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O SILENCIAMENTO DA HISTÓRIA NA OBRA ESTORVO, DE CHICO BUARQUE

REGO, Endy Barreto

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar o silenciamento da História e os


seus efeitos na construção do romance Estorvo (1991)1, do cancionista e escritor Chico
Buarque de Holanda. Neste trabalho propõe-se realizar a leitura de Estorvo (1991),
observando, no enredo da obra, a multiformidade do tempo, a diluição da identidade e as
relações familiares problemáticas. O enredo gira em torno da história de fuga do personagem-
anônimo, num misto de sonho/pesadelo e realidade, a partir da visão de um estranho do outro
lado do emblemático “olho mágico” do apartamento. Assim, a narrativa de Estorvo brota da
visão, da imaginação e da memória do narrador-personagem, em plena crise existencial e
moral. Busca-se, nesta pesquisa, respostas para os enigmas do texto buarquiano, seguindo os
passos narrativos, procurando decifrar os signos: as palavras, as imagens, os símbolos e as
alegorias apresentadas no romance. Para tanto, utiliza-se os pensamentos teóricos de
Seligmann- Silva, a respeito da interação dialética entre memória e história; Orlandi, por tratar
sobre silêncio e silenciamento, bem como as obras de Carli, Briseno e Rebello, as quais
canalizam a sua atenção para aspectos recorrentes, tais como: a diluição das camadas sociais,
o tempo multiforme, a relação familiar problemática e a diluição da identidade.

PALAVRAS-CHAVE: Chico Buarque – Estorvo – História – Ficção.

ABSTRACT: The present work aims to analyze the silencing of History and its effects on the
construction of the novel Estorvo (1991), by songwriter and writer Chico Buarque de
Holanda. This work proposes to read Estorvo (1991), observing, in the plot of the work, the
multiformity of time, the dilution of identity and problematic family relationships. The plot
revolves around the anonymous character's escape story, in a mix of dream/nightmare and
reality, based on the vision of a stranger on the other side of the apartment's emblematic
“peephole”. Thus, the narrative of Estorvo springs from the vision, imagination and memory
of the narrator-character, in the midst of an existential and moral crisis. This research seeks
answers to the puzzles of the Buararchian text, following the narrative steps, trying to
decipher the signs: the words, images, symbols and allegories presented in the novel. For that,
the theoretical thoughts of Seligmann-Silva are used, regarding the dialectical interaction
between memory and history; Orlandi, for dealing with silence and silencing, as well as the
works of Carli, Briseno and Rebello, which channel his attention to recurrent aspects, such as:
the dilution of social strata, the multiform time, the problematic family relationship and the
dilution of identity.

KEYWORDS: Chico Buarque – Estorvo – History– Fiction.

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A edição utilizada neste trabalho é a de 2004.
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1. INTRODUÇÃO

De acordo com Braga-Torres (2002), Francisco Buarque de Hollanda, conhecido como


Chico Buarque, nasceu no Rio de Janeiro, no ano de 1944, cresceu rodeado pelos livros da
biblioteca de seu pai e por intelectuais, como Vinicius de Moraes e Paulo Vanzolini, figuras
importantes para seu interesse juvenil pela música. Chico Buarque tornou-se um artista
completo. Músico, dramaturgo e escritor de qualidade excepcional, sua obra é considerada de
grande valor para a cultura brasileira. Miranda (2001) define-o como um autor que conseguiu
“varar uma década e meia de obscurantismo, usando a palavra como instrumento de
resistência, [...] dando um testemunho inequívoco de uma arte que se envereda pelos
caminhos da fantasia sem perder a ligação com o seu tempo” (p. 28, 29).
Aos 15 anos Chico Buarque compôs a primeira música da qual se lembra- “Canção
dos Olhos”. No entanto, sua primeira apresentação só ocorreu dois anos mais tarde, em 1961,
num show estudantil cantando “Marcha para um dia de sol”. Nessa época, os movimentos
estudantis, os grêmios e sindicatos (ainda livres da interferência do governo) estavam se
organizando. O Brasil se desenvolvia economicamente e os questionamentos sobre a política,
arte, educação e problemas sociais estavam presentes, tanto nas rodas de bate-papo quanto na
música e na literatura.
Em 1964, o contexto político brasileiro mudou drasticamente. Os militares tomaram o
poder, dando início a um período marcado por torturas e perseguições. Os direitos não eram
respeitados. Músicos, artistas e intelectuais tinham seu trabalho censurado e os jornais sempre
estavam vigiados. Assim, no lugar de reportagens importantes sobre os abusos da ditadura
militar eram publicados receitas e poemas. Qualquer manifestação clara de protesto contra o
regime sofria punições severas (BRAGA-TORRES, 2002). Quanto mais o tempo passava,
mais leis e órgãos eram criados para combater os que estavam contra o governo. Segundo
Fico (2004) a severidade do AI5 (Ato Institucional nº 5) foi o resultado de uma caminhada
que começou como um simples grupo de pressão e gradativamente conseguiu inculcar a
necessidade do endurecimento do regime. Neste contexto, cessar com as produções ou não
expor suas inquietações era o caminho mais aconselhável para qualquer artista. Porém, não foi
esse o escolhido por Chico Buarque de Holanda.
Segundo Sousa (2004, p.1), “Chico começou a escrever suas letras no momento em
que o discurso poético brasileiro denegava o ferrolho sistêmico do concretismo e rejeitava a
violência dogmática do regime militar”. Quanto mais o regime endurecia a vigilância sobre as
produções culturais, mais Chico Buarque produzia. Ele não apenas inicia sua carreira, como
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também a consolida nesse período, tornando-se um ícone da resistência contra a ditadura


militar no Brasil.
Conforme Silva (2004), ao contrário do pensamento geral, a atuação política de Chico
não se traduziu em adesão a doutrinas ou militâncias partidárias. Ele não se considerava o
líder dos oprimidos nem a voz do povo sedento de um defensor. Chico apenas falava dos
incômodos e angústias da sua alma. Como percebe-se em seu discurso: “Eu não sou político.
Sou um artista. Quando grito e reclamo é porque estou sentindo que se estão pondo coisas que
impedem o trabalho da criação, do qual eu dependo e dependem todos os artistas”
(BUARQUE apud MARTINS, 2005, p. 16).
Mesmo com essa posição, para o povo, Chico era genuinamente o herói, a voz dos
homens injustiçados por um regime que estabelecia as condutas. A criação dessa caricatura
proporcionou-lhe o título de compositor de protesto n° 01 e o transformou no principal alvo
da censura. De acordo com Braga-Torres (2002), de cada três composições de Chico Buarque,
apenas uma era liberada pela censura e, ainda assim, havendo troca de algumas palavras ou
substituição do título:

