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L. A. & C2 no meio da revolugao Texto de Maria Mata Ilustragées de Susana Oliveira Marco de 1996 Primeira Edigdo: 1° edigdo / Margo 96 — © Américo Fraga Lamares & C,, Lda, Livraria Civilizagao Editora Fonte: http://mww.cd25a.uc.pt/index.php?r=site/page&view=itempage&p=1516 ‘Transcriggo: Graham Seaman HTML: Fernando Aratijo. A tia Luzinha conta uma histéria verdadeira © meu pat é0 mais distraido do (eZ a Uma bola misteriosa Um fim de semana maravilhoso Um grande susto Uma tia impossivel A tia Emilia desaparece Outro assaito Um plano astucioso Uma noite agitada Raptado Uma descoberta... espantosa Uma estranha viagem Uns pastéis inspiradores De surpresa em surpresa Finalmente salvo! Uma prisao ori Um final feliz Quatro + quatro = quatro ? <<< indice L. A. & C2 no meio da revolucao Texto de Maria Mata Ilustragées de Susana Oliveira A tia Luzinha conta uma histéria verdad: — Nuno! Filipe! Venham ca depressa! — gritava a Ana, a porta dos gémeos. — Rapido! Hoje temos um lanche especial, com bolo e tudo — juntava o Luis, entusiasmado. — Mas 0 que & que aconteceu? Alguém faz anos? — Ha visitas? E por ser Sébado? — Tiraste um "satisfaz plenamente" nalgum teste? — No, ao contrério! Foi a "Pulga” que tirou uma nega e como isso ndo acontece nunca, resolveu festejar! E 0s gémeos, que aproveitavam todas as ocasiées para se divertirem, riam como uns tolinhos, 6 de imaginarem uma festa por causa da amiga ter tido uma negativa. — Que gracinha! Se eu sabia no vos tina vindo chamar! — barafustou a Ana, toda abespinhada. — Temos visitas, temos! — disse o Luis, rindo-se também. — & uma senhora velhinha que foi viver para Chaves, quando nés éramos pequeninos e agora vem a Lisboa passar uns dias connosco. E muito amiga da nossa avé, Ajudou a criar a nossa mae .. — E & muito engragada! — acrescentou a Ana, j4 esquecida dos remoques. — Chama-se Maria da Luz e a minha mae chama-Ihe tia Luzinha, Fala sem parar, com muitos gestos, com uma cara muito alegre ... Ri-se por tudo e por nada, nem parece ter a idade que tem .. — Nao sabia que a tua mée era de Chaves! — admirou-se o Filipe. — Nao, no é de Chaves, é daqui de Lisboa. Ela é que parece que foi para Chaves, quando 0 marido morreu ... deve ter lé uma Quinta enorme, cheia de arvores, de vacas ... — Es palerma! Nao vés que Chaves jé ¢ uma cidade? — E isso que tem? Pela conversa dela, vive hé dez anos numa Quinta! Porque é que nao pode haver quintas no meio da cidade? — E um bocado disparatada essa da Quinta no meio da cidade! — Enunca mais veio a Lisboa? — Como é que eu posso saber se ela nao tem vindo a Lisboa?! Entraram na sala em que a D. Helena e a tia Luzinha conversavam animadamente, em frente a uma mesa recheada de biscoitinhos e com um enorme bolo de chocolate no meio. A senhora era Pequenina, vestida de cores claras, e tinha realmente um ar simpatico e alegre. — Venham cé, meninos! — disse a D. Helena para os gémeos. — Jé falei muito de vocés. Tenho aqui uma amiga que esta cheia de vontade de vos conhecer! = Entdo sdo vocés os famosos gémeos? Realmente sdo iguaizinhos um ao outro! E entéo contem-me I ‘ém feito muitas patifarias ultimamente? Os gémeos nem acreditavam no que ouviam. Parecia que a senhora os conhecia desde Pequeninos! E falava com uma tal naturalidade e tanta alegria que quase dava a impresséo de ser mais nova que a mae dos amigos! © que os gémeos néo sabiam é que a Tia Luzinha fora casada durante muitos anos mas nunca pudera ter filhos. E adorava criancas! Isso trouxera-Ihe uma forma muito especial de lidar com todas ‘as que conhecia. Via-se que a D. Helena também gostava muito dela pela forma afectuosa como a othava. — Entdo! E a escola? — continuava ela. — A escola... bem ... — balbuciava um dos gémeos. — Vai sempre bem, a escola — ajudou a Ana. — Principalmente a Ciéncias em que somos todos uns craques! — A Ciéncias? Sé a Ciéncias? E 0 resto? E as vossas brincadeiras? Contem-me |i as vossas brincadeiras! Quando eu tinha a vossa idade era muito aborrecido ... Tinha uma professora que ia |é a casa dar-me ligdes. Nao tinha ninguém com quem brincar .. — Entdo nunca brincava? — Brincava, claro, mas brincadeiras muito sozinhas Havia um grande jardim & volta da casa e eu gostava de andar de bicicleta e subir as érvores ... 56 gostava de brincadeiras de rapazes. Passava a vida a rasgar 0 vestido e a esfolar os joelhos! Depois, era um drama para esconder da minha mae a roupa estragada e as mazelas ... tinha uma criada velha que era muito minha amiga e me ajudava sempre ... mas isto no vos interessa. Falem-me mas é de vocés! Era realmente uma maravilha aquela tia Luzinha que falava com muitos gestos e tinha uns enormes olhos, muito expressivos. Dai a nada jé estavam os quatro 4 volta dela, falando entusiasmados das aventuras em que se metiam, da escola, das alcunhas que punham aos professores e dos jogos que mais gostavam. Ela interessava-se por tudo, fazia perguntas, falava, falava ... Até j4 tinham combinado uma préxima ida a Chaves, mal as aulas acabassem! — A Quinta é muito grande! — explicava a senhora. — E estou um bocadinho farta de Ié estar sozinha, apesar de ser lindissima, no Verdo. Até podem comer fruta directamente das rvores! Ha pereiras, macieiras, pessegueiros ... E também temos patos, galinhas, ovelhas ... Uma coelha teve uma ninhada de coelhinhos na véspera de eu vir para Lisboa! — Que giro! Quem me dera ver os coelhinhos! — suspirou a Ana, rendida aos encantos da Tia Luzinha, — E eu comer fruta em cima das érvores! — Porque é que foi viver para Chaves? — perguntou, de repente, o Luis. — Isso so histérias muito compridas ... Eu criei-me em Sacavém, numa casa antiga ... Quando eu era pequena nao havia vivalma, quilémetros em redor. Era por isso que eu era uma crianga muito sozinha ... $6 havia quintas naquela zona. Era um paraiso, embora muito isolado. E eu acabei por me casar com um vizinho que morava ... imaginem ld, @ quilémetros da nossa casa, noutra quinta! — Lembro-me muito bem do Tio Francisco! — disse de repente a D. Helena. — Falava muito pouce ... — Pois é! — riu-se a Tia Luzinha. — Deve ser por isso que eu sempre fui muito faladora! Para contrabalangar ... pois 0 meu marido era Engenheiro e trabalhava ld em Sacavém, num laboratério. Quando casamos fomos morar para um dos primeiros prédios que se construiram na vila. Aquilo fol crescendo, crescendo ... e tornou-se muito felo. Prédios muito grandes no meio da confusdo, sem Arvores, sem nada ... Assim, quando 0 Francisco desapareceu, fui para Chaves, onde ainda conservo a casa dos meus pais. Reencontrei a minha soliddo de menina ... e muitas outras coisas boas que no podia ter naquele andar apertado — e a Tia Luzinha calou-se de repente, como se estivesse a falar para dentro dela prépria, — & verdadel As recordades também so como as cerejas, vém umas atrés das outras ... Agora que me lembro do nosso andar de Sacavém, estou-me a lembrar de outra coisa ... De quatro meninos que moravam no andar de cima e eram por acaso muito parecidos com vocés, Dois deles até eram filhos de um colega do Francisco, Ié do Laboratério ... E eu falava muito com a mae deles. Eramos vizinhas, estévamos sempre em casa ... Eram danados, os catraios. Muito vivos ... Pois eles estiveram metidos numa grande aventura, numa época muito especial — Uma grande aventura? Que aventura? — E eram parecidos conosco? — admirou-se a Ana, — Mas parecidos conosco, como? Se jé foi ha tanto tempo — Nao foi ha tanto tempo como isso! — acudiu a senhora. — Foi ha precisamente vinte anos ... Quando vocés crescerem vao descobrir que o tempo passa muito depressa e que vinte anos nao séo nada, desaparecem num instante, Pois, pensando bem, os tais meninos eram realmente iguais a vocés! Que engragado! — Ea aventura deles? Conte-nos a aventura deles, Tia Luzinha! — Conte! Conte depressa! — Entdo Id vai continua>>> Inclusdio: 29/04/2020 <<< indice L. A. & C2 no meio da revolucao Texto de Maria Mata Ilustragées de Susana Oliveira O meu pai é 0 mais distraido do mundo Wee = Lr er — Ana! Ana! Chega aqui depressa! — berrava o Luis da janela do 2° direito. — A mie diz que no te deixa sair se no vieres j4 arrumar o teu quarto! — 0 qué? — respondia-Ihe a irma cd de baixo, fazendo-se desentendida. — Mas eu ja arrumei tudo! — Anda ca acima depressa, Ana! Néo repito outra vez! — 0 tom de voz da mae nao deixou duividas nenhumas; Ana subiu as escadas 0 mais répido que pode. "Realmente a me tem razdo!” pensou com os seus botées, enquanto voava a esconder no armério as roupas espalhadas pelo chéo, e fazia a cama, as trés pancadas. "Mas é téo chato arrumar!" e suspirou, correndo para a casa de banho com um monte de roupa suja na mao. — 38 estd, mae! J4 est! — gritou na direccdo da cozinha. — Hummmt! Vou ja ver isso! — foi a resposta. Naquele sitio era dificil arranjar uma empregada de confianga, por isso a D. Helena preferia no ter nenhuma, mas perdia a paciéncia com facilidade quando via alguma coisa fora do lugar. No fundo, no fundo, também nao gostava nada de repetir aquelas tarefas dia apés dia! E ficava furiosa quando 0s filhos nao a ajudavam. Além disso o pai andava nos Ultimos tempos com os nervos em franja. Chegava a casa tardissimo, dava um beijo distraido na mulher e nos filhos, e enfronhava-se no seu escritério até altas horas da noite. Chegava a esquecer-se de jantar! Quando se dava conta das horas, berrava, do meio da papelada que nao deixava ninguém arrumar: — Vo jantando que eu vou ja, ja! € sé mais um minutinho! E ja se sabia que nunca mais viria, e que a noite acabaria com a Ana aos berros, do lado de ca da porta — Abre, pa mée fez umas sanduiches para tu no morreres a fome, ai dentro! © pai da Ana e do Luis era fisico, tinha 0 curso de Ciéncias Fisico-Quimicas e trabalhava no Laboratério de Fisica e Engenharia Nucleares de Sacavém, Era muito distraido, 0 que trazia um sem numero de complicagées 8 familia, e sobretudo, irritava a mae, Mas a Ana ¢ 0 Luis até gostavam. Jé tinham descoberto que um pai distraido nem sempre liga &s asneiras dos filhos! E chega ao ponte de dizer que sim a um pedido a que respondera no, no dia anterior! E ter um pai cientista que trabalha com atomos, particulas, electrées, protées e outras coisas do género, nem toda a gente tem! © Luis e a Ana tinham um grande orgulho por terem um pai assim e tinham pena do Sr. Addo que tinha andado uma semana inteira a pintar o andar e que, com toda a certeza por distraccfo, se tinha esquecido de pintar o tecto do corredor. Sé de ver a cara dele quando se deu conta do seu esquecimento ... acabou por pingar as paredes todas e ter de pintar novamente o corredor inteiro! Com 0 pai era diferente. Quando a mae se queixava as amigas das distraccdes do marido, respondiam-Ihe sempre: "Deixa Id filha. Tens de desculpar. E cientista ... Anda sempre na Lua.” A familia morava em Sacavém, num prédio de cinco andares. O andar era to parecido com todos os outros que, uma vez, 0 pai da Ana, 0 Dr. Barroso, se enganou no botdo do elevador e, a0 regressar a casa ao fim do dia, rodou a maganeta da porta da casa que ndo era a sua e chegou ao climulo de depositar um beijo na cara da mulher do vizinho do 3° direito. O Filipe e 0 Nuno eram gémeos e moravam no mesmo andar, no apartamento pegado. O pai deles vivia no estrangeiro j4 ha muitos anos. A mae contara-Ihes que, ainda eles eram bebés, o pai tivera de fugir para outro pais porque nao tinha as mesmas ideias do governo, Quando os filhos Ihe perguntavam porque é que ele nao voltava, ela ficava muito triste e respondia sempre: "O pai é um lutador. Gosta muito da Liberdade. Quando vocés forem maiores hdo-de compreender ..." E, muitas vezes, chorava ao dizer isto. O Filipe e 0 Nuno tinham caras exactamente iguais. Sé a Ana € 0 Luis, e, é claro, a mae deles, os diferengavam. Com as outras pessoas as confusdes eram to constantes que jé ninguém ligava muito! Ainda por cima eram cémicos, porque eram altos ¢ magrissimos, com os cabelos rapados escovinha e sempre vestidos as trés pancadas. — Vocés parecem dois espargos saidos da mesma lata — dizia Ana quando os queria arreliar. — E tu uma pulga, com a mania que é espertinha! — retrucavam eles. Estavam sempre a aproveitar as parecencas para pregarem partidas a toda a gente e, na escola, ram conhecidos pelas suas miraboldncias. Quando apareciam caras novas, entéo, era uma festa para eles! Umas vezes eram castigados, mas outras acabavam por Ihes perdoar, porque, na realidade, as suas brincadeiras eram sempre engracadas e acabavam por néo prejudicar ninguém. Eram os principais companheiros do Luis e da Ana e amigos inseparaveis, desde que os pais tinham ido morar para ali — Que chatice! — bocejava a Ana, sentada com os amigos, nos degraus da entrada do prédio. Foram mesmo umas férias para esquecer! — Nao me apetece nada recomecar as aulas! — Claro, espantoso era que te apetecesse! — Os adultos sabem muito bem fazer promessas! O pior é cumpri-las ... — suspirava o Luis, sentado na outra ponta das escadas. — Promessas, leva-as o vento! A minha mae esté sempre a dizer isso! — lembrou o Filipe Todos pensavam no projecto do pai do Luis e da Ana de irem ao Algarve, nas férias da Pascoa, para passar uns dias e alugar uma casa para o Vero. — E se féssemos nés, sozinhos, por ai fora?! A boleia! — E verdade! Fazer umas feriazinhas sé nossas! — lembrou Nuno, com os olhos a brilhar. — Nao queriam mais nada! — retorquiu-Ihe o Luis. — Como de costume, esto os dois malucos! — Ora essa! Confessa que era uma ideia genial! — Piramidal! No gastévamos dinheiro na viagem, e ‘com as nossas economias ... — continuou o Filipe. — E plnhamos toda a gente em rebolico, ndo?! As nossas maes morriam logo de susto! — Deixavamos uma carta a explicar ... — replicou 0 Nuno, jé de orelha murcha — © que vocés queriam era faltar as aulas! Confessem la! — trogou o Luis. — Deixem-se mas é de disparates! — atalhou a Ana. — 0 meu pai no faz por mal ... tem andado com tanto trabalho que nao tem tempo para pensar em promessas! — Oucam a pulga a discursar! — disse o Filipe, furioso com a Ana. — 0 pior que a minha irmé tem mesmo razdo ... — gemeu o Luis. — Encarregaram o meu pai de um estudo muito complicado. S80 uns documentos que vém de fora e que ele tem de analisar nos computadores ... por isso que chega a casa cada dia mais tarde, e parece cada vez mais na Lua! — concluiu a Ana. = Imaginem que no outro dia, 4 mesa, até fez os gestos de levar a colher a boca sem ter ainda © prato da sopa na frente! — E verdade! E a mae, a rir, perguntou-lhe se a sopa estava boa e ele ai respondeu-Ihe: "Qual é a graca?" Sem fazer a minima ideia da figura que estava a fazer! — Ou as vezes nem janta! Se nao fosse eu levar-Ihe comida ao quarto de trabalho, acho que morria & fome! — acrescentou Ana toda orgulhosa do seu papel. — Meninos! — chamou a mae, do 2° andar. — Venham ja lanchar! Os gémeos que venham também! Nao foi preciso chamar duas vezes. Subiram as escadas a correr @ precipitaram-se para a cozinha, lavando as mos & pressa. Langaram-se ao lanche que a mée preparara jé a contar com os dois amigos. continua>>> Inelusdo: 29/04/2020, <<< indice L. A. & C2 no meio da revolucao Texto de Maria Mata Ilustragées de Susana Oliveira Uma bola misteriosa — Ei pa, anda depressa que ainda chegamos tarde @ escola! — berrou o Luis, & porta do 2° esquerdo. O Luis e 2 Ana moravam no 2° direito. Quando queriam referir-se 8s casas uns dos outros diziam sempre "vamos para 0 direito” ou "vamos para 0 esquerdo", conforme dava mais jeito, uma vez que passavam a maior parte do tempo com os gémeos. A Ana era uma boa aluna e, como eram colegas de turma, faziam os deveres em conjunto, © Luis, mais velho, j& andava no segundo ano do Ciclo Preparatério, e servia As vezes de explicador nas matérias em que emperravam. Sé os gémeos aceitavam a sua ajuda porque a irma, pequenina e franzina para a idade, com uns olhos azuis que Ihe comiam a cara toda, era demasiado orgulhosa e senhora de si para aceitar a sua ajuda. Perante qualquer dificuldade na escola, nao descansava enquanto nao a resolvia sozinha Quanto aos gémeos, eram muito distraides para umas coisas e tinham uma curiosidade insacidvel para outras. O pior era que essa curiosidade nunca coincidia com as matérias dadas na Escola, com excepgo da disciplina de Ciéncias em que eram ambos brilhantes. Tinham montado em casa, num quartinho interior mindsculo, um minilaboratério que a mae Ihes dera de presente no Natal. Foi téo experimentado que esta se arrependeu mil vezes de Ihes ter dado tal prenda, Volta e meia, aqueles objectos de brincar tornavam-se explosivos a sério e, quando os gémeos saiam do quartinho exultantes mas meio chamuscados, a vontade da mie era pregar-Ihes uma boa surra, em vez de os levar ao hospital. Ainda por cima, 0 material ia sendo enriquecido com pequenas pegas que o Dr. Barroso, que Ihes achava graga, trazia do Laboratério, Por isso os riscos de a casa ir um dia pelo ar nao paravam de aumentar. — Nem imaginas 0 que aconteceu! — gritou o Luis, meio entupido de pao com manteiga. — Jd sei. Nao tiveste tempo de lavar a cara e vestiste a camisola ao contrério — trocou a irma. — Cala-te, pulga! Nao é nada disso! Acabaram agora de sair daqui uns tipos todos janotas. Vinham num Peugeot 404 preto, com motorista e tudo! — Ena, ena! Visitas as oito da manha! — admirou-se o Filipe. — E verdade! — continuou 0 Luis, excitadissimo. — Quando acordei, imaginem que jé estavam cd em casa! E mais: ouvi-os falar francés, mas no consegul entender patavina do que se tratava! — Tens a certeza que no sonhaste? — Certeza absoluta! O pior foi eu ndo ter percebido nada do que eles diziam! — Ora af esté! — exclamou a irmé, vitoriosa, — Se estudasses mais um bocadinho, ja percebias! — Que grande chata! Ndo vés que falavam depressa demais?! — respondeu-Ihe o irméo todo abespinhado, E puseram-se os quatro a caminho da escola que distava da casa deles um bom quarto de hora a pé. O caminho nio era nada bonito, mas no custava nada, porque iam sempre na brincadeira e na conversa, Havia um enorme ferro velho com todo o tipo de metais amassados e ferrugentos, amontoados aqui ali e, pelo meio, barracas feitas de latas velhas e restos de madeira onde moravam ciganos. Havia também terrenos baldios e, pelo meio de tudo isto, serpenteava a azinhaga que os quatro tomavam para chegar a escola — Que estranho — disse Ana, que estivera até ai muito calada. — Porque seré que o pai recebeu essas visitas? Os gémeos estavam excitadissimos com 0 acontecimento. — Bem, eu acho que nao eram mesmo, mesmo visitas — disse o Luis. — Primeiro, porque a gente conhece as visitas todas cé de casa — Segundo, — rematou o Nuno, triunfante — que eu saiba néo se fazem visitas a ninguém as sete da manhé ! — Também néo exageres! As sete! — Quem seria? — Era gente importante, e velhota, de chapéu — E tinham uma pasta grossa na mao ... Acordei to estremunhado que até pensei que estava a sonhar! — Um sonho passado em Franga, ndo querias mais nada ? — Aj isso queria ... — suspirou o Lui Mas queria era que fosse a sério! aos pontapés a uma pedra que encontrara no caminho. — — Havia de ser bonito! — retorqulu o Filipe a rir. — Sem conseguires perceber o que eles diziam, como te las safar? — Nunca ouviste dizer que quem tem boca vai a Roma? Havia de me desenrascar de uma maneira qualquer! E a conversa acabou all, porque estavam a chegar aos portdes da escola, onde uma pequena multido quase se atropelava porque ja tinha tocado e ninguém queria levar uma falta. Durante 0 intervalo grande, o Luis reuniu-se aos outros trés, na bicha para o bufete. — Ento pd? Passaram-te os sonhos com senhores franceses, vestidos de preto? Os gémeos ja imaginavam aventuras. — Até pode ser por causa do trabalho do vosso pail — € verdade! Quem sabe? Se calhar eram detectives! — Otha para estes, j4 a sonhar com policias e ladrdes! — riu-se o Luis. 7 — Nao te fagas engracadinho, Luis! Como € que sabes o que esses homens foram fazer I a casa! ‘Ana defendia, como sempre, os gémeos. Muito mais pequenina do que eles, com o cabelinho claro, muito curtinho, cortado & rapaz e sempre vestida de calgas e camisoles, dava gosto olhar para a sua carinha séria e determinada. Luis, pelo contrério, era um calmeirio grande e sélido. Tinha uma maneira muito especial de brincar com os amigos e as situacdes. Sendo fisicamente muito maior, embora sé tivesse mais um ‘ano, desenvolvera sem se dar conta uma tendéncia para liderar 0 grupo, que os gémeos aceitavam quase sem condicdes. Quem nao Ihe aceitava a autoridade era a irma, que implicava com ele sempre que podia — 14 n3o se pode brincar agora? — O Luis, com a sua fome de lobo do costume, tinha jé na mao dois paes com queijo. — Bem, até logo! Continuamos @ conversa em casa! Os pais do Luis e da Ana tinham na cave uma garagem espacosa, que estava transformada num espaco de brincadeira para os filhos. Na mesa de ping-pong