 29 A.C., data em que foi
verdadeiramente instaurada a Pax romana em terras hispânicas.
Mas essa conquista não ditou o fim da identidade cultural
dos vários povos ibéricos, reconhecidos como povos distintos pelos
romanos, que dividiram a península em várias províncias. Os povos
da Península falavam línguas diferentes uns dos outros, assim como
na escrita usavam alfabetos diversos. Os Turdetanos por exemplo,
eram conhecidos por escreverem a sua história, leis e poemas em
verso.
Este domínio imperial romano gerou uma ideia de uma
Hispânia una, que nunca existiu verdadeiramente, pois mesmo
durante o domínio imperial e no período áureo da romanização,
continuaram a existir, primeiro três províncias, a Tarraconense, a
Bética e a Lusitânia, e mais tarde, com a divisão provincial de
Diocleciano, cinco províncias, juntando-se a Cartaginense e a
Galécia às três anteriores.
Mais tarde, pressionados pelo avanço dos hunos, em 405,
três tribos germânicas, os vândalos, os búrios e os suevos,
juntamente com os alanos, de origem sármata, atravessaram o Reno
em direcção à Gália e instalaram-se na Península, onde os visigodos
já esboçavam a quebra das ligações da Hispânia romana com o
restante império.

142
Com grande parte da Península já fora do seu controlo, o
Imperador Romano do Ocidente, Honório (r. 395-423), encarregou
a sua irmã, Gala Placídia, e o seu marido, Ataulfo, o rei visigodo, de
restaurar a ordem, concedendo-lhes o direito de se instalarem na
Península desde que cooperassem na defesa e manutenção da
região.
Os visigodos conseguiram assim subjugar os suevos e
expulsar os vândalos, que migraram para o Norte de África. Em 484,
estabeleceram Toledo como capital.
Contudo este reino visigótico, que durou de 418 a 711,
nunca foi uma verdadeira Hispânia, mas sim uma tentativa
fracassada de reconstruir o império romano do ocidente, sob a égide
dos reis visigodos, convertidos ao cristianismo e à língua latina.
Ocupou o sudoeste da Gália (atual França) e a Península Ibérica dos
séculos V-VIII.
Sucessor do Império Romano do Ocidente, foi criado
quando os romanos assentaram os visigodos sob Vália (r. 415–419)
na província da Aquitânia, e estes começaram a se expandir em
direção à Península Ibérica, resistindo às tentativas de reconquista
bizantina.
Em 711 iniciou-se a conquista muçulmana da península
pelo Califado Omíada, estendendo-se em grande parte de 711 a 788.
A conquista resultou na destruição do Reino visigótico e no
estabelecimento do Emirado independente de Córdova; foi
Abderramão I quem completou a unificação da Ibéria governada
por muçulmanos, ou al-Andalus (711-1492).
Mas também o al-Andaluz não uniu a Hispânia, restou o
reino cristão das Astúrias, de onde se iniciou o longo período de
reconquista, que duraria quase 800 anos. Mas mesmo na parte
andaluza, a fragmentação sempre foi grande.
Era inicialmente um emirado integrado na província norte-
africana do Califado Omíada, tendo sido também Califado de

143
Córdova, diversas Taifas, província Almorávida, Califado Almóada e
na sua última fase, Reino Nacérida de Granada.
Até à queda de Granada perante os exércitos dos reis
católicos.
Foi precisamente esse facto que levou os Reis Católicos, no
entusiasmo da vitória, após oito séculos de presença muçulmana na
Ibéria, a aspirar ao domínio integral da velha Hispânia, não
hesitando em chamar Reino Católico de Espanha ao novo estado,
resultante da união, por matrimónio de Castela e de Aragão, a que
se juntou a conquista pelas armas do último reino mouro peninsular
de Granada.
Mas quando, em 1512, nasce a monarquia espanhola,
existiam mais dois reinos independentes na península, Portugal e
Navarra.
É certo que Navarra perde os seus territórios a sul dos
Pirenéus, precisamente em 1512, o que mais terá convencido os reis
católicos da sua predestinação à unificação peninsular. Subsiste
ainda, como reino independente, até 1620, quando Henrique de
Bourbon, rei de Navarra, se torna também rei de França, como
Henrique IV, unificando os dois reinos.
Mas continuou sempre a existir Portugal.
Filipe II, bisneto dos reis católicos, conseguiu ser Rei de
Portugal em 1580, iniciando a dinastia filipina que duraria até ao
seu neto, Filipe IV, em 1640. Mas nunca Portugal foi unificado com
Espanha, ao contrário do que sucedeu com Navarra e França.
Depois da subida ao poder dos Habsburgos em Espanha,
com Carlos I, filho de Joana a Louca de Castela e Filipe o Belo de
Habsburgo, as aspirações da dinastia vão muito além do domínio
peninsular.
Fruto da união destas duas poderosas casas reais europeias,
Carlos foi Sacro Imperador Romano e Arquiduque da Áustria a

144
partir de 1519, Rei da Espanha a partir de 1516 e Senhor dos Países
Baixos, como Duque da Borgonha a partir de 1506. Como chefe da
crescente Casa de Habsburgo, durante a primeira metade do século
XVI, os seus domínios na Europa incluíam o Sacro Império
Romano, estendendo-se da Alemanha ao norte da Itália, com
domínio direto sobre as terras hereditárias austríacas e os Países
Baixos da Borgonha, tendo também unificado a Espanha, com seus
reinos do sul da Itália de Nápoles, Sicília e Sardenha. Além disso, no
seu reinado ocorreu a intensificação e consolidação da Colonização
espanhola da América.
O seu filho e sucessor, como rei de Espanha, Filipe II, não
lhe ficou atrás. É certo que perdeu o Império alemão e austríaco
mas, em contrapartida foi rei de Espanha (1556), rei de Portugal
(1580), rei de Nápoles e Sicília (ambos de 1554) e jure uxoris rei da
Inglaterra e Irlanda (durante o seu casamento com Maria I, de 1554
a 1558). Ele também foi duque de Milão e a partir de 1555, senhor
das dezessete províncias dos Países Baixos Espanhóis, além de
senhor das Filipinas, nomeadas em sua honra, e das muitas
províncias americanas.
Talvez por isso tenha dado pouca importância à unificação
peninsular. Preferiu colecionar mais um título e uma coroa, do que
persistir nessa velha quimera da união hispânica. O sol nunca se
punha nos reinos de Filipe, desde as Filipinas à Califórnia. Porque
se haveria de importar com a união Ibérica? Aliás, ele próprio era a
personificação da diversidade ibérica, filho e neto de belgas e
portugueses, neto e bisneto de castelhanos e aragoneses, foi criado
em Espanha, por portugueses e espanhóis, para ser rei de meia
Europa e de imensas possessões ultramarinas. A Ibéria era
demasiado pequena para os Habsburgos.
Mas também pode ter sido o seu sangue português a impedir
a unificação. Filho de Isabel de Portugal, nascido no palácio de

145
Pimentel, em Valladolid, do Marquês de Távara, criado na corte
real de Castela, mas sob os cuidados de sua mãe e de uma de suas
damas portuguesas, Dona Leonor de Mascarenhas, a quem ele era
devotadamente ligado, Filipe viveu perto de suas duas irmãs, Maria
e Joana, e de seus dois pajens, o nobre português Rui Gomes da Silva
e Luis de Requesens, filho de seu governador Juan de Zúñiga. Era
fluente em várias línguas, entre elas o português materno.
Mas as revoltas acumularam-se, com os seus sucessores,
mostrando assim que à união dinástica estava longe de corresponder
uma verdadeira Espanha unida.
A Catalunha teve um breve período de independência,
como República, entre 1640 e 1652, antes de ser derrotada e ver o
seu território dividido entre a Espanha e a França.
Portugal revolta-se no mesmo ano de 1640 e consegue, com
grande esforço e abnegação, manter a independência, após os 28
anos da Guerra da Restauração, com Espanha.
Os domínios da Coroa de Aragão mantiveram-se soberanos,
com fronteiras estabelecidas e instituições de autogoverno próprias
até 1707, quando Felipe IV integrou definitivamente Aragão no
Reino de Espanha, depois da Guerra da Sucessão.
Por tudo isto, fica bem evidente que a Espanha, enquanto
união política e nacional de toda a península Ibérica é um mito,
alimentado sucessivamente por romanos, visigodos e castelhanos.
Nunca existiu e não se vislumbra no horizonte do futuro próximo.
Pelo contrário, assistimos outrossim ao crescimento dos
sentimentos autonómicos e independentistas de várias regiões do
atual reino de Espanha, como a recente crise separatista da
Catalunha deixou bem evidente, ou a luta armada da ETA pela
independência do Euskadi, a antiga terra dos Vascões.
Não admira assim que eu resista a chamar espanhol à língua
castelhana ou a rotular de pretensiosa a existência de um reino de

146
Espanha. É que eu também me sinto espanhol, mas sem abdicar da
minha identidade portuguesa.
Não sou nacionalista, não me oponho a processos de união
política, sejam eles peninsulares ou europeus, desde que
democráticos e preservadores da autonomia e identidade próprias
de cada povo e nação.
Mas não tolero imperialismos. A unificação sob a
hegemonia de uma nação dominante, seja ela a castelhana ou outra
qualquer, é o oposto da união. É o domínio, a imposição da língua,
da história, dos costumes e da cultura dos vencedores sobre os
vencidos.
O reino de Espanha, por muito reformado pela democracia e
a autonomia regional, continua a ser uma expressão de domínio de
Madrid e de Castela sobre os territórios sucessivamente
conquistados. À excepção de Portugal, o único resistente peninsular
à hegemonia castelhana.
Por isso não gosto de chamar Espanha a Castela ou espanhol
ao castelhano.
Sou espanhol, mas não sou castelhano, tal como os muitos
outros povos peninsulares que preservaram as suas línguas, culturas,
tradições e história.
A minha Espanha não fala castelhano nem tem um governo
em Madrid. Fala todas as línguas ibéricas e tem tantos governos
quantas as nações que a compõem e quiserem preservar a sua
autonomia.
Da mesma maneira que sou europeu sem prescindir da
independência do meu país, seria espanhol, numa Espanha
republicana e confederada, onde cada nação fosse independente e
livremente governada pelos seus próprios governos,
democraticamente eleitos.

147
A minha utopia é assim tudo menos nacionalista. Aspiro à
união, mas no respeito pela identidade e liberdade próprias de cada
povo.
A uma união que acrescente, por oposição à existente, que
reduz.

16 de Junho de 2023

148
Afrontas Senis
A partir dos cinquenta o corpo começa a pregar-nos
partidas, a envergonhar-nos nas mais variadas situações.
Será talvez uma forma de suavizar a ideia da morte.
Cansados de tantas afrontas e aviltamentos, aceitaremos
melhor o fim, com o alívio de quem se livra de uma cruz, que já não
tem forças para carregar.

19 de Junho de 2023

149
150
Competitividade

Um dos aspectos mais desconcertantes da vida


contemporânea é a competitividade.
Não falo daquela almejada pelas empresas, porque essa é
uma questão económica. A concorrência é enorme, o mercado
global, os custos variam de modo extremo entre os produtores, de
modo que a competitividade empresarial é atualmente, não apenas
uma condição essencial para que um negócio seja lucrativo, mas
sobretudo, para a maioria das empresas, para a própria
sobrevivência, face a uma concorrência cada vez mais feroz e
inovadora.
Mas eu não sou economista, nem aprecio especialmente a
ciência económica, pelo que me preocupo pouco com essa
competitividade. Mesmo como profissional liberal, sujeito às leis da
oferta e da procura para a sobrevivência financeira, sempre pautei a
minha conduta por critérios de confiança, de responsabilidade, de
justiça e equidade. Nunca quis ser um empresário. Sou um técnico,
com liberdade suficiente para trabalhar de acordo com princípios,
não apenas deontológicos mas sobretudo de consciência. Esse é um
pressuposto que, felizmente, nunca fui forçado a abdicar, sem
pensar minimamente em competitividade.

151
Trabalho para viver, não vivo para trabalhar e muito menos
para ganhar dinheiro.
Mas toda esta reflexão sobre o meu caso pessoal traz-me ao
fulcro da questão da competitividade atual. É que o conceito
banalizou-se, de tal modo que extravasou o mundo empresarial e
invadiu a mentalidade tacanha de um número assinalável de
pessoas.
Ser competitivo é hoje uma obsessão para a maioria dos
meus concidadãos. Compete-se no desporto, mas também no
trabalho, no património, no lazer, na vestimenta e acessórios, na
renda da casa, na idade e na potência do automóvel, até no número
e gravidade das doenças de cada um!
O cidadão atual não vive sem fazer comparações com os
demais e não quer ficar mal visto em nenhuma categoria, como se a
vida fosse uma competição, desde o nascimento até à morte, não
apenas pelo número de anos vivido, mas sobretudo pela quantidade
e qualidade dos bens e experiências acumuladas.
Não se vive individualmente, ou até em família como no
passado, vive-se em grupos, extremamente competitivos, onde
todos, pelo menos uma vez na vida, querem liderar a competição,
nem que seja por terem sido os primeiros a ter um telemóvel de
última geração ou a comprar um carro elétrico. Uma glória vã,
como todas, porque pouco depois, outro membro do grupo eleva a
fasquia competitiva, com um novo modelo mais potente ou outra
futilidade qualquer.
Esta parece, afinal, ser a chave do sucesso do capitalismo. O
consumismo reside precisamente no alimentar desta
competitividade fútil, que assenta não na necessidade ou sequer
utilidade do produto ou experiência, mas sim na vaidade,
exponenciada pela competitividade. Há sempre novos produtos
lançados no mercado que acrescentam uma suposta mais valia,
tecnológica ou prática. O desejo atávico do ser humano pela

152
competição, faz com que a maioria consuma desenfreadamente a
novidade, não porque dela tenha qualquer necessidade ou proveito,
mas simplesmente porque não quer ficar para trás, nesta competição
absurda com os indivíduos que o rodeiam. Basta acrescentar um
número ou uma letra à designação do produto para fazer a diferença
e o ser humano não suporta a indiferenciação, quer ser único em
tudo e o primeiro no maior número possível de coisas.
Curiosamente o desprezo por esta mentalidade competitiva
também pode ser um fator de diferenciação, que gera o desprezo de
muitos mas também provoca admiração em alguns.
Não proponho fazer uma competição negativa, uma recusa
sistemática da novidade, em nome da diferenciação. Um
consumismo ascético em nome da preservação de valores positivos,
por oposição aos negativos, que dominam o pensamento
competitivo.
Não obstante, vivo desprendido de vaidades e de
competições. A vida para mim não faz sentido na ânsia desenfreada
pela novidade, dominada pelos sentimentos fúteis da vaidade e da
inveja. Não renuncio ao consumo, mas tento limitá-lo às minhas
necessidades efetivas e abstenho-me, em absoluto, de fazer
comparações com aquilo que os outros têm ou ambicionam.
Desprezo as tendências do momento. Não tenho nada a mostrar ou
a provar a ninguém, nem estou interessado nos consumismos
alheios, a não ser para lhes criticar o absurdo.
Confesso que esta minha recusa em aceitar os sentimentos
dominantes na nossa sociedade, tem conduzido um pouco à
misantropia. Mas eu sou solitário por natureza, prefiro mil vezes ler
um livro, ver um filme ou ouvir música do que partilhar bebidas e
conversas num qualquer bar da moda, ou sequer imperiais e
tremoços na tasca da esquina. Pratico a velha máxima do antes só
que mal acompanhado.

153
Não é um boicote ao progresso, mas uma réstia de bom
senso.
Chamem-me o que quiserem, mas acho que a vida já é
suficientemente absurda, sem tanta competição fútil. Esta corrida
desenfreada pelo consumo é uma droga que alheia o ser humano das
questões essenciais da existência e lhe dá uma ilusão de felicidade,
pela compra, a crédito, do último modelo tecnológico de qualquer
coisa. Mas também lhe causa angústia, sempre que se vê privado do
ambicionado consumo, a ponto de levar muitas pessoas ao furto de
objetos de luxo, à compra de material contrafeito, para mostrar
ridiculamente o que não tem, ou ao vício irresponsável de
consumir, até à insolvência.
Uma alienação coletiva que ilude as angústias da existência.
Como alguns gostam de dizer, acham que também têm o direito a
ser feliz.
Este pseudo direito à felicidade consubstancia-se no
consumo absurdo, para não ficar atrás dos outros. Não trás
felicidade nenhuma, apenas uma breve sensação de vaidade, um
ligeiro êxtase, que diminuiu na proporção inversa da quantidade do
consumo.
Eu diria que a compra de uma mala Louis Vuitton ou de um
Mercedes são, não só perfeitamente compatíveis, mas
habitualmente acompanhados do consumo sistemático de anti
depressivos ou ansiolíticos. Não parecem capazes de trazer a
felicidade a ninguém.

28 de Junho de 2023

154
O Síndrome das Férias

O síndrome das férias é uma doença, segundo me dizem


bastante comum, da qual padeço, curiosamente, várias vezes ao ano.
A generalidade das pessoas vive entregue a uma rotina
quotidiana, que envolve o trabalho, a família e por vezes algum
lazer, que dura a maior parte do ano.
Chega contudo uma altura, a que chamamos férias, em que a
rotina, temporariamente, pára por completo, dando lugar a uma
nova rotina ou pior, à sua ausência.
Este é um período profundamente desconcertante para a
maioria das pessoas, sobretudo porque lhes dá tempo para pensar,
para questionar as opções que fez na vida e para fazer o balanço do
que viveu até ali e como o viveu. E não há nada mais incómodo e
desagradável, para a maioria das pessoas, do que pensar.
Enquanto se trabalha e se vive entregue a uma laboriosa
rotina, que envolve o emprego, os filhos, a casa, os pais, os amigos e
outros entretenimentos, não há tempo nem disposição para pensar.
Não se vive, reage-se às necessidades do momento, sem ter sequer
oportunidade para as questionar.

