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Artigo - O Silenciamento Da História Na Obra Estorvo - ENDY BARRETO
Artigo - O Silenciamento Da História Na Obra Estorvo - ENDY BARRETO
ABSTRACT: The present work aims to analyze the silencing of History and its effects on the
construction of the novel Estorvo (1991), by songwriter and writer Chico Buarque de
Holanda. This work proposes to read Estorvo (1991), observing, in the plot of the work, the
multiformity of time, the dilution of identity and problematic family relationships. The plot
revolves around the anonymous character's escape story, in a mix of dream/nightmare and
reality, based on the vision of a stranger on the other side of the apartment's emblematic
“peephole”. Thus, the narrative of Estorvo springs from the vision, imagination and memory
of the narrator-character, in the midst of an existential and moral crisis. This research seeks
answers to the puzzles of the Buararchian text, following the narrative steps, trying to
decipher the signs: the words, images, symbols and allegories presented in the novel. For that,
the theoretical thoughts of Seligmann-Silva are used, regarding the dialectical interaction
between memory and history; Orlandi, for dealing with silence and silencing, as well as the
works of Carli, Briseno and Rebello, which channel his attention to recurrent aspects, such as:
the dilution of social strata, the multiform time, the problematic family relationship and the
dilution of identity.
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A edição utilizada neste trabalho é a de 2004.
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1. INTRODUÇÃO
Chico Buarque era um homem de seu tempo e, portanto, seu discurso, sua obra
estarão impregnadas das marcas do momento histórico em que viveu. Chico não
nasceu Chico, ele se fez Chico a partir dos elementos sociais que o cercavam
(MARTINS, 2005, p. 7).
número de suas produções. Entretanto, esse artista tímido e genial não sucumbiu com o fim
das duas décadas de terror em solo brasileiro. Ele continuou a produzir, mas suas produções
adquiriram uma nova ótica, como explica Maia (apud MALARD, 2006, p.151):
A partir da década de 90, Chico Buarque passou a dedicar-se mais à obra romanesca,
produzindo três grandes romances: Estorvo (1991), Benjamim (1995) e Budapeste (2003),
transformados posteriormente em trilhas cinematográficas. Esses romances problematizam a
questão identitária e mostram a solidão das personagens no frenesi das grandes cidades
(REBELLO, 2006).
A produção de Chico, segundo Paraizo (2005), é, sobretudo, urbana. Na cidade, as
tramas se “desenrolam” 2
e apresenta-se a outra realidade do país, com pessoas vulneráveis,
cheias de dúvidas e sem perspectivas, revelando a amargura e a desilusão, após os anos da
ditadura. São indivíduos definidos por Rebello (2006, p. 37) como “homens frágeis e
debilitados diante da vida, sem possibilidade heróica”.
Rebello (2006, p.15) caracteriza os protagonistas dos romances buarqueanos como
“eus à deriva, isolando-se ou perdendo-se no labirinto das grandes cidades. Homens buscando
referências sob a face perdida, mas ao invés de sentido encontram ruínas e um grande vazio”.
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O “desenrolar” nesse contexto é usado como o local onde a história acontece e não como o desemaranhar de
todos os problemas, com a finalidade de dar um final feliz à trama.
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Desse modo, com esta pesquisa busca-se analisar o silenciamento da História e os seus
efeitos na construção do romance Estorvo (1991), observando, no enredo da obra, a
multiformidade do tempo, a diluição da identidade e as relações familiares problemáticas,
tendo em vista que a narrativa brota da visão, da imaginação e da memória do narrador-
personagem, em plena crise existencial e moral. Portanto, busca-se, nesta pesquisa, respostas
para os enigmas do texto buarquiano, seguindo os passos narrativos, procurando decifrar os
signos: as palavras, as imagens, os símbolos e as alegorias apresentadas no romance.
2. DESENVOLVIMENTO
Estorvo, objeto de análise deste trabalho, é o primeiro romance produzido por Chico
após a ditadura militar. Ele é lançado 17 anos depois de Fazenda Modelo e é uma obra de
onze capítulos, todos sem títulos, e com personagens anônimos. Seu enredo inicia com a
descrição do protagonista atordoado pela presença de um homem à sua porta, homem esse de
quem ele não se lembra muito bem. Durante a tentativa de buscar na memória a figura do
visitante, a campainha toca novamente e, quando ele se aproxima da porta, tem a impressão
de estar sendo observado, por que o “olho mágico” parece posto ao contrário. Esse fato
desencadeia a fuga insana do protagonista durante toda a obra.