travavam-se renhidas e animadas batalhas e faziam-se verdadeiros festins de biscoitinhos e laranjada quando os pais decidiam ir a Lisboa ao cinema. Estava decorada com bats de lata e poltronas velhas, cobertas de mantas de trapos e, pendurado a meio de uma das paredes, um espetho muito grande, de moldura esbotenada, que tinha sido herdado de um tio bisavé qualquer. Era ali que os quatro se encontravam sempre que chovia e também era ali o reino da Carlota, a gata da Ana. A Carlota alimentava-se quase sé de biscoitos para gatos e tinha a sua cama numa cestinha de verga forrada com um cobertor velho. — Eas visitas misteriosas? Voltaram a atacar? — perguntaram os gémeos. — Sei I! A minha mae nao esta em casa. Quando ela chegar, perguntamos-Ihe — respondeu a ‘Ana com a Carlota toda enroscada no colo. ‘A mae dos gémeos trabalhava em Lisboa, num escritério, ¢ fazia muitas horas extreordinarias para conseguir sustentar a casa. Sé chegava mesmo em cima da hora de fazer o jantar e a maior parte das vezes vinha cansada e sem paciéncia para os filhos. Quem Ihe valia era a D. Helena que no trabalhava fora e tinha pena dos gémeos, sozinhos durante todo o dia, e a Ana que quase os obrigava a estudar porque gostava muito de brincar as professoras. — Bom, ... parece que sé nos resta estudar as licbes de hoje! — disse a Ana, com um suspiro. — Trouxeram os livros? — E se antes jogassemos sé uma partidinha, muito pequenina, de ping-pong? — comegou o Nuno. — Sim, sim, s6 uma muito pequenina ... — continuou o Filipe. — Hoje até nem demos nada de especial! — Ai seus grandes trapaceiros! — ralhou a Ana indignada. — Demos matéria nova a pelo menos trés disciplinas! E, de resto, ndo se safam: para jogarmos temos de estar os quatro e o meu irmo ainda nao chegou! — E verdade! — admirou-se o Filipe. — Onde é que ele estara? Saiu uma hora antes de nés, ja ci devia estar ha que tempos! E nisto, ouviu-se uma restolhada pelas escadas abaixo e os trés viram chegar o Luis, muito afogueado. Trazia uma bola de futebol de magnifico couro na mao e tinha um ar estranho. — O que foi? — O que te aconteceu? — Quem te deu a bola? — De quem é? — Conta depressa! — implorou a Ana. — Deixem-me falar, caramba! — berrou o Luis, j4 impaciente. — Com vocés os trés a gritarem ao mesmo tempo é impossivel eu explicar ... — 34 estamos mais calmos, ora diz ... — Bem, — comegou o Luis — para vos dizer a verdade nao percebo muito bem que histéria ¢ esta... — Ora essa!’ — Eno?! — Ento, podem estar a passar-se varias coisas diferentes, isto é, a razéo porque me deram esta bola, ao certo ... ndo sel. — Mas quem ta deu? — Ai é que est, — respondeu o Luis — é que nao sei ao certo quem ma deu! — Estas maluco! — Caiu do céu aos trambolhées?! — Nao sabes quem ta deu?! — Nao conheces as pessoas? — Sim, sim, é mais ou menos isso ‘0 seu embaraco. — 0 Luis comegou a bater a bola no chao, para esconder — Foste aceitar uma bola de estranhos? Nao estas bom da cabeca, Luis! — censurou a irma, 8 aflita. — Sabes Id 0 que eles te queriam para te dar uma bola como essa! Deve ter sido carissima! E ‘a me esté sempre a dizer para nao aceitarmos nada de pessoas que a gente n&o conhece! — Se calhar no é uma bola a sério! — Tem uma bomba dentro! — Claro, s6 pode ser! Ih, Ih, Th! — Cuidado! Afastem-se! Ah, Ah, Ah! — E se parassem com a brincadeira? — dizia o Lu(s, jé furioso. — Deixem-me ao menos explicar porque é que eu fiquei com ela, caramba! Ainda por cima quem ma deu disse-me que a bola no era 86 para mim! Que era para nés os quatro! Jd cA tinham vindo de propésito trazé-la, mas nao tinham encontrado ninguém em casa! — Mas quem nos queria dar a bola, afinal? — Disseram que vinham do Laboratério ... Parece que por uma razdo qualquer que eu néo percebi, houve uma espécie de sorteio de bolas pelos filhos dos empregados e ... a nés, tinha-nos saido esta bola, éptima por sinal ... — Nés? Nés também?! — exclamou 0 Nuno. — 0 qué?! Mas nés no temos nada a ver com o laboratério! — Claro que fiquei na diivida ... Mas, 0 que queriam vocés que eu fizesse? Tive vergonha de recusar! E a bola é to boa que estive este tempo todo a jogar sozinho, IA fora ... Nunca tivemos e acho que nunca mais voltamos a ter uma bola assim!! continua>>> Inelusdo: 29/04/2020, <<< indice L. A. & C2 no meio da revolucao Texto de Maria Mata Ilustragées de Susana Oliveira Um fim de semana maravilhoso ABs222- Nesse dia, 0 pai do Luis e da Ana chegou a casa mais cedo que o costume. A mae ainda néo acabara de fazer o jantar e ia-se cortando com a faca, ao partir os bifes, tal foi a sua surpresa. — N&o posso acreditar no que estou a ver! — exclamou, — Se nem eu préprio acredito! — respondeu o Dr. Barroso, pousando a pasta em cima de um dos bancos da cozinha e dando um beijo & mulher. — Chama as criangas! Tenho uma proposta para fazer a todos! Quando os filhos subiram de roldéo as escadas, com os gémeos atrés, anunciou cansado, mas satisfeitissimo: — Acabel finalmente o projecto que tinha entre mdos! Finalmente! — e acariciava a pasta que descansava em cima de um banco. — Caramba! — desabafou o Li — 38 no era sem tempo! — Estévamos fartos de te ver com um ar aluado a entrar pela casa dentro a correr, para te fechares no escritério! — Até nés! — acrescentaram os gémeos, que quase faziam parte da fa — E com petigas diferentes e todo despenteado! — Ih! Que exagero! — disse a mie, rindo. Era evidente 0 seu alivio. Claro que, naquela situagSo, era sempre ela a mais sacrificada pois as alteracées de habitos do pai, nessas alturas, introduziam uma grande confusdo na rotina doméstica. — E agora, pai? E aquilo que nos prometeste? J é possivel, agora? — a Ana saltava, & volta dele, como um cachorrinho muito pequeno. — J4 ¢ possivel, agora, pai? — Ora! — respondeu o Luis, desanimado. — Agora as nossas férias j4 acabaram. Adeus Algarve! — Pois é — disse o Filipe. — A nossa mae também nos tinha prometido .. — E verdade! — acrescentou o Nuno. — Fiquei com tanta raiva que sé me apetecia fugir de casa! Nunca temos férias como os nossos colegas da escola! — Nunca conseguimos ir a lado nenhum! — Passamos 0 tempo enfiados nesta terrinha! — Ora, ora — atalhou a mae, — Nao agora altura para se lamentarem. Pelo contrério, deviam estar contentes ... Acho que o pai se prepara para vos dar uma boa noticia! E vocés deviam estar orgulhosos por terem um pai assim — acrescentou, olhando com ternura o marido sentado num banco, com a Ana ao colo. — E vocés, meninos, — disse, virando-se para os gémeos — o melhor é& irem para casa porque a vossa mae jd deve estar & espera. Quando os gémeos sairam, a correr, 0 dr. Barroso sentou os dois filhos, um em cada perna. — Nem imaginam que bom que é chegar a casa a esta hora e ter tempo para estarmos todos juntos! — desabafou, enquanto a mulher tentava remediar a calda do arroz que entretanto se ‘queimara. — Estes ultimos dias foram de estoirar! Ndo via o fim da investigacdo. Mas agora, est tudo pronto ¢ arrumado. E tenho uma noticia para todos vocés. Até que enfim vou ter férias! Uma semana inteira de férias. Como vocés no tém aulas ao sdbado, se faltarem sé sexta-feira, podemos partir para o Algarve ... talvez na quinta-feira a noite! Que dizes, Helena? Os olhos da mée brilharam. — Quase que nem acredito que isto esté a acontecer — exclamou o Luis. — Belisquem-me para eu ter a certeza que estou acordado! — Eos gémeos — lembrou a Ana. — No podiam vir connosco, pai? — Claro! — respondeu o Dr. Barroso. — Até jé tinhamos combinado qualquer coisa com a mae deles ... levamos os dois carros e ai vamos nés! Agora sinto-me livre como um passarinho, Hoje, de manha cedo, os franceses vieram cé a casa buscar os resultados da investigaco. Jé levaram tudo. Neste momento 0 nosso trabalho ja deve estar em Franca. Ali esto apenas as cépias .. rematou deitando um olhar orgulhoso pasta. Todos se riram, porque Carlota, a gata da Ana, tinha- se refastelado em cima, e olhava pachorrentamente a cena, Parecia ter a arte de se colocar sempre no centro das atengées. — E como vai ser pai? Jé tiveste tempo para pensar ‘onde é que vamos dormir? — Ese levssemos as tendas? Podiamos acampar! — E é jd nesta quinta-feira ? — Podiamos partir logo &s cinco e meia! As minhas aulas acabam as cinco e mela, & quinta-feira! — E comer? Vamos comer sempre em restaurantes? — Tenho uma ideia, pai! Porque ndo pedes ao av o "boca de sapo?" — Nao & ma ideia ... Que achas Helena? Sempre faziamos uma viagem mais confortavel! — 34 me estou a imaginar no banco de trés! — disse 1a Ana, fechando os olhos de prazer antecipado, — Mas ... € os gémeos? A 4L deles no aguenta a velocidade do carro do avé. Um Citroen DS ... Voa! — lembrou o Luis. — Levantam-se uma hora mais cedo ou entdo partem sem lavar a cara! Th, Ih, Ih! — riu-se a Ana. — Caluda, meninos — a mae tentava a acalmar a excitacao dos filhos, sem conseguir grandes resultados. — N&o véem como o pai est cansado? De certeza que ele ainda ndo teve tempo de pensar nesses pormenores todos. V8o mas é Id para fora ver se encontram os gémeos. A primeira coisa a fazer é saber ao certo se sempre vém connosco! Nao, esperem! Pensando melhor, isto é uma coisa para se combinar entre adultos. Digam sé a Isabel que eu depois do jantar vou falar com ela. Em casa dos gémeos reinava uma grande excitago. Embora aquela viagem fosse uma combinaco entre gente grande, os dois ficaram logo a par de tudo. Nem acreditavam! Iam todos juntos passar um grande fim de semana no Algarve! Estavam to felizes que nunca mais pensaram na misteriosa bola de couro que ficara esquecida a um canto da cave do Luis e da Ana. Inclusao: 29/04/2020 <<< indice L. A. & C2 no meio da revolucao Texto de Maria Mata Ilustragées de Susana Oliveira Um grande susto — Seré que no Algarve esta calor, agora? — Claro, no Algarve nunca esté frio! Nés ndo vamos tomar banho no mar? — E jd sabem para que lado do Algarve vamos ? — 0 pal falou na zona de Tavira, parece que no Vergo é mais sossegado e & mais facil arranjar uma casa para aqueles lados — opinou a Ana, andando aos saltos, apesar do peso dos livros. — E se levassemos as bicicletas? — perguntou o Filipe, estacando de repente, encantado com a sua prépria ideia. — Estés tolo, pé — riu o Luis, — Tu achas que para passarmos trés dias valia a pena? — Valer, valia sempre, agora duvido é que a mae vé nisso — respondeu o Nuno, pondo-se, como sempre, do lado do irmao. Estavam radiantes com a perspectiva do passeio. Mal tinham dormido durante a noite e levantaram-se mais cedo que o habitual. O dia tinha acordado acinzentado e ameagando chuva, mas foi um martirio convencé-los a vestir o impermedvel e a levar guarda-chuva. Os gémeos, esses, queriam & forca ir de camisolinha de manga curta para a escola. — Querem ficar doentes? Se ficarem doentes podem dizer adeus ao Algarve! — dissera a mae, ¢ este tinha sido o Unico argumento que os convencera a enfiar uma camisola de la e o impermedvel por cima, — Quem me dera que jé fosse quinta-feira! — suspirou a Ana. — Esta noite fartei-me de acordar a pensar que jé era o dia da partida — E eu até sonhei que jé iamos a caminho! — E eu que estava a tomar banho naquela dgua quentinha! — Agua quentinha em Abril! Também nao exagerem! — riu-se o Luis. Na escola, as aulas arrastaram-se e até para a Ana, a estudiosa, o tempo parecia uma eternidade. ‘Ao fim da manhd, a meio da aula de Matematica, entrou uma empregada na sala e falou em voz baixa com a professora. Esta esperou que a empregada se fosse embora e chamou a Ana de lado. Pés-Ihe a mo no ombro, e mandou-a arrumar os livros e ir embora para casa. O irméo esperava-a a porta da sala, perplexo. Alguma coisa de muito grave acontecera para interromperem uma aula e os mandarem para casa. — Vo com calma! — ainda aconselhara a professora de dentro da sala, enquanto se levantava um burburinho por entre as carteiras. — Deixe-nos ir com eles, "sotéra"! — tinham pedido os gémeos a uma. Mas a professora ndo deixara, 0 recado era sé para a Ana € 0 irmao. © Luis ¢ a Ana correram tanto que chegaram a casa em metade do tempo que costumavam demorar. Estranhamente, esperava-os a mae dos gémeos. Estavam tio esbaforidos que nem consegulam falar. — Onde esté a nossa mae? — perguntou o Luis quando conseguiu recuperar 0 félego. — 0 que é que aconteceu? Diga depressa, D. Isabel! Aconteceu alguma coisa aos meus pais? — A Ana ja estava de ldgrima ao canto do olho e o Luis, muito vermelho, esforcava-se por mostrar uma calma que ndo sentia. — Sosseguem! — respondeu a mae dos gémeos fazendo uma festa na cabeca da Ana. — aconteceu uma coisa muito estranha ... Parece que hoje, 0 vosso pai ia entregar aquele trabalho no Laboratério... — A pasta com a cépia do tal trabalho! — interrompeu o Luis. — Sim, deve ser isso! Ele saiu de casa mais cedo que o costume ... e levava a pasta! Eu ainda cd estava. Parece que o atacaram quando se ia meter no carro, aqui, & porta de casa. E roubaram-Ihe a pasta! Como resistiu, deram-Ihe um tiro! Mas sosseguem, foi no braco, nada de grave .. © Luis, muito vermelho, tentava segurar as lagrimas, mas Ana solucava ja, agarrada 4 mae dos gémeos. Esta, muito aflita, Ié conseguiu sossegé-los o melhor que péde. — Calma, tenham calma! 0 vosso pai esta bem, no corre perigo nenhum! JA foi operado e ja Ihe extrairam a bala, Esté no Hospital de S. José, em Lisboa. A vossa mie esté com ele. Ainda bem que eu pude cA ficar! Ful eu que telefonei h bocado para a escola. Acabei agora mesmo de falar com a Policia Judiciaria, por isso n&o vos pude ir buscar, para irmos directamente para o Hospital — Mas o meu pai estd bem de certeza? Néo nos esté a enganar? — ainda articulou a Ana, muito baixinho. — Vamos depressa! — disse o Luis, — Quanto mais depressa formas, mais depressa vemos 0 pai — Sim, sim! — respondeu a m&e dos gémeos.- A hora da visita comeca as trés. Comemos qualquer coisa pelo caminho, para nao perdermos tempo ! — Nao tenho fome nenhuma! — Nem eu! N&o podemos ir j4, j4, para o Hospital? — No tenho bem a certeza se nos deixam entrar antes da hora ... Aquilo tem um regulamento apertado. Nem sei como a Helena se est a safar para estar ao pé dele, na enfermaria ... Mas enfim, somos uns valentes! Vamos tentar! — respondeu, tentando desanuviar 0 ambiente. E entrou no carro com os dois. Mas no chegou a arrancar. Ao fundo do caminho apareceram os gémeos, aos gritos, a correr, esbaforidos. No intervalo, tinham falado com a professora de Matematica que comesou por dizer que nfo era nada de grave mas depois meteu os pés pelas mos contando uma historia confusa que metia ladrées, tiros e ambulncias. Nao aguentaram mais. — Esperem por nés! Também queremos ir! — berravam os dois como possessos. J4 dentro do carro, tiveram de ouvir um raspanete da mae por terem saido assim da escola. Por fim, ld Ihes explicaram 0 que tinha acontecido e partiram a toda 2 velocidade para Lisboa No Hospital, junto & entrada, a mae dos gémeos quase esbarrou com uma enfermeira que fora sua colega no liceu. Foi uma sorte! Cairam nos bracos uma da outra e ela guiou-os por corredores € mais corredores até & entrada da enfermaria, onde estava o pai do Luis e da Ana. Encontraram logo a mie, que saia pela porta com um pacote de bolachas e duas laranjas na mo. — 0 pai ainda no acordou da anestesia, mas a operac&o correu muito bem, n&o hd motivo para afligSes! — disse, abracando os filhos, enquanto escondia uma lagriminha teimosa que Ihe espreitava ao canto do olho. continua>>> Inelusdo: 29/04/2020, <<< indice L. A. & C2 no meio da revolucdo Texto de Maria Mata Ilustragées de Susana Oliveira Uma tia impossivel — Ih! Que grande chatice! — desabafou a Ana, no dia seguinte, no caminho para a escola. — Detesto a tia Emilia! Logo havia de calhar ser ela a vir tomar conta de nés! — Nao nos vai deixar fazer nada! Mal chegou e ja est farta de nos chatear! — Mas afinal quem é essa tia Emilia? — E uma tia velhota da minha mie. Vive sozinha em Lisboa com um gato e um cao. Como nao tem nada para fazer, a minha mae lembrou-se dela, para vir cé para casa. — 0 pior é que nao sabemos ao certo quando o meu pai tem alta no Hospital — disse o Luis. — E até ld ... temos de a aguentar! — Porque no fogem para nossa casa? — aconselhavam os gémeos, que eram muito dados a medidas radicais. — Vocés estdo malucos! = Quando iamos a sair, avisou-nos logo que tinhamos de vir a correr, muito direitinhos, para casa, mal acabassem as aulas! = Hilihhhhb! ... — Nao ha problemas! Plantamo-nos em vossa casa ¢ ela, na nossa frente, ndo tem coragem de implicar com vocés — propés 0 Nuno, triunfante. — E uma ideia! — acrescentou o Filipe. — Sempre quero ver se ela tem assim tanta lata! — Seré que vos vai deixar ver televisio? — Ea nossa bola? Com estas confusées todas até nos esquecemos dela! — E verdade! A bola! Ih! Que desperdicio! — desabafou o Luis. — Esta Id em baixo na cave.. — Nem penses ir agora buscé-la, Luis! A tia Emilia matavacte ... Aposto que & do género chichi, cama! — gemeu a Ana. — Eu, nos dias em que nao tiver aulas de tarde, quero ir ao Hospital ver o pai! Ninguém me vai impedir! — Era 0 que faltava ela proibir-nos isso — exclamou Ana, fervendo ja de indignaco. — Sempre queria ver! No Hospital, tinham mudado o doente para um Pequeno quarto ao fundo da enfermaria. Tinham colocado 14 uma cama desmontavel para a mae poder ficar todo 0 tempo junto dele. Era contra as regras da casa, mas alguém do Laboratério tinha falado com 0 director do Hospital e tudo se arranjara Nesse dia, quando os mitidos chegaram da escola, encontraram a porta da sala de estar fechada. A voz da tia Emilia ouvia-se cd fora, esganigada e muito exaltada, misturada com vozes masculinas. Ana entreabriu devagarinho a porta e, pela frincha, péde ver que a tia falava com dois homens. — Ora esta! — cochichou para os outros, assustada. — Quem sao aqueles? — Aposto que sao policias & paisana! — sussurrou 0 Luis. — S80 iguaizinhos aos das séries da televiséo, tem gabardina, pasta, e bigode. Sé Ihes falta o chapéu! ‘Atrés da porta conseguiam-se apanhar farrapos da conversa e, depressa descobriram que as suposigdes do Luis estavam certas: a tia Emilia estava a ser interrogada por dois policias. — Como querem os senhores que Ihes diga alguma coisa se eu sé sei o que a minha sobrinha me contou — repetia a tia Emilia muito abespinhada. — J basta 0 que o meu sobrinho sofreu ... Nao acham que ja foi suficiente? Anda um pobre de Cristo a trabalhar para Ihe pregarem um tiro em cima ... Nao ha direito! - Realmente, minha senhora — E escusam de ir incomodé-lo ao Hospital — continuava. — © meu sobrinho sofreu um acidente grave, precisa muito de descanso. Nao tém o direito ... Bem basta o que Ihe aconteceu! — repetia indignada, e tao vermelha de Indignagao, que até se notava do lado de cé da porta. — 6 minha senhora, nés ndo queremos criar problemas a ninguém — respondeu um dos policias, — Entendemos muito bem a situago, mas tem de compreender ... Para se fazer justica, precisamos de estar na posse dos factos. Foi muito grave o que se passou ... Desapareceram planos de uma investigago muito importante! E se por um lado, ja tinham seguido 0 seu destino ... — Por outro lado — continuava 0 outro policia, — as cépias que cé ficaram cairam em mos estranhas! Pode ser dado um uso indevido ao trabalho do seu sobrinho e o resultado vai ser gravissimo! — Felizmente que no roubaram a central francesa! — 0 qué? — perguntou aterrada a tia Emilia. — Roubar uma central francesa aqui em Sacavém?! — Enfim ... — diziam os dois. — Nés sabemos 0 que queremos dizer! — Ah! Ainda bem, ainda bem! Fez-se siléncio na sala. Os mitidos acotovelavam-se atrés da porta, de orelha espetada, tentando no perder pitada do que se passava. — Valha-me Deus! — gemeu por fim a tia Emilia mais branda, apés uns segundos de siléncio. — Mas afinal o que é que os senhores querem que eu faca? Que va atrds dos ladrées? Eu nao sei de nada, no vi nada! Nem sequer cA estava quando as coisas aconteceram. Sé cheguei muito mais tarde para tomar conta dos meus sobrinhos. E nao houve tempo para me contarem nada .. — Mas deve haver indicios — insistiam os policias, j4 impacientes. — Impressées digitais, qualquer tipo de marcas. Precisamos de alguém que nos dé indicagées ... O engenheiro estava sozinho no momento em que a pasta foi roubada? — E os senhores 2 darem-Ihe! — tornava a tia Emilia, cada vez mais aflita. — E ndo é engenheiro, é doutor. Nessa altura o Luis no aguentou mais. Escancarou a porta e entrou, resolutamente, na sala. — Credo, rapaz, que me matas de susto! Nao te senti chegar! Atia Emilia olhou para a porta e viu os outros trés. — E muito feio escutar as portas, sabiam? Quando a minha sobrinha vier vou-Ihe dizer! Ai os meninos! Parece impossivel! — Mas nés podemos contar tudo! — interrompeu a Ana, sem ligar nenhuma 8s ameacas da tia — A nossa mae contou-nos, quando fomos ao Hospital ver o pal! — 6 Ana, mas o que é isso? N&o sabia que tinhas 0 hdbito de escutar atrés das portas! — Repetia a tia Emilia, indignada. — Desculpe-a senhor guarda, A minha sobrinha é uma crianga muito metediga! O que é que ela pode saber desta histéria toda? Que disparate! — Sabemos tudo sim senhora e podemos contar-Ihes, assim que quiserem ouvir-nos! — O Luis rebentava de indignacdo contra a tia Emilia e a Ana quase perdera a respiracio, de furia Houve um momento de hesitagdo. Um dos policias pigarreou, pouco convencido: = Digam-nos ent&o 0 que tém para contar. Mas antes de mais nada: Nao tém notado nada diferente do habitual? Pessoas estranhas a rondar a casa? — Huuummmmm ... Acho que nao — ia dizer a Ana, mas foi interrompida por uma cotovelada de um dos gémeos que Ihe sussurrava ao ouvido: "A bola! Fala na bola!” — E verdade! Ha aquele mistério da bola que veio nao sabemos de onde ... Conta tu, Luis! Tu é que a aceitaste daqueles tipos desconhecidos ... — Eu conto, eu conto ... — comecou 0 Luis, muito vermelho. — Somos todos ouvidos e até vamos gravar os depoimentos que vocés nos prestarem! — disse 0 ‘outro, com mais conviccao. A tia Emilia, furiosa, saiu, desarvorada, da sala. Ia com um ar tao ameacador que os quatro até se encolheram. E, & vez, foram contando tudo 0 que se lembravam da cena da bola e do relato que a mae dos gémeos thes fizera Por fim, 0s dois policias arrumaram com todo 0 culdado o precioso gravador no estojo e prometerem que, to cedo, ndo iriam incomodar 0 senhor doutor com perguntas. E acabaram por se ir embora todos satisfeitos! continua>>> Indlusio: 29/04/2020 <<< indice L. A. & C2 no meio da revolucao Texto de Maria Mata Ilustragées de Susana Oliveira Atia Emilia desaparece x2 a. — Deus meu! — suspirou a Ana, arrumando os livros e cadernos da escola. — Nao faco ideia do que vai acontecer nesta casa, se os pais ndo voltam depressa! As coisas iam de mal a pior com a tia Emilia. Desde o dia anterior que, com a visita dos policias, se criara um ambiente de cortar & faca. A noite, a tia Emilia pusera o jantar na mesa e os trés tinham comido em siléncio. Luis ainda ensaiou uns elogios aos cozinhados da tia — O arroz esté muito bom. — Nao ficou mal — respondia a tia, mais seca que 0 arroz que cozinhara, — Ea carne também esté gostosa — insistia o sobrinho, cheio de boa vontade. — Sim, sim — tornava a tia, no mesmo tom. “Irra", pensou o Lufs. "E demais!" Ana, essa, lancava chispas pelos olhos. A nica solugdo foi Jantarem 0 mais répido que puderam e cada um desaparecer para o seu canto. Nem se atreveram a ligar a televisdo, com medo de apanharem um raspanete. Era evidente que, com razo ou sem ela, a tia se tinha sentido lesada na sua autoridade ao ver- se ultrapassada pelos sobrinhos, a quem ndo reconhecia capacidade para darem informagées de tanta importancia. Considerava-os demasiado criangas para tal. Era muito velhota e intransigente, a tia Emilia, O dia seguinte amanheceu sem alteracSes na situagdo. A tia Emilia andava em bicos de pés pela casa, cumprindo com uma eficiéncia quase maniaca a missao de que a tinham incumbido. A mae dos gémeos chegou depois de mais um almoco quase silencioso, trocou umas frases polidas com a velha senhora, ¢ levou os quatro ao Hospital. Quando chegaram ficaram de orelha murcha: — 0 pai como estd? Quando volta? — perguntou Ana, mal entrou no quarto e deu um beijo & me, — E uma chatice, filha ... — respondeu a mae. — Parece que o pai vai ter de ficar pelo menos até ao fim da semana ... Tem tide uma febre que ndo hd meio de Ihe passar, os pontos infectaram Temos de ter paciéncia! — disse, fazendo festas aos dois. ‘Ana e Luis entreolharam-se, perplexos. Contavam ou ndo & mde as cenas com a tia Emilia? pior foi que a Ana no se aguentou mais e, de repente, desatou a chorar. — Sabes? — disse o Luis, muito aflito com a possivel reaccio da me. — Temos tido problemas com a tia Emilia ... Foram la uns policias e ela nao levou a bem que nés ajuddssemos ... Para espanto dos dois, a me no ligou grande importancia ao caso. Até se esforcou por acalmé- los, explicando-Ihes que a tia era uma dptima pessoa, mas que tinha sido educada numa época em que as criangas nao tinham voz activa em quase nada. E ficou toda orgulhosa com o desembaraco dos filhos, Recomendou-Ihes que, se por acaso os policias voltassem, Ihes dissessem que 0 pai ndo estava ainda em condigdes de receber ninguém. — Porque no vo os quatro dar uma volta por Lisboa? — propés aos mitidos, & laia de consolo, quando a hora da visita se esgotou. E olhou intencionalmente para a mae dos gémeos. — Boa ideia! — disse logo esta. — Preciso de ir ao Eduardo Martins ver se os tecidos que ‘encomendel j chegaram! — Vamos ld me! Enquanto procuras os teus tecidos, nds passeamos na Balxa! — Optimo, vamos ver as montras! — Vamos comer bolos aquelas pastelarias chiques da R. Garrett! — Bolos? Vamos mas & comer uns geladinhos! — diziam os dois gémeos, a0 mesmo tempo. ~ Eu quero ir ao Chiado ver o bazar! — E no Grandella? Também hd brinquedos no Grandella! A D. Isabel deixou-os em frente & Brasileira, com a promessa de que dai a hora e meia se encontravam ali todos para lanchar. — Vamos antes ao elevador de Santa Justa! — propés a Ana, — Ora, que ideia! — responderam os gémeos. — Vai tu sozinha e depois contas-nos como é! Temos coisas mais importantes para fazer! — Va, no sejam chatos, ou vamos todos ou nao vai ninguém. E um instante e a seguir vamos aos gelados e ao Grandella — propunha a Ana. — Tu eas tuas paixées pela Histéria — resmungou 0 Filipe. — N&o te parece que hd coisas melhores para fazer do que olhar para monos? Era verdade que a disciplina preferida da Ana era a Histéria. No mais fundo de si mesma até j8 tinha decidido que seria esse 0 curso que tiraria quando fosse grande. — Nao sejam chatos! — repetiu a Ana, — Sabiam que o elevador sobe até as ruinas de um convento que foi arrasado durante o Terramoto? — A sério? — trogou o Filipe. — E ainda se véem as pedras a abanar? E a terra a tremer? — Que engracadinho! Sabias que hd uma linha de eléctrico que entra pelo convento dentro? — Nao pode ser! — Pode pois! Era para levar os frades a passear! — exclamou 0 Nuno a rir. — Ou as freiras — juntou o Filipe, rendendo-se & ideia. — Se calhar eram frades e freiras! Era mais divertido, tém de concordar! Todos a passear de eléctrico pelo convento fora! — E, e de vez em quando davam uma escapadela até a cidade ... pelo elevador! — Era mas era para as pessoas perseguidas se refugiarem mais depressa dentro do Convento! — disse o Luis, sonhador. — &s doido! Que histéria é essa? — Estés a brincar connosco? — Nao estou ndo senhor! Vocés nao sablam que na Idade Média os conventos funcionavam como uma espécie de embaixadas? Tinham poderes especiais ... Se alguém andasse fugido nao o podiam prender se se refugiasse dentro dum convento. — Olha o grande sabich3o! — Grande sabicho coisa nenhuma! — exclamou a Ana, que andava sempre & compita com o irm&o. — Vocés nao tém seguido aquela série medieval, na televisio? Toda a gente sabe que os frades tinham um poder enorme na época! Ainda por cima eram as Unicas pessoas que sabiam ler e escrever! E tinham muitas terras e dinheiro! — concluiu com um ar importante. Riram todos, imaginando frades e freiras & mistura com uma histéria de policias ¢ ladrées, numa perseguicgao de eléctricos, correndo a desfilada pelos corredores do convento, JA todos queriam ir vé-lo. — 0 Convento esté todo em ruinas e fica num larguinho ... N&o me lembro é do nome! — Perguntamos, ora essa! Estimulados pela imaginagéo, jé todos queriam agora ver o Elevador e o Convento, Daf a dez minutos trepavam na direccao das ruinas do Carmo, Estava uma tarde fria para Abril, mas muito luminosa, e as ruas estavam cheias de gente. No Convento alguns turistas tiravam fotografias as ruinas, ao Elevador e & vista soberba do casario que se espraiava até ao Tejo. Mesmo pegado & igreja havia um quartel e, & entrada, no passelo, um guarda de espingarda ao ‘ombro, parecia petrificado, Havia uma grande quantidade de pombas por toda a praca e algumas, impassiveis, passarinhavam sua volta “Se calhar julgam que é uma estétua", pensou a Ana. Mas logo a seguir deu uma gargalhada porque uma das pombas, sem respeito nenhum pela autoridade, Ihe deixou cair uma grande porcaria mesmo em cima do nariz. Atras de si, como um eco, ouviu outra gargalhada! Voltou-se, surpreendida, Era a m&e dos gémeos que, por acaso, passava por ali e se divertia observando a cena — Nem de propésito! — exclamaram as duas, em coro. E foram chamar os outros para virem apreciar a cena do homem, muito aflito, a limpar-se o melhor que podia, tentando mexer-se 0 Depois de uma lancharada na Brasileira, em que se atafulharam de refrescos ¢ croissants, foram ainda aos sorvetes, A mae dos gémeos estava satisfeita com o resultado da sua ida A tal loja, porque, além dos tecidos que encomendara, ainda arranjou um pano para cortinas que ela definiu como sendo uma “preciosidade" por ser ao "preco da chuva" Voltaram para casa mais animados. Quando o Luis e a Ana tocaram & campainha, jé meio esquecidos das esquisitices da tia, estranharam ela no vir abrir-Ihes a porta. Ter-se-ia ido embora? Tocaram uma e outra vez. Mas ninguém respondia. A casa parecia deserta. continua>>> Indlusdio: 29/04/2020 <<< indice L. A. & C2 no meio da revolucao Texto de Maria Mata Ilustragées de Susana Oliveira Outro assalto — Ora esta! — dizia a Ana muito espantada — Talvez tenha ido as compras! — dizia o Nuno. — As oito horas da noite? As lojas esto fechadas desde as sete! — Talvez tenha ido a casa de um vizinho ... — A minha tia no conhece aqui ninguém, o que ia ela fazer para casa de um vizinho? — Ou entéo foi-se embora ... Tanto se chateou connosco que decidiu voltar para casa! — N&o me parece que a vossa tia fizesse uma coisa dessas sem avisar — disse a D. Isabel. — 0 mais natural & que tenha havido qualquer imprevisto que a fez sair de casa. Mas, de repente, 0 Luis colou 0 ouvido & fechadura. Parecera-Ihe ouvir uma espécie de gemido. — Esté alguém dentro de casa. E a gemer! Fez-se um grande siléncio no patamar e puderam com efelto ouvir um barulho. Pareciam gritos muito abafados. Olharam uns para os outros. — Vou ja chamar a policia e os bombeiros! — disse a me dos gémeos, muito aflita, procurando as chaves de casa dentro da carteira Mas o Nuno, sorrateiramente, sem a me se dar conta disso, tirou 0 jornal que ela trazia na mao entrou em casa, logo atrés dela. Passaram dois minutos e ouviu-se, dentro da casa do Luis e da ‘Ana, a sua vozinha aflautada: — 34 cd estou dentro! Abro-vos jé a porta! Os outros entreolharam-se, mudos de espanto. — Avancei a varanda! Eu sabia que a porta da cozinha tem sempre a chave por dentro. Meti o jornal por baixo da porta, empurrei a chave com esta caneta — e mostrava uma esferografica com a ponta toda roida. — Foi facilimo! A chave caiu em cima do jornal. Puxei-o para fora, abri a porta e .. aqui estou! ‘A mée, entretanto, ouvira barulho e voltara para trés. Naquele momento parecia indecisa entre pregar-Ihe um tabefe ou dar-Ihe um grande e orgulhoso beljo. Entraram todos. Os gemidos vinham da zona da cozinha, Ninguém! © Luis tentou abrir a dispensa. Era de Ié que vinham os gemidos! A porta estava fechada & chave. Mas a chave nao estava na porta! No meio da atrapalhago, acabaram por encontra-la, caida, debaixo da mesa da cozinha! Foram dar com a pobre tia Emilia, sentada no cho a um canto da dispensa, amarrada de pés mos, e com a boca tapada por um adesivo, Estava roxa de tanto gemer e tinha marcas nos bragos nas pernas do esforco que fizera para se libertar das cordas que a atavam. Foi-Ihe muito dificil pér- se em pé depois de tantas horas de posigio forcada “Aposto que os ladrdes @ amordacaram porque ndo a aturaram", pensou o Filipe. "Imagino-a a barafustar: — Esto a desarrumar tudo! Nao ha direito de assaltar casas de gente honesta! Quando vier 0 Dr. Barroso, vai-lhes dizer!" e um sorriso irénico desenhou-se-Ihe nos labios. Mas os sobrinhos, esquecidos das confusées da véspera, estavam cheios de pena dela. ‘Ajudaram-na a deitar-se no sofa da sala ¢ a Ana foi buscar uma pomadinha e esfregou-a, com muito cuidado, nos pulsos e nos tornozelos da Tia. O Luis, tinha ido buscar um cobertor para a aconchegar. ATia Emilia acabou por sorrir. — E agora? — disse de repente muito aflita. — Nao pude fazer o jantar! No hé nada para vocés ‘comerem! Os mitdos olharam uns para os outros, espantados. Parecia impossivel como é que uma pessoa que acabava de sair de um pesadelo daqueles, a primeira coisa de que se lembrava, depois de tudo ter passado, era que no tinha conseguido fazer o jantar! — N3o tem importancia, Senhora Dona Emilia — disse 2 m&e dos gémeos. — Eu vou arranjar qualquer coisa para comer e de certeza .. — Meu Deus! Vio depressa ao escritério do vosso pail — gritou de repente a tia, interrompendo a D. Isabel. — Acho que eram os papéis dele que eles queria! Devem ter posto tudo em pantanas + Pelo barulho que faziam! — e comegou a solucar, nervosissima Correram todos para o escritério, A confusdo era indescritivel. Havia papéis espalhados por todo © lado. As gavetas, no cho, viradas do avesso até ao forro. Tinham despejado tudo 0 que poderia conter 0 minimo papel. Um cofrezinho de embutidos que o Dr. Barroso tinha em cima da secretéria, a0 pé das fotografias dos filhos, tinha sido estroncado. Até as fotografias tinham sido separadas dos caixilhos. — Acham que eles encontraram o que queriam? — perguntou a Ana, quase a medo. — Se no sabemos 0 que eles queriam! — Agora sé 0 Dr. Barroso pode saber ... — murmurava a D. Isabel, abanando a cabeca. Depois de passados os primeiros momentos, comecavam a sentir-se muito desalentados. Quando acabaria tudo aquilo? Via-se pelo caos em que o quarto ficara que tinha sido uma busca muito precipitada e desordenada. — Com toda a certeza que estiveram Id fore 8 espera que nés salssemos — disse @ mée dos gémeos. — Ea seguir subiram ... grandes patifes! Atia Emilia, a coxear, tinha-se levantado do sofa e, do limiar da porta, assistia & cena, fungando, com um enorme lenco amarfanhado encostado ao nariz, — Foi isso mesmo! Mal vocés sairam, tocaram & porta dois homens. Eu vi-os pelo éculo € pareceram-me os dois policias que cé vieram ontem ... — Saiu-Ihes a sorte grande ao serem confundidos com os policias! — Sim, deviam vir preparados para forcar a fechadura! — Abri a porta — continuou a tia Emilia — e nem tive tempo para dizer nada, Agarraram-me e taparam-me a boca com um pano himido. Devia ter qualquer coisa que me fez desmaiar ... Quando recuperei os sentidos, estava amarrada de pés e mos, dentro da arrecadago. Nao tinha a nocdo das horas, claro, porque nao sabia o tempo que tinha ficado inconsciente ... Mas ainda cé estavam quando acordei, disso tenho eu a certeza. Ouvia-os a falar, mas nao percebia nada do que diziam .. — Mas 0 que é que eles querem mais? Nao roubaram j tudo 0 que queriam? — Pelos vistos parece que nao ... — Isso s6 0 teu pai pode dizer! Ele é que sabe o que tinha dentro da pasta! — Grandes patifes! — 0 melhor é ligar jé para a policia! = Claro, claro! Mas a tia Emilia nao se calava — Depois, sempre que ouvia passos nas escadas, eu berrava o mais que podia, mas era muito dificil ouvirem- me com a boca assim tapada ... Até que, gracas a Deus, vocés chegaram e eu fiz um esforco desesperado para me fazer ouvir ... escutava as vossas vozes, mas vocés no ouviam os meus gritos ... — Deixe Id tia Emilia, j8 passou — Agora vamos mas é ligar para a policia! Ndo pense mais nisso! — N&o me perdoo por Ihes ter aberto assim a porta ... Devia ter olhado com mais cuidado ... — Continuava a pobre senhora, muito chorosa. — J4 passou, senhora dona Emilia, j4 passou ... — repetia a D. Isabel, enquanto, ao telefone, aguardava o contacto com a esquadra da zona — E os policias que ca estiveram? Eles deixaram ai o telefone deles para o caso de nos lembrarmos de mais alguma coisa! — lembrou-se de repente o Luis. — E verdade, vamos telefonar-Ihes também — respondeu a Ana, olhando de soslaio para a tia Emilia. — Isso, isso, telefonem jé — disse a senhora, para espanto de todos, menos da mae dos gémeos, que nao estava nada a par das confusées da véspera continua>>> Incluséo: 29/04/2020 <<< indice L. A. & C2 no meio da revolucao Texto de Maria Mata Ilustragées de Susana Oliveira Um plano astucioso No dia seguinte, mal a hora da visita chegou, la estavam os quatro & cabeceira do Dr. Barroso. Tinha melhorado muito desde a véspera e por isso puderam contar-Ihe tudo o que se tinha passado ‘em casa, na tarde anterior. ‘A me do Luis e da Ana ficou muito aflita por causa do susto que a tia Emilia tinha apanhado, e quis saber com todos os pormenores 0 estado em que a casa tinha ficado depois do assalto. Sé sossegou quando os filhos a convenceram de que nada tinha ficado estragado, a nao ser o cofrezinho, que estava em cima da secretéria do pai, — Pobre tia Emilia! — dizia a mae. — Nao deve ter ganho para o susto! Ainda por cima jé com aquela idade! — Deixa Id, mae! — dizia o Luis, com um ar divertido, — Eu até acho que the fez bem! Desde ontem no parece a mesmal — E verdade! — repetia a Ana, — E espantoso como ela mudou! Hoje de manha, até me deu um beljo, antes de eu ir para as aulas! — E ontem tivemos um jantar divertidissimo em nossa casa! — dizia um dos gémeos. — Depois daquela complicagéo toda, ainda foi ela que fez a comida e ndo consentiu que a minha mde a ajudasse! — Ea mie toda aflita por no ter conseguido ir ao supermercado! Ela fez uns ovos maravilhosos recheados de quase nada! — Ora essa! Era fiambre que eu ful buscar & pastelaria, meu cabeca de atum! — E verdade, até lambemos os beicos! — Eu bem vos dizia que ela tinha bom coraco ... — repetia a me. — Ainda bem que no meio de tanta confusao aconteceu alguma coisa boa! Depois da avalanche de conversa dos filhos e dos gémeos a quererem contar tudo ao mesmo tempo, o dr. Barroso comecou a ficar preocupado: — 6 Isabel! 0 que ¢ que acha disto tudo? Tem alguma ideia? — Eu?! Eu estou completamente as escuras. Alids eles j4 contaram tudo ... Nao hé nada a acrescentar! © Dr. Barroso cocou a cabega e tossiu um pouco. Estava muito desanimado: — N&o compreendo nada. Primeiro, atacam-me e levam-me a cépia da investigacdo que eu tinha entregue aos franceses. Hoje assaltam-me a casa e levam ... nem sei o qué! © Luis queria perceber methor: — © pai! Mas afinal que investigagio era essa? E 0 que é que os franceses tém a ver com a investigacao? — E muito simples — respondeu o pai, sentando-se na cama, enquanto a mae Ihe compunha as almofadas. — Nés estamos a trabalhar com 0 C.E.A., que é 0 Comissariado Francés para a Energia ‘Atémica. Eles mandam-nos os registos do funcionamento de uma central nuclear, em bandas magnéticas. S80 indicacdes sobre a temperatura, as vibracdes, as radiaces e outros valores medidos na central francesa. O nosso trabalho é estudar estes registos, em computadores, para descobrirmos defeitos de funcionamento que ainda esto no inicio, mas que podem tornar-se muito Graves, se ndo forem corrigidos a tempo. O que os ladrées levaram foi o estudo que nés tinhamos acabado de fazer. — Mas entdo o teu trabalho é muito importante! — interrompeu a Ana. — € importante, é! — continuou o pai. — & até apaixonante saber-se que se esté a trabalhar para prevenir grandes desastres! E claro que hd uma grande competicdo internacional sobre estes assuntos e os americanos bem gostariam de saber como funcionam as centrais nucleares francesas, mas... — E como é que sao essas bandas magnéticas de que falaste? — perguntou o Luis muito interessado. — So uma espécie de impressdo digital do funcionamento da central nuclear: estd |é tudo. E uma grande responsabilidade lidar com estes segredos todos. Foi por isso que eu nunca vos falel sobre este trabalho ... mas agora que esté nas mos dos ladrées — Brrrrrl! Até estou toda arrepiada! — exclamou a Ana, encolhendo-se toda — Nés jd sabfamos que os americanos estavam interessados — continuou o pai. — Até jé tinham feito uma tentativa de aproximacao. Claro que ndo conseguiram nada! Temos 0 contrato com os franceses e no os podiamos enganar. £ um segredo de Estado! — E se parasses agora um bocadinho, Luis? — acudiu a mae. — O pai até estd a ficar palido, com tanta conversa! Na verdade, 0 Dr. Barroso parecia cansadissimo. A mulher ajudouro a deitar-se e aconchegou- Ihe de novo as almofadas, Os gémeos piscaram 0 alho a Ana e ao Luis: — E se féssemos ao bar comprar umas laranjadas e uns bolos? Podemos, mae? — E nao se vao perder por esses corredores fora? Isto aqui dentro é um mundo, até eu jé me perdi varias vezes! — disse a mie do Luis e da Ana, passando uma nota para as mos do filho. — Ao menos no se afastem uns dos outros! — recomendou ainda, vendo-os sair do quarto. — Temos um plano diabélico! — comegou o Nuno a dizer, mal dobraram o corredor. — Se é diabélico, 0 melhor é guardé-lo para vocés! Estamos um bocado fartos de planos mirabolantes! — respondeu o Luis. — Vamos mas é comer, que estou cheia de fome de bolinhos com creme! — disse a Ana. — Esperem sé um minuto — tornou o Nuno, teimosamente, sentando-se num banco a meio do corredor. 