155
Alguns argumentarão que isso é que é viver, que a vida não
carece de reflexão, de filosofia, de questões existenciais, apenas de
objetivos e de estratégias para os alcançar.
Admito que esta gente viva mais satisfeita do que eu, mas a
verdade é que acabarão também por morrer. Todos os objetivos que
definirem, toda a riqueza que acumularem, toda a ansiedade com
que viverem, não lhes trará grande proveito nessa altura.
Mas se o objetivo for imediato, isto é, se as ganas de viver
forem uma estratégia para usufruir da vida com maior prazer e bem
estar, então estaremos perante uma filosofia de vida, pensada,
planeada, senão por eles, por outrém, pelo que a sua oposição aos
meus argumentos seria contraditória, ainda que admitamos, por
hipótese, que alguns pratiquem tal filosofia por instinto.
Coloquemos, pois, de parte, esses privilegiados, que não
carecem de filosofar (será que a necessidade não surgirá, mais cedo
ou mais tarde, na vida?) e lhes basta competir pela existência fora,
em busca de resultados, numa obsessão pelo sucesso (será que nem
os insucessos ocasionais lhes darão razões para questionar?), e
pensemos apenas nos comuns mortais, como eu, que vivem com
dúvidas, que estão fartos do trabalho e das rotinas, que gostam de
descansar, de passar tempo a fazer coisas que lhes dão mais prazer,
como viajar, ler ou até escrever estas linhas.
Esta gente normal vive cansada, entregue à rotina e sem
tempo ou vontade para questionar as opções que foi tomando na
vida. Até que chegam as férias e, de um momento para o outro,
mudam de vida como quem muda de camisa. Viajam, descansam,
alguns lêem, vão a concertos, fazem coisas que lhes dão prazer e das
quais se vêem privados durante o resto do ano. Não será normal,
nestas alturas, pensar, filosofar sobre a existência?
Porque não pode a minha vida ser sempre assim, a fazer as
coisas que gosto? Porque razão tenho que voltar para o escritório,
aturar clientes ou patrões, e não posso emigrar para um paraíso

156
tropical qualquer e fazer não importa o quê, lições de surf, danças
de salão, aulas de português para estrangeiros, culinária
mediterrânica, qualquer coisa que me permita sobreviver, fazendo
algo que me dê prazer, e usufruir os anos que me restem de vida,
longe da monotonia do emprego, dos engarrafamentos, dos fins de
semana em família, do ordenado ao fim do mês? Até do síndrome
das férias, porque o pior das férias, mesmo quando nos levam a
repensar a vida, com enormes dores de cabeça, é que terminam
rápido, obrigando à retoma da rotina estupidificante que nos
impede de pensar e de questionar as opções de vida. Por isso o ideal
seria estar sempre de férias, mesmo enquanto se trabalha. Assim não
haveria quebra de rotina que despoletasse a doença.
E esta é essencialmente a incoerência do síndrome das
férias, enquanto duram mostram o quão desinteressante é o resto do
ano e quando acabam, apaga-se automaticamente o sentido crítico
do nosso cérebro e abraçamos a rotina estúpida do quotidiano,
agradecendo aos céus não ter que voltar a pensar no assunto, até às
próximas férias.
Há entre os jovens de hoje uma corrente crescente que
rejeita a criação de raízes e tenta sobreviver em férias, o ano inteiro,
fazendo o que gosta e quebrando rotinas. No fundo não é nada que
gerações anteriores não tenham já tentado fazer. Veremos por
quanto tempo resistem nessa vida semi nómada, porque no dia em
que deixarem crescer alguma raíz, seja um amor, um filho, uma
ocupação mais exigente, regressam à estaca zero. Apenas terão
mudado o local rotineiro, mas a doença, o síndrome, esse aparecerá
em força, seja em Massamá ou em Timbuktu.
Além disso, fazer as coisas a meio termo, com um pé no
emprego e outro no descanso, também não resolve as coisas. Por
isso eu digo que sou vítima do síndrome, várias vezes por ano.
Sendo liberal e gozando o privilégio de dois meses e meio de
férias judiciais por ano, tenho mais tempo e oportunidades para

157
parar e pensar, equacionar alternativas, inventar soluções
impossíveis, adiadas para uma hipotética reforma.
É que não estamos sozinhos no mundo. Pouco importa que
eu queira ir plantar beterrabas para a Beira Baixa se a minha mulher
preferir ir ao cinema e ao café com as amigas em Sintra, se os filhos
estiverem enraizados em Lisboa ou em Londres. Vivemos no eterno
compromisso, hoje há beterraba, mas amanhã visita-se os filhos e os
netos e depois de amanhã temos compromissos inadiáveis em
Lisboa, até porque há exames médicos para fazer e consulta marcada
no especialista, para a semana que vem.
É nesta altura o síndrome das férias se transforma em
síndrome da vida, que é uma doença crónica e incurável, de
duração vitalícia.

28 de Junho de 2023

158
Apologia do Subjetivismo

Há quem defina o subjetivismo como a doutrina filosófica


que afirma que a verdade é a mentira individual.
Ao contrário do positivismo que apenas considera válida a
informação mensurável, digerível e demonstrável pela
experimentação científica, desprezando tudo o mais para o reino
fantasioso da teologia ou da metafísica, o subjetivismo nega a
realidade objetiva. Tudo existe apenas e só na perspectiva do
observador. E não há duas perspectivas iguais, logo não há uma
verdade, mas tantas quantos os intérpretes.
A febre positivista, que varreu o século XIX e entrou bem
dentro do século XX, pretendeu medir e catalogar tudo, porque
desse trabalho dependeria a credibilidade de qualquer obra e autor,
de toda a teoria, do verdadeiro progresso do conhecimento humano.
Teve virtudes incontestáveis, sobretudo nas ditas ciências
exatas, pois permitiu alargar e sistematizar, de modo fundamental,
uma fatia substancial do conhecimento científico.
Já no plano das ciências humanas, falhou redondamente e
pior do que isso, esteve na origem de doutrinas terríveis, que
pretenderam afirmar a supremacia de alguns seres humanos sobre
os outros, baseada em critérios pseudo científicos, de diferenciação

159
racial, étnica, religiosa, sexual, até nacional, contribuindo assim,
decisivamente, para a implosão da civilização europeia, fruto da sua
enorme diversidade, em duas guerras mundiais, a segunda delas, e
incomparavelmente a mais mortífera, travada essencialmente por
motivos étnicos e raciais, que levaram ao genocídio e à deportação
massiva de milhões de pessoas, muitas delas para fora do continente
europeu.
A Europa pós positivista foi assim um continente
etnicamente arrumado, num enxame de micro nações (ainda se
sentem em vários países e conflitos atuais os ecos desse
nacionalismo atávico), com um profundo ódio e ressentimento
umas pelas outras, que tem demorado múltiplas gerações a ser
ultrapassado, existindo regiões onde tal desiderato ainda está longe
de ser alcançado.
Herdámos uma Europa mais pobre, no Pós-Guerra, que
perdeu a liderança económica e cultural do mundo, passando o
testemunho a outros continentes, porventura mais permeáveis à
diversidade étnica e cultural do que o terrível nacionalismo que
grassa ainda entre o cada vez maior número de nações europeias.
Nunca senti especial atração pelas certezas, preferindo mil
vezes as dúvidas. São estas que nos fazem refletir, questionar,
relativizar as questões, comparar pontos de vista e, em última
análise, alcançar entendimentos alargados (o consenso é
seguramente uma utopia).
Por isso me interessei sempre pelas artes e pelas ciências
sociais, pela compreensão dos fenómenos à luz subjetiva de cada
indivíduo. Mesmo os grupos sociais, considerados
metodologicamente como um todo, não são mais do que a
conjugação de uma multitude de indivíduos diferentes, unidos por
um simples objetivo comum, ainda que possam divergir em quase
todos os demais.

160
A humanidade é assim composta por um conjunto de
indivíduos completamente distintos uns dos outros e com tantas
identidades quantos os respetivos pontos de vista.
Esta diversidade pode parecer, à primeira vista, impeditiva
do estudo metódico dos comportamentos humanos, negando o
caráter científico (de acordo, talvez, com os padrões positivistas) às
ciências humanas. Muito pelo contrário, em toda a sua
individualidade, os seres humanos são susceptíveis de adotar
comportamentos previsíveis, quer no plano individual, quer
coletivo. Por isso o subjetivismo da realidade não impede o seu
estudo, apenas exige que não se façam generalizações excessivas.
O povo diz que não há regra sem senão, um conceito
liminarmente inaceitável por um positivista. Para ele a realidade é
matemática e cabe ao cientista descobrir as fórmulas que regulam o
seu funcionamento. Mas o povo, na sua sabedoria milenar
acumulada, sabe bem mais que os discípulos de Comte.
A realidade admite conhecimento sistemático, mas será
sempre relativo, terá sempre pressupostos, condicionantes,
vicissitudes. O conhecimento absoluto é um mito. Temos que nos
contentar com o relativismo científico e dele extrair o maior
proveito possível.
Mas todo este preâmbulo filosófico tem por único objetivo
afirmar o meu subjetivismo militante, ou não fosse eu um
apaixonado pelas artes e ciências humanas.
É para mim fascinante que, perante uma idêntica visão, os
indivíduos retirem conclusões fundamentalmente diversas.
Não facilita o entendimento humano, é verdade, mas
enriquece sobremaneira o conhecimento da realidade, porque todas
essas visões são essencialmente verdadeiras e válidas, por mais
individuais que se revelem.

161
Se colocarmos dez pessoas diferentes a contemplar um pôr
do sol na amurada de um navio e recolhermos separadamente as
impressões que o fenómeno causou em cada um dos observadores
iremos obter provavelmente dez opiniões diferentes, por vezes
parcialmente coincidentes, mas noutras radicalmente opostas, e
ainda assim todas elas válidas e verdadeiras, susceptíveis de
fundamentar investigações de caráter científico ou expressões
artísticas.
Se uns verão beleza, outros banalidade, ou até receio da
escuridão anunciada. Se alguns realçarão a explicação científica do
fenómeno, outros expressarão visões poéticas ou até místicas do
mesmo. Se haverá quem sinta felicidade na contemplação do ocaso,
outros encherão o coração de tristeza, pelo final de mais um dia.
Pode ser o corolário de uma jornada magnífica ou o termo de um
período terrível. Tanto pode anunciar um esperançoso amanhecer
como marcar o fim de uma temporada dourada. Pode ser um dia a
mais ou um dia a menos, o início de uma noite ansiada, amada ou
temida, a conclusão de uma jornada de glória ou apenas de mais um
dia sem história.
Haverá maior riqueza do que a subjetividade? Porque
haveríamos de reduzir o mundo a uma dúzia de leis físicas e
matemáticas (todas elas relativas, no sentido em que só funcionam
num determinado postulado), quando ele nos oferece a
possibilidade de infinitas interpretações?
A diversidade enriquece, sempre.
Mesmo ciosa dos seus pontos de vista, a sabedoria está na
descoberta das verdades alheias, das interpretações dos outros, das
visões alternativas.
É da complementaridade dessas interpretações que se
constrói o verdadeiro conhecimento. Aquele que é composto pelo
conjunto das múltiplas mentiras individuais que integram a
verdade.

162
1 de Julho de 2023

163
164
A Paixão

Hoje pus-me a ver videoclipes da minha infância e


juventude e fiquei deprimido.
Não por constatar que estou velho, porque isso já eu sabia
há muito tempo. Não por me aperceber que estou mais perto da
morte, porque esta nunca me assustou, sempre convivi com ela com
relativa facilidade, nunca me achei imortal ou que era coisa de
velhos. Tive colegas de escola e de universidade que morreram na
adolescência e na juventude e sempre tive plena consciência da
minha mortalidade. Sei perfeitamente que posso morrer já hoje e
sempre tive essa certeza, convivendo com ela com a maior das
naturalidades.
Na verdade, nunca tive grande apego à vida e por isso
sempre vi na morte um lado libertador, de quem se vê livre de um
fardo difícil de carregar (uma cruz, se quisermos utilizar a
simbologia cristã), de quem ganha finalmente o direito ao descanso,
depois de uma longa jornada de difíceis trabalhos. Por isso sempre
achei o suicídio um direito pessoal. Cada um é que sabe até quando
está disposto a carregar o seu peso e tem toda a minha simpatia e
compreensão no dia em que achar que já carregou o suficiente e é
tempo de descansar.

165
Tudo isto apenas e só para concluir que não foi também a
constatação de que algumas daquelas pessoas já estavam mortas (por
acaso as duas que mais me impressionaram até estão vivas) e que a
minha própria velhice e mortalidade estão à espreita, que me
deprimiu. Foi algo muito mais íntimo e pessoal.
Na verdade, ao contemplar aqueles rostos belos e jovens de
duas mulheres, que alimentaram as mais platónicas paixões da
minha infância e puberdade, percebi que nunca mais poderia sentir
essa paixão, nem por elas nem por ninguém, porque se já seria
ridículo alimentar uma paixão pela memória de uma diva da
infância, pior seria se o fizesse por alguma jovem adolescente atual.
Mais do que absurdo seria qualificado como criminoso por parte da
maioria da população e só não pelo código penal porque, por
enquanto, o pensamento ainda não é crime.
Mas porquê esta obsessão pelas paixões da adolescência?
Bem, porque não faz qualquer sentido alimentar paixões por
mulheres da minha idade. Não direi que são impossíveis, que nunca
encontrei uma mulher madura com uma figura atraente e um
sorriso infantil, capaz de me seduzir até à paixão. Mas a questão
essencial seria o que fazer com ela a seguir? Iríamos
apaixonadamente fazer compras ao Mercadona ou comprar uns
doces para os netos?
A verdade é que a paixão tem que ter uma expressão física.
A paixão platónica só existe na puberdade e mesmo essa exprime-se
geralmente pela masturbação. Sentir paixão quando a libido anda
pelas ruas da amargura e a possibilidade de a consumar, sem recurso
a drogas, é quase impossível é um absurdo, quase diria um ato de
masoquismo.
Dir-me-ão que a paixão é para os jovens. E que para os
velhos existe o amor. Será. Acredito que para alguns seja um
substituto à altura e que para outros até apresente vantagens. Não é
infelizmente o meu caso.

166
Desde logo porque quando sinto nostalgia das minhas
paixões de juventude não me consigo consolar a pensar no amor aos
filhos ou aos netos (que ainda não tenho mas espero vir a ter),
porque nada tem a ver uma coisa com a outra.
A minha tristeza é pela perda de um sentimento que
alimentou a maior parte da minha vida e que integra o âmago
fundamental das razões pelas quais a maioria das pessoas acha que
vale a pena viver. Por paixão.
Viver sem paixão é triste, é como comer de dieta ou não
poder sair de casa. É como viver com uma incapacidade. Não mata,
mas desmoraliza muito, parafraseando o também já defunto Raúl
Solnado. Senti a tentação de escrever que seria também como
limitar o sexo à cópula com preservativo, mas a verdade é que, nos
tempos que correm, até essa já me daria alguma alegria, por isso
seria um péssimo exemplo.
É a obsessão masculina pelo sexo a falar, dirão as mulheres.
Concordo. Somos programados biológica e socialmente para pensar
em sexo toda a vida. Por isso é natural que quando o sexo começa a
ser um problema fiquemos deprimidos, nostálgicos dos tempos em
que a libido ainda se chamava tesão e esta surgia por tudo e por
nada, ao mais pequeno vislumbre ou pensamento do sexo feminino.
Então e o amor, não é muito mais importante que o sexo?
Bom, há muitos filósofos e teólogos que dizem que sim e a
maior parte das mulheres é capaz de concordar sem hesitações,
porque são seres sensíveis e não sexuais. Algumas nunca sentiram
desejo sexual na vida e mesmo as felizes que o sentiram e até
tiveram e têm orgasmos e libido, mesmo pós menopausa,
desvalorizam essa necessidade, como se fosse um complemento
higiénico da sua intimidade, porque os valores fundamentais pelos
quais vale a pena viver são o amor aos filhos, a solidariedade, a
amizade.

167
Desculpem-me, porque não é por má vontade, mas eu não
sou capaz de pensar assim. A paixão não se satisfaz com um orgasmo
periódico, quando calha. Isso é parte do problema. É a constatação
da decrepitude a que chegou a minha libido, da minha incapacidade
em viver uma paixão.
O amor é um sentimento totalmente distinto da paixão e
não é, nunca foi nem pode ser um seu substituto, quanto mais a
amizade e a solidariedade. É o mesmo que saciar a fome bebendo
água ou a sede comendo pão. Não sacia, antes aumenta a carência e
expõe a incapacidade.
Reconheço que não sou, nem nunca fui, uma pessoa
particularmente afetiva. Será parte também do problema.
Os afetos incomodam-me, causam-me desconforto, por isso
dou poucos e limito muito os que recebo. Isso não significa que seja
incapaz de amar, mas seguramente que não amo com a intensidade
que outros amam e sobretudo não expresso nem recebo expressões
de amor que possam, nem de perto nem de longe, substituir a
paixão perdida.
Constato aliás que há algum tempo atrás escrevi, um pouco
temerariamente, reconheço, que, de acordo com a filosofia
subjacente a um famoso filme de Ingmar Bergman (Luz de
Inverno), era o amor que dava as forças necessárias para viver e que
podia reconciliar o homem com Deus.
Segundo este princípio não haveria Fé sem Amor nem
Amor sem Fé. O que não são propriamente boas notícias para mim,
tenho que admitir, pois nunca encontrei a Fé, nem em Deus nem
nos homens, por isso talvez esteja incapacitado de encontrar o
Amor e com ele aquecer estes dias que me restem do frio Inverno
da Vida.
Mas como se diz que enquanto há vida há esperança, pode
ser que encontre o Amor e com ele a Fé ao virar de alguma esquina
e que me ajudem a superar esta Paixão ausente.

168
Afinal dúvidas todos têm, até Cristo na cruz perguntou ao
“Pai, porque me abandonaste?”

29 de Julho de 2023

169
170
Egocentrismo

Não posso deixar de anotar que, quem se der ao trabalho de


ler estas mal amanhadas linhas, não deixará de concluir,
inevitavelmente, que o seu autor sofre de um inquestionável e
inesgotável egocentrismo.
Posso incluir algumas pausas higiénicas, até para disfarçar,
nalguns capítulos, mas mais tarde ou mais cedo a temática volta-se
sempre para o interior, para as minhas muitas dúvidas e poucas
certezas, as minhas tendências depressivas, as minhas angústias
existenciais e outras temáticas igualmente ligeiras ao leitor, por
muito que pesem no meu ego.
É verdade, admito-o. Mas eu sempre disse que isto era uma
espécie de diário, por isso é natural que se concentre nos meus
sentimentos e impressões pessoais.
Além disso eu não sou um indivíduo egoísta, no sentido de
um ganancioso, fervilhante de ambição, que tudo quer para ele e
mostra-se incapaz de reconhecer os problemas e necessidades dos
outros. Que não olha a meios para atingir os fins que mais lhe
interessam. De maneira nenhuma.
Atrevo-me até a dizer que a minha profissão, pelo menos na
maneira como eu a interpreto, passa muito pela capacidade de saber

171
ver as coisas pelo ponto de vista dos outros, pelo desenvolvimento
de uma capacidade de calçar os sapatos da outra parte, de modo a
melhor poder compreender as razões em confronto e assumir um
salutar papel de conciliador.
Mas essa capacidade não impede o meu egocentrismo,
reconheço. Porque uma coisa é tentar compreender o outro e até ter
facilidade no exercício, outra completamente diferente é ter
empatia por ele, é ser filantropo, é abdicar do interesse próprio em
favor do alheio, é desenvolver amizades, é ser solidário, ter gosto
em partilhar, em ajudar.
Eu isso não tenho, confesso. Sou um ser solitário e amargo,
capaz de suportar a vida apenas e só com uma elevada dose de
ironia, com escasso interesse pelos outros e nenhum espírito de
responsabilidade social. O pouco que faço, faço-o muito mais por
obrigação do que por convicção ou generosidade.
Diga-se, em abono da verdade, que também não espero nada
de ninguém. Nem quero, acrescento, pois sou demasiado orgulhoso
para aceitar favores, sem que isso me belisque o ego. Quero ser
independente e espero dos outros o mesmo, em total regime de
reciprocidade.
Por isso não se admire o leitor se estes textos acabem
sempre a olhar para o meu próprio umbigo.
É, antes de mais, para mim e sobre mim que escrevo. Não
por me ter em elevada conta, mas porque é o que conheço e sempre
fui adepto da famosa máxima socrática do “conhece-te a ti mesmo”.
Além disso, se tenho pouco interesse pelos outros, não posso
em rigor escrever com propriedade sobre aquilo que desconheço, a
não ser na estrita medida em que, ao conhecer-me a mim próprio,
estou também a conhecer um pouco dos outros, pois todos somos
humanos e pelo comportamento de uns se afere as atitudes dos
outros.

172
Mas não quero tapar o sol com a peneira. Sou egocêntrico,
mesmo quando escrevo sobre os outros.
Dir-me-ão então que os meus textos são um mero exercício
de masturbação intelectual, sem outra finalidade que satisfazer o
ego próprio.
É uma perspetiva legítima, embora nesse exibicionismo
possa estar contida alguma experiência, válida para alimentar, após
ponderada digestão, a sabedoria do leitor.
Eu, contudo, prefiro vê-la como um exercício de auto
análise. É como ir ao psicólogo, mas sem sair de casa.
Afinal de contas, o que faz o paciente durante o processo
psicanalitico? Expõe verbalmente a sua intimidade, os seus
problemas, aspirações, medos. Masturba verbalmente o seu espírito,
com a ajuda do psicólogo.
Digamos que eu prefiro fazê-lo sozinho e por escrito.

29 de Julho de 2023

173
174
O Nosso Amigo Paulo

Tive o privilégio de ser amigo do Paulo Gil durante


dezasseis anos. Os últimos dezasseis anos da sua vida.
Mas nem por isso foram anos de decadência ou de
monotonia. Nunca vi o Paulo doente, apesar de ter durado até aos
oitenta e quatro anos e meio de idade. Todos os dias estava pronto
para ir a concertos, para descobrir novos instrumentistas, novos
espaços culturais, onde pudesse ouvir, e dar a ouvir aos outros, jazz.
Apesar da diferença de idades, nasci quase 31 anos depois
dele, o Paulo nunca me tratou como um filho, que bem poderia ser.
Eu era para ele um irmão mais novo, a quem desvendava, com
infinito prazer, o mundo e os personagens do jazz. Mas sempre
aberto à novidade. Muitas vezes me apresentou a gente da música
como um especial conhecedor do género, porque me reconhecia o
gosto de lhe dar a conhecer também novos discos, novos músicos,
novas editoras, de cada vez que o encontrava. Informação que ele
colhia com genuíno interesse. Separava o trigo do joio, de acordo
com o seu gosto pessoal e, por vezes, se lhe agradava muito, no
próprio dia estava a enviar e-mails aos músicos ou aos seus agentes,
elogiando o trabalho e convidando-os a vir apresentá-lo a Portugal.
Muitos contactos foram estabelecidos dessa forma.

175
Porque o Paulo, acima de tudo, era um comunicador, com
uma invulgar capacidade para fazer amizades. Acho que fez amigos
quase todos os dias da sua vida. Nem precisava sair de casa. Fazia
amigos pelo telefone, por email, até por correspondência, se fosse
preciso. Não tinha pudor com a amizade. Falava com toda a gente e
se lhe respondiam e davam conversa, tínhamos uma amizade para a
vida. Tanto fazia ser a telefonista da MEO como o presidente da
república.
Esta pureza na amizade, esta simplicidade na entrega aos outros, são
características raras, mas que identificavam o Paulo Gil. A maior
parte das pessoas coleciona conhecimentos, ao longo da vida,
guardando meia dúzia de amigos. O Paulo colecionou amigos, até ao
último dia em que viveu.
Esta facilidade de comunicação e de fazer amizades era o
manancial que lhe permitia ter sempre histórias para contar, como
as deste livro (e muitos outros livros, com outras tantas histórias,
ficaram por escrever).
A maior parte destas histórias ouvi-as em conversas com ele,
muito antes de serem escritas. Eu e todos os que com ele trocavam
dois dedos de conversa, no Hot, no restaurante, no meio da rua,
porque o Paulo era homem para falar com uma dezena de
desconhecidos, no caminho até ao Hot.
Alguns consideravam-no um mitómano, até entre os mais
chegados. Eu perguntaria qual, entre os grandes contadores de
histórias, não tem qualquer coisa de mitómano?
Algumas das histórias do Paulo eram tão inverosímeis que
eu próprio me questionava, até que ponto seriam verdadeiras. Mas
tive oportunidade, muitas vezes, de confirmar a sua veracidade, ao
encontrar os protagonistas.
Claro que, ao fundo verdadeiro, o Paulo acrescentava toda a
sua pureza e experiência de vida. O que para uns poderia ser uma
experiência insignificante, para o Paulo transformava-se num

176
episódio marcante. Não por mitomania, mas porque, a cada simples
apresentação, ele juntava sempre uns largos minutos de conversa,
que chegavam para se dar a conhecer ao interlocutor e aprender
alguma coisa com ele.
Um episódio típico, aliás objeto de uma das histórias
contadas neste livro, é a do imperador do Japão. É verdade que o
Paulo, quando representava o Opus Ensemble, esteve no Japão,
integrado numa embaixada cultural, liderada pelo então presidente
da república Mário Soares. Nessa qualidade, de representante dos
músicos, esteve presente numa cerimónia oficial, onde lhe foi
apresentado um jovem membro da família real japonesa. Loquaz,
como sempre, o Paulo terá seguramente trocado uns minutos de
conversa com o ilustre personagem, sobre música, muito
provavelmente, e em francês, língua que ambos dominavam. Pois
este jovem membro da família real, que teria vinte e tal anos na
altura e ocupava um lugar remoto na linha sucessória ao trono, veio,
por diversas circunstâncias, a ser o atual imperador do Japão,
Naruhito, em 2019. Facto que muito alegrou o Paulo, naturalmente,
que não se coibiu de mencionar repetidas vezes e a muita gente, que
conhecia pessoalmente o imperador do Japão. A maior parte das
pessoas olhavam desconfiadas para ele, sorrindo do que achariam
ser uma patranha. Mas era a pura verdade. Essa história de ter sido
apresentado a um membro da família real japonesa chamado
Naruhito, já eu tinha ouvido dezenas de vezes, antes de ser
anunciada a sua ascensão ao trono. Seria outro Naruhito? Acho
pouco provável e o Paulo não tinha a menor dúvida a esse respeito.
Outras histórias inverosímeis se passavam com ele
diariamente, algumas que confirmei presencialmente, outras que
não tive ainda oportunidade de confirmar, nem sei se algum dia
terei, mas que acredito com convicção.
Lembro-me de uma que ficou de fora deste livro, como
muitas outras.

177
Um dia juntei-me ao Paulo Gil no Hot e ele veio dizer-me
que tinha encontrado o Ben Harper a andar de skate na Praça da
Figueira. Ri-me, como qualquer outra pessoa, sem acreditar na
história. Mas ele insistia que tinha ido à manteigaria Silva, na baixa,
um dos seus locais habituais, para a compra de uns bons queijos da
serra, e de caminho, meteu conversa com uns jovens que estavam a
andar de skate, na Praça da Figueira. Constatou que eram
estrangeiros e um deles apresentou-lhe logo o colega como sendo o
famoso músico Ben Harper, que lhes tinha pedido um skate
emprestado para dar umas voltinhas ali na praça. O Paulo trocou de
imediato uns minutos de conversa com o músico, sobre o jazz e os
colegas norte americanos que conhecia. O outro ter-lhe-ia dito que
gostava de Dave Brubeck.
Depois de todos estes detalhes, e de mais alguns que não
vêm ao caso, fiquei convencidissimo que, se algum dia me cruzar
com o Ben Harper e lhe falar num velhote de barbas que meteu
conversa com ele sobre jazz, um dia que ele andava de skate na
Praça da Figueira, em Lisboa, ele vai lembrar-se de certeza do Paulo
Gil e das revelações que este lhe fez sobre o Dave Brubeck.
Era assim o Paulo Gil. Um personagem único.
Ainda bem que temos estas histórias para podermos
recordar a sua pureza e amizade, sempre que a saudade aperte.

2 de Agosto de 2023

Prefácio para um livro, de edição póstuma, de memórias do


Paulo Gil.

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Conversas Inteligentes

Li há tempos num meme, uma daquelas pérolas de sabedoria


popular que povoam as redes sociais, a que antigamente se
chamavam aforismos, uma frase curiosa, que me deixou a pensar.
Dizia mais ou menos isto: os mais inteligentes falam de
ideias e princípios, os medianamente inteligentes de factos e
atualidades e os menos inteligentes apenas de pessoas.
Presumo que as pessoas a que alude a frase não incluía as
biografias de grandes vultos do pensamento, mas apenas e só a
vulgar coscuvilhice e má língua.
Não pude evitar pensar, com alguma imodéstia para a qual
peço desde já o vosso perdão, que, a haver alguma verdade no
aforismo, eu pertenceria seguramente ao primeiro grupo, porque
não só restrinjo a minha parca conversação às ideias, buscando
sempre um sentido mais vasto, profundo e contraditório em cada
tema debatido, como tenho desenvolvido uma crescente aversão aos
outros temas referidos, sejam eles as atualidades, as mundanidades
ou as simples futilidades.
Mas há um aspeto importante que o aforismo não
contempla, que compensa claramente as eventuais desigualdades na
distribuição da inteligência, é que esta nunca trouxe felicidade a
ninguém. Se quisermos medir a felicidade das pessoas, em função da
sua inteligência e conversação, então chegaríamos facilmente à
conclusão inversa da obtida pelo filósofo de ocasião que elaborou o

179
meme. Quanto menos inteligente e mais fútil, mais feliz o
indivíduo.
É que a inteligência, mais do que um dom, é um fardo difícil
de carregar. Ela traz frequentemente a solidão, a depressão, a
incapacidade de interagir socialmente, precisamente porque não há
muitos dispostos a manter uma conversação ao nível filosófico.
Alguns não podem, porque a inteligência e conhecimentos não
chegam para tanto. Outros não querem, porque estes temas exigem
ponderação e coerência, por isso devem ser debatidos por escrito,
depois de devidamente amadurecidas as ideias e extraídas as
conclusões e corolários lógicos.
Debater ideias verbalmente é fazer como os políticos, nos
debates televisivos, trocar acusações gratuitas e falaciosas. Ora essas
figuras só se fazem em nome de interesses e não de princípios. Para
esses quer-se elevação e convicções fundamentais, além de
inteligência, que nem sempre abunda na classe política.
Não creio que o princípio seja inteiramente verdadeiro. De
facto, não há nenhuma razão pela qual uma pessoa inteligente não
possa falar também de atualidades e de pessoas, mesmo concretas,
não apenas abstratas.
Mas há um fundo de verdade naquele aforismo. Quem só
fala das pessoas com quem se relaciona ou vê na televisão,
geralmente mal e pelas costas, não dá mostras de grande
inteligência, e quem se contenta em debater as atualidades dos
noticiários, às vezes com um afinco desproporcional ao próprio
interesse da temática, demonstra claramente pouca reflexão e muito
mais vontade em exibir um falso conhecimento, que nem sequer é
livresco, mas meramente televisivo ou radiofónico, na maioria das
vezes, do que conhecer aprofundadamente o que quer que seja, o
que não é, convenhamos, uma atitude particularmente inteligente.

180
O conhecimento exige ponderação, reflexão, pesquisa,
amadurecimento de ideias. Não há conhecimento que brote de um
qualquer debate verbal, muito menos à mesa de um café.
Ponham dez sábios a debater ideias num confronto
televisivo e o produto do encontro será uma perfeita nulidade. Cada
um debitará as suas verdades subjetivas e ninguém saberá extrair a
síntese de tamanha caldeirada de conhecimentos.
A inteligência está na capacidade de aprofundar o
conhecimento, para compreender uma qualquer parcela da
realidade, na maior extensão possível. Não está na exibição gratuita
de argumentação retórica, sobretudo sobre o que se conhece mal, e
menos ainda na crítica gratuita de defeitos alheios, sem mostrar
qualquer capacidade para os comparar aos próprios.
Neste particular subscrevo, sem reservas, o provocante
aforismo.

5 de Agosto de 2023

181
182
Ansiedade
R e a Sra. R vinham preocupados, enquanto o avião descia
para o aeroporto internacional da capital. A preocupação advinha
menos da, sempre delicada, manobra de aterragem da aeronave, do
que do facto de saberem que a sua estadia na capital seria breve,
apenas o tempo necessário para apanharem um segundo voo, que os
levaria ao seu efetivo destino.
As escalas são sempre complicadas. Há atrasos que fazem
perder os voos de ligação, há bagagens que se extraviam, há
corredores intermináveis a percorrer, desde a porta de chegada até à
de partida, por vezes localizada num terminal oposto.
A toda esta ansiedade, acrescia o facto de ser a primeira vez
que faziam trânsito no imenso aeroporto da capital. Conheciam
bem o terminal das partidas e os procedimentos habituais para o
embarque. Já a perspectiva de fazer um desembarque numa porta
aleatória e terem de percorrer todo o aeroporto, até à extremidade
oposta, para embarcar num voo de ligação, cumprindo pelo
caminho todos os procedimentos necessários de desembarque e
posterior embarque, num terminal oposto, pereciam-lhes uma
aventura arriscada, destinada provavelmente a correr mal.

183
A aterragem decorreu sem problemas, aparte a azáfama
habitual, que os impediu de sair do avião com a urgência que
gostariam, atento o longo calvário que os esperava, até ao voo de
ligação.
Eis que uma surpresa os esperava, ao serem chamados à
alfândega. Por qualquer razão, que desconheciam em absoluto, as
novas máquinas de controle de bagagem tinham detectado um
excesso de numerário na mala de R. Felizmente, como a Sra. R
viajava juntamente com o marido, foi possível distribuir o valor
equitativamente, pela bagagem dos dois, de modo a não ultrapassar
o montante legalmente admitido. Mas foi necessário pagar uma
taxa, pelo excesso de numerário, a qual, contudo, foi relativamente
baixa, atenta a possibilidade de dividir o montante pelo coeficiente
conjugal. Mas atrasou ainda mais o trânsito, que já se antevia difícil.
Esperava-os ainda outra surpresa. Como a distância entre os
terminais era enorme e os transportes coletivos escassos, tinham à
sua espera os dois veículos pessoais de R e da Sra. R, os quais
deveriam ser utilizados para o transporte não apenas dos
passageiros, mas também das respetivas bagagens, até ao terminal de
embarque. Lá chegados, deveriam ser estacionados, em depósito, até
ao regresso de viagem.
Tudo começou bem, apesar da fila interminável de veículos
para o check in, até que a Sra. R, vislumbrando talvez uma fila
menor, num balcão à sua esquerda, rumou temerária o seu veículo
ao mesmo, obrigando o marido, preocupado, a segui-la, sem saber
muito bem para onde.
O resultado foi desastroso, porque o balcão afinal estava
fechado e os veículos ficaram atravessados no meio da plataforma,
sem possibilidade de retorno à fila principal, que entretanto já

184
estava compacta pelo avanço dos outros veículos, nem de avançar
para os balcões encerrados.
Incapazes de prosseguir nos seus veículos, R e a Sra. R,
pegaram nas bagagens que conseguiram carregar consigo e seguiram
a pé, rumo ao desejado check-in.
Mas as dificuldades eram imensas.
A dada altura tiveram que trepar uma rede enorme, como
aquelas usadas em treinos militares, e descer pelo lado oposto,
sempre carregados com as malas. A tarefa parecia impossível, mas lá
conseguiram ultrapassar o obstáculo, embora à custa de grande
parte da bagagem, que ficou pelo caminho, e algumas nódoas
negras.
Nesta altura estavam reduzidos a duas pequenas malas de
mão, mas ainda não tinham desistido de tentar embarcar, no
desejado voo de ligação.
Encontraram pessoas conhecidas, sobretudo músicos de
jazz, habituados àquelas correrias, pelos terminais de aeroporto.
Cumprimentaram-se, cordialmente, mas não conseguiram obter
grande ajuda dos seus conhecimentos.
Sabiam que o terminal de embarque ficava do lado oposto
ao que costumavam utilizar, por isso pensaram que, se seguissem
sempre em frente, acabariam por encontrar o seu destino.
Preocupava-os sobretudo o abandono dos veículos e das
malas. Será que conseguiríam recuperá-los mais tarde? A ansiedade
era grande, a juntar ao fundado receio de perder o voo.
A certa altura, para sua grande surpresa, depararam com
uma enorme estação ferroviária. Aparentemente, o novo aeroporto
tinha ligado o terminal ferroviário ao aéreo, de modo a facilitar o
acesso aos passageiros.

185
Mas isso não tranquilizava R nem a Sra. R, que se viam
assim completamente perdidos e com possibilidades cada vez mais
remotas de encontrar o terminal de ligação.
A ansiedade era enorme.
Foi mais ou menos por esta altura que acordei e pensei para
mim, entre os lençóis suados, daquela noite mal dormida:
"Já faltam menos de duas semanas para partir de viagem de férias,
com a família".

5 de Agosto de 2023

186
Do Sentido da Vida
Refletir sobre tão nobre temática às quatro da madrugada,
depois de meia noite mal dormida, não pode resultar em grande
filosofia. Ou então, por um qualquer processo obscuro de limpeza
mental, pode advir um momento de clarividência, uma epifania,
que torne límpido e claro o que sempre foi turvo e disforme.
Por agora parece-me evidente que não pode existir um
sentido para a vida sem Fé.
A Fé de que falo não é necessariamente religiosa, embora
essa resolva mais facilmente o problema. Quem tem Fé em Deus
tem um desígnio na vida e tudo o que fizer ou dele se abstiver tem
por missão primordial cumprir um papel no supremo plano divino.
Nesse caso é fácil encontrar um sentido para a vida, basta seguir o
plano de Deus, deixar a decisão para a Sua insondável vontade e
entregar-se aos Seus superiores desígnios.
Repare-se que este aparente alheamento de um sentido
crítico, nem sequer é incompatível com um grau elevado de
inteligência.

187
O pobre de espírito serve Deus como pode, pela superstição
e pelo cumprimento dos rituais religiosos, ou pior ainda, pela
difusão mais ou menos coerciva da Sua palavra.
Mas o sábio pode encontrar formas superiores de servir a
Deus e de cumprir os Seus desígnios, pelo estudo, pela tentativa de
compreensão da grandeza da Sua obra, pela construção de modelos
filosóficos, onde a organização social e a natural provenham do
sopro divino.
Durante séculos, foi esta a principal ocupação das melhores
mentes humanas, precisamente porque os sistemas políticos,
essencialmente teocráticos, não admitiam outras formas de
expressão de inteligência e sentido crítico, senão no serviço da Fé
verdadeira, sendo esta, naturalmente, a sancionada pelas
autoridades teocráticas.
Quem se desviasse do dogma, ou se mostrasse incapaz de
conciliar as suas reflexões teológicas com o modelo superiormente
estabelecido, caía na heresia e na perseguição religiosa, de que
resultava o cisma, se a heresia fosse suficientemente protegida pelo
poder temporal vigente, ou a extinção, pela perseguição fanática e o
genocídio dos seus seguidores, nos restantes casos.
Hoje, a sociedade está mais tolerante, em geral, ao Teísmo,
pelo que grande parte das pessoas que, possuindo Fé em Deus, se
afastam dos dogmas religiosos, pode encontrar um sentido para a
sua vida num modelo divino pessoal, que descobre Deus naquilo
que mais lhe aprouver, seja na natureza e nos animais, na dedicação
aos outros, no culto da saúde e do bem estar espiritual ou noutras
manifestações mais ou menos exóticas. No fundo, é possível
encontrar Deus em tudo, dependendo da Fé individual e da
predisposição de cada um.
Mas também pode haver Fé sem Deus.

188
Há muito quem encontre um sentido para a vida na Fé em si
próprio, nas pessoas, no serviço aos outros, na ciência, na
humanidade, enfim, naquilo que se quiser.
A diferença deste tipo de Fé com o Teísmo é que este último
pressupõe uma fé em Deus, uma missão divina, enquanto a Fé
temporal se satisfaz consigo própria, sem carência de uma divinal
justificativa.
Se alguém se dedica a ajudar os outros porque entende ser
essa a sua missão divina, fá-lo por Fé em Deus, seja num Deus
instituído, através de uma religião organizada, ou num Deus
pessoal, como parte de uma missão de vida, individual, mas
inspirada por Deus.
Mas se a pessoa de dedicar a ajudar o seu semelhante, a
minimizar o sofrimento dos outros, como mera expressão de uma Fé
pessoal na humanidade e na solidariedade, sem que o seu
comportamento decorra de qualquer expressão divina, mas apenas e
só de consciência, essa pessoa alimenta-se de um Fé estrita na
condição humana, como suficiente para dar sentido à vida. Uma Fé
meramente humanista.
Esta Fé pode ser expressa nas suas próprias capacidades, no
progresso científico, no estudo, na dedicação à melhoria das
condições de vida do ser humano, ao desenvolvimento técnico, à
organização social e distribuição da riqueza.
Também a dedicação à ciência ou à política podem ser
manifestações de Fé em si próprio, na sua capacidade individual de
melhorar o mundo, por pouco que seja, contribuindo para um bem
coletivo.
Mas a Fé pode ser expressa em realidades muito mais fúteis,
que não deixam, ainda assim, de cumprir a sua missão primordial,
que é dar um sentido à vida. É o caso das pessoas que vivem por

189
amor a um desporto ou clube, a uma ideologia, ao narcisismo, à
moda, à popularidade, à riqueza ou a qualquer outra futilidade, que
nada acrescenta à humanidade, mas ainda assim chega para dar um
sentido à sua vida individual.
Infelizmente há também quem não consiga encontrar a Fé,
nem em Deus, nem nele próprio, nem nos outros, nem sequer nas
muitas futilidades que a sociedade de consumo colocou à sua
disposição.
A estes resta-lhes o uso de um paliativo para a angústia
existencial, um bálsamo que atenue o absurdo da vida e adie a
morte, até onde lhes for possível.
O recurso a drogas, ao álcool, ao sexo, são lenitivos
tradicionais, que conduzem geralmente ao niilismo e à auto
destruição do indivíduo.
Por vezes, essa angústia pode revelar-se num progressivo
isolamento, num comportamento associal e levar à misantropia. Em
casos extremos, pode até conduzir ao suicídio ou a atitudes
sociopatas.
Há ainda a arte, que tanto pode funcionar como uma
manifestação de Fé, na beleza e na capacidade criadora do ser
humano, como um lenitivo para a angústia existencial.
Há artistas que vivem felizes o seu processo criativo,
munidos de uma Fé nas suas capacidades e na esperança no seu
reconhecimento. Contudo se este não surge, ou se desaparece, após
os famosos cinco minutos de fama, a que cada artista tem
alegadamente direito, muitos perdem a Fé e entregam-se ao
niilismo.
Outros ainda, sem nunca terem criado uma verdadeira Fé na
sua arte, usam-na simplesmente como lenitivo para a inevitável
angústia existencial. Para estes a arte não é mais do que uma droga,

190
que visa alhear o indivíduo do absurdo da vida, através da busca da
beleza. Funciona, mas não é durável sem Fé.
Se durante essa busca, o indivíduo não encontrar a Fé na sua
arte ou na dos outros, os efeitos da droga passam, inevitavelmente, e
só lhe sobra o vazio existencial.
Podemos assim concluir que o único sentido para a vida se
encontra na Fé, e que quem não conseguir encontrar a Fé divina,
terá forçosamente que a encontrar na humanidade, no seu dia a dia,
seja em si próprio e no desenvolvimento das capacidades
individuais, seja na riqueza, no poder, na solidariedade, na família,
no trabalho ou no que quer que seja.
Sem Fé não existe nada, apenas um absurdo vazio
existencial, que conduz inevitavelmente à destruição do indivíduo.
Por isso o sentido da vida está forçosamente na busca da Fé,
que não tem que ser encontrada na religião, mas está à espreita em
qualquer atividade humana. Sem ela só sobra o vazio da morte.
Mas enquanto há vida, há esperança. Se ainda não
encontrou a Fé da sua vida não desespere. Ela pode estar à sua
espera, já ao virar da esquina. Só tem que se entregar à vida, de
preferência com amor, se conseguir.
Quem ama não tem qualquer dificuldade em encontrar a Fé.
Amor e Fé são exatamente a mesma coisa, não existem um sem o
outro.

7 de Agosto de 2023

191
192
Peregrinações

Não tenho por hábito comentar atualidades. A própria


palavra remete para o imediato, para o transitório, para o trivial.
Gosto de refletir sobre o que fica, o quadro amplo, a essência das
coisas.
Mas desta vez não resisto a escrever algumas linhas sobre
um evento que decorreu durante a primeira semana de Agosto de
2023 e que monopolizou o interesse dos meus compatriotas,
influenciando inevitavelmente o quotidiano dos residentes em
Portugal, incluindo eu próprio.
Falo das Jornadas Mundiais da Juventude Católica, que
trouxeram a Portugal, durante o supracitado período, não apenas o
Papa Francisco e o seu respectivo staff, como cerca de dois milhões
de jovens peregrinos, a fazer fé nos números adiantados pela
comunicação social.
Confesso que nunca tinha ouvido falar nas Jornadas
Mundiais da Juventude Católica até ter sido anunciado, há alguns
anos atrás, que a próxima edição seria organizada em Portugal, com
alguns anos de atraso à previsão inicial, devido ao Covid. Por isso
não pude deixar de ser surpreendido com a quantidade de jovens

193
que invadiram literalmente este país, de norte a sul, alegadamente
para rezar com o Papa.
Aparentemente nada mais está incluído no programa destas
jornadas, além de uma sucessão de encontros, para missas campais e
comícios doutrinários, com a presença do bispo de Roma. Porque
razão, então, movimentam estas jornadas tamanha quantidade de
gente?
Segundo percebi, ou julguei perceber, porque serve de
pretexto para uma semana de férias, quase de graça, em conjunto
com muitos outros jovens católicos, de todo o mundo.
No fundo é uma espécie de festival de Verão, onde a música
é substituída pelas missas campais, mas onde, em contrapartida, não
só não se paga entrada mas se tem a estadia e a alimentação
gratuitas e não sei se algumas viagens também, beneficiando de
acordos negociados, pelas diversas entidades da Igreja, con
patrocinadores privados.
Na verdade, é uma gigantesca manifestação de propaganda
da Igreja Católica, que atrai milhões de jovens de todos o mundo,
para uma semana de convívio e coabitação, supostamente
supervisionada, mas praticamente gratuita, a troco da participação
em dois ou três eventos papais.
A ideia é brilhante, sob o ponto de vista do marketing da
Igreja, usar o Papa como pretexto para atrair milhões de fiéis, ainda
por cima jovens, para grandes comícios, onde garante não apenas o
futuro da instituição e da fé católica, como mostra ao mundo a sua
força e vitalidade.
E o mais inteligente é que consegue tudo isto à custa de
trabalho voluntário dos católicos, da disponibilidade gratuita dos
meios públicos do país de acolhimento, que assegura recintos para
as manifestações (até os constrói de propósito para o evento),
alojamento e alimentação gratuita para uma grande parte dos
peregrinos (em estabelecimentos de ensino e albergues do estado,

194
sobretudo) e também dos meios privados que, com maior ou menor
interesse na iniciativa, fazem parcerias com a organização, sejam
simples famílias de acolhimento ou cadeias de fast food que
celebram acordos de fornecimento gratuito de refeições, em troca
de senhas de racionamento, provavelmente na expetativa que, além
do menu de base, os jovens sempre comprem uns extras, em cada
deslocação ao restaurante. E os donativos sempre têm benefícios
fiscais, pelo que a iniciativa nunca daria prejuízo.
Enfim, uma monumental iniciativa de propaganda, que
utiliza a normal predisposição dos jovens para a viagem e o
convivio, como pretexto para dar um banho de multidão ao Papa, à
custa do Estado de acolhimento, do voluntariado dos seus fiéis e de
donativos privados, tudo para atrair mais jovens para o ideário
católico e para mostrar ao mundo a força do Papado, como centro
religioso mundial.
A cobertura dos meios de comunicação social foi tremenda,
como não podia deixar de ser, absorvendo quase ao minuto, os
eventos do programa e criando outros tantos paralelos, imiscuído-se
na multidão de peregrinos e cobrindo cada caso particular que lhes
era relatado. Houve notícias de uma peregrina francesa que morreu
ao cair de uma escada em Lisboa, de um croata que partiu a espinha
a mergulhar em Carcavelos e de uma espanhola quase cega que
recuperou a visão em Fátima, entre muitos outros fait divers, que
não chegaram ao meu pouco interessado conhecimento.
À procissão de peregrinos juntou-se a dos políticos, todos
desejosos de aproveitar tamanha cobertura mediática, em seu
proveito. Os que não foram beijar a mão do Papa participaram em
manifestações contra o Papa, em protesto do abuso sexual de
menores ou da intolerância da Igreja para com a comunidade
LGBTetc.

195
Houve até oportunidade para intervenções policiais, fosse
para expulsar activistas arco íris dos eventos papais, fosse para
expulsar activistas católicos de missas arco íris.
Um festival completo, que manteve entretida grande parte
da população portuguesa, durante uma semana.
Eu fugi, como pude, dos epicentros do evento, sem contudo
conseguir evitar o encontro com bandos de peregrinos, nos mais
variados locais, que não me incomodaram nada, verdade seja dita,
mas que impediram praticamente o normal funcionamento dos
serviços públicos durante uma semana inteira, a ponto do governo
dar tolerância de ponto à função pública, durante vários dias.
Felizmente que tudo isto sucedeu em Agosto, quando a maior parte
das pessoas está de férias e os serviços públicos já pouco funcionam,
por regra.
O meu pasmo é para a subserviência dos poderes públicos a
esta gigantesca máquina de propaganda católica, ainda por cima
com um governo de esquerda no poder.
Será que se os ismaelitas convidarem o príncipe Aga Khan
para umas jornadas mundiais da juventude em Lisboa, terão o
mesmo apoio e subserviência das autoridades nacionais? Ou
qualquer outra religião?
Não era suposto vivermos num estado laico?

9 de Agosto de 2023

196
Memórias de Aluguer

Alguém escreveu que só possuímos para sempre o que já


perdemos.
O pensamento é bonito e poético, mas só funcionaria se
fossemos imortais.
O pobre mortal, que somos, não possui nada para sempre.
Até as memórias são de aluguer, pagas com a própria vida.

11 de Agosto de 2023

197
198
Foragidos da Infância

A infância é o período da vida onde somos mais vulneráveis.


Sobretudo no relacionamento com os adultos, mas também com as
outras crianças.
É sobejamente conhecida a crueldade infantil e juvenil, que
hoje passa pelo estrangeirismo do bullying, mas que, no essencial,
sempre existiu na história da humanidade, e perdoem-me o
pessimismo, mas não me parece que esteja em vias de extinção, por
mais falado que seja nos programas matinais da televisão. Nem entre
as crianças, nem sequer entre adultos, que exercem a sua crueldade
uns sobre os outros de modo mais refinado, mas nem por isso menos
ameaçador, muito pelo contrário.
A crueldade faz parte da natureza humana, não é adquirida
culturalmente. Pode ser atenuada, castigada, reprimida, mas nunca
extinta, da mesma maneira que, milénios de repressão do crime, não
conseguiram acabar com ele.
Mas também no relacionamento com os adultos as crianças
se sentem minoradas. Desde as conversas só para adultos, às horas
para tudo, passando pela higiene pessoal, pela indumentária, pela
ementa das refeições, pela escolha das escolas, dos hobbies, enfim,

199
por quase tudo, a vida infantil não prima pela liberdade, ao
contrário do que a nostalgia por vezes nos deixa a ilusão.
Se juntarmos ainda o autoritarismo de muitos adultos, que
pode estar hoje atenuado na violência física, comparativamente a
gerações anteriores, mas não está seguramente na intimidação
psicológica, que decorre do próprio temor reverencial que se gera
invariavelmente nas crianças, ao lidarem com adultos, e bem assim
os maus exemplos dados, sobretudo pelos progenitores, mas não
apenas por estes, por todos os adultos presentes na infância de uma
criança, temos um cocktail explosivo, com reflexos inevitáveis na
idade adulta.
Conta-se em jeito de anedota que, quando inquirido sobre a
melhor forma de educar uma criança, Freud teria respondido que
era indiferente, porque a iríamos sempre educar mal, mas é a mais
pura verdade, quando se analisa a questão do ponto de vista do
educando.
Se alguém afirmar que foi muito bem educado e que nada
tem a recriminar aos seus educadores, pais e professores incluídos,
ou é imbecil ou mentiroso.
Todos têm falhas a apontar aos progenitores, a alguns
professores, ao sistema de ensino, aos amigos de infância, aos irmãos
e irmãs, aos colegas de escola, enfim, a todos os que conosco
interagiram, num período de especial fragilidade da nossa vida, em
que facilmente nos deixamos iludir, enganar, coagir, influenciar,
para arrependimento tardio ou, pior do que isso, para deformação
de personalidade, da qual nem sequer tomamos a devida
consciência, senão demasiado tarde, quando a tomamos.
É pois, por isso, uma constante da vida, a fuga à infância.
Toda a criança quer crescer, o mais rapidamente possível, porque
ser criança é ser totalmente dependente, ser prisioneiro das
vontades alheias e não compreender metade do que nos rodeia, sem
que ninguém nos esclareça convenientemente.

200
Só quando chegamos à idade adulta, à independência,
financeira e intelectual, tomamos consciência do quanto fomos
enganados e influenciados na infância. Isto se tivermos o privilégio
de desenvolver um sentido crítico, o que não sucede, infelizmente,
com todos os adultos.
Mesmo assim, não conseguimos evitar erros na educação dos
nossos filhos. Fazemos diferente, às vezes o oposto do que fizeram
os nossos pais, convencidos de que, desse modo, estamos a corrigir
as falhas que identificámos na nossa própria educação.
Pura ilusão, trocamos de valores mas mantemos a
autoridade, a influência, os exemplos, que julgamos bons, mas os
filhos vão inevitavelmente considerar maus.
Os que foram vítimas de autoritarismo, vão tentar educação
os filhos em liberdade, para que estes, mais tarde, os acusem de falta
de responsabilidade ou de dedicação.
Os que sofreram de abandono, vão sufocar os descendentes
em cuidados exaustivos, para serem mais tarde acusados de
castradores, incapazes de incutir na educação um sentido de
independência, de responsabilidade.
Os exemplos são inumeráveis e mesmo aqueles que acham
que fizeram um trabalho notável na educação dos filhos, porque
cresceram saudáveis, Inteligentes, bons alunos, com bons empregos
e uma vida desafogada, muito além dos sonhos dos próprios pais,
vão ouvir dos filhos, mais cedo ou mais tarde, que se sentem
infelizes com as escolhas que fizeram na vida, por influência dos
pais, e que o que verdadeiramente gostariam era de terem sido
agricultores, ou músicos ou simples globetrotters, sem um chavo no
bolso, mas com uma vida preenchida de experiências, de vivências
inesquecíveis.
Por isso somos todos, efetivamente, foragidos da nossa
infância, no sentido em que levamos a maturidade inteira a tentar

201
fugir dos condicionamentos que nos foram incutidos, nesse período
de especial vulnerabilidade.
Na verdade, a individualidade afirma-se pela diversidade.
Por isso levamos a vida inteira a tentar ser diferentes dos nossos
pais, sem que, ironicamente, o consigamos jamais.

14 de Agosto de 2023

202
A Misericórdia de Deus

Recentemente dei comigo a pensar se a morte não seria o


mais forte argumento favorável à existência de um Deus
misericordioso.
Se é frequente questionar a existência de Deus pela miséria
e sofrimento que grassam no mundo, daqui se extraindo a conclusão
que Deus ou não existe ou é um sádico e perverso, esquece-se que a
dor não é eterna. Que existe a morte e que esta põe termo a todo o
sofrimento.
Se Deus fosse sádico e perverso, daria uma vida eterna,
plena de dor e angústia, para todo o sempre, não concederia ao ser
humano a libertação pela morte, que põe fim definitivo a todos os
males da existência.
Sendo a morte o eterno descanso, não será essa a prova da
clemência divina, a justa recompensa para o cansaço e as desilusões
acumuladas na vida?
Só a morte garante a paz eterna ao homem, provando assim
que, se o Deus da vida pode ser terrível, já o da morte é sempre
misericordioso.
Não será a paz eterna, na misericórdia de Deus, a suprema
aspiração humana?

203
15 de Agosto de 2023

204
Turismo Onírico

Uma noite de Verão descobri que se pode ter sentido de


humor, mesmo nos sonhos.
Acordei com a estranha memória de uma excursão, por
arribas ameaçadoras, belas e pejadas de praias, entre rochedos
tombados pelo tempo.
Durante o percurso, além de desconhecidos, cujos rostos se
foram tornando familiares, fui descobrindo, inesperadamente,
alguns amigos de infância, colegas dos tempos de escola e da
universidade.
Entre outros episódios dessa viagem, que se varreram, talvez
para sempre, da minha memória, ficaram alguns momentos
insólitos, que me apressei a anotar nestas linhas, antes que também
eles se desvanecessem, no vazio da existência.
Recordo convictamente que uma das pensionistas se
queixava de ter sofrido dois atentados, felizmente falhados, contra a
sua vida, só durante a excursão. A autoria permanecia incógnita,
para sua tristeza e preocupação.
A dada altura, todos de reuniram numa sala de audiências,
perante um Tribunal, para serem interrogados, em inesperada fila
indiana o sob a orientação do guia, como numa entrada de museu,

205
sobre os graves eventos, dessa forma colaborando na descoberta do
responsável. Lembro-me vivamente que a minha maior
preocupação era não me lembrar do número dos quartos onde fora
pernoitando, durante a viagem. Mas nem cheguei a ser ouvido. No
decurso da audiência, uma excursionista, numa inesperada
manifestação de dramatismo, irrompeu espampanante, vestida de
véus negros esvoaçantes, pela sala de audiências, confessando as
tentativas de homicídio.
O dramatismo foi tal, que a criminosa confessa se fez
anunciar, previamente, por uma colega de excursão,
interrompendo, desta forma, a sessão, antes da sua teatral entrada
em cena.
Num outro episódio, também curioso, encontrei uma colega
de escola a passear um cão pequeno, pelo jardim. Sabendo que ela
tinha dois filhos e não os vendo com a mãe, perguntei-lhe, jocoso,
pela saúde dos irmãos do canídio. Ela primeiro indignou-se com a
questão, mas quando lhe respondi que os animais de estimação eram
membros da família, de pleno direito, ela achou muita graça e
deitou a cabeça no meu colo, como se fosse um cão.
Um alegado colega de curso, de quem eu não tinha a menor
recordação, afirmou-me, com autêntica surpresa, que eu estava
fisicamente parecido com o filósofo Heidegger, o que, confesso, me
deixou ligeiramente lisonjeado, apesar de não ser de todo verdade.
Um amigo de infância, que há muito não via, arrancou um
bolso da camisa que trazia vestida, alegadamente porque o
incomodava. A sua esposa, habitualmente pessoa tranquila e pacata,
explodiu em indignação pelo ato, comparando-o, pouco
respeitosamente, reconheço, a uma enormíssima besta (não me
recordo exatamente qual, mas a comparação era inequivocamente
ofensiva) e acabou mesmo por lhe bater nas costas, sem grande
violência, é verdade, mas com elevada humilhação, com um objeto
alongado de plástico, cuja natureza exata me escapou para sempre.

206
Apesar da agressão ter sido aparentemente ligeira, o meu
amigo ficou prostrado no chão, imóvel, durante muito tempo. Os
outros excursionistas, comigo e a mulher dele incluídos, não
tiveram alternativa senão espezinhá-lo, para conseguirem
prosseguir caminho.
Noutro curioso episódio sucedeu, durante a refeição, duas
senhoras, aparentemente mãe e filha, sentadas junto a mim, uma de
cada lado, enfiarem as suas delicadas mãos nos bolsos das minhas
calças, acariciando-me sensualmente as pernas. Admito que o
contacto físico deixou-me sexualmente estimulado, por isso, quando
a mais velha me perguntou como estava, eu respondi-lhe que me
sentia o melhor que a minha idade permitia. Recordo que todos nos
rimos muito, incluindo a minha própria mulher que, não só estava
presente, como parecia especialmente divertida com a situação.
Pouco depois sucedeu o episódio mais insólito de todos.
Numa casa de banho minúscula, de uma pensão apinhada, enquanto
urinava, senti uma estranha vontade de ejacular, talvez fruto das
carícias do já mencionado repasto. Pelo que, com dois ou três
movimentos vigorosos, ejaculei profusamente. Na verdade, nem me
lembro sequer de ter tido um orgasmo, apenas da pouco usual
abundância dos jatos de sémen.
Nessa altura, apercebi-me da presença, numa reentrância da
parede, semelhante a um pequeno altar, de um excursionista de
baixa estatura que eu já tinha visto antes, agachado e silente.
Sem perder a calma, perguntei-lhe se estava ali há muito
tempo, ao que ele me respondeu afirmativamente.
Mantive a postura digna e ignorei a violação de privacidade.
Apenas lhe repliquei que cuidava que ele já tivesse abandonado a
excursão, porque deixei de ver o seu carro estacionado no parque
(lembro-me, distintamente, que era um Opel Vectra branco, veículo
que não me diz absolutamente nada). Ele manteve-se lacónico,
insistindo na óbvia continuidade da sua presença.

207
Concluí que era um indivíduo tão pequeno e insignificante
que nem se dava pela sua presença. Era socialmente invisível.
Saí, pois, com a dignidade intacta, renunciando apenas,
preventivamente, a outros atos de intimidade, em locais públicos.

28 de Agosto de 2023

208
Fora do Tempo

Desde que me conheço que oiço os mais velhos usarem a


expressão "no meu tempo", ou algo semelhante, com a maior
naturalidade do mundo.
Agora, que levo mais de meio século de vida, dei comigo a
pensar se não me terei mesmo deixado ultrapassar pelo tempo, isto
é, se não estarei já num tempo que não é o meu, mas de outros mais
novos, restando-me apenas duas opções: fazer de conta que este é
também o meu tempo, fingindo o melhor que puder, pelo menos
socialmente; ou passar a começar as frases, como os velhos da minha
infância, pela expressão "no meu tempo" e assumir, sem vergonha,
que sou doutro tempo, que não este.
Há gente da minha idade e mais nova que não tem pudor
em dizer "no meu tempo". Quando isso acontece, há sempre alguém
por perto que se insurge, dizendo, veementemente, que o seu tempo
é este e agora, enquanto estiver vivo. Acho que os primeiros se
renderam ao tempo alheio, enquanto os segundos se agarram ao "faz
de conta", como que disso dependesse a sua sobrevivência.
Também é verdade que alguns dos auto proclamados
contemporâneos se contradizem poucos minutos depois, criticando

209
a pansexualidade dos mais novos, a sua aparente repugnância pela
procriação ou até por um emprego na função pública.
Por isso sou obrigado a questionar-me: já terei gozado o
meu tempo? Ou ainda faço parte do presente, não apenas
fisicamente mas também nos valores e mentalidade?
A primeira hipótese significaria que a velhice seria assim
uma espécie de prolongamento da vida, onde se espera que o árbitro
marque um pênalti a nosso favor, só para não morrermos estúpidos.
Na segunda haveria ainda que averiguar se o otimismo não
seria mero espírito de contradição ou de não aceitação da velhice e
se ainda iria realmente a tempo de me apropriar de algum do tempo
presente e talvez futuro?
A realidade é complexa. Há seguramente um conjunto de
valores, de princípios, de referências, que são adquiridos nas
primeiras décadas de vida e que formatam a essência do que somos.
Não conseguimos esquecê-los, por mais que queiramos abraçar a
contemporaneidade, com toda a sua novidade.
Mas também é verdade que aquilo que sou hoje é
seguramente diverso do que fui aos vinte, aos trinta ou até aos
quarenta anos de Idade. Parece que a nossa identidade está em
constante mutação e que, apesar da formatação inicial, da qual
dificilmente nos conseguimos livrar, sem hipocrisia, haverá espaço
para uma área virgem, aberta a novas experiências e valores, que
consegue aprender com as novas gerações, mesmo que, de vez em
quando, não resista a compará-las com "o seu tempo".
De facto, no "meu tempo" muitas coisas eram
tremendamente diferentes da atualidade, mas isso não me impede
de gozar o presente e de usufruir das vantagens (e algumas
desvantagens) do devir temporal.
Se eu mantiver essa capacidade, então este também será
parte integrante do meu tempo, mesmo que em pequena proporção.

210
Afinal de contas, ninguém engloba em si a totalidade do seu
tempo, só somos capazes de usufruir de uma pequena parcela
daquilo que a realidade nos coloca à disposição. O que varia é a
capacidade de armazenamento.
Quando somos jovens, absorvemos a novidade com
sofreguidão, porque carecemos de preencher o vazio, da nossa nóvel
existência.
Na maturidade, o disco começa a estar cheio, por isso, ou
guardamos uma reserva, para absorver um pouco que seja da
contemporaneidade ou, se tivermos coragem ou predisposição para
isso, começamos a reciclar informação, apagando a que for velha e
desatualizada e substituindo-a por versões mais recentes.
Mas o upgrade da personalidade não está, infelizmente, ao
alcance da maioria. Há quem tenha o disco cheio e se recuse a deitar
fora seja o que for. Para esses restará sempre a velha frase "no meu
tempo", que servirá de bitola para tudo, no resto da sua vida. É
gente incapaz de viver o presente sem ter os olhos na nuca. Só vê o
passado e assume militantemente a recusa de olhar o presente ou o
futuro, a não ser à luz da sua experiência pessoal e pré-formatada
"no seu tempo". Até ao Crash final.
Da minha parte, reconhecidamente incapaz de fazer um
upgrade completo, vou tentando manter o espaço necessário em
disco, para, pelo menos, fazer uma meia dúzia de updates, os mais
importantes, sem os quais a vida presente se tornaria insuportável e
me veria assim obrigado a repetir a frase "no meu tempo", até ao fim
dos meus dias fora de tempo.

7 de Setembro de 2023

211
A travessia do portal do sonho

Todos os dias sofro a angústia do acordar.


Por vezes não me apetece nada enfrentar a realidade banal,
mas na maioria dos dias, o drama decorre da simples travessia do
portal do sonho.
Sinto-me de tal modo envolvido nessa realidade putativa,
mesmo quando é adversa ou incómoda, que a simples constatação
de que a vou ter que largar, para enfrentar outra, me causa angústia.
A reação mais frequente é a recusa. Viro-me para o outro
lado e tento realcançar o sonho que foge de mim, rapidamente,
rumo ao esquecimento. Ou então, se o mesmo era adverso, limpo o
espírito, como quem abre uma página em branco, e recomeço a
construir o encantamento, escolhendo um tema mais favorável.
Acordar é que nunca! Isso seria a rendição incondicional, o
abandono ignóbil do meu reino da utopia, onde tudo é possível e
geralmente acontece.
Mesmo se me sucede acordar, a meio da noite ou cedo na manhã,
por qualquer razão que seja, até quando me levanto para cumprir
tarefa necessária e inadiável, fisiológica, logística ou até burocrática,
se esta for de curta duração e me permitir o rápido regresso ao terno
mundo das quimeras, é esse o caminho que tomo, sem remorsos,

212
com a tristeza de quem sabe perdidas para sempre as fantasias
passadas, mas emperançoso que outras lhe ocupem prestamente o
lugar.
De certo modo, acordar é renascer todos os dias. Há
qualquer coisa de partejar no simples ato de abrir os olhos. Um
universo ilimitado, onde não há regras nem excepções, é-nos
retirado abruptamente, sem dó nem piedade, e somos lançados às
feras da realidade, nus e impreparados, sem ter voto na matéria. É
uma violência diária.
Não admira que a recusa orgulhosa se imponha, que se ajeite
a almofada e mude de posição na cama, vã tentativa de recuperar o
sonho perdido. Não quero que me incomodem na azáfama dos meus
devaneios. Estava embrenhado em importantes tarefas! Quanta
glória perdida, quantos amores enjeitados, quantas odisseias
interrompidas!
Acordar é ter a desagradável sensação da extinção. O
encerramento compulsivo de uma vivência fabulosa e a entrega
coercitiva à banalidade quotidiana.
Todos os dias lamento esta agressão. Todos os dias suspiro
pelas ilusões destruídas, desprezadas pela deformidade humana de
ter a vida quebrada, cindida entre dois mundos, dois seres, duas
existências paralelas e incompatíveis.
Se estivesse ao meu alcance escolher uma delas e viver
imperturbado o resto dos meus dias, escolheria, sem hesitação, o
doce mundo da ficção, onde a existência não tem limites e a fantasia
é rainha e senhora.

Ao acordar do dia 9 de Setembro de 2023

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A Excepção e a Regra

Qual o destino do homem? A tranquilidade da sucessão


geracional, do devir anónimo numa coletiva construção da
humanidade ou, pelo contrário, a excepção, o momento de glória, a
utopia da imortalidade?
As duas correntes estão bem presentes na História. A
virtude suprema, entre os romanos, consistia na simplicidade do
campo e da família. Este era o idílio do cidadão honrado, o paraíso
terreno de quem semeia, para que a posteridade colha, o fruto e o
exemplo.
Paradoxalmente, muitos destes ilustres romanos, que
idealizaram a paz campestre do pater familias, acabaram por fazer
exatamente o contrário, optando por carreiras políticas e militares
que lhes custaram, frequentemente, a própria vida. Outros, como o
ditador Sila, depois de reconquistar e estabilizar o poder, entre os
seus correligionários, pretendeu largar tudo e abraçar o ideal rural
romano, como exemplo de virtude e desapego ao poder. Terminou a
vida em deboche e na mais vil decrepitude física e moral.
Ao longo dos séculos, muitos outros defenderam e
praticaram o monótono quotidiano como um exercício de fé, a paz
terrena de quem é feliz com o pouco que a vida lhe der. O
movimento monacal é disso o mais óbvio exemplo, embora muitos
tenham também tentado praticar uma espécie de monastério cívico,
integrados na sociedade temporal, mas abraçando uma regra laica
própria, individual, por si e para si definida e praticada.

215
Não obstante, muitos destes filósofos, defensores da
felicidade longe do mundo e perto da terra e da família, não
resistiram a deixar as suas prédicas e exemplos em escritos,
destinados à posteridade, o que não deixa de conter alguma
contradição com a sua aparente felicidade apática.
Há ainda quem, optando pela via oposta, a da guerra, da
política, da notoriedade, queira, como Sila, reservar um momento
adequado, na sua velhice, para a reconciliação com a virtude do
viver pacato e despojado de bens e ambições, dedicado apenas ao
dever e à família.
Hitler planeava a sua reforma na cidade de Linz,
reconstruída de forma megalómana para festejar o milenar império
do Reich, onde o ditador jubilado pudesse, talvez, dedicar-se
novamente à pintura, ou a cuidar do jardim, depois de ter subjugado
e exterminado nações inteiras, quem sabe se à espera que as novas
gerações arianas lhe viessem pedir algum conselho ocasional.
A verdade é que a maioria dos seres humanos não tem
escolha, a vida escolhe por si, entre o ordinário e a excepção. Pode é
viver conformado ou não, com esse destino, sem com isto querer ser
fatalista.
Há quem passe a vida a buscar notoriedade, sem que nunca
a encontre. Há quem tenha cinco minutos de fama e com isso se
satisfaça. Há quem alcance a distinção, mas pelas piores razões. Há
também quem a encontre, sem nunca a ter procurado, apenas
porque se cruzou no seu caminho.
Mas há também quem careça de ser visto e admirado como
excepção, pelos seus concidadãos, e não olhe a meios para atingir
esses fins, ou morrer a tentar. Assim como há quem se refugie no
anonimato, prezando-o como a maior das virtudes, e celebrando a
pacatez da banalidade como a felicidade suprema.
Há de tudo na humanidade. E desse todo se compõe a
condição humana.

216
Respondendo à pergunta inicial, só posso concluir que o
destino do homem é ser feliz, na paz da regra ou no desassossego da
excepção, consoante o seu temperamento.
Ou morrer tentando.

10 de Setembro de 2023

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O Sentido da Vida

O sentido da vida é geralmente para a esquerda, embora, de


vez em quando, sejam necessárias umas guinadas à direita, para
evitar o despiste. Mas é preciso muito cuidado, porque guinadas
demasiado fortes no volante, sejam à esquerda ou à direita, podem
causar acidentes de consequências gravíssimas.

11 de Setembro de 2023

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Viver a Vida
A minha opinião é para meu consumo pessoal. Não tenho a
menor pretensão de ensinar ninguém a viver a sua vida.
Até porque não faço a mais pequena ideia sobre o melhor
modo de viver a minha.

11 de Setembro de 2023

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O Primeiro Dia do Final da Minha
Vida
Hoje, quase sem querer, descobri que estava a apenas seis
anos de poder pedir a reforma.
Num primeiro momento a reação foi de alegria, porque
financeiramente a perspectiva é atraente. Deixar de fazer
descontos para a segurança social e começar a receber uma
reforma, mesmo módica, representa um acréscimo muito
substancial no rendimento do agregado familiar, além da
possibilidade de não ter que trabalhar mais na vida, senão por
gosto.
Mas depois começaram a surgir as dúvidas e as angústias.
A primeira é a mais importante de todas: será que lá chego? À
partida, sessenta e um anos de idade não parece ser uma idade
muito generosa, nos tempos que correm, em que vivo rodeado de
octogenários, mas serei um dos que fica aquém das estatísticas?
Irei morrer na praia da aposentadoria?
De um momento para o outro parece que comecei a prezar
a minha vida como nunca o tinha feito até agora. Até aqui a
perspectiva da reforma era remota e distante, sei lá se lá chego...
Sempre olhei para as contribuições como mais um imposto a
pagar. Nunca as vi como um benefício a gozar no futuro. Agora, de
repente, puseram-me um limite próximo na vida de descontos, um
autêntico desafio à minha resistência. Se conseguires viver mais
seis anos, nunca mais vais ter que trabalhar na vida e recebes um

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acréscimo substancial de rendimento mensal no agregado
familiar. É uma responsabilidade atroz! E se não chegar lá?
Depois das dúvidas chegam as certezas, para muitos as
mais evidentes: que prova maior de velhice existe do que chegar à
idade da reforma, mesmo que antecipada?
A verdade é que velho já eu me sinto há muito, esta
constatação não é mais do que um certificado legal do que já estou
cansado de saber.
Não tenho felizmente o problema típico dos reformados,
saber o que fazer da vida, depois de deixar o trabalho. Primeiro
porque, sendo profissional liberal, tenho o privilégio de poder
continuar a trabalhar, sem fazer descontos, mesmo depois de
reformado. Segundo porque, pela mesmíssima razão (a de ser
profissional liberal) nunca trabalhei verdadeiramente um só dia
da minha vida. Fui fazendo coisas, de modo irregular e
intermitente, pelo que, na verdade, à excepção da pensão, já me
sinto há muito tempo reformado. À medida que a idade aumenta e
a dependência económica diminui, posso dar-me ao luxo de
escolher os clientes e trabalhos que quero fazer e tirar alguns dias,
todas as semanas, para passear, ler, tirar umas fotos, escrever uns
livros, ver uns filmes, enfim, fazer o que realmente me apetecer,
sem grandes concessões ao trabalho.
A maior independência financeira irá seguramente
corresponder ainda maior seletividade do trabalho, a ponto de
não o sentir como isso, mas apenas como uma ocupação adicional,
um hobby que ajuda a complementar a reforma, que não será
seguramente generosa.
Enfim, não sei sequer o que pense. Acho que hoje comecei
a viver o primeiro dia do final da minha vida. Já sei que neste filme
não há happy endings, mas se me deixarem usufruir um pouco
que seja da minha velhice, talvez a vida se torne um pouco menos
insuportável do que parecia.
Pelo menos até ontem..

17 de Setembro de 2023

224
Os colecionadores

Por vezes tenho a impressão que a vida, para a maioria das


pessoas à minha volta, não é mais do que uma coleção.
De quê, varia de pessoa para pessoa. No vazio da vida de
cada um, há uma liberdade de escolha do que colecionar, de modo a
tapar, pelo menos aparentemente, essa ausência vital.
Há colecções para todos os gostos e feitios, como os amores,
as experiências, as conversas, as viagens, as casas, os carros, os selos
e moedas, as roupas, o dinheiro, o poder, os cargos que enchem
currículos, os títulos académicos ou nobiliárquicos, os discos, os
livros, as canetas, os isqueiros, os serviços de jantar, as toalhas de
cerimônia, as receitas e os paladares, as mobílias de estilo, as
pinturas de autor, as fotografias de família ou das férias, as
roupinhas dos filhos, as memórias de infância, as receitas de
antanho, as amizades perdidas, as doenças acumuladas, as noites mal
dormidas, as bebedeiras mal curadas, as comezainas de excelência,
os títulos desportivos, os quilómetros percorridos, as iguarias e
sublimes néctares degustados, os bons e os maus exemplos, as jóias
usadas e as simplesmente gusrdadas, os relógios orgulhososamente
exibidos, as obras feitas e por fazer, os conhecimentos inúteis, as
contas bancárias, os bons e os maus negócios, as roupas de marca, os

225
passos perdidos, os dias vividos e os deixados por viver, as invejas
sentidas e provocadas, as promoções merecidas e por merecer, os
empregos mal empregados, os anos de descontos e os de reforma, os
cavalos a vapor das máquinas e as técnicas de os fazer render
sempre mais, os extras e as séries limitadas, os anéis sem dedos e os
dedos sem anéis, os pesos pluma e os pesados, os gostos e os
desgostos, os dependentes e os beneméritos, as comendas e as
menções honrosas, as famas e os proveitos, os ódios de estimação, os
prémios, as virtudes ou a falta delas, as infrações e os perdões, os
crimes e as escapadelas, as ilusões e as quimeras, os sonhos e os
pesadelos.
Depois de tantas coleções e más comparações, de tantos
anseios e depressões, de tanta azáfama compulsória e competitiva
contra o tempo, que tudo rouba e tudo leva, parece que só lhes
resta, como escreveu Claude Magris, o olhar para trás que dá conta
do nada.

23 de Setembro de 2023

226
Alheiras Mitológicas

Há dias comi uma alheira. Enquanto a comia não pude


deixar de pensar nesse extraordinário mito contemporâneo que é a
convicção, generalizada, que a alheira é um enchido criado pelos
cristãos novos relapsos, com o intuito de enganar a inquisição,
fazendo-as passar por chouriços.
Esta história, li-a pela primeira vez no "Último Cabalista de
Lisboa" de Richard Zimler, mas não sei se o mito é da sua autoria ou
se terá sido recolhido noutra fonte.
Sejamos claros e objetivos: qualquer pessoa que já viu um
chouriço e uma alheira não pode acreditar nisto. A única coisa que
têm em comum é irem ambos ao fumeiro, mas se a alheira tem
consistência mole, aspecto de ferradura e cor clara, amarelada, já o
chouriço é rijo, vermelho, mais ou menos escuro, e geralmente tem
tendência retilínea, embora por vezes os atem aos pares, parecendo
nesse caso uma ferradura, mas com duas metades separadas e atadas
por um fio e não inteiriça, como a alheira.
Se o aspeto diverge muito, o cheiro e o sabor ainda mais.
Aliás, as alheiras não se comem geralmente cruas, mas fritas,
enquanto os chouriços se comem de todas as maneiras, cozidos,

227
assados, mas sobretudo no seu estado natural, acompanhados de pão
e vinho, ou azeitonas.
A ideia é tão mais absurda quanto o pretenso objetivo,
comer chouriços de carnes não impuras, para enganar a inquisição,
seria muito mais facilmente alcançado fabricando-os com recurso a
carnes kosher, como o borrego, o frango ou a vitela. Na verdade, há
regiões em Portugal onde se fazem chouriços de caça (por exemplo,
de veado) e tenho a certeza que ninguém teria quaisquer
dificuldades em fazer chouriços de frango, de perú, de borrego ou
de vitela, se a tal se predispusesse. Que o diga quem já provou
chouriço de veado, como é o meu caso, que a diferença quer de
aspeto, quer de sabor, não é significativa. Pode sempre ser
justificada com o tempero do autor, sem precisar de revelar a
origem diversa das carnes.
Aliás, qualquer supermercado exibe, hoje em dia, fumados
de frango, de perú, de caça e até de peixe, ao lado dos de porco. É
porque não há qualquer dificuldade, nem nunca houve, em tirar o
porco dos chouriços e substituí-lo por outra carne qualquer.
Eu não sei se foram os judeus quem inventou as alheiras, até
pode ser verdade, mas se assim foi, não se puseram certamente a
fazer alheiras, que levam pão, alho (que lhes dá o nome), especiarias
e um pouco de frango ou de caça (que já não é kosher), em vez de
chouriços de borrego, de vitela ou de frango, para enganar a
inquisição, porque ninguém consegue fazer passar uma alheira por
um chouriço, por mais distraído ou vegetariano que seja o
inquisidor.
Teria sido sobretudo pelo prazer de fazer uma especialidade
kosher, adaptada aos seus costumes alimentares, que proíbem o
porco e obrigam a um ritual sagrado na matança dos animais, que se
integrasse na tradição ibérica do fumeiro. Não para enganar
ninguém, mas sim para melhor se integraram na comunidade, que
sempre foi dada ao queijo, ao vinho e ao fumeiro, sobretudo em dias

228
de festa. Se não se festeja com presunto e chouriço, come-se queijo e
alheiras, já que o vinho nunca foi impuro senão para os
maometanos (e mesmo estes, sempre o beberam sem pudor, ao
longo dos séculos).
Agora por isso, convém não esquecer que os judeus não
foram a única comunidade, impedida de comer porco, perseguida
pela inquisição, também os muçulmanos foram expulsos ou
convertidos à força, na mesma altura. E a minha costela alentejana
diz-me que com pão e alhos se fazem açordas, um prato que os
árabes deixaram aos alentejanos. Não terão sido antes os árabes a ter
a ideia de levar a açorda ao fumeiro, na forma de alheira? Eu não
sei, mas faz tanto ou mais sentido, do que terem sido os judeus.
E porque não os cristãos, que ainda hoje comem açordas,
gaspachos, alheiras, borregos e outras iguarias de origem judaico-
muçulmana?
De tal modo se integraram na cultura nacional, que os
judeus e os árabes se foram embora, há mais de 500 anos, e as
alheiras ainda por cá andam e fazem as delícias da cozinha lusitana
cristã.
Há coisas que parecem tão óbvias que dão facilmente
origem a mitos. Contudo, se pensarmos um bocadinho nelas,
chegamos rapidamente à conclusão que, afinal, não fazem sentido
nenhum.
Que me desculpe o Richard Zimler, que é um excelente
escritor e até já demostrou, na sua vida e obra, uma ligação
profunda a Portugal. Mas não será nenhum americano, mesmo
naturalizado, que vem convencer os portugueses a comerem
alheiras por chouriços.

24 de Setembro de 2023

229
230
Jekyll e Hyde

Muito se discutiu e continua a discutir sobre a natureza


humana. Uns acreditam na bondade natural do homem, que por
vezes prevarica, provavelmente para se arrepender logo a seguir.
Outros acreditam na maldade inata do ser humano, que só atua em
função dos seus próprios interesses, mostrando pouca ou nenhuma
consideração pelos interesses dos outros.
Calculo que seja como na eterna metáfora do copo meio
cheio ou meio vazio. O ser humano é capaz do melhor e do pior e às
vezes no mesmo dia.
Mas a minha profissão leva-me a constatar situações onde é
difícil acreditar na bondade humana. Quando se discutem
miudezas, em partilhas, em assembleias de condóminos, em tribunal
até, levando a atitudes e ódios completamente desproporcionais aos
interesses envolvidos, somos levados a crer que há qualquer coisa de
muito errado com a espécie humana, sempre predisposta a litigar,
por tudo e por nada, nem que seja só para provar que tem razão,
mesmo que afinal a não tenha.
Se hoje a "civilização" evoluiu para o litígio, é fácil imaginar
que no passado, com o poder disperso, diluído e muito mal
distribuído, se resolvessem à faca ou a tiros de pistola muitas das

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mesquinhezas quotidianas. Será isto próprio de um ser
fundamentalmente bom?
Se irmãos que brincaram juntos desde crianças, que
partilham memórias de infância, Natais, aniversários, pais, avós,
primos, amigos, acabam em Tribunal, sem se falarem, por meia
dúzia de palmos de terra, isto é digno de seres essencialmente bons?
Se um casal que se amou, que partilhou momentos de
intimidade e prazer, que teve filhos juntos, que tentou criar com
amor, no melhor das suas capacidades, termina em violência
doméstica ou em divórcios litígiosos de cortar à faca, discutindo a
guarda dos filhos, como se fossem sua propriedade, e mais ou menos
50€ de pensão de alimentos, como se disso dependesse a sua
sobrevivência, isto é de gente boa e civilizada?
Se vizinhos que se cruzam durante anos e anos, que
conhecem várias gerações de família, que têm, por vezes até,
convívio social frequente, que os filhos brincam juntos, que se
cumprimentam com toda a educação e perguntam sempre pela
família, quando se juntam numa assembleia de condomínio se
insultam porque pinga água do estendal de cima, porque não põem
o lixo na rua a horas, ou porque querem uma porta comum aberta
ou fechada, isto é de pessoas de bem?
Dir-me-ão que é deformação profissional, que sou eu a ver o
copo meio cheio, sem reparar na pureza do ar da parte vazia.
Será, mas as pessoas são sempre as mesmas. As que
cumprimentam educadamente e depois insultam na assembleia de
condóminos, as que brincam conosco em crianças e depois nos
quebram a confiança na hora de fazer uma partilha justa e
equitativa de uma herança, que nos amam com fervor nos
momentos de paixão e nos agridem, ativa ou passivamente, quando
o ódio os invade.
Será bondade, esta dualidade humana?

232
Haverá bondade num Dr. Jekyll que é simultaneamente um
Mr. Hyde?

26 de Setembro de 2023

233
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A pensar morreu um burro

Esta é uma expressão portuguesa muito popular,


frequentemente complementada por "na minha terra", que mais não
parece fazer que apelar ao bairrismo de cada um, apropriando-se
assim o emissor, por via da naturalidade, de uma expressão crítica
comum, que ofende sem ofender, é antes um sarcasmo implícito,
que obriga ao sorriso amarelo da vítima, para se não confessar
mesmo burro.
Mas a expressão é extremamente curiosa e presta-se às mais
variadas acepções e interpretações.
Se a interpretação literal é improvável, porque nem os
burros têm fama de grandes pensadores nem é provavel que o
pensamento os matasse, já uma interpretação irónica faria mais
sentido, o burro seria assim tão burro que, de muito pensar, correria
risco de vida.
Esta ironia ganha contudo maior relevo se optarmos por
uma interpretação figurada, sendo o burro uma metáfora de uma
pessoa pouco inteligente.
Neste caso o aviso seria, cuidado, não penses muito, porque
tu és burro e pode fazer-te mal, a ponto de pôr a tua própria vida
em risco.

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Uma interpretação comum é a da crítica de um erro,
pensaste que estavas certo, mas afinal estavas errado, logo foste
burro. É o caso do indivíduo que chega ao compromisso atrasado
porque julgava que era mais tarde. Pois é, pensavas, mas a pensar
morreu um burro, isto é, pensaste mal, por isso fizeste burrice.
Outra acepção habitual é a da critica da indecisão. Tanto se
pensa antes de tomar a decisão que a oportunidade se perde, logo,
será burro aquele que é incapaz de tomar decisões atempadas, tanto
pesa os prós e os contras e adia a decisão, que esta acaba por se
tornar inútil, irrelevante, uma ocasião perdida.
Mas eu gosto de pensar, mesmo que alguns se preocupem,
por isso, com a minha saúde, que a expressão pode encerrar outros
sentidos mais filosóficos e profundos.
A pensar morreu um burro pode querer dizer que não se
deve pensar muito, porque quanto mais se pensa mais burro se fica.
No fundo é uma variante do ideal socrático do "só sei que nada sei"
porque quanto mais souber, mais tomo consciência da minha
ignorância. Também Voltaire se inspirou na máxima socrática ao
afirmar que quanto mais leio e aprendo mais certo estou que não sei
nada. Nesta acepção a expressão ganha uma profundidade digna da
mais pura e antiga erudição popular.
Mas também pode ser um aviso à saúde mental do
interlocutor. Cuidado, porque pensar muito faz mal à cabeça, as
pessoas começam a ficar malucas e com tendências suicidas. Aqui a
frase teria um sentido profilático. Não penses demais, porque isso
conduz ao isolamento e à depressão e qualquer dia estás a atirar-te
ao rio com uma pedra às costas. Não há ironia nem ofensa, apenas
uma genuína preocupação com a saúde mental do interlocutor e a
constatação que, os que mais pensam, são também os mais malucos
e com menos apego à vida, os mais infelizes, em suma.
Pode ainda ter um sentido fatalista, de quem, por mais que
pense, acaba sempre por morrer a pensar, porque não há

236
pensamento que ultrapasse a morte, que é o inevitável destino do
ser humano. Aqui a expressão é uma mera constatação do óbvio,
uma lembrança da fatalidade da morte. Não te mates a pensar
porque por mais que penses o teu destino está traçado. É a morte
inexorável, tanto do burro, como do sábio.
Mas pode também ser o Memento Mori do povo, o lembra-
te que és mortal, recordando assim ao sábio e ao poderoso que, por
maior que seja a sua sabedoria, poder ou riqueza, a morte está
sempre no final do caminho. Não deixes as grandezas subirem ao
pensamento porque vais morrer, como os burros, isto é, como o
mais simples dos mortais. Não penses que és mais do que os outros,
porque também vais morrer como eles.
É curiosa a imensa sabedoria que pode estar contida numa
simples expressão popular jocosa como "a pensar morreu um burro".
Se o leitor tiver pouco que fazer ou for um adepto da semântica
criativa, como eu, então não hesite, acrescente por favor as suas
interpretações adicionais a esta apaixonante expressão.
Sobretudo pense, pois morremos todos burros, de qualquer
maneira.

27 de Setembro de 2023

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Desintegracionismo

Provavelmente a palavra que usei no título não existe. É um


neologismo criado para descrever o caos em que os movimentos de
integração social deixaram a sociedade contemporânea.
De um momento para o outro a sociedade passou a integrar,
a ser inclusiva, e como tal, a classificar como retrógado e ofensivo
qualquer comportamento distintivo, enfeitado com adjetivos como
sexista, racista, homofóbico, binário e outros epítetos originais, que
mostram uma imaginação ao rubro, no que concerne à divisão da
sociedade em grupos, cada vez mais pequenos e insignificantes.
O que me parece absurdo e contraditório é pretender que a
divisão seja inclusiva. Quanto mais se dividir, mais se separa as
pessoas umas das outras. A inclusão é precisamente a superação das
diferenças e o convívio salutar, independentemente daquilo que
porventura nos separe dos outros, religião, raça, orientação sexual,
género, ideologia política, riqueza, profissão, cultura, língua, gosto,
etc.
O que assistimos atualmente é precisamente ao oposto da
integração. É a divisão da sociedade em grupos, cada vez mais
pequenos, até chegarmos ao simples indivíduo. Quando cada um
assumir que a sua individualidade, em toda a especificidade e

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unicidade, merece tanto respeito como as outras, vai exigir que seja
socialmente respeitada a sua falta de higiene, o seu mau gosto, o
abuso de álcool, de drogas ou de outros aditivos, o seu vocabulário
incoerente e vernacular e tudo o mais em que quiser basear a sua
individualidade.
Costumava dizer-se, numa frase feita que nunca gostei, por
achar vazia de conteúdo, que a liberdade de uns termina onde
começa a dos outros. Ora não há absolutamente nada, nos dias que
correm, que não ofenda a liberdade de alguém. Se elogio a beleza de
uma pessoa sou sexista, se dou conselhos ou apelo à razão, ajo com
preconceito, se chamo homem ou mulher a alguém, sou binário e
desrespeito a liberdade de escolha de género, ou até da sua ausência,
se como carne, ofendo os vegetarianos e os ecologistas, se bebo leite,
ofendo os veganos, se sou ateu, ofendo os crentes, mas se for crente,
ofendo ou ateus e todos os que têm fés diversas da minha, se fumo
ofendo os anti tabágicos, se bebo, ofendo os abstémios, se não
reciclo tudo o que consumo, ofendo os ecologistas, se tenho
opiniões fortes, sou tóxico, se não as tenho, sou insensível, se não
pratico desporto, sou preguiçoso, se leio e expando conhecimentos,
sou pretensioso, se não tenho um carro elétrico ou ando de bicicleta
ou trotineta, sou poluente, se gosto de viajar de avião, sou
ecologicamente irresponsável, se não compro produtos biológicos
estou a incentivar o recurso a pesticidas, se não for vegano,
criticam-me por contribuir para a contaminação dos solos e para o
esgotamento das reservas naturais dos oceanos. Não posso usar
plástico porque não é biodegradável, nem tecidos sintéticos, que
além de poluentes são fabricados em países que recorrem a mão de
obra infantil e escrava. Se quiser comer um chocolate ou beber um
café, tenho que garantir que tem um custo justo, para não
contribuir para a exploração dos mais desfavorecidos. Os
eletrodomésticos têm de ser da classe que menos energia consome,
para poupar o ambiente, as casas têm de ser devidamente isoladas,
para evitar perdas de energia, as viagens têm de ser de combóio, que

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é amigo do ambiente, um beijo é tão ofensivo como uma bofetada
na cara e pode dar processo crime, um piropo é masculinidade
tóxica, tal como conduzir em excesso de velocidade (mesmo para os
que não sejam, nem se considerem, masculinos), além de uma
contraordenação.
Vivemos num mundo politicamente correto. Uma série de
televisão tem que ter gente de todas as raças e credos, de todas as
orientações sexuais conhecidas e de preferência, incluir algum
personagem sem género definido. Tem também que ter alguns
indivíduos com limitações, porque já não há deficientes, alguns com
excesso de peso, porque já não há gordos ou obesos e, de
preferência, mais alguns personagens em casos extremos, como
padecendo de doenças raras auto-imunes, ou cancros, que consigam
contudo vencer, com grande otimismo e a solidariedade dos demais.
As crianças são adultos pequenos e os adultos crianças grandes, os
animais têm mais direitos que os humanos, as famílias têm animais
de estimação em vez de filhos e quem cria crianças são casais do
mesmo sexo, que os importam de países em vias de
desenvolvimento, para os educarem no respeito pela diversidade
individual de cada um. Os políticos dirigem-se a todos, todas e
todes, para abranger géneros que a própria gramática desconhece. E
o povo aplaude tamanha diversidade e integração, nem que seja por
via da estupidez.
De tanta preocupação em integrar, desintegrou-se por
completo, a sociedade e as relações humanas. Atualmente, cada
pessoa é um mundo (ou mesmo vários) e todos os outros são
alienígenas. E como não falamos as mesmas línguas, aliás nem
sequer pertencemos ao mesmo planeta, o melhor é fechar-mo-nos
em casa, assistindo ao que se passa lá fora, pela internet,
comunicando através de emojis, que são mais ambíguos e
multifacetados, pelo que apresentam um risco menor de ofender
alguém, e vivermos sossegados no nosso canto, interagindo o menos

241
possível, para evitar litígios e queixas, dos mais variados tipos e
níveis, baseadas nos nossos manifestos atavismos culturais.
E sobretudo nunca devemos, mas nunca devemos mesmo,
expressar qualquer opinião nas redes sociais. É um processo de
altíssimo risco, que inicia um efeito bola de neve, do qual pode
depender a nossa sobrevivência física, psicológica e económica,
num futuro próximo.
Venha depressa a inteligência artificial, porque a natural já
esgotou por completo o que tinha a dar e a sociedade humana está
em completa desagregação.
Só fazendo um reset e entregando a organização social aos
computadores a espécie humana pode ter ainda alguma esperança
de sobrevivência.
Provavelmente numa cloud, onde cada um pode viver feliz
a sua individualidade narcisista.

2 de Outubro de 2023

242
Apologia dos Vencidos

Nunca devemos cantar os vencedores, porque eles são os


vencidos de amanhã. É preciso tempo, para apreciar os erros e as
virtudes dos futuros derrotados.
Só após a experiência vivida, declinada e derrubada, pode
um canto ser inspirador, seguro e construtivo, porque é a partir
dela, na sua plenitude de erros, anseios, conquistas e derrotas, que
se forja o ambicionado progresso, supremo Graal dos vencedores.

7 de Outubro de 2023

243
244
O Papel das Bodas

Portugal é uma República há mais de um século e pode


dizer-se, sem sombra de exagero, que é um facto político
consumado.
É certo que, legalmente, seria possível ao parlamento, desde
que reunisse a maioria qualificada necessária para o efeito, alterar a
Constituição e repristinar a monarquia. Contudo, se considerarmos
que o único partido político monárquico não conseguiu eleger um
único deputado, não se vislumbra como muito provável essa
possibilidade.
Esta falta de apoio popular à causa monárquica também não
deixa muitos receios quanto à possibilidade de um golpe de estado
que derrube a república e restaure a monarquia. Nem as forças
armadas parecem ter qualquer propensão para esse desígnio, nem se
vislumbram poderes estrangeiros com vontade de apoiar pretensos
candidatos à extinta coroa portuguesa.
E esse é outro problema, para quem ainda assim ouse sonhar
com o regresso à monarquia: não há um sucessor direto do último
rei, D. Manuel II, falecido no já distante ano de 1932, sem que se
lhe conheça descendência legítima ou ilegítima.

245
Na falta de parentela na linha reta, teríamos que recorrer à
linha colateral para encontrar um sucessor. Ora D. Manuel teve dois
irmãos, a infanta Maria Ana, que sobreviveu apenas três horas ao
seu nascimento, em 1887, e o infante Luís Filipe, que morreu
assassinado, juntamente com o seu pai, o rei D. Carlos, no Terreiro
do Paço, em 1 de Fevereiro de 1908, com a idade de 21 anos de
idade, solteiro e sem descendência conhecida.
Restam assim os primos afastados, mas mesmo muito
afastados, e os eventuais descendentes bastardos, de algum monarca.
Um inusitado parecer do Ministério dos Negócios
Estrangeiros, datado de 2006, contrariando o definido pela
Constituição Monárquica de 1838 e a própria Constituição da
República Portuguesa, considera o pretendente Duarte Pio de
Bragança como o legítimo herdeiro e representante da Casa de
Bragança. Porque razão o Ministério dos Negócios Estrangeiros da
República Portuguesa decidiu emitiu um parecer sobre esta matéria
e quais os fundamentos para a escolha deste candidato em
detrimento de outros, permanece um mistério (fundamenta-se na
tradição e em supostos direitos consuetudinários, que não são fonte
de direito em Portugal). Levou mesmo a fortes protestos de alguns
setores monárquicos, entre eles o fadista Nuno da Câmara Pereira,
então deputado monárquico eleiro na X legislatura.
Duarte Pio de Bragança é o atual Duque de Bragança mas é
bisneto de D. Miguel. Por isso, além de ser primo num grau muito
distante do último rei de Portugal, descende de alguém que,
oficialmente, nunca foi rei, mas apenas regente, em representação
da sua sobrinha D. Maria II. O facto de se ter declarado
abusivamente rei, após a morte de D. João VI, em 1828, levou a uma
guerra civil, que durou de 1832 a 1834, com a sua derrota e a
sujeição à lei do banimento, decretada por D. Maria II, que o
condenou ao exílio, destituíu-lhe o estatuto de realeza e os direitos
de sucessão ao trono de Portugal e a todos os seus descendentes.

246
Esta norma seria expressamente confirmada na Constituição
monárquica de 1838, na qual o artigo 98º estipulava que "A linha
colateral do ex-infante Dom Miguel e todos os seus descendentes
estão perpetuamente excluídos da sucessão".
É certo que a Constituição de 1838 só vigorou até 1842, o
golpe de estado que leva Costa Cabral ao poder restaura a Carta
Constitucional de 1826, que não continha, obviamente, qualquer
referência ao banimento de D. Miguel, porque era anterior à morte
de D. João VI.
Ainda assim, esta lei promulgada por D. Maria II, manteve-
se em vigor até ao fim da monarquia e mesmo após a república,
porque a ex-família real continuou impedida de entrar em Portugal
até 1950, data em que um decreto da Assembleia Nacional revoga
quer a lei do banimento, de 1934, permitindo o regresso a Portugal
dos descendentes de D. Miguel, quer a lei de proscrição, de 15 de
Outubro de 1910, permitindo o regresso dos membros da família
real.
Questiona-se assim a legitimidade de D. Duarte Pio, porque
se a revogação da lei do banimento pelo Estado Novo lhe permitiu o
regresso a Portugal, nunca lhe restituiu (nem a ele, nem a ninguém)
o estatuto de realeza e os direitos de sucessão ao trono de Portugal,
até porque tal estatuto e direitos já não existiam em 1950, quarenta
anos após a implantação da República, nem existem presentemente.
Por isso o que a lei de 1950 determinou, ao revogar a lei do
banimento de 1834 e a lei de proscrição de 1910, foi tão somente
permitir o regresso a Portugal dos membros da ex-familia real, por
considerar que tal já não acarretaria riscos para a segurança da
república, entretanto consolidada entre a população pelo Estado
Novo.
Nem faria qualquer sentido uma república legislar sobre as
regras de sucessão da monarquia que depôs. Pelo que, no meu
modesto entendimento, se regras existem sobre essa matéria, elas

247
serão exatamente as mesmas que estavam em vigor em 5 de
Outubro de 1910.
Por estas razões, alguns monárquicos opõem-se à
legitimidade de Duarte Pio e apontam outros legítimos sucessores
de D.Manuel II.
Uma famosa candidata foi Maria Pia de Bragança, alegada
filha bastarda de D. Carlos I, supostamente legitimada por seu pai,
por meio de uma carta régia, datada de 14 de Março de 1907,
assinada pelo próprio monarca português no Palácio das
Necessidades, em Lisboa (mas fortemente contestada pelo ramo
miguelista). Falecida em 1995, deixou descendência de dois
casamentos diferentes. Uma filha, Fátima Francisca, era freira e
morreu sem descendência, a outra, Maria da Glória, casou com o
escultor espanhol Miguel Ortiz y Berrocal, de quem teve dois filhos.
A sua vocação dinástica era tal que vendeu os eventuais direitos à
coroa portuguesa ao empresário italiano Rosario Poidimani.
Outra candidatura vem dos Marqueses de Loulé,
descendentes de D. Ana de Jesus Maria de Bragança, filha bastarda
reconhecida por D. João VI. A rainha Carlota Joaquina era famosa
pelos filhos bastardos. Ana de Jesus era a terceira reconhecida por
D. João VI (depois de Miguel Maria e Maria da Assunção). À
terceira foi de vez e o monarca declarou que não reconhecia mais
filhos bastardos da mulher. Por isso, o próprio D. Miguel teria sido
um filho bastardo de D. Carlota Joaquina, o que mais ainda
questiona os direitos dinásticos dos seus descendentes.
Laura Permon, a duquesa de Abrantes e mulher do General
Junot, declarou publicamente que: "O erário público pagava a um
apontador para apontar as datas do acasalamento real, mas ele tinha
pouco trabalho. Isso não impedia D. Carlota Joaquina de ter filhos
com regularidade e, ao mesmo tempo advogar inocência e dizer que
era fiel a D. João VI, gerando assim filhos da Imaculada Conceição."
[...] "Mas uma coisa é saber-se que não era o pai, outra é dizer quem

248
era o pai, porque D. Carlota Joaquina, não era fiel nem ao marido
nem aos amantes".
É caso para questionar se os ímpetos patrióticos e liberais de
D.Pedro IV, que o levaram a abdicar da coroa imperial brasileira
para vir disputar a coroa portuguesa ao irmão, não teriam por base
uma necessidade inconfessável de recuperar para a casa de Bragança
a coroa lusitana, retirando-a a um usurpador, filho bastardo da
rainha Carlota Joaquina e sabe-se lá de quem, apesar de perfilhado
por D. João VI.
A guerrilha entre o casal real era tal, que muitos apontaram
um dedo incriminador a Carlota Joaquina e ao filho Miguel,
implicando-os na morte prematura do rei, com o objetivo de
impedir a reunificação das coroas portuguesa e brasileira num Reino
Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves, criado por D. João VI e
destinado obviamente ao primogénito, D. Pedro IV, e aos seus
sucessores. Afastado o rei e com D. Pedro no Brasil, estava aberto o
caminho para a dinastia miguelista dos Bourbon em Portugal.
Pelo que, todas as pretensões à extinta coroa de Portugal são
de uma fragilidade pungente.
Com todo este cenário de fundo assistimos este fim de
semana, que até coincidiu com os festejos do 5 de Outubro, a uma
feira de vaidades à volta do casamento da filha de Duarte Pio, onde
nem sequer faltou o Presidente da República (que nunca falta a
nenhum evento, é certo, por mais insignificante que seja), ex-
primeiro-ministros e mesmo o atual, apesar de socialista e
republicano, sentiu-se na obrigação de justificar a falta, em virtude
de compromissos de Estado, anteriormente assumidos.
Não há de facto nada como um casamento para alegrar as
pessoas e para afastar querelas políticas e constitucionais.
Mesmo republicanos, os portugueses têm direito a uma boda
real, nem que seja de pacotilha.

249
8 de Outubro de 2023

250
A Ilha

Ao rever, mais uma vez, A Aventura de Antonioni, senti


inveja do velho pescador, ex-emigrante na Austrália, que vive só,
numa cabana, com um candeeiro a petróleo, numa ilha deserta, no
meio do mar Tirreno, no arquipélago das Eólias.
Ele correu mundo, viveu nos antípodas, tem retratos
pendurados na parede de casa, da família e amigos que deixou
longe, num continente distante, mas vive só, com uma pequena ilha
deserta só para si, com um barco a remos que lhe permite percorrer
outros pedaços selvagens de terra, perdidos no meio do mar, onde
abundam os peixes e escasseiam as pessoas.
Sinto, como ele, a vocação da solidão. Se fosse religioso
poderia talvez encontrá-la numa vida monacal, mas acho que não,
os conventos têm demasiada gente, demasiadas regras, são um
pequeno mundo, fechado e opressivo. Eu não anseio pela prisão mas
pela liberdade da solidão.
Por isso a ilha me parece a metáfora perfeita. Sinto-me
frequentemente um ilhéu, rodeado de gente que corre em busca de
algo que me é totalmente invisível. O poder, o dinheiro, o sucesso,
as paixões, as vaidades, são-me todos totalmente indiferentes.

251
Pressupõem um sentimento social, gregário, uma ânsia de mostrar
aos outros, de apregoar ao mundo a sua individualidade, até mesmo
uma absurda superioridade. Eu não quero provar nada a ninguém.
Detesto que me atirem futilidades aos olhos, odeio vanidade, essa
droga que vicia o ser social, fazendo-o esquecer o absurdo da vida.
Se a existência não tem sentido, a única hipótese é vivê-la e
cada um vive a sua, sozinho, não pode viver a dos outros nem
procurar sentidos inexistentes na comparação com os demais.
A vida é individual, queiramos ou não. Podemos interagir
socialmente, mas nunca deixamos de estar sós, por maior que seja a
multidão à nossa volta.
Por isso me seduz a ilha deserta. A possibilidade de
enfrentar a minha solidão, livre das distrações do mundo e entregue
ao universo individual. Sei que acabaria louco mas, antes disso, faria
uma análise profunda e espiritual da minha essência, da condição
humana, na sua mais pura individualidade.
O mundo não me fascina e menos ainda os seres humanos.
Para mim tudo o que existe são as ideias, o pensamento, o universo
espiritual. Só a mente supera a banalidade material, a decomposição
do corpo, a transitoriedade da vida. Só o pensamento e a arte
perduram.
Tudo o resto é vaidade.

22 de Outubro de 2023

252
Tendências mortais

Vivemos, de algum modo, uma revolução cultural nos


tempos que correm, e não me refiro à sexualidade, à cultura e
menos ainda à política. Refiro-me muito simplesmente à morte, e
nem sequer ao seu adiamento para idades quase, senão mesmo,
centenárias, mas simplesmente ao destino que se dá atualmente aos
cadáveres, aos restos mortais daqueles que, inevitavelmente, cessam
de existir.
Desde tempos antigos, que remontam há milénios, que a
inumação dos mortos é um culto sagrado, entre os povos europeus.
Os celtas faziam templos para depositar os mortos, tal como os
micênicos. Os romanos e os gregos edificavam altares nas suas casas,
aos antepassados, e enterravam-nos nas suas propriedades (os que as
tinham naturalmente) ou mandavam erigir sumptuosos templos na
via Ápia, onde todos pudessem contemplar com admiração a
grandeza da estirpe, pela opulência do túmulo, ao qual prestavam
culto cívico e religioso regular.
Nas doutas palavras de Fustel de Coulanges na sua opus
magnum "A Cidade Antiga", "a sepultura estabeleceu a união
indissolúvel da família com a terra, isto é, a propriedade. Entre a

253
maior parte das sociedades primitivas, foi pela religião que se
estabeleceu o direito de propriedade".
Outros notáveis, como Claudio Magris afirmam, muito mais
recentemente, que na cultura centro europeia "a sepultura é a posse
da terra, marca os limites de uma propriedade". Até cita, em jeito de
anedota, que a vaidade na sepultura e no jazigo era tal, em termos
de afirmação social, que uma senhora sua conhecida e proprietária
de um sumptuoso jazigo de família se lamentava "e pensar um jazigo
tão bonito, está quase completamente vazio".
Há por isso duas ideias fundamentais que culturalmente
prendem o cidadão cristão e europeu à inumação dos mortos.
Por um lado o culto dos antepassados, sobretudo quando são
ilustres e respeitados no meio sociocultural onde se integram, que
tem o seu expoente no Dia de Todos os Santos, em que se ruma aos
cemitérios prestar homenagem aos que já não vivem, mas
permanecem presentes na memória dos sobreviventes.
Por outro a ideia da permanência e da propriedade que, de
tão arreigada à nossa cultura, se prolonga post mortem através da
sepultura, do jazigo, nem que seja de um modesto gavetão, onde se
guardam as ossadas dos antepassados, pós-exumação.
Para os nossos antepassados, era essencial preservar a
memória e o estatuto social do defunto, e isso fazia-se através da
sepultura, do jazigo, do gavetão, locais onde era possível perpetuar o
culto dos mortos (nem que fosse apenas por uma ou duas gerações)
e bem assim assegurar um pedaço de terra, de chão ou até de teto
para os defuntos. A sua respeitabilidade social assim o exigia, a
demonstração que, mesmo depois de morto, não era um Indigente,
um pária, um sem abrigo, mas sim um proprietário, nem que fosse
de um metro quadrado de terra no cemitério, onde jaziam os seus
restos mortais, uma gaveta exclusiva para o cadáver ou ossada ou
ainda, no caso dos mais abastados, de um sumptuoso jazigo onde se

254
perpetuasse, após o decesso, a prosperidade e união familiar, à
maneira dos antigos romanos.
Mas eis que, chegados ao século XXI, a lógica do fast food
também chega aos cemitérios.
Quem tem, hoje em dia, tempo e disponibilidade financeira,
para andar a comprar e manter jazigos ou sepulturas, para rumar aos
cemitérios, nem que seja uma vez por ano, a prestar homenagem
aos antepassados, ou a preocupar-se com o pagamento periódico de
taxas cemiteriais, ou com datas de exumação e destino a dar às
ossadas dos defuntos? Cada vez menos.
A solução moderna passa pura e simplesmente pela
cremação, solução final e definitiva para todas as obrigações
mortuárias dos descendentes. Reduz-se o defunto a cinzas e
entregam-se estas ao mar, ao rio, à terra natal ou simplesmente ao
cendrário público, existente no cemitério. De uma assentada
livram-se do defunto e das obrigações futuras e fica apenas a
memória, para homenagear quando der jeito e sem necessidade de
deslocações ou taxas especiais para o efeito.
É certo que há alguns que querem levar as cinzas para casa,
em pote sagrado, destinado ao culto familiar na sala de jantar. De
certo modo, esta minoria faz renascer o culto dos lares romanos,
substituindo as efígies de cera por um pote de cinzas.
Não obstante, a maioria dos portugueses (e a tendência
abrange grande parte dos países europeus) não só prefere a
cremação à inumação, como também prefere desfazer-se das cinzas,
a preservá-las em casa ou no cemitério, para memória futura.
Pode parecer um simples triunfo do comodismo e do
consumismo contemporâneos, e se calhar até é isso mesmo, mas
também é inegável que traduz uma mudança radical na mentalidade
das novas gerações, relativamente à tradição cultural milenar da
inumação, que se impunha pelos já citados motivos e muitos outros,
de índole sociocultural e mesmo religiosa.

255
Até a igreja católica, tradicionalmente avessa à cremação
dos mortos, se viu forçada a acompanhar os tempos e, pese embora
não a recomende, também não a censura, permitindo assim a
prática, sem antecipar quaisquer consequências nocivas para a saúde
da alma, quer dos mortos, quer dos vivos.
Não há provavelmente uma explicação simples para o
fenómeno, mas várias, que vão desde as preocupações ambientais,
ao desejo de não deixar trabalhos ou despesas aos sucessores, à
economia de recursos, pois sai mais barato cremar do que inumar, se
considerarmos os gastos futuros com a manutenção da campa, taxas
cemiteriais, exumação, destino das ossadas, e sobretudo ao descanso
de espírito dos vivos, que fazem um luto muito mais rápido na
cremação do que na inumação, que se prolonga por anos sem fim.
A tendência é tal que, mesmo aqueles que optaram
inicialmente pela inumação dos seus familiares, optam mais tarde
pela cremação das ossadas ou até de cadáveres depositados em
jazigo, libertando assim o espaço e vendendo-o a terceiros.
Quer isto dizer que a o culto dos mortos está em declínio na
nossa sociedade?
Certamente que sim. Já não se fazem funerais de pompa,
como antigamente e até os velórios começam a ser preteridos por
uma simples encomendação religiosa antes da cremação, uma breve
oportunidade para que familiares e amigos dêem os pêsames sem
grande necessidade de convívio ou perdas de tempo. Já não há
enchentes nos cemitérios no Dia de Todos os Santos e as floristas
queixam-se que ninguém gasta dinheiro em flores para os mortos
como antigamente, em que um carro funerário não chegava para
transportar tantas coroas e palmas.
Que isto dizer que o apego à terra e à propriedade
individual estão em declínio na nossa civilização?

256
De forma alguma. Estão é de tal modo valorizadas que
ninguém as quer desperdiçar com os mortos. São preciosidades
exclusivas dos vivos.
Citando o velho Cícero: "O tempora, o mores!,".

1 de Novembro de 2023

257
258
Nus e Sós no Mundo
Hoje acordei pensando que amadurecer é, em boa medida,
aceitar as inseguranças da vida e aprender a viver com elas, na
certeza de que todos vivemos nus e sós, neste mundo.
Desde que existimos que enfrentamos um universo de
dificuldades, de incapacidades, de limitações, que fomentam a
competição de uns contra os outros. Não admira, pois, que a
insegurança a a ansiedade se apodere do nosso ser, com a certeza de
quem está convencido que tem algo a provar a si mesmo e ao
mundo.
Por mais disfarces e máscaras que usemos, para esconder dos
outros os medos que nos incute esta sociedade competitiva, a
verdade é que todos somos de carne e osso, todos tememos a dor e a
doença, a perda, a vergonha de não estar à altura do que achamos
que devemos ser e mostrar ao mundo.
Se refletirmos um pouco, facilmente concluímos que os
nossos receios e vulnerabilidades são exatamente iguais aos dos
outros, que todos nascemos nus e sem dentes, como disseram os
Monty Python, e que a maturidade nada tem a ver com a idade mas

259
com a forma como reagimos ao acordar de cuecas no meio da rua,
como escreveu Woody Allen.
Amadurecer é aprender a lidar com as dúvidas e as
incertezas, porque todos temos motivos para nos sentir inseguros,
todos estamos sós no mundo, todos vamos morrer, todos somos
vulneráveis à dor, física e psicológica, todos temos que enfrentar a
frustração de não ser como gostaríamos de ser, de não ter tudo o
que gostaríamos de ter, de não vivermos os nossos sonhos enfim,
porque se os vivêssemos, deixariam de ser sonhos e outros
ocupariam rapidamente o seu lugar.
Não há uma criatura segura neste mundo e tomar
consciência disso não tem que provocar um ataque de pânico. Pelo
contrário, deveria funcionar como uma revelação, uma epifania que
nos faz aceitar, com humildade, a fragilidade da condição humana,
rejeitar as vaidades com que aprendemos a esconder as nossas
inquietações e aproveitar cada momento da vida, porque ele é
precioso, sobretudo quando é banal, porque é na exceção que se
esconde o perigo e a incerteza.
Amadurecer é saber aceitar as suas próprias limitações, na
certeza, porém, que na vida também existem virtudes e prazeres e
que, se todos somos fracos e imperfeitos, também todos temos a
capacidade de fazer alguma coisa de útil, de rir das nossas
hesitações, de usufruir de momentos de felicidade, por entre as
dores e as agruras da existência.
Amadurecer é também aceitar que todos somos imperfeitos,
temos medos e aspirações incumpridas. Por isso não faz sentido
competir, correr toda a vida atrás de futilidades que nos dão uma
efémera sensação de poder e de superioridade, até percebermos que,
por mais recheada que seja a conta bancária, por mais poder que se
acumule, por maior que seja o carro ou a casa de cada um, tudo isso

260
são meros bálsamos, alívios breves e ineficazes contra a humanidade
que permanece em cada um. A simplicidade que se encontra
debaixo das roupas de marca, por detrás do volante do carro de luxo
ou no dia em que o poder, que tanto custou a acumular, cai no chão,
derrubado por fim, pela perseverança dos outros ou pela morte ou a
doença.
Somos todos iguais no essencial e ninguém está seguro. Só
aceitando essas limitações conseguiremos, enfim, viver em paz,
livres de comparações e do medo, o nosso e o dos outros.
Estou nu e só no mundo. Mas os outros também estão. Não
há motivo para invejar nada a ninguém. Apenas tenho que aprender
a usufruir um pouco do muito que a vida me oferece para que,
apesar das minhas muitas limitações, viver possa ser uma
experiência positiva e que valha a pena.
A felicidade só depende de mim, de mais nada nem de mais
ninguém.

18 de Novembro de 2023.

261
262
A moral lusitana

O país está em estado de choque. Depois do escândalo de


corrupção no Governo de José Sócrates eis que António Costa se
demite, por estar envolvido noutro processo de corrupção e
favorecimento, em pleno exercício de funções.
Mas será que estamos assim tão estupefactos com a
corrupção que enche de notas os nossos ministérios? Alguém que
viva há alguns anos em Portugal tinha ainda alguma dúvida acerca
do modo como se processam as coisas neste país?
Desde o mais pequeno funcionário ao mais responsável dos
governantes todos fazem um jeitinho aos amigos, todos aproveitam
as oportunidades que surgem, todos metem uma cunha para o filho
ou para a mulher. Sempre assim foi!
Tens um problema nas finanças? Espera lá que eu tenho lá
um amigo e apresento-te. O processo não anda? O doutor não
conhece lá ninguém que ponha a coisa a mexer? Dinheiro não é
problema. Quer recibo? É melhor não, assim eu poupo o IVA e você
poupa nos lucros.
Portugal é e sempre foi um país de compadrio, nepotismo e
corrupção. E desconfio que vai continuar a ser, durante muitos

263
anos, porque as mentalidades não se mudam com meia dúzia de
escândalos na comunicação social.
O que mudou então? Apenas e só a capacidade de
investigação e nem sequer a do ministério público, cujos parcos
recursos e mentalidade de funcionalismo público não serviriam para
muito. Mudou sobretudo a investigação jornalística. Apareceram as
Sandras Felgueiras, que gostam de mexer na porcaria que todos
vêem e calam e publicam-na nos jornais, nas televisões,
apresentando provas documentais, depoimentos de arrependidos (os
que se deixaram enganar no negócio), factos que cheiram mal a
léguas de distância. Perante tamanha quantidade de evidências e
com o trabalho já todo feito, até o Ministério Público se vê obrigado
a atuar, a investigar qualquer coisinha que falte e a abrir inquéritos
e deduzir acusações.
Claro que a justiça não está preparada para julgar mega
processos. Metade dos crimes prescreve, os arguidos e os seus
advogados, a quem não lhes falta dinheiro para gastar em incidentes
e recursos, protelam as decisões até onde for processualmente
possível e mais além. E no final a montanha só pode parir um rato.
Alguém fica convencido da inocência dos acusados?
Absolutamente ninguém, nem sequer os juizes que os absolvem.
Apenas se confirmam as expetativas dum sistema que vive da
corrupção e do tráfico de influências e que tem uma justiça à sua
altura, isto é, quase completamente ineficaz. Nem convém ao
Estado dar muitos meios à justiça, era fazer fogo para se queimar. É
importante que exista uma justiça independente e que seja para
todos, para manter as aparências de um estado de direito. Mas é
igualmente importante que esta não funcione, porque senão
derrubaria os próprios fundamentos desta fantochada democrática.
O que resta ao cidadão honesto? Votar no Chega? Mas
alguém tem a ilusão de que um governo do Ventura e dos seus
compadres se portaria melhor do que os do Costa e do Sócrates?

264
Aquele discurso cheira a demagogia e populismo a quilómetros de
distância. É um bando de oportunistas sem escrúpulos a tentar obter
benefícios do descalabro do poder político. São iguais ou piores que
os outros.
O que fazer então? Abster-se, votar em branco, como
sonhava Saramago?
Com a corrupção nas veias, aos portugueses só resta sempre
a mesma solução, votar no que prometer melhor proteger os seus
interesses, pouco importando se é corrupto ou não.
Num mundo de desonestos quem o não for passa por parvo.
É essa a moral lusitana.

19 de Novembro de 2023

265
266
Índice

267

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