Vestindo-se rapidamente, ele começa a perseguir o seu “observador”. E, abruptamente,
passa de “perseguidor” a “perseguido”. Sentindo-se encurralado, ele vai à casa da irmã
milionária e lá chegando, como de costume, recebe mais uma ajuda financeira. Ao anoitecer,
dirige-se para o sítio da sua família, local invadido por menores delinqüentes e plantadores de
maconha. Pela manhã, um grupo de rapazes motoqueiros expulsa-o de lá, fazendo-o dirigir-se
novamente à cidade. E, uma vez lá, vai à loja do shopping onde trabalha sua ex-mulher. Ao
contar-lhe da suposta perseguição, ela não demonstra muito interesse. Então ele pede a chave
da casa onde moravam para ir buscar algumas coisas que havia deixado por lá.
No percurso, ele resolve visitar um amigo, mas, chegando à frente do portão do prédio,
depara-se com muitas câmeras e com uma mulher gritando que seu filho estava sendo
injustamente acusado de assassinato. Por medo de se tornar suspeito do crime, ele desiste de
entrar no prédio e continua a caminhada para a casa da ex-mulher. Ao entrar na casa, o
protagonista lembra-se dos momentos passados com ela e percebe a mudança de todos os
cômodos e objetos. Ao percorrer o ambiente onde outrora vivia, ele tem atitudes grotescas,
como urinar na pia da cozinha e entupir o banheiro ao tomar banho. Depois de causar uma
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imensa desarrumação na casa, ele pega a mala com os seus pertences e vai embora.
Por achar inconveniente andar com uma mala pelas ruas, ele vai à casa da irmã para
guardá-la. Chegando à casa, dirige-se ao quarto dela e, dominado por um louco impulso,
rouba-lhe as jóias. Daí, o protagonista volta para o sítio donde fora expulso.
Próximo à entrada da propriedade, ele pega carona com os traficantes invasores. Eles
vêem as jóias e se apossam delas, dando-lhe como pagamento uma mala com maconha. Ao
amanhecer, ele vai à cidade e tenta livrar-se da droga. Pensa em deixar na casa da mãe, mas
não tem coragem de falar com ela. Então, entra no prédio do seu único amigo. Todavia,
quando sobe a escada, a mala cai de suas mãos e se abre. Assustado com a movimentação dos
moradores do prédio, ele foge. Mais uma vez vai para o shopping atrás da sua ex-mulher e
tenta falar com ela, mas, como a porta da loja está fechada e ela não lhe dá atenção, ele quebra
a vitrine, confessando, em seguida, que nem tinha vontade de entrar. Daí o protagonista
encontra-se com “a magrinha” amiga de sua irmã e, juntos, seguem para a casa desta.
Depois de uma longa partida de tênis entre o cunhado do protagonista e “a magrinha”,
eles dirigem-se para a sala de jantar e, durante a refeição, o seu cunhado comenta sobre a
viagem forçada da esposa após ter sido violentada num assalto na noite anterior. No fim do
jantar, o delegado responsável pelo caso chega para colher mais informações e, no decorrer da
conversa, o cunhado aproveita para falar sobre a invasão do sítio da família da esposa e o
desinteresse da polícia em tomar as devidas providências.
O protagonista desliga-se da conversa e recria mentalmente toda a cena do assalto,
assim como a suposta conversa da sua irmã com o delegado. Ele imagina que a irmã, ao ser
interrogada, flerta com o delegado para convencê-lo de não investigar o sumiço das jóias.
Esse seu desvario é interrompido pela voz do delegado convidando-o para ir ao sítio. Por não
ter alternativa, ele aceita o convite e eles seguem para lá. Porém, antes de chagarem ao local
de destino, o delegado pára na casa de um homem com aparência de ex-pugilista, a quem
chama de colega. Esse homem é um dos invasores do sítio e segue viagem com eles.
Quando chegam ao sítio, o delegado dá fim à vida de todos os traficantes. É uma
espécie de queima de arquivo. O protagonista, ao presenciar a chacina, fica ainda mais
perdido e sai rapidamente do sítio e, de pés descalços, caminha até o posto Brialuz para pegar
o ônibus. Próximo ao local, avista um homem magro com uma camisa quadriculada e,
julgando conhecê-lo, correr para abraçá-lo. Porém, esse o interpreta mal e atinge-o com uma
faca. Ferido, o protagonista sobe num ônibus e a trama encerra com ele pensando em pedir
abrigo para sua mãe, seu amigo ou sua ex-mulher, até a sua irmã voltar da viagem e lhe
adiantar seis meses do aluguel do apartamento onde morava.
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Estorvo é uma obra fascinante e já foi analisada por vários pesquisadores. Entre os
trabalhos desenvolvidos, destacamos: “Estorvo & anônimos, no enredo da memória, do
presente e da imaginação”, produzido por Ana Mery Sehbe de Carli; “Recursos
Cinematográficos de ‘Estorvo’ no contexto Pós-moderno”, produzido por Marcelo Briseno; e
“O EU estilhaçado e o NÓS interditado: a crise das identidades em Estorvo, Benjamim e
Budapeste, de Chico Buarque”, produzido por Ilma da Silva Rebello. Por serem todos esses
estudos de grande relevância porque canalizam sua atenção para aspectos recorrentes, tais
como: a diluição das camadas sociais, o tempo multiforme, a relação familiar problemática e a
diluição da identidade.
Em “Estorvo & anônimos, no enredo da memória, do presente e da imaginação”, Ana
Mery Sehbe de Carli (2006) faz um paralelo entre a obra e o filme Estorvo, demonstrando os
artifícios utilizados por Ruy Guerra – diretor do filme – para manter-se fiel à obra de Chico
Buarque.
Carli começa seu artigo explicando a trama de Estorvo e apresentando o perfil do
protagonista: um homem sem-nome, sem oportunidades heróicas, em estado de decomposição
e dissolução da identidade. É um ninguém, com impressões e sensações, apesar da situação
deplorável.
Estorvo imprime um tom de delírio e desorientação, resultante da situação de
degradação e vertigem do protagonista-narrador. Criando, assim, um estado de confusão e
mistura de sonho e realidade, observável pela maneira multiforme de demarcação do tempo.
O tempo para Carli aparece em Estorvo sob três formas distintas: o tempo real, o
tempo da memória e o tempo da imaginação. Formas percebíveis, na obra, através da
utilização dos diferentes tempos verbais e, no filme, através da sobreposição de imagens,
mudanças de luz ou de plano.
Conforme Carli, o interesse de Chico Buarque em revelar a organização social
contemporânea, caracterizada pela fluidez das categorias sociais e desordem proveniente do
processo de industrialização brasileira, também é o enfoque principal do filme “Estorvo”,
tendo um protagonista desorientado, vítima dos trancos e barrancos do acaso, com uma vida
de repetições, sem nunca avançar, expondo, de tal modo, o “sanatório geral” vivenciado pela
sociedade contemporânea.
No artigo “Recursos cinematográfico de ‘Estorvo’ no contexto Pós-moderno”,
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Marcelo Briseno (2006), assim como Carli, desenvolve um paralelo entre o romance Estorvo
e o filme, expondo os recursos cinematográficos utilizados para acentuar o universo distorcido
da trama. Briseno inicia o seu trabalho apresentando as duas linhas de pensamento sobre o
significado do pós-modernismo e o conceito mais aceito pela crítica: um movimento de
reação ao moderno, buscando revelar o efêmero, o fragmentário e o caos.
Segundo Briseno, Estorvo é um romance com características modernistas exageradas,
mas, por conter elementos como a desreferencialização, a desubstancialização do sujeito, o
caos, a fragmentação e a perda da identidade, foi classificado pela crítica como um romance
pós-moderno, apesar de não ser genuinamente a expressão do período.
Para Briseno (2006, p. 48), Estorvo revela a fragilidade e a instabilidade da espécie
humana, apresentando um personagem paranóico vagando por uma metrópole. Um homem
desreferencializado, imerso num universo caótico. Um humanóide vulnerável, perdido em
suas dúvidas existenciais, assim como o país.
O ambiente de instabilidade e anonimato presente no romance foi objeto de grande
preocupação na transposição da narrativa literária para o filme. Dificuldade essa, felizmente,
vencida com êxito, através da utilização dos cenários de várias cidades na composição da
cidade anônima, o uso de iluminação em contraluz, a trilha sonora de pouca harmonia e a
realização das gravações com a câmera na mão.
Briseno encerra seu artigo colocando o filme Estorvo como um belo exemplo de
adaptação cinematográfica, por conseguir assimilar o universo caótico, opressivo e
fragmentado da narrativa literária, utilizando com maestria os recursos da linguagem e da
cinematografia, mantendo-se fiel à identidade do romance de um tom revelador invejável.
Na dissertação intitulada “O EU estilhaçado e o NÓS interditado: a crise das
identidades em Estorvo, Benjamim e Budapeste, de Chico Buarque”, Ilma da Silva Rebello
(2006) demonstra como Chico Buarque trabalha em suas obras a questão identitária, a
diluição das camadas sociais, os problemas familiares e a solidão das personagens imersas no
ambiente excludente das grandes cidades.
Segundo Rebello, o romance Estorvo é narrado em alta velocidade, a linguagem é
movida pela percepção do protagonista, e a passagem do sonho para a realidade transcorre de
uma forma quase imperceptível, por não haver referências ao ato de despertar.
O protagonista narra a sua história como se ela desenrolasse no momento da narração,
sua visão é limitada, não há um narrador onisciente, isto é, a história é narrada na primeira
pessoa e no presente. Um narrador-protagonista falando consigo mesmo, um homem
atordoado, cheio de incertezas, em trânsito permanente, retomando lembranças do seu
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Não faremos menção ao seu último romance: Budapeste (2003).
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bois, chegando a ponto de substituí-los por uma plantação de soja por ser mais rentável. Já nas
suas obras pós-ditadura, Chico, ao perceber o estado de confusão e solidão dos indivíduos nas
grandes cidades, diante da abertura política e evoluções tecnológicas, foca-se então na apatia.
Em Estorvo, há um protagonista anônimo e disperso a vagar pelas ruas de uma
metrópole, numa mistura de paranóia, sonho e realidade. Em Benjamim, o protagonista é um
ex-modelo fotográfico em decadência que transita pelo seu universo como se este fosse um
set de filmagem. Considerando o problema da resistência versus apatia nas obras de Chico
Buarque, partimos para a hipótese de que a apatia se torna o motivo norteador do romance
Estorvo, e ela se revela a partir do silenciamento da História.
Não existe uma História neutra; nela a memória, enquanto uma categoria
abertamente mais efetiva de relacionamento com o passado intervém e determina em
boa parte os seus caminhos. A memória existe no plural: na sociedade dá-se
constantemente um embate entre diferentes leituras do passado, entre diferentes
formas de enquadrá-lo.
Os detentores do poder utilizam os mais variados artifícios para manter seu domínio,
dentre esses, a mídia ocupa lugar de destaque: com seus brilhantes holofotes difunde a idéia
de “superação” dos traumas após exibi-los e cultuá-los nos meios de comunicação. É como se
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“Unidade lingüística superior à frase, equivalendo à mensagem ou enunciado – ou texto” (CARDOSO, 1997,
p.13).
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O silenciamento de muitos discursos e a construção de uma história diferente daquilo que de fato aconteceu.
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Com a supressão de muitas partes da História, a idéia de tempo, tornou-se dispersa.
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sua exposição colocasse um ponto final em toda dor e sofrimento. Esse processo é visto no
Brasil, após a ditadura militar, quando o povo7, fascinado pela idéia de um “novo tempo” –
uma época de liberdade e evolução tecnológica –, acomoda-se diante da anistia dos militares –
figuras responsáveis por inúmeras atrocidades em nosso país. E Chico Buarque, ao perceber
essa situação, deixa então de focalizar, em suas produções, o tema da resistência para expor a
acomodação e passividade do povo diante da tentativa de silenciamento dos horrores vividos
nos anos de chumbo, mostrando os efeitos do silenciamento histórico na vida dos indivíduos e
da sociedade brasileira.