0 itmo apoiou-o logo: — Deixem=no falar, caramba! Lembramo-nos de uma coisa . vossa casa 34 ontem, quando assaltaram a — J4 falamos nisso tudo — interrompeu o Luis. — Mas primeiro, vamos lanchar! Estou a morrer por uma laranjada fresquinha! Os gémeos néo tiveram outro remédio sendo seguir os amigos até ao bar. A atmosfera era irrespirdvel, porque o bar era muito pequenino, e havia uma grande confusio de visitantes a comprarem coisas para os seus familiares internados no Hospital, misturados com grupos de médicos de bata branca e capa de flanela azul escura, 8 conversa. Quando, por fim, conseguiram os bolos e os refrigerantes, trouxeram tudo cé para fora e vieram banquetear-se, muito bem instalados, num banco do atrio. — 0 que é que vocés pensam desta histéria toda, afinal? — continuou 0 Nuno, mal se instalaram. — Qual histéria? — perguntou a Ana, de boca cheia, encantada com o movimento intenso 4 sua volta. — Esta histéria dos ladrdes! J4 ontem a noite nos fartémos de falar nisto. Os pais so téo parvos! Vocés acham que os tais americanos vo desistir dos planos? — Que remédio tm eles! — o Luts, distraido, olhava © fundo da sua garrafinha de refrigerante. — Caramba, acaba sempre depressa demais! Continuo cheio de sede! — Agora quem esté a ser cabeca de atum és tu! — atirou-the 0 Nuno, muito excitado. — Ougam com atengdo: Estivemos os dois a falar sobre isto. Espanta- nos & como é que os nossos pais dio o assunto por encerrado! — E, é, as vezes os adultos séo mesmo parvos — disse a Ana de nariz no ar, ja mais interessada. — Vocés acham que eles véo continuar a procurar?! — perguntou o Luis. — Claro! Mas acho que eles ja perceberam que 0 que procuram no esté na vossa casa — 0 Nuno falava como se pensasse em voz alta. — Ora essa! E porque nao? — perguntou o Luis, de repente muito atento. Mas 0 Nuno continuou, como se no tivesse ouvido o que o Luis tinha dito: — Das duas uma: ou os americanos esto interessados na investigag&o do teu pai ou entéo esto interessados nos registos de funcionamento da central francesa. Eles roubaram a investigacio do teu pai e no dia seguinte assaltaram a vossa casa ... — Por isso 0 que eles queriam era os registos da central francesa! — e o Luis, maquinalmente, completou 0 raciocinio do Nuno. — Ora ai estd! E como agora jé sabem que ndo esto em vossa casa véo procuré-los no Gnico sitio onde podem estar! Nao te lembras que os da Policia falaram em roubar a Central francesa aqui em Sacavém?! — E os planos da Central francesa esto neste momento em Sacavém! Para nés, é claro como ‘gua! Vocés ainda nao perceberam?! — Céus! Quer dizer que eles vo assaltar 0 Laboratério! — Alids estes ladrdes ndo so nada espertos. Para trabalhar nos tais registos, sé naqueles computadores gigantes do Laboratério, Para que é que o pai ia trazer aquilo para casa? — E agora? Vocés acham que eles se vo atrever a ir 14? — No conseguem entrar! Tem um guarda todo artilhado a entrada do porto! E um vigilante! — Aquilo estd controlado dia e noite! E tem alarmes por todo o lado! Acham que os americanos se atreviam a assaltar 0 Laboratério? — perguntou a Ana, com os olhos jé a brilhar. — Bom, possivel, é! A certeza, no a temas, claro — disse o Filipe. — Para termos a certeza ... no hd nada como irmos ld esta noite, espiar! — acrescentou o Irmo, excitadissimo. continua>>> Inclusdo: 29/04/2020, <<< indice L. A. & C2 no meio da revolucao Texto de Maria Mata Ilustragées de Susana Oliveira Uma noite agitada * es x % + Nessa noite, depois de um jantar em que mal conseguiram disfargar 0 nervosismo, a Ana e 0 Luis deram um beijo de boa-noite a tia Emilia e fecharam-se nos quartos a fazer horas. Quando Ihes pareceu que ela jé devia dormir a bom dormir, deslizaram pelas escadas abaixo sem fazer barulho. Tinham combinado com os gémeos encontrarem-se a entrada do prédio, Quando chegaram deram com os gémeos todos encapucados e furiosos. — Caramba, jé estavamos fartos de esperar! — Porque demoraram tanto? Que atados! — Querias que nés viéssemos com a tia Emilia atras? — Parece que os velhotes dormem menos que as outras pessoas. Nunca mais ia para a cama! — Vimo-nos a rasca para nos escondermos dos vizinhos que entravam, Estamos aqui ha horas! — Ih! Que exagero! — Bem, vamos mas é embora, que temos muito que andar — despachou o Luis. — Trouxeram as lanternas? Sairam todos para a rua. Tinham muito que andar porque 0 Laboratério nao ficava em Sacavém, mas numa localidade préxima e, mesmo indo por atalhos, mais directos do que a estrada nacional, ‘demoravam uns bons trés quartos de hora, — Brrrrr! Que frio! — Ainda nao é a altura do calor, que é que tu querias? — Aquecemos num instante, se formos ligeiros! — JA viram a Lua? Nem de propésito! Com efeito, no céu, brilhava uma Lua redondissima. Iam tao excitados pela expectativa que quase corriam, — Tenham calma! — disse 0 Luis. — Por este andar, daqui a dez minutos, estamos tao cansados que nao conseguimos chegar! A Ana quase dancava & frente do grupo. — Apetece-me levantar voo! — disse, & laia de justificaco para os pulinhos que ia dando. — Devias mas era ter ficado em casa! — Raparigas! — resmungou 0 Luis. — Olha 0 parvo convencido! Sabias que as mulheres tém muito mais resisténcia que os homens? — Ah, Ah! Deixa-me rir! — E verdade, sim senhora! Pergunta ao pal, que ele diz-te! Ea Ana, muito excitada, continuava a ensaiar passos de danga na frente do irmo, para o irritar. — Ai foi o teu pai que te disse isso? Admira-me como néo foi na Enciclopédia que descobriste tal coisa, 6 pulguinha sabichona! — Tens muita gracinha, meu menino! Que faziam vocés, seus espargos de lata, sem a minha sabedoria? — respondeu a Ana, furiosa. — Va, parem com isso! — apaziguou o Luis. — Estamos mas nervosos com esta aventura ! — E faziamos melhor em combinarmos 0 que vamos fazer quando chegarmos! — E verdade, acabamos por ndo decidir nada! — A mim parece-me que avangar 0 muro no ¢ dificil. Vim cé com 0 meu pai e reparei que hé um sitio em que a vedacio de arame foi deitada abaixo — disse o Luis. — E podemos esconder-nos nos arbustos ao pé do parque de estacionamento. Ficam logo ao pé do edificio do reactor — completou a Ana. — Vocés acham que eles conhecem as dependéncias do Laboratério? — 0 teu pai ndo disse que eles ja Id tinham ido falar?! Tinham chegado junto do muro que contornava as diversas secges do Laboratério. Dentro havia vérios pavilhdes, cada um com a sua fungao especifica: havia o pavilhdo de Fisica, 10 de Quimica, as Instalagées Piloto, uma oficina e até um pequeno pavilhdo para a Administragio. Havia ainda uma casinha miniiscula, na portaria, com um vigia e um guarda armado até aos dentes. Mas 0 edificio mais importante era sem duvida o que albergava o reactor nuclear. Os quatro, durante as férias, gostavam de acompanhar o Dr. Barroso nas suas idas ao Laboratério e tinham admirado a maravilhosa luz azul que se desprendia dos blocos de uranio colocados no fundo do tanque cheio de dgua e os gabinetes, com paredes de vidro. O Dr. Barroso trabalhava ai, num magnifico computador que ocupava uma parede inteira, chelo de botdes, tomadas e luzinhas faiscantes. — Vamos a isto! — sussurrou o Luis. — E melhor apagarmos as lanternas, a cautela — disse um dos gémeos. Tinham contornado o muro na direccdo do tal buraco na vedagéo. Foi-Ihes facil, pondo um pé aqui, outro ali, subir 0 muro e deixarem-se escorregar pata o lado de dentro. Os gémeos ainda tentaram ajudar a Ana, mas ela, ofendidissima, recusou qualquer tipo de ajuda. Era dgil como um gatinho pequeno, e 0 treino adquirido nas aulas de Ginastica vinha mesmo a calhar para aquela situagSo. Deslizaram os quatro, com o coragdo aos saltos, até a0 edificio do reactor. Ao pé havia uma zona de arbustos muito densos onde podiam esconder-se com seguranca. — Ficamos aqui! — Ok.! Parece-me que aqui estamos bem! = Que calor! — Estou a transpirar de nervoso! — Que chatos! Nao fagam barulho! — E se 0 soldado resolve vir passear? — Alguém consegue ver as horas? Mas era dificil, mesmo com a Lua Cheia, ver fosse 0 que fosse, porque a vegetacao tapava tudo. Nao tiveram que esperar muito. De repente, ouviram a entrada da cerca, 0 ruido de um motor que abrandava e voltava logo a acelerar na direccdo deles. 0 coragdo ameacava saltar-Ihes do peito. continua>>> Inelusdo: 29/04/2020 <<< indice L. A. & C2 no meio da revolucao Texto de Maria Mata Ilustragées de Susana Oliveira Raptado o30 Um carro aproximou-se devagar do edificio do Reactor e parou em frente do macico de arvoredo onde se encontravam os mitdos. — £0 carro do tio Lima! — exclamou o Filipe, tio espantado que se esqueceu por completo que no podia falar alto. © tio Lima era um primo afastado da mae dos gémeos, vinha jantar multas vezes a casa deles e, por coincidéncia, colega de trabalho do Dr. Barroso. Nunca casara e nao tinha filhos, por isso tinha uma predileccio especial pelos gémeos. — N&o pode ser! No escuro os carros parecem-se todos uns com os outros! — o Luis, aflitissimo © em surdina, tentava acalmar as hostes. — E tu és um nabo! Até parece que nao percebes nada de automéveis! E 0 carro do tio Lima, pois! — 0 Filipe, excitadissimo, mal podia conter 0 tom de voz. Do carro saia, naquele momento, um sujeito alto, de bigode, barba e cachimbo. Nao havia duividas, Era 0 Eng. Lima. 0 Filipe nfo aguentou mais, Saiu do esconderijo e correu na direcco do tio. Mas, de repente, estacou. E que por tras do bigode, da barba e do cachimbo parecia estar uma cara que nao era a do tio! Nao teve tempo de reflectir; sentiu uma dor, levou a mo & cabeca, deu uns passos atrés e caiu no cho, desmaiado, por sorte atrés de outro arbusto. Os outros trés tinham assistido a tudo sem poderem fazer nada. Quando o Filipe correu para aquele que parecia ser o Eng. Lima, saira do outro lado do carro um individuo gordo e baixinho que, por trds, the aplicara um valente golpe na cabecal Mas 0 Nuno, ao ver o irmio cair, desamparado, no meio das ervas, no aguentou e correu em seu socorro. Foi logo apanhado pelo individuo gordo! Era evidente que o tinham confundido com o irmao, caido atrés do arbusto, Agarraram-no, taparam-Ihe a boca com um lenco e enfiaram-no dentro da mala do carro. Foi tudo tao répido que o Luis e a Ana ficaram imobilizados pelo medo. Houve um momento de hesitacdo entre os dois homens. Falavam em voz téo baixa que era impossivel perceber-se 0 que eles diziam. O "Eng. Lima” ainda se dirigiu para os arbustos, fazendo girar uma lanterna em virias direccdes, mas desistiu quase logo. Ere evidente que dispunha de muito pouco tempo e qualquer manobra mais ruidosa poderia chamar a atengao dos guardas que estavam ali, a muito poucos metros de distncia. Os mitidos, esses, sentiam-se quase transformados nos arbustos em que se escondiam. Até Ihes parecia que tinham deixado de respirat. Entretanto 0 suposto tio dos gémeos deslizara até ao edificio do reactor e, servindo-se de uma gazua e da lanterna, abrira com facilidade a porta principal. O gordo sentara-se outra vez no carro e acendera um cigarro, enquanto esperava. Notava-se que estava muito atento aos barulhos que vinham da mala do carro. Era 0 Nuno que estrebuchava 0 mais que podia mas, sozinho, néo conseguiria soltar-se. Atrés das moitas, nenhum deles sabia o que fazer. Estavam demasiado afastados uns dos outros para poderem planear qualquer coisa e, também, muito assustados e chocados com a situaggo. Era evidente que aquele desconhecido alto que desaparecera dentro do edificio no era o Eng. Lima, que conheciam tao bem, ‘embora no escuro parecesse igual. Quem seria?! Entretanto, trazendo uma pasta, o "Tio-Engenheiro", safa agora do edificio. Trocou algumas palavras com 0 outro sujeito, voltou atrés para fechar a porta, deu a volta ao carro para se certificar que a mala estava bem fechada e 0 carro arrancou na direccSo da Portaria. Ouviram-no abrandar e de novo acelerar, desta vez a toda a velocidade. Depois fez-se um siléncio total. — Filipe! Estas af, p&?! — era a voz do Luis, que saia, abafadissima, do meio de um cedro. — Meu Deus! Que fazemos agora?! Nem consigo acreditar no que aconteceu! — a vozinha da Ana também soava muito esquisita. E nao me consigo mexer! — gemeu. — Tenho o corpo todo a dormir! © Luis fol o primeiro a sair do meio dos arbustos. Se houvesse um pouco mais de luz, a Ana teria apanhado um susto porque 0 irmao no aparentava ter pinta de sangue. Nao conseguia sequer articular palavra. Parecia hipnotizado. — Tens a certeza que ndo estamos a sonhar? — a voz da Ana tremia. Aproximou-se do Filipe € ‘comecou a limpar-Ihe a roupa das folhas. "E agora?" Diziam os olhos da Ana, procurando o irméo. No conseguia dizer mais nada. Sentou-se no cho, pés a cabega do Filipe no seu colo e comecou devagarinho a esfregar-Ihe a cara com as duas mos. Aos poucos 0 Filipe parecia voltar a si — Filipe! Filipe! — chamaram os dois. — Estés melhor? — Tenho a certeza que nao era o Tio Lima ... — respondeu 0 amigo a guisa de resposta, com uma voz muito fraquinha. — Se fosse ele no me deixava cair, Mas 0 que é que me aconteceu? Onde .+ onde esté 0 meu irmao? Onde estd 0 Nuno? © Luis ajudou-o a levantar-se e passou 0 braco do amigo sobre o seu ombro — Aconteceu uma coisa terrivel — gaguejou. — Parece ... Parece ... © teu irmao foi raptado pelos bandidos! — e segurou-o com mais forca porque o Filipe ameacou cair outra vez. — Mas nés vamos liberté-lo, esté descansado! — acrescentou a Ana, recuperando 0 félego © ajudando o irmo a segurar o Filipe. — Olhem ... ali! — e © Luis apontou para um ponto no chao. No sitio em que o carro parara estava um bloco pequenino, daqueles de apontamentos, meio amassado. — Vamos levd-lo! — disse a Ana. — De certeza que tem impressées digitais! — Sim, de certeza que é deles! Deve ter caido do bolso do gordo quando ... — ¢ 0 Luis nao teve coragem de acabar a frase, porque a cara do Filipe metia pena. Precipitaram-se para o bloco. Assestaram as lanternas e com a ajuda do luar puderam ver que era um bloco vulgarissimo, meio sujo © a que faltava j4 grande parte das folhas. Naturalmente, uma das rodas passara-lhe por cima, porque se notavam as marcas do pneu. — Azar! Nao tem nada escrito! — continuou o Luis, folheando o bloco. — Todo em branco! — Nao faz mal! Entregamo-lo & policia! — A policia? Aqueles inteligentes que andaram Id por casa e nao descobriram nada? Vamos mas é procurar nés as impressdes digitais. (Os gémeos tém umas poucas de lupas. — concluiu o Luis. — 0.K., vamos depressa para casa e, quando chegarmos, pensamos melhor no que havemos de fazer! — disse o Filipe. — Tenho a certeza que aquele bloco nos vai dar uma pista! Vals ver, vai ser a nossa salvacio! — a Ana, j4 mais calma, tentava, sem saber muito bem como, animar o Filipe, — Que bestas! — articulou este, por fim. 0 sangue comegava a voltar-Ihe a cara. — Que raio de plano diabélico! Chegarem ao ponto de se fazerem passar por outras pessoas ... Mascararem-se assim! Grandes brutos! Por uma porcaria duns papéis velhos! Corriam agora pelo mesmo atalho por onde tinham vindo. Depois do enorme abalo que todos tinham sofrido, a corrida fazia-os sentir vivos e voltavam a si. Filipe parecia ter recuperado e corria um pouco mais a frente. Tinha perdido a lanterna e os outros dois ouviam-no falar sozinho, sem parar, deixando escapar palavrées. De vez em quando, viam-no lutar com um adversario invisivel, dando murros e pontapés no vazio. — Deixa Id, faz-Ihe bem ... a0 menos vai desabafando — disse o Luis, segurando a irma. — Tens razo, claro, mas faz-me tanta pena ... Coitado do Nuno! Onde estard ele agora? E como se sentir? Tomara que no the fagam mal! — Vocés acham que podemos descobrir quem so aqueles bandidos pelas impressées digitais? — © Filipe voltara-se de repente para trés enquanto corria. Parecia que no ia a dar ouvidos a conversa dos outros dois e, afinal, saia-se com aquela. — Claro, claro, de certeza! — responderam, 8 uma, 0 Luis e a Ana Estavam jé muito perto de casa. As ruas pareciam adormecidas mas, estacionado quase a porta do prédio deles, um carro atroava os ares com o radio, ligado muito alto, Dentro, duas pessoas conversavam. — Como é que se pode namorar assim, com 0 radio aos berros? — interrogou-se Ana, entrando em casa. Mas, os trés amigos, ainda puderam ouvir o antincio do sinal hordrio, que saia muito distintamente de dentro do carro: "Faltam cinco minutos para as vinte e trés horas" continua>>> nclusio: 29/04/2020 <<< indice L. A. & C2 no meio da revolucao Texto de Maria Mata Ilustragées de Susana Oliveira Uma descoberta... espantosa tf © Filipe tinha um grande galo na cabega e um ar muito cansado, quando chegaram a casa. Apesar disso, os trés combinaram encontrar-se na garagem, apés uma passagem rdpida pelas respectivas casas, sé para se certificarem que nao havia novidade. © Luis e a Ana chegaram primeiro porque nem tinham precisado de passar da porta. O quarto da tia Emilia ficava muito perto da entrada e ela ressonava tao alto que, com o resto da casa todo em sil€ncio, até se ouvia ca fora, no patamar. Se fosse noutra altura este pormenor teria provocado aos dois um forte ataque de riso mas, naquele momento, apenas fizeram tudo para se despacharem o mais rapido possivel, pelas escadas abaixo. © Luis guardara 0 bloco no fundo do bolso. — Claro! — disse, de repente, a Teresa como se falasse consigo propria, Foi facil mascarar-se de Eng. Lima ... Ele esté sempre de cachimbo ao canto da boca. Sé foi preciso roubar o carro e por uma barba e um bigode posticos! — Tu no sabes se eram verdadeiros! Se calhar deixou crescer a barba para poder dar o golpe ‘com mais seguranca! — Ea cor do cabelo? Se aquele era o tal americano de que o pai falava, era loiro de certeza! Os americanos so todos loiros! verdade! No escuro nem reparamos na cor do cabelo ... mas de certeza que aquele nao era ‘© americano que o pai conheceu ... Quem dé estas golpacas nunca sao os chefes ... Este devia ser 56. um pau mandado! — E verdade, nao me tinha lembrado disso ... 0 que me espanta é como o seguranca nao deu por nada ! — Ora, 0 seguranca! Aquela hora da noite ja devia estar meio a dormir! Deu la por alguma coisa! — Claro! Viu 0 carro do meu tio e pronto! Que raio de seguranca é esse? — exclamou o Filipe que entretanto também chegara. Trazia umas poucas de lupas no bolso das calcas. — La por cima no hé novidade ... a mae esté a dormir. Se ela sonhasse o que esté a acontecer ... — concluiu quase sem voz. — E tu, jd estés melhor? — perguntou a Ana, maternalmente. — Puseste alguma coisa no galo? Déi-te muito? — Estdvamos & tua espera para examinarmos o bloco ... Vais ver que vamos encontrar as marcas dos dedos! Trouxeste aquela lupa que o meu pai até disse que era quase um microscépio? Como resposta, Filipe passou a Ana uma pesada e espessa lupa. O Luis tinha trazido para cima da mesa de ping-pong um candeeiro de pé, que colocou junto ao bloco, provocando um foco de luz muito intenso. © Filipe, novamente muito palido, roia as unhas, enquanto o Luis e a Ana observavam atentamente o bloco, olhando ambos pela lupa. — Temos de conseguir, temos de conseguir, temos de conseguir ... — repetia baixinho a Ana por entre dentes. 0 Filipe, impaciente, também quis espreitar e, sem querer, comegou a empurrar o candeeiro — Mau! Se néo consigo ver nada! — protestou o Luis. — E eu? Quero ver! Afinal, nao fago nada? Sou o principal interessado ou nao? — 0 Filipe fazia um grande esforgo para nao chorar. nenhum — e 0 Luis deu-Ihe uma palmadinha nas costas, {—TEPETE Ty 8 laia de afago. sea — Espera, espera! — gritou de repente a Ana. — Estou a ver uma coisa .. — Tu deves estar é doida! A folha esta toda lisa e Se branca! — Nao, nao, olha! Largo do Ca ... Largo do Ca .. Os outros dois, completamente surpresos, no percebiam nada 0 Filipe, numa pilha de nervos, agarrado ao pé do candeeiro, continuava a fazer oscilar a sombra projectada no bloco. — Estou a ver, estou a ver! — gritou de repente 0 Luis. — Largo do Ca... 18 yess LX soo. N&O vés, Filipe?! Olha por aqui! © gémeo até tremia. Estava to nervoso que néo conseguia ver nada. Sé Ihe apetecia fugir dali, a correr, ¢ ir ter com o irm&o, nem que ele estivesse no fim do mundo. — Nao vejo nada ... balbuciou, desconfiando que os outros dois tinham inventado aquela histéria 6 para o consolar. De facto, nada tinha sido escrito naquela primeira folha suja e amassada, mas, na anterior, que tinha sido rasgada, alguém escrevera, talvez com uma esferogréfica e riscando com muita forca, uma direcio que ficara gravada na folha de baixo. Algumas letras percebiam-se muito bem a luz rasante da lampada. — Espera, espera — disse o Luis. — Se pusermos a lampada na posigio certa e com a lupa grande, é canja! E ao fim e ao cabo ... para que queriamos nés as impressées digitais?

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