Você está na página 1de 27
IDEIAS DO LEVANTE LAGOA 2000 Qual o interesse de se escrever um texto sobre mulheres? Como falar das mulheres? Ou ainda mais concretamente: como falam as mulheres quando esto sé entre mulheres? De que falam as velhas amigas quando se encontram? Nao falam de futebol nem de carros. O que sobra entiio? A vida. Os afectos, os amores e desamores que vio esculpindo o sentimento. Quis com este texto desocultar, de alguma forma, a crueza e a beleza de todo o sentir feminino. As expectativas e as desilusdes por que passam todas as mulheres, 0 prego que pagam para que a sua vida se torne verdadeiramente interessante. No texto fala-se de mulheres normais, sensiveis e exigentes. Duas amigas que se encontram para um fim-de-semana despreocupado no seu reftigio —acasa de praia — onde surgem as memérias, as cumplicidades, os risos, as revelagdes, as lagrimas e os segredos. Pretende ser um texto despretensioso sobre a forga de ser mulher e mostrar um pouco do seu universo tao especial. Talvez com esta pega se surpreendam os menos atentos. E sobretudo um espectaculo onde inevitavelmente se reflecte sobre as relacdes entre as pessoas e a gesto dos afectos. Ana Cristina Oliveira in programa “ Conversas de Mulheres “ ‘Teatro Ideias do Levante / 1999 A pega“ Conversas de Mulheres “ foi levada a cena pela primeira vez a 29 de Janeiro de 1999, na Antiga Biblioteca de Lagoa no Algarve, pelo Teatro Ideias do Levante, encenada por Bibi Perestrelo. Elenco Beatriz Maria Martins Catarina Ana Cristina Oliveira Ficha Técnica texto Ana Cristina Oliveira encenagao Bibi Perestrelo cenografia Filipa Brito desenho de luz Eugénia Calado luminotécnico Jorge Malha design grafico Jorge Soares grafica Aradegrafe-Artes Graficas, Lda. director de produgso Jorge Soares produgao Ideias do Levante/1998 Conversas de mulheres a Diana a Margarida & Rosa 1° ACTO (A cena passa-se numa casa de praia. Entardece. Entram duas mulheres. Ao fundo hé uma cama. Hé também uma janela com vista para o mar. ) Beatriz — Que saudades!... Sempre senti esta casa como a minha casa. Que bom, um fim-de-semana sem ter que aturar o marido, sé contigo! Catarina - E verdade, HA tanto tempo que também jé cA nao vinha. (Vai até & janela) Olha, anda ver! Ecomo se nada se tivesse passado... Beatriz — Ainda sinto vontade de descer essas escadas até & praia toda nua... As festas que se faziam c4 em casa... Catarina—Se os nossos filhos sonhassem... Beatriz — Que vergonha... Ah!... Mas divertiamo-nos bem. Se esta cama falasse... Olha, ainda cé tens estes vestidos! Este é fantAstico, ficavas linda com ele. E estes sapatos!... (Faz um strip) Lembras-te, da Ligia?... Que sera feito dela? Catarina Nem me fales! Sabes que ela casou com um tipo que era advogado? Beatriz—Sim, vagamente... Catarina — Imagina que o tipo a convenceu a pér a casa dela em nome dele, tiveram uma filha, ela incompatibilizou-se com o filho e na volta o tipo expulsou-a de casa. Beatriz —A sério? Naoacredito. Catarina —Sim, e dava-lhe sovas descomunais. Beatriz—Que horror! Eela? Catarina — Olha, ela ficava sentada na escada a noite inteira A espera com a filha ao colo. Beatriz— Mas em nome de qué? Ela até € gira, endo é nenhuma estipida! Catarina — Olha, em nome de uma familia, sei 14, diz que nao quer acabar sozinha. Beatriz—Coitada da Ligia... Ese nés lhe apresentdssemos gajos? Gajos a sério! Catarina — Até parece que ainda acreditas que hd gajos a sério. Ou se apanham quando tém vinte anos, ou entdo tém uma data de mulheres e mais nao sei quantos filhos atras a exigirem pensdes e estao demasiado traumatizados com as relagGes anteriores. Os outros, se nunca casaram € porque nao séo de confianga. Beatriz—Também tens razéo. Mas podiamos fazer qualquer coisa. Por que é que nao lhe telefonas para ela vir c4 ter connosco? Catarina — Era uma ideia, ainda te lembras do ntimero dela? Ento liga-lhe tu, que j4 hd muito tempo que nao falas com ela. Beatriz — Estou, Ligia, vé 14 se sabes quem fala... Nao? E a Bia, a Beatriz da faculdade! Que saudades também... Entao como € que vais? Af é, Isso é que € pior... Olha, estou aqui com a Catarina, na casa dela da praia, lembras-te? Pois era, grandes farras, ... e pensdmos que poderias vir aqui ter connosco, era fixe, falévamos, lembrévamo-nos dos velhos tempos... Nao? A