Chico Buarque era um homem de seu tempo e, portanto, seu discurso, sua obra
estarão impregnadas das marcas do momento histórico em que viveu. Chico não
nasceu Chico, ele se fez Chico a partir dos elementos sociais que o cercavam
(MARTINS, 2005, p. 7).

Chico Buarque conseguiu produzir e manter viva a chama da consciência e da


dignidade humana num período de constante vigilância, de confusão em todas as esferas da
sociedade e de imposição, aos artistas, de mordaças concretas e outras invisíveis- a censura.
Produziu músicas como “Pedro Pedreiro” (1965), “A Banda” (1966), “Roda Viva” (1967) e
“Cálice” (1973), verdadeiros clássicos dos anos de chumbo. Compôs canções para os filmes:
Quando o Carnaval Chegar, Vai Trabalhar Vagabundo e Os Saltimbancos Trapalhões.
Publicou a novela pecuária Fazenda Modelo (1974) e também escreveu as peças Calabar: o
elogio da traição (1973) (censurada), Roda Viva (1967) (censurada), Gota d’Água (1975) e
Ópera do Malandro (1978).
Nos últimos anos do regime militar, Chico Buarque, através da música “Bye Bye,
Brasil”, começou a revelar o perfil de suas obras nos anos vindouros, tirando o protesto do
foco principal e passando a mostrar a fragilidade e a desagregação social. Em “Bye Bye,
Brasil”, segundo Silva (2004, p. 90), “o protagonista [...] é uma espécie de zumbi vagando
sobre escombros pelas franjas do país” dividido entre o moderno e o arcaico.
Os anos do regime militar tornaram-se solo fértil para Chico, e neles há o maior
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número de suas produções. Entretanto, esse artista tímido e genial não sucumbiu com o fim
das duas décadas de terror em solo brasileiro. Ele continuou a produzir, mas suas produções
adquiriram uma nova ótica, como explica Maia (apud MALARD, 2006, p.151):

Como é compreensível, após os anos de chumbo, o romance de meados dos anos 80


e o dos anos 90 não estará mais marcado tão fortemente pela resistência política e
ideológica, a qual constitui um dos traços predominantes do romance durante a
ditadura. Essa constatação não significa desconsiderar a força crítica da produção
ficcional recente, mas reconhecer que seu foco muda, diante do novo panorama
histórico, e passa a estar, em partes, nas mazelas e problemas estruturais da
sociedade brasileira, muitos dos quais agravados pelo regime militar.

Com o início da abertura política, o cenário do Brasil voltou a clarear. Esperava-se,


então, a reconstrução do elo entre a cultura e os anseios populares rompidos em 1964, e sua
elevação ao merecido lugar de destaque. Porém, o efeito foi outro: nem a cultura nem as
aspirações populares continuavam as mesmas. O país, após a longa tempestade- os anos da
ditadura-, respirava um ar de frescor e alívio, apesar dos seus efeitos ainda serem sentidos.
Abel Silva (apud HOLLANDA e GONÇALVES, 1980, p.18), ao falar sobre as produções da
pós-ditadura, diz:

Os poetas podem jogar mais com o presente – mas os narradores necessitam de um


tempo histórico, os narradores falam do passado. Então acabou a censura no Brasil,
acabou o AI-5 e nós começamos a ter só agora os sintomas de uma verdadeira
literatura pós-64, falo da literatura de inspiração política, mais madura, menos
testemunhal.

A partir da década de 90, Chico Buarque passou a dedicar-se mais à obra romanesca,
produzindo três grandes romances: Estorvo (1991), Benjamim (1995) e Budapeste (2003),
transformados posteriormente em trilhas cinematográficas. Esses romances problematizam a
questão identitária e mostram a solidão das personagens no frenesi das grandes cidades
(REBELLO, 2006).
A produção de Chico, segundo Paraizo (2005), é, sobretudo, urbana. Na cidade, as
tramas se “desenrolam” 2
e apresenta-se a outra realidade do país, com pessoas vulneráveis,
cheias de dúvidas e sem perspectivas, revelando a amargura e a desilusão, após os anos da
ditadura. São indivíduos definidos por Rebello (2006, p. 37) como “homens frágeis e
debilitados diante da vida, sem possibilidade heróica”.
Rebello (2006, p.15) caracteriza os protagonistas dos romances buarqueanos como
“eus à deriva, isolando-se ou perdendo-se no labirinto das grandes cidades. Homens buscando
referências sob a face perdida, mas ao invés de sentido encontram ruínas e um grande vazio”.

2
O “desenrolar” nesse contexto é usado como o local onde a história acontece e não como o desemaranhar de
todos os problemas, com a finalidade de dar um final feliz à trama.
5

Desse modo, com esta pesquisa busca-se analisar o silenciamento da História e os seus
efeitos na construção do romance Estorvo (1991), observando, no enredo da obra, a
multiformidade do tempo, a diluição da identidade e as relações familiares problemáticas,
tendo em vista que a narrativa brota da visão, da imaginação e da memória do narrador-
personagem, em plena crise existencial e moral. Portanto, busca-se, nesta pesquisa, respostas
para os enigmas do texto buarquiano, seguindo os passos narrativos, procurando decifrar os
signos: as palavras, as imagens, os símbolos e as alegorias apresentadas no romance.

2. DESENVOLVIMENTO

Estorvo, objeto de análise deste trabalho, é o primeiro romance produzido por Chico
após a ditadura militar. Ele é lançado 17 anos depois de Fazenda Modelo e é uma obra de
onze capítulos, todos sem títulos, e com personagens anônimos. Seu enredo inicia com a
descrição do protagonista atordoado pela presença de um homem à sua porta, homem esse de
quem ele não se lembra muito bem. Durante a tentativa de buscar na memória a figura do
visitante, a campainha toca novamente e, quando ele se aproxima da porta, tem a impressão
de estar sendo observado, por que o “olho mágico” parece posto ao contrário. Esse fato
desencadeia a fuga insana do protagonista durante toda a obra.
Vestindo-se rapidamente, ele começa a perseguir o seu “observador”. E, abruptamente,
passa de “perseguidor” a “perseguido”. Sentindo-se encurralado, ele vai à casa da irmã
milionária e lá chegando, como de costume, recebe mais uma ajuda financeira. Ao anoitecer,
dirige-se para o sítio da sua família, local invadido por menores delinqüentes e plantadores de
maconha. Pela manhã, um grupo de rapazes motoqueiros expulsa-o de lá, fazendo-o dirigir-se
novamente à cidade. E, uma vez lá, vai à loja do shopping onde trabalha sua ex-mulher. Ao
contar-lhe da suposta perseguição, ela não demonstra muito interesse. Então ele pede a chave
da casa onde moravam para ir buscar algumas coisas que havia deixado por lá.
No percurso, ele resolve visitar um amigo, mas, chegando à frente do portão do prédio,
depara-se com muitas câmeras e com uma mulher gritando que seu filho estava sendo
injustamente acusado de assassinato. Por medo de se tornar suspeito do crime, ele desiste de
entrar no prédio e continua a caminhada para a casa da ex-mulher. Ao entrar na casa, o
protagonista lembra-se dos momentos passados com ela e percebe a mudança de todos os
cômodos e objetos. Ao percorrer o ambiente onde outrora vivia, ele tem atitudes grotescas,
como urinar na pia da cozinha e entupir o banheiro ao tomar banho. Depois de causar uma
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imensa desarrumação na casa, ele pega a mala com os seus pertences e vai embora.
Por achar inconveniente andar com uma mala pelas ruas, ele vai à casa da irmã para
guardá-la. Chegando à casa, dirige-se ao quarto dela e, dominado por um louco impulso,
rouba-lhe as jóias. Daí, o protagonista volta para o sítio donde fora expulso.
Próximo à entrada da propriedade, ele pega carona com os traficantes invasores. Eles
vêem as jóias e se apossam delas, dando-lhe como pagamento uma mala com maconha. Ao
amanhecer, ele vai à cidade e tenta livrar-se da droga. Pensa em deixar na casa da mãe, mas
não tem coragem de falar com ela. Então, entra no prédio do seu único amigo. Todavia,
quando sobe a escada, a mala cai de suas mãos e se abre. Assustado com a movimentação dos
moradores do prédio, ele foge. Mais uma vez vai para o shopping atrás da sua ex-mulher e
tenta falar com ela, mas, como a porta da loja está fechada e ela não lhe dá atenção, ele quebra
a vitrine, confessando, em seguida, que nem tinha vontade de entrar. Daí o protagonista
encontra-se com “a magrinha” amiga de sua irmã e, juntos, seguem para a casa desta.
Depois de uma longa partida de tênis entre o cunhado do protagonista e “a magrinha”,
eles dirigem-se para a sala de jantar e, durante a refeição, o seu cunhado comenta sobre a
viagem forçada da esposa após ter sido violentada num assalto na noite anterior. No fim do
jantar, o delegado responsável pelo caso chega para colher mais informações e, no decorrer da
conversa, o cunhado aproveita para falar sobre a invasão do sítio da família da esposa e o
desinteresse da polícia em tomar as devidas providências.
O protagonista desliga-se da conversa e recria mentalmente toda a cena do assalto,
assim como a suposta conversa da sua irmã com o delegado. Ele imagina que a irmã, ao ser
interrogada, flerta com o delegado para convencê-lo de não investigar o sumiço das jóias.
Esse seu desvario é interrompido pela voz do delegado convidando-o para ir ao sítio. Por não
ter alternativa, ele aceita o convite e eles seguem para lá. Porém, antes de chagarem ao local
de destino, o delegado pára na casa de um homem com aparência de ex-pugilista, a quem
chama de colega. Esse homem é um dos invasores do sítio e segue viagem com eles.
Quando chegam ao sítio, o delegado dá fim à vida de todos os traficantes. É uma
espécie de queima de arquivo. O protagonista, ao presenciar a chacina, fica ainda mais
perdido e sai rapidamente do sítio e, de pés descalços, caminha até o posto Brialuz para pegar
o ônibus. Próximo ao local, avista um homem magro com uma camisa quadriculada e,
julgando conhecê-lo, correr para abraçá-lo. Porém, esse o interpreta mal e atinge-o com uma
faca. Ferido, o protagonista sobe num ônibus e a trama encerra com ele pensando em pedir
abrigo para sua mãe, seu amigo ou sua ex-mulher, até a sua irmã voltar da viagem e lhe
adiantar seis meses do aluguel do apartamento onde morava.
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2.1 Fortuna Crítica de Estorvo

Estorvo é uma obra fascinante e já foi analisada por vários pesquisadores. Entre os
trabalhos desenvolvidos, destacamos: “Estorvo & anônimos, no enredo da memória, do
presente e da imaginação”, produzido por Ana Mery Sehbe de Carli; “Recursos
Cinematográficos de ‘Estorvo’ no contexto Pós-moderno”, produzido por Marcelo Briseno; e
“O EU estilhaçado e o NÓS interditado: a crise das identidades em Estorvo, Benjamim e
Budapeste, de Chico Buarque”, produzido por Ilma da Silva Rebello. Por serem todos esses
estudos de grande relevância porque canalizam sua atenção para aspectos recorrentes, tais
como: a diluição das camadas sociais, o tempo multiforme, a relação familiar problemática e a
diluição da identidade.
Em “Estorvo & anônimos, no enredo da memória, do presente e da imaginação”, Ana
Mery Sehbe de Carli (2006) faz um paralelo entre a obra e o filme Estorvo, demonstrando os
artifícios utilizados por Ruy Guerra – diretor do filme – para manter-se fiel à obra de Chico
Buarque.
Carli começa seu artigo explicando a trama de Estorvo e apresentando o perfil do
protagonista: um homem sem-nome, sem oportunidades heróicas, em estado de decomposição
e dissolução da identidade. É um ninguém, com impressões e sensações, apesar da situação
deplorável.
Estorvo imprime um tom de delírio e desorientação, resultante da situação de
degradação e vertigem do protagonista-narrador. Criando, assim, um estado de confusão e
mistura de sonho e realidade, observável pela maneira multiforme de demarcação do tempo.
O tempo para Carli aparece em Estorvo sob três formas distintas: o tempo real, o
tempo da memória e o tempo da imaginação. Formas percebíveis, na obra, através da
utilização dos diferentes tempos verbais e, no filme, através da sobreposição de imagens,
mudanças de luz ou de plano.
Conforme Carli, o interesse de Chico Buarque em revelar a organização social
contemporânea, caracterizada pela fluidez das categorias sociais e desordem proveniente do
processo de industrialização brasileira, também é o enfoque principal do filme “Estorvo”,
tendo um protagonista desorientado, vítima dos trancos e barrancos do acaso, com uma vida
de repetições, sem nunca avançar, expondo, de tal modo, o “sanatório geral” vivenciado pela
sociedade contemporânea.
No artigo “Recursos cinematográfico de ‘Estorvo’ no contexto Pós-moderno”,
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Marcelo Briseno (2006), assim como Carli, desenvolve um paralelo entre o romance Estorvo
e o filme, expondo os recursos cinematográficos utilizados para acentuar o universo distorcido
da trama. Briseno inicia o seu trabalho apresentando as duas linhas de pensamento sobre o
significado do pós-modernismo e o conceito mais aceito pela crítica: um movimento de
reação ao moderno, buscando revelar o efêmero, o fragmentário e o caos.
Segundo Briseno, Estorvo é um romance com características modernistas exageradas,
mas, por conter elementos como a desreferencialização, a desubstancialização do sujeito, o
caos, a fragmentação e a perda da identidade, foi classificado pela crítica como um romance
pós-moderno, apesar de não ser genuinamente a expressão do período.
Para Briseno (2006, p. 48), Estorvo revela a fragilidade e a instabilidade da espécie
humana, apresentando um personagem paranóico vagando por uma metrópole. Um homem
desreferencializado, imerso num universo caótico. Um humanóide vulnerável, perdido em
suas dúvidas existenciais, assim como o país.
O ambiente de instabilidade e anonimato presente no romance foi objeto de grande
preocupação na transposição da narrativa literária para o filme. Dificuldade essa, felizmente,
vencida com êxito, através da utilização dos cenários de várias cidades na composição da
cidade anônima, o uso de iluminação em contraluz, a trilha sonora de pouca harmonia e a
realização das gravações com a câmera na mão.
Briseno encerra seu artigo colocando o filme Estorvo como um belo exemplo de
adaptação cinematográfica, por conseguir assimilar o universo caótico, opressivo e
fragmentado da narrativa literária, utilizando com maestria os recursos da linguagem e da
cinematografia, mantendo-se fiel à identidade do romance de um tom revelador invejável.
Na dissertação intitulada “O EU estilhaçado e o NÓS interditado: a crise das
identidades em Estorvo, Benjamim e Budapeste, de Chico Buarque”, Ilma da Silva Rebello
(2006) demonstra como Chico Buarque trabalha em suas obras a questão identitária, a
diluição das camadas sociais, os problemas familiares e a solidão das personagens imersas no
ambiente excludente das grandes cidades.
Segundo Rebello, o romance Estorvo é narrado em alta velocidade, a linguagem é
movida pela percepção do protagonista, e a passagem do sonho para a realidade transcorre de
uma forma quase imperceptível, por não haver referências ao ato de despertar.
O protagonista narra a sua história como se ela desenrolasse no momento da narração,
sua visão é limitada, não há um narrador onisciente, isto é, a história é narrada na primeira
pessoa e no presente. Um narrador-protagonista falando consigo mesmo, um homem
atordoado, cheio de incertezas, em trânsito permanente, retomando lembranças do seu
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passado como uma espécie de vertigem.


Em Estorvo o protagonista é um sujeito anônimo, delineado como um paranóico, um
fugitivo sem causa, percorrendo continuamente os mesmos lugares, como se estivesse
andando em circulo: a casa da irmã, o sítio e o trabalho da ex-mulher, agravando a cada volta
o seu estado de decomposição e caos. Ele é um indivíduo com dificuldade de reconhecer os
outros, assim como os outros também têm dificuldade de reconhecê-lo.
Sobre as suas relações familiares, Rebello define-as como “problemáticas”, pois, com
a irmã, só há uma aproximação quando ele precisa de dinheiro, sendo capaz até de roubar as
jóias dela. Com a mãe Ele não mantém contato. E com a ex-mulher, ele sempre tem atitudes
inconvenientes, como bagunçar a casa e atormentá-la no trabalho. O protagonista de Estorvo
é o espinho no dorso familiar, é a “ovelha negra”, um verdadeiro estorvo na vida das mulheres
a sua volta.
A diluição dos grupos sociais e a facilidade do protagonista em caminhar entre os dois
mundos são características marcantes do romance. O protagonista é um ser desfamiliarizado,
não se coliga com nenhum grupo social ou espaço, não se identifica com a esfera do crime
nem da legalidade, apenas transita por ela. No sítio, convive pacificamente com os traficantes
invasores e na cidade freqüenta a casa e as festas da irmã com a maior naturalidade.
Para Rebello, o espaço de estranhas relações apresentadas em Estorvo é o reflexo da
sociedade fraturada da década de 90, perdida diante da nova realidade do país, em que todos
querem se sobressair, e a transgressão é a única norma a ser seguida, sendo essa uma tentativa
de quebrar as algemas da submissão imposta pela ditadura militar.
Apesar da natureza cíclica do romance Estorvo – com um protagonista percorrendo
sempre os mesmos lugares, numa espécie de ciranda ou labirinto circular, a cada página
folheada as relações aparecem mais problemáticas e a identidade mais diluída, preponderando
o tom de delírio, desorientação e instabilidade. Isso ocorre porque a História está exaurida,
logo toda construção adquire um tom problemático, seguindo para um caos maior.
A partir da apresentação feita sobre a trajetória de Chico, trabalhamos com a idéia de
que, no conjunto dos romances, o projeto estético por ele desenvolvido pauta-se no problema
da resistência versus apatia. Essa observação é possível através da análise do foco de suas
obras nos diferentes períodos3 em que seus romances foram construídos: na novela Fazenda
Modelo, produzida nos anos de censura, percebemos a sua focalização na resistência, ao
apresentar um boi que, para transformar a fazenda em um modelo na região, oprime os outros

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Não faremos menção ao seu último romance: Budapeste (2003).
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bois, chegando a ponto de substituí-los por uma plantação de soja por ser mais rentável. Já nas
suas obras pós-ditadura, Chico, ao perceber o estado de confusão e solidão dos indivíduos nas
grandes cidades, diante da abertura política e evoluções tecnológicas, foca-se então na apatia.
Em Estorvo, há um protagonista anônimo e disperso a vagar pelas ruas de uma
metrópole, numa mistura de paranóia, sonho e realidade. Em Benjamim, o protagonista é um
ex-modelo fotográfico em decadência que transita pelo seu universo como se este fosse um
set de filmagem. Considerando o problema da resistência versus apatia nas obras de Chico
Buarque, partimos para a hipótese de que a apatia se torna o motivo norteador do romance
Estorvo, e ela se revela a partir do silenciamento da História.

2.2 O Silenciamento Da História em Estorvo

Para falar do silenciamento histórico no romance Estorvo é necessário, de antemão,


tratar do conceito de História e política do silenciamento. Conforme Sônia Lacerda (1994), a
História, durante muito tempo, foi vista como uma ciência de saber positivo – indiscutível –
completamente separada do conhecimento e elaboração ficcional. No entanto, essa definição
tornou-se superada quando se admitiu a interação dialética entre memória e História, como
explica Seligmann-Silva (2003, p. 67):

Não existe uma História neutra; nela a memória, enquanto uma categoria
abertamente mais efetiva de relacionamento com o passado intervém e determina em
boa parte os seus caminhos. A memória existe no plural: na sociedade dá-se
constantemente um embate entre diferentes leituras do passado, entre diferentes
formas de enquadrá-lo.

Tanto a História quanto a criação ficcional buscam traduzir o “real”, pautando-se no


imaginário, isto é, nos discursos e narrativas produzidos através dos registros da memória. De
fato, a diferença entre as duas sempre esteve atrelada apenas às convenções disciplinares,
conferindo à criação ficcional o descompromisso com a realidade e, à História, a autoridade
de relato verídico.
De acordo com Costa (1994), pelo inevitável entrelaçamento entre elas, a História
passou a ser compreendida não como o resgate do passado, tal como aconteceu em sua
verdade absoluta, mas como uma investigação em busca de apreender as regras que
possibilitaram, ao acontecimento, existir enquanto sentido. Georges Duby (apud LACERDA,
1994, p. 40) também, ao falar sobre o assunto, define a História como uma “escola do
cidadão”, com pessoas livres e capazes de submeter as informações recebidas a uma análise
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coerente, menos contagiada pelas ideologias existentes.


A partir da concepção da História como uma narração de acontecimentos ou ações
dispostas cronologicamente através de um múltiplo conjunto de discursos4 produzidos por e
sobre os fatos, em que a memória tem um papel fundamental, as forças dominantes se viram
obrigadas a escamotear os registros da memória para silenciar o sentido de certos discursos e
manter o seu poder sob a construção histórica. Segundo Yosef Yerushalmi (apud SILVA,
2003, p. 63), se no século XIX houve sofrimento por ter-se “história demais”, na pós-
modernidade o sofrimento é pelo “fim da história”5, “o fim da temporalidade”6 e o
surgimento do “inexistencialismo”.
A sociedade pós-moderna foi submetida à chamada política do silêncio ou
silenciamento, definida por Orlandi (1997, p. 30-31) como o ato de tomar a palavra, fazer
calar, obrigar a dizer, silenciar. Contudo, o homem está “condenado” a significar com ou sem
as palavras. Quando o enunciado é retirado, ainda assim existe o gesto, o pensamento e a
memória. O silêncio em si mesmo produz significado, é matéria significante por excelência,
conforme explica Orlandi (1997, p. 70): “O silêncio não é o vazio, o sem-sentido, ao
contrário, ele é o indício de uma totalidade significativa. Isso nos leva à compreensão do
“vazio” da linguagem como um horizonte e não como uma falta”.
Cabe ao historiador a tarefa de ser o primeiro na frente de batalha contra as investidas
das forças dominantes, retrucando a hipótese dos detentores do poder também serem os
detentores da História. Ele deve ler o “dito” e o “não dito” nos discursos. Yerushalmi (apud
SILVA, 2003, p. 62-63) discorre:

No mundo que é o nosso não se trata mais de uma questão de decadência da


memória coletiva e de declínio da consciência do passado, mas sim da violação
brutal daquilo que a memória ainda pode conservar, da mentira deliberada pela
deformação das fontes e dos arquivos, da invenção de passados recompostos e
míticos a serviço de poderes tenebrosos. Contra esses militantes do esquecimento,
traficantes de documentos, os assassinos da memória, contra os revisores das
enciclopédias e os conspiradores do silêncio, contra aqueles que, para retomar a
imagem magnífica de Kundera, podem apagar um homem de uma fotografia para
que não fique nada senão seu chapéu, o historiador, apenas o historiador, animado
pela paixão austera dos fatos, das provas, dos testemunhos, que são o alimento da
profissão, pode levar a montar guarda.

Os detentores do poder utilizam os mais variados artifícios para manter seu domínio,
dentre esses, a mídia ocupa lugar de destaque: com seus brilhantes holofotes difunde a idéia
de “superação” dos traumas após exibi-los e cultuá-los nos meios de comunicação. É como se
4
“Unidade lingüística superior à frase, equivalendo à mensagem ou enunciado – ou texto” (CARDOSO, 1997,
p.13).
5
O silenciamento de muitos discursos e a construção de uma história diferente daquilo que de fato aconteceu.
6
Com a supressão de muitas partes da História, a idéia de tempo, tornou-se dispersa.
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sua exposição colocasse um ponto final em toda dor e sofrimento. Esse processo é visto no
Brasil, após a ditadura militar, quando o povo7, fascinado pela idéia de um “novo tempo” –
uma época de liberdade e evolução tecnológica –, acomoda-se diante da anistia dos militares –
figuras responsáveis por inúmeras atrocidades em nosso país. E Chico Buarque, ao perceber
essa situação, deixa então de focalizar, em suas produções, o tema da resistência para expor a
acomodação e passividade do povo diante da tentativa de silenciamento dos horrores vividos
nos anos de chumbo, mostrando os efeitos do silenciamento histórico na vida dos indivíduos e
da sociedade brasileira.
O romance Estorvo está entre as expressivas criações desse período. Uma obra
marcada pelo anonimato e desreferencialização, isto é, A perda das referências históricas,
sociais e individuais do protagonista. Em sua narrativa não há uma História organizada, os
fatos aparecem dispersos, havendo uma mistura de imaginação, lembrança e realidade. É
impossível dizer o período ou a cidade onde a trama acontece, pois não há referência a
nenhum momento de nossa História ou a alguma de nossas cidades, seja sub-repticiamente,
seja por meio das marcas do real. Existe apenas um protagonista “solto” por uma metrópole
desconhecida. O silenciamento histórico toma conta da trama e provoca um matiz de
desorientação e instabilidade, perceptível pela multiformidade do tempo, a diluição da
identidade e as relações problemáticas do protagonista com as outras personagens.

a. A multiformidade do tempo

O tempo da narrativa abarca outros dois tempos: o tempo da memória e o tempo da


imaginação. As multiformas do tempo causam um tom de dúvida inflexível no romance,
exigindo uma enorme concentração do leitor para identificar quando a narração do
protagonista é sobre algum fato real, imaginário ou fruto de sua imaginação. Há uma mudança
muito rápida dos tempos, como conferimos no seguinte fragmento:

Hoje encontro a porta encostada, o quarto escuro, e arrependo-me um pouco de ter


entrado. Os metais da orquestra chegam cá em cima com toda potência, mas estou
certo de ter ouvido um suspiro, um suspiro de voz conhecida. Sinto que me
habituarei à penumbra e verei dois corpos na cama. O homem poderá ser o rapaz
bonito das taças de vinho, e terá os ombros muito brancos. E a mulher, ela verá que
estou ali, mas não vai querer interromper, e estará com os cabelos castanhos abertos
como um leque no lençol, e vai me olhar de um modo que nunca me olhou.

7
Segundo Aguiar (2004, p. 51) o termo “o povo” até a década de 30 tinha uma significação diferente em cada
esfera da sociedade. Só a partir do golpe militar quando os indivíduos uniram-se para lutar contra a censura é que
o termo tornou-se uno e os indivíduos o encarnaram realmente.
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Pretenderei virar as costas, mas estarei emperrado. [...] fecharei os olhos com tanto
ímpeto, que as pálpebras cairão no chão. Minha visão clareia e não há ninguém no
quarto. Ali está a cama impecável, com uma colcha de renda antiga e uns
almofadões. Naquele domingo aquela cama me desgostou, o lado do marido todo
amarfanhado, e dei o quarto por visto (BUARQUE, 2004, p. 63-64).

Nesse fragmento, as diferentes temporariedades expostas misturam-se freneticamente


através da alternância dos tempos verbais. O protagonista, no início do parágrafo, diz: “Hoje
encontro a porta aberta”, o verbo “encontrar” no presente do indicativo sugere a narração dos
fatos no tempo da narrativa. Já quando ele discorre: “e verei dois corpos na cama”, o verbo
“ver”, no futuro do presente, indica a mudança dos fatos para o tempo da imaginação. E ao
terminar proferindo: “aquela cama me desgostou”, o termo “desgostar” no pretérito perfeito
transpõe a narrativa novamente para outro tempo – o tempo da memória. Essa mistura dos
tempos narrativos reflete o pensamento de um homem desvairado, perdido entre as
lembranças, o presente e o imaginário.
Mesmo não havendo menção, no romance, sobre os horários de todos os
acontecimentos ou o número de dias da trama, ao focarmos nossa visão nos fatos descritos no
tempo da narrativa, percebemos que o processo de deterioração do protagonista acontece em
sete dias, o equivalente a uma semana em nosso calendário. Durante esses sete dias, a cada
volta concluída, a aproximação do ápice caótico é mais nítida. Nenhuma ação é capaz de
revelar um vestígio de possibilidade heróica. A tabela abaixo dispõe os acontecimentos nos
períodos da manhã, tarde e noite. Comprovando assim o fechamento do ciclo narrativo de
Estorvo em sete dias.

MANHÃ TARDE NOITE


1° DIA Inicia sua fuga e toma café O protagonista viaja para o Dorme no sítio
com a irmã sítio da família
2° DIA É expulso do sítio pelos Vai para a casa da ex-mulher Dirige-se à casa da irmã e rouba as
invasores e volta à cidade suas jóias
3° DIA Novamente viaja para o sítio Permanece no sítio Dorme no sítio
descansando
4° DIA Fica à beira da piscina Continua na piscina Dorme no sítio
abandonada do sítio
5° DIA Continua dormindo Desperta e vê a colheita da Os traficantes entregam-lhe a mala
maconha com maconha
6° DIA Viaja para a cidade Tenta livrar-se da mala Janta com o cunhado e volta ao
sítio com o delegado
7° DIA Caminha para o ponto de
ônibus e lá termina ferido

Ao comparar a narrativa de Estorvo com a história da criação do mundo apresentada


na Bíblia Sagrada, percebemos que em ambas o ciclo narrativo é de sete dias, mas com uma
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extraordinária diferença. Na história da criação do mundo, Deus constrói tudo em seis dias,
descansando no sétimo. Em Estorvo, o protagonista se desconstrói em seis dias, alcançando o
clímax caótico no sétimo, quando a narrativa encerra com a descrição dele descalço, ferido,
sem rumo e ainda em fuga, isto é, nem ferido ele consegue parar com a sua fuga insana.

b. A diluição da identidade

A diluição da identidade não é obra do acaso no romance. Ela é uma das evidências do
silenciamento histórico. Esse silenciamento da História brota como o resultado da escolha do
protagonista em abandonar os seus bens e a sua família, bem como todas as lembranças dessa
época de sua vida, conforme percebemos no fragmento:

Era uma noite, e já estávamos jantando na varanda quando ele decidiu que eu era um
bosta, sem mais nem menos. Disse assim mesmo: “você é um bosta”. E disse que eu
devia fazer igual ao escritor russo que renunciou a tudo, que andava vestido como
um camponês, que cozinhava seu arroz, que abandonou suas terras e morreu numa
estação de trem. Disse que eu também devia renunciar às terras, mesmo que eu
também tivesse que renunciar minha família, que era outra bosta. Também era uma
bosta toda lei vigente e todos os governos. [...] Jogamos nossas coisas no porta-
malas do carro dele, um rabo-de-peixe caindo aos pedaços, e fomos embora do sítio
deixando a cancela aberta (BUARQUE, 2004, p. 83).

No parágrafo acima, o protagonista procura se desacomodar, ou seja, não se adequar


às regras do sistema vigente. Ele busca romper com tudo o que considera sem importância.
Porém, sua desacomodação torna-se sem significado porque, ao se desacomodar, ele também
se desvencilha do arquivo da memória, perdendo suas referências históricas e mesmo sociais.
Ao desvencilhar-se das lembranças, a memória adquire cortes profundos, assemelhando-se a
um livro com muitas páginas arrancadas. O resultado, sem dúvida, é o processo de
silenciamento de identidade sofrido pelo protagonista.
De acordo com Orlandi (1997), essa é uma das seqüelas da política do silenciamento.
Ao calar partes da História, ela leva em sua bagagem muitos arquivos “pessoais” e a própria
identidade do indivíduo, deixando-o sem perspectiva, imerso num caos imensurável. Orlandi
(1997, p. 65) explica esse processo dizendo: “Assim é o homem. O mundo está nele. E
quando ele se retira, não é somente da multidão exterior que ele se distancia, mas dessa
multidão enorme que faz nele morada”.
O protagonista anônimo está imerso nesse universo de retirada. Ao romper com seu
passado, se auto-exila, causando não só o silenciamento histórico, mas também o pessoal. A
História, os acontecimentos, as relações sociais e as lembranças oferecem ao individuo
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conteúdo e o auxiliam no processo de sua composição humana, mas quando esses elementos
são silenciados, sua identidade tende a ficar comprometida. As suas referências externas
desaparecem e as internas tornam-se diluídas. O homem exilado dessas referências, esvaído
de si mesmo, não consegue dar significação aos acontecimentos e se torna um flutuante.
Em Estorvo, o narrador-protagonista passa aos leitores o seu olhar turvo sobre o
mundo, imprimindo na alma de cada um a sensação de desequilíbrio, abandono e incerteza.
Ele inicia a narrativa do livro dizendo: “para mim é muito cedo” (BUARQUE, 2004, p.7), o
que revela a sua imprecisão sobre os fatos. Na obra, é comum o uso de expressões como:
“pode ser”, “parecia”, “penso que”, “como se”, “achei que”, “não sei se” e “talvez”, para
realçar o tom de incerteza. Vejamos alguns fragmentos: “Pode ser que chorasse todo sábado,
admirando a festa e não podendo dançar” (BUARQUE, 2004, p. 107); “Parecia queimado ao
sol” (BUARQUE, 2004, p. 123); “Penso que estou dormindo quando um rapaz de turbante
me aparece na porta” (BUARQUE, 2004, p. 127); “É como se a mão que segura o pau não me
pertencesse” (BUARQUE, 2004, p. 133); “Achei que ela estaria no closet para trocar o maiô”
(BUARQUE, 2004, p. 64); “Recebo na face direita um golpe violento, não sei se de algum
objeto ou de joelho” (BUARQUE, 2004, p. 74); “Talvez fique com raiva e chame o porteiro”
(BUARQUE, 2004, p. 98).
Ao ler o romance Estorvo, a sensação é de que a cada linha surge uma cratera ainda
maior diante dos olhos, contornada pela incerteza, delírio e instabilidade. Tem-se a impressão
de estar em um carro desgovernado a caminho do precipício, sem se saber exatamente para
onde se está caminhando, o motivo de se estar ali ou o porquê de as coisas caminharem
daquela forma.
Desse processo brota a problematização da apatia em Estorvo: a dificuldade do
protagonista em se ajustar à normalidade e a uma existência conveniente com as regras sociais
poderia estar relacionada à transgressão de maneira positiva, como modo de romper
dialeticamente com os padrões autoritários que norteiam a sociedade. No entanto, de nada
adianta o protagonista ser um desajustado, ou em outras palavras, um desacomodado, se não
existe uma identidade histórica para dar significação a algum tipo de resistência.

c. As relações problemáticas

As relações problemáticas são delineadas no romance desde as suas primeiras páginas


quando surge um protagonista conversando consigo mesmo e quase sem nenhum diálogo com
as outras personagens, prevalecendo, na narrativa, o monólogo interior:
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Minha irmã andando realiza um movimento claro e completo. Parece que o corpo
não realiza nada, o corpo deixa de existir, e por baixo do peignoir de seda. [...] E eu
me pergunto, quando ela sobe a escada se não é um corpo assim dissimulado que as
mãos têm maior desejo de tocar (BUARQUE, 2004, p. 18).

O protagonista de Estorvo não consegue firmar suas referências apesar de sempre


estar com as mesmas pessoas e em trânsito pelos mesmos lugares: a casa da irmã, o sítio da
sua família e o trabalho da ex-mulher, numa circularidade sem fim. A cada volta concluída,
sua identidade e seus laços afetivos surgem mais estraçalhados. No primeiro encontro com a
irmã, ele apenas recebe um cheque dela; na segunda vez, invade o quarto desta e rouba-lhe as
jóias; e na terceira vez, ao saber do assalto e do estupro, não demonstra remorso por ter
roubado suas jóias. Na primeira viagem ao sítio, apenas dorme e de lá é expulso pela manhã;
na segunda vez, faz negócio com os traficantes; e, na terceira, é testemunha do assassinato dos
traficantes e do envolvimento do delegado com os invasores. Na primeira visita ao trabalho da
ex-mulher, ele só conversa com ela; na segunda, ele quebra a vitrine da loja. A terceira visita
não é mencionada porque a narrativa encerra com ele ferido no ônibus a caminho da cidade.
O fim caótico do protagonista não é algo inesperado, já que todo o romance é
delineado pela instabilidade. Na realidade, ele é o ápice do estraçalhamento de um sujeito
exilado, desprovido de vínculos afetivos ou morais. Um indivíduo com dificuldade até de
reconhecer as pessoas a sua volta, como constatamos na seguinte parte da obra:

Sento-me de frente para uma moça que creio conhecer e não me lembro de onde. Ela
também me olha, mas não me cumprimenta, não me sorri, aliás, me dá a impressão
de estar com os olhos marejados. Quando vejo as muletas apoiadas nos braços do
seu sofá, atino que é a irmã de um antigo conhecido meu, um que dava festas numa
casa com as amendoeiras (BUARQUE, 2004, p.107).

O protagonista de Estorvo é um ser sem referências, daí as relações não terem muita
importância para ele. Todos são apenas “os outros”. Ele transita pelos lugares e vê todo
mundo, mas os vínculos não existem, não sabe nem o nome das pessoas, denominando-os
pelas suas características mais marcantes: “o magro com a camisa quadriculada”, “a índia”, “a
magrinha”, “a menina do cabelo encaracolado”, “os meninos dos limões”, “a preta gorda”, “o
ex-pugilista” e “o negro desengonçado”. Essa sua apatia não é só nas relações mais distantes,
ela ocorre também em suas relações familiares. Ele só as procura quando precisa de alguma
ajuda. Por exemplo, ele visita a irmã quando precisa de dinheiro; vai ao trabalho da ex-mulher
quando precisa de um esconderijo; e só pensa em procurar a mãe quando precisa se
desvencilhar da mala com maconha.
Ao buscarmos as relações mais problemáticas do romance, aflora a relação do
protagonista com a mãe, porque, enquanto com a irmã e com a ex-mulher ele consegue
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manter alguma aproximação, com a mãe não existe nenhuma. Ele não consegue nem ao
menos falar com ela pelo telefone. Se a narrativa percorresse o caminho da conveniência
social a relação dele com a mãe estaria entre as melhores, uma vez que os fortes laços entre
mães e filhos são constantemente reforçados na sociedade ocidental, mas como o protagonista
tem uma posição excêntrica em relação à sociedade em que vive, tal relação então se destaca
entre as mais problemáticas.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chico Buarque é um artista com um enorme poder de observação. Em Estorvo, utiliza


toda a sua intimidade com as palavras para caracterizar a sociedade da década de 90 e criticar
a sua acomodação diante das investidas de silenciamento da história pelas forças dominantes.
Cria um narrador-protagonista anônimo e sem oportunidade heróica que, ao desvencilhar-se
da sua História, torna-se um nada, um “desacomodado” e, contudo, apático.
O problema da apatia em Estorvo deflagra um elogio à História, ao expor sua
importância para a existência humana. Na obra, as relações problemáticas, a diluição da
identidade e a multiformidade do tempo tomam conta do ambiente narrativo, por causa da
ausência histórica, e transmitem a incerteza, a instabilidade e o fim apocalíptico para os que se
acomodam diante do estraçalhamento da História. Chico Buarque mostra que, se a História é
apagada – silenciada – o homem se torna vazio. E se nos anos da ditadura Chico utilizou o
deslocamento de sentidos, cantando o amor para falar do político, na década de 90 não vai ser
diferente: ele usa o silenciamento da história para falar da acomodação e do caráter passivo da
sociedade. Estorvo é uma chamada de atenção à sociedade brasileira.
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