O romance Estorvo está entre as expressivas criações desse período. Uma obra
marcada pelo anonimato e desreferencialização, isto é, A perda das referências históricas,
sociais e individuais do protagonista. Em sua narrativa não há uma História organizada, os
fatos aparecem dispersos, havendo uma mistura de imaginação, lembrança e realidade. É
impossível dizer o período ou a cidade onde a trama acontece, pois não há referência a
nenhum momento de nossa História ou a alguma de nossas cidades, seja sub-repticiamente,
seja por meio das marcas do real. Existe apenas um protagonista “solto” por uma metrópole
desconhecida. O silenciamento histórico toma conta da trama e provoca um matiz de
desorientação e instabilidade, perceptível pela multiformidade do tempo, a diluição da
identidade e as relações problemáticas do protagonista com as outras personagens.
a. A multiformidade do tempo
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Segundo Aguiar (2004, p. 51) o termo “o povo” até a década de 30 tinha uma significação diferente em cada
esfera da sociedade. Só a partir do golpe militar quando os indivíduos uniram-se para lutar contra a censura é que
o termo tornou-se uno e os indivíduos o encarnaram realmente.
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Pretenderei virar as costas, mas estarei emperrado. [...] fecharei os olhos com tanto
ímpeto, que as pálpebras cairão no chão. Minha visão clareia e não há ninguém no
quarto. Ali está a cama impecável, com uma colcha de renda antiga e uns
almofadões. Naquele domingo aquela cama me desgostou, o lado do marido todo
amarfanhado, e dei o quarto por visto (BUARQUE, 2004, p. 63-64).
extraordinária diferença. Na história da criação do mundo, Deus constrói tudo em seis dias,
descansando no sétimo. Em Estorvo, o protagonista se desconstrói em seis dias, alcançando o
clímax caótico no sétimo, quando a narrativa encerra com a descrição dele descalço, ferido,
sem rumo e ainda em fuga, isto é, nem ferido ele consegue parar com a sua fuga insana.
b. A diluição da identidade
A diluição da identidade não é obra do acaso no romance. Ela é uma das evidências do
silenciamento histórico. Esse silenciamento da História brota como o resultado da escolha do
protagonista em abandonar os seus bens e a sua família, bem como todas as lembranças dessa
época de sua vida, conforme percebemos no fragmento:
Era uma noite, e já estávamos jantando na varanda quando ele decidiu que eu era um
bosta, sem mais nem menos. Disse assim mesmo: “você é um bosta”. E disse que eu
devia fazer igual ao escritor russo que renunciou a tudo, que andava vestido como
um camponês, que cozinhava seu arroz, que abandonou suas terras e morreu numa
estação de trem. Disse que eu também devia renunciar às terras, mesmo que eu
também tivesse que renunciar minha família, que era outra bosta. Também era uma
bosta toda lei vigente e todos os governos. [...] Jogamos nossas coisas no porta-
malas do carro dele, um rabo-de-peixe caindo aos pedaços, e fomos embora do sítio
deixando a cancela aberta (BUARQUE, 2004, p. 83).
conteúdo e o auxiliam no processo de sua composição humana, mas quando esses elementos
são silenciados, sua identidade tende a ficar comprometida. As suas referências externas
desaparecem e as internas tornam-se diluídas. O homem exilado dessas referências, esvaído
de si mesmo, não consegue dar significação aos acontecimentos e se torna um flutuante.
Em Estorvo, o narrador-protagonista passa aos leitores o seu olhar turvo sobre o
mundo, imprimindo na alma de cada um a sensação de desequilíbrio, abandono e incerteza.
Ele inicia a narrativa do livro dizendo: “para mim é muito cedo” (BUARQUE, 2004, p.7), o
que revela a sua imprecisão sobre os fatos. Na obra, é comum o uso de expressões como:
“pode ser”, “parecia”, “penso que”, “como se”, “achei que”, “não sei se” e “talvez”, para
realçar o tom de incerteza. Vejamos alguns fragmentos: “Pode ser que chorasse todo sábado,
admirando a festa e não podendo dançar” (BUARQUE, 2004, p. 107); “Parecia queimado ao
sol” (BUARQUE, 2004, p. 123); “Penso que estou dormindo quando um rapaz de turbante
me aparece na porta” (BUARQUE, 2004, p. 127); “É como se a mão que segura o pau não me
pertencesse” (BUARQUE, 2004, p. 133); “Achei que ela estaria no closet para trocar o maiô”
(BUARQUE, 2004, p. 64); “Recebo na face direita um golpe violento, não sei se de algum
objeto ou de joelho” (BUARQUE, 2004, p. 74); “Talvez fique com raiva e chame o porteiro”
(BUARQUE, 2004, p. 98).
Ao ler o romance Estorvo, a sensação é de que a cada linha surge uma cratera ainda
maior diante dos olhos, contornada pela incerteza, delírio e instabilidade. Tem-se a impressão
de estar em um carro desgovernado a caminho do precipício, sem se saber exatamente para
onde se está caminhando, o motivo de se estar ali ou o porquê de as coisas caminharem
daquela forma.
Desse processo brota a problematização da apatia em Estorvo: a dificuldade do
protagonista em se ajustar à normalidade e a uma existência conveniente com as regras sociais
poderia estar relacionada à transgressão de maneira positiva, como modo de romper
dialeticamente com os padrões autoritários que norteiam a sociedade. No entanto, de nada
adianta o protagonista ser um desajustado, ou em outras palavras, um desacomodado, se não
existe uma identidade histórica para dar significação a algum tipo de resistência.
c. As relações problemáticas
Minha irmã andando realiza um movimento claro e completo. Parece que o corpo
não realiza nada, o corpo deixa de existir, e por baixo do peignoir de seda. [...] E eu
me pergunto, quando ela sobe a escada se não é um corpo assim dissimulado que as
mãos têm maior desejo de tocar (BUARQUE, 2004, p. 18).
Sento-me de frente para uma moça que creio conhecer e não me lembro de onde. Ela
também me olha, mas não me cumprimenta, não me sorri, aliás, me dá a impressão
de estar com os olhos marejados. Quando vejo as muletas apoiadas nos braços do
seu sofá, atino que é a irmã de um antigo conhecido meu, um que dava festas numa
casa com as amendoeiras (BUARQUE, 2004, p.107).
O protagonista de Estorvo é um ser sem referências, daí as relações não terem muita
importância para ele. Todos são apenas “os outros”. Ele transita pelos lugares e vê todo
mundo, mas os vínculos não existem, não sabe nem o nome das pessoas, denominando-os
pelas suas características mais marcantes: “o magro com a camisa quadriculada”, “a índia”, “a
magrinha”, “a menina do cabelo encaracolado”, “os meninos dos limões”, “a preta gorda”, “o
ex-pugilista” e “o negro desengonçado”. Essa sua apatia não é só nas relações mais distantes,
ela ocorre também em suas relações familiares. Ele só as procura quando precisa de alguma
ajuda. Por exemplo, ele visita a irmã quando precisa de dinheiro; vai ao trabalho da ex-mulher
quando precisa de um esconderijo; e só pensa em procurar a mãe quando precisa se
desvencilhar da mala com maconha.
Ao buscarmos as relações mais problemáticas do romance, aflora a relação do
protagonista com a mãe, porque, enquanto com a irmã e com a ex-mulher ele consegue
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manter alguma aproximação, com a mãe não existe nenhuma. Ele não consegue nem ao
menos falar com ela pelo telefone. Se a narrativa percorresse o caminho da conveniência
social a relação dele com a mãe estaria entre as melhores, uma vez que os fortes laços entre
mães e filhos são constantemente reforçados na sociedade ocidental, mas como o protagonista
tem uma posição excêntrica em relação à sociedade em que vive, tal relação então se destaca
entre as mais problemáticas.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGUIAR, F. O suingue da massa. CULT, n.78, ano VI. Março de 2004. p. 50-52.
BÍBLIA SAGRADA. Gênesis, C. 1:1-31, 2:1-3. Tradução de João Ferreira de Almeida. 5. ed.
São Paulo: Geográfica, 2005.
MIRANDA, O. T. Chico – o poeta da fresta: ou de como o poeta cantou sua cidade num
tempo de tempestade. Belém, PA: Paka-Tatu, 2001.