mitida? Que chatice... Olha, fica para a préxima. Vé se telefonas para irmos beber um café, esta bem? Mas éa sério, ouviste? Ainda tens o meu néimero? Optimo. Cuida de ti. Gostamos muito de ti. Olha, a Catarina manda-te um beijinho muito grande. Adeus, outro para ti. Fico & espera. Catarina—Entio? Beatriz — Nao podia, tinha a mitida doente, mas eu acho que ela tinha estado a chorar. Catarina—Coitada. Mas eu vou-te confessar uma maldadezinha. Beatriz—O qué? Catarina - Estava a fazer figas para que ela nao viesse. Beatriz—Oh, coitada da Ligia, porqué? Catarina — Porque este € o nosso fim de semana es vezes também pteciso de ser um bocadinho egoista. Beatriz—A sorte que eu tenho em Ter uma amiga como tu... Etens tido noticias da Mafalda? Catarina—O qué? Essa coisa? Beatriz—Sim, parece que casou com um fulano muita rico. Catarina — As putas tém sempre sorte. Mas ouvi dizer que tinha ficado super gorda depois de ter tido os filhos. Beatriz — Bem feita! E para aprender a nao gozar com as outras. Tinha a mania gi que era boa, agora toma! Deve estar horrivel! Catarina — Ainda por cima, tinha tao mau gosto a vestir, até era capaz de usar cor-de-laranja! (Riem. Pega num copo) A lua cheia! Lembras-te, quando viemos para aqui todos depois do tiltimo exame... Beatriz — Do 12° ano? Se me lembro... Estavamos tao bébados! E tu, andavas apaixonadfssima por aquele tipo alto, como € que ele se chamava? Catarina—O Alexandre. Desgragado, disse-Ihe que estava apaixonada por ele e sabes o que é que ele disse? (Faz uma festa na cara de Beatriz) Ja sabia. Esttipido. Beatriz — G'anda estépido! Também, sempre tiveste um azar com os homens... Eles nunca souberam o que estavam a desperdicar. E logo tu, a mais bonita, a mais talentosa de nés todas. (Catarina esconde-se dentro de um casaco * comprido pendurado). Catarina - O Humberto nao € da mesma opiniao. Diz que ele € que € um desperdicio por estar comigo. Beatriz — (Comega a brincar com a manga de um casaco como se fosse um fantoche) Humberto, és um imbecil! Nao a mereces. A fazé-la ali trabalhar que nem uma escrava! (Imitando-o ironicamente): Cary, onde é que puseste as minhas calgas? A minha camisa verde j4 est passada? (Noutro tom) Foleiro! Ainda por cima nunca suportei que lhe chamasses Caty. Catarina —(Entrando na brincadeira do fantoche) — Caty, vé se fazes uma sopa. Vais trabalhar? Otha que hoje nao posso ficar com os mitidos, vou jogar ténis! Beatriz - Ai 0 cabrao! Ele diz isso? Os que se armam em intelectuais so os piores. Entao como € que te arranjas quando tens de dar explicagdes? 10 seman Catarina — Olha, pego aos vizinhos para ficarem com eles. Mas é assim. Ele sempre achou que o meu trabalho € um mero divertimento. Beatriz—Ea escrita? Catarina—Nunca mais escrevi. Beatriz Nao podes, isso é crime! Sabes que ainda guardo numa caixinha todos Os poemas que me deste? Catarina — A sétio? Nao sei, as vezes sinto-me moribunda dentro de um sonho mau. Beatriz — Péra com isso, estamos aqui para nos divertirmos! (Vai buscar um. baralho de cartas. Baraiha e tira um dama) Lembras-te, quando o Anténio vestiu aquela vestido e andava a correr pela casa e a dizer: “vou-me casar, nao posso acreditar!” Catarina — Era bem curtido 0 nosso Anténio. Com ele era bem capaz de ir para acama. Beatriz— Ai eu nao, deve ser meigo demais. Catarina — Ora, mas deve ser daqueles que passam a noite inteira a fazer festinhas nas costas. Beatriz — Agora com 0 Pedro, bem, nao sobrava nem um bocadinho! Catarina — A quem o dizes. Deve ser daqueles que deixam uma pessoa cheia de marcas... Beatriz — Lembras-te quando chegaste ao pé de mim na faculdade e me mostraste 0 teu ombro toda orgulhosa? Catarina — Puxa, isso tinha sido uma noite memordvel com aquele gajo do Porto... Beatriz—O Francisco! V1 Catarina — Sim, o Francisco. Nunca mais 0 vi. Enem imaginas o que € que eu fiz depois. Beatriz—O qué? Catarina —Procurei uma daquelas m4quinas de tirar fotografias instantaneas € fotografei todas aquelas nédoas negras no pescogo € nos ombros. Beatriz—Sé tu € que te poderias lembrar de uma coisa dessas. Catarina —E no fotografei as coxas, enfim, porque nao dava muito jeito. Beatriz—Sempre me safste c4 uma perversa... Epor falarem homens... Catarina—Nao, nao vamos falar mais de homens! Beatriz—Ora, entao vamos falar de qué? Catarina — De coisas interessantes! (Riem) De sentimentos, de gatinhos, de astrologia, tudo menos homens! Beatriz—Credo, nao te sabia tao ressentida. Catarina — Que queres? Sao vinte anos a aturar embirrag6es, gritos, a apanhar as cuecas e as meias do ch4o, e ainda por cima a apanhar negas. Sim, porque o Humberto jé se desinteressou de mim h4 muito tempo. Eu ali toda inflamada de desejo e ele tchau, até amanha. Nao sei como € que ainda h4 sangue a correr naquelas veias. Eu sei que jé nao hé 0 entusiasmo dos primeiros anos, mas puxa, também nao estou assim tao acabada. E depois, quando cumpre o seu dever l4 de més a més, € tao rdpido que quase nao dou porisso. Beatriz — Por isso € que tens sempre um olhar tao sombrio. Catarina — Eu? Mas eu fago os possiveis por... Beatriz — Disfargar? E esqueces que somos amigas h4 mais de vinte anos? Os teus olhos nunca me conseguiram mentir. Nem mesmo quando eu comecei a andar como... Catarina — Ah nfo, ndo vais comecar agora com a paranoia do Manele de que fiquei zangada por teres comegado a andar comele. Beatriz—Ficaste zangada que eu bem sei. Catarina — E esqueceste 0 nosso pacto? Nunca nos zangarfamos por causa de um homem. Beatriz — Eu sei, mas tu gostavas muito dele. E foi uma maldade o que eu te fiz. Tenho a impressio de que se ele te aparecesse agora... Catarina—Nao! Bem, talvez para desenferrujar... Beatriz— Nunca encontrei outro homem como ele na cama. Catarina—As coisas que ele dizia... Beatriz— Eas coisas que ele fazia? Catarina —Levava-nos a ver as estrelas , dizia-nos que éramos deusas... Beatriz—E fémeas! Que se embriagava com onosso cheiro... Catarina —E até sabia cozinhar... Beatriz—E passara ferro... Catarina —E fazer amor... Beatriz—E tu gostavas tanto dele!... Catarina — Pois gostava, mas ele trocou-me por aquela escanzelada da Paula. Que ainda por cima é esttipida! Vé 14 tu que nem sabe a diferenca entre um periquito e um canério. Que estipida! Beatriz — (Rindo) Entao mas isso ainda nao passou? Deixa Ié a rapariga. Ele também ja nao anda com ela! Catarina — E que no fundo como os outros. Depois de me ter deixado dizia que era muito meu amigo, que eu era a sua alma gémea, uma irma, (odeio que me vejam como uma irma!) e passava a vida a infernizar-me descrevendo as suas actividades sexuais com as outras mulheres. Esta tinha umas pernas espectaculares, a outra tinha um cinturinha de vespa, uma outra tinha um busto deslumbrante... se fosse pr’4 merda em vez de me andar a chatear! E que para ele todas as mulheres serviam menos eu. Beatriz — Entdo ele néo merece sequer que te lembres de tanta coisa. Eu lhe davaaalma gémea! Catarina — E o Nuninho? (Mostra o mindinho) Topas-me aquele tamanhinho? Bem, era um atadinho... Beatriz—Entao, jd te esqueceste de que dinheiro nao é qualidade? Catarina — Pois no, mas ajuda muito!... Beatriz —Pois é, um bocado como o dinheiro ea felicidade... Catarina — Pronto, Ié estamos nés a falar de homens. Nao quero, jé disse! Beatriz—Jé sei, precisas de um amante! 4 Catarina — Nao preciso nada de um amante! Beatriz—Precisas, precisas. Catarina —Eusei, s6 que dao muito trabalho. Beatriz—Mas sabem muito bem. Catarina— Para depois acabarmos por ficar piores do que quando nao os temos. Beatriz - Mas enquanto dura, vive-se. Quantos jé tiveste? Catarina — Ora deixa c4 ver,... 0 Manel, 0 Luis, 0 ..., nao sei, p'ré f uns trés ou quatro, nao sei. Beatriz—S6? Em vinte anos de casada? Eo Humberto? Catarina—O Humberto 0 qué? Beatriz—Sabes de alguma facadinha? Catarina — Ele que se atrevesse, matava-o! (Riem) Entdo e tu? Quantos amantes é que jd tiveste? Beatriz— Foram tantos que j4 nem me lembro. Catarina — Nao percebo porque € que continuas casada como Filipe. Beatriz — Ora, porque é que todas continuamos casadas? E mais cémodo. Jé viste agora a chatice de um divércio? E depois, no fim de tudo acabo sempre por achar que 0 Filipe é do melhorzinho que pot af se arranja. Nao refila com as tarefas domésticas, trata da roupa dele, leva-me o pequeno-almogo 4 cama aos fins de semana... Catarina — Que inveja! Para que é que precisas de outros homens? Beatriz — Porque ele faz com que eu me sinta esttipida. Anda sempre atrds de mim para ir para a cama mas € incapaz de conversar comigo sobre 0 que sente, 0 que faz no emprego, os seus projectos, nada. $6 0 vejo conversar com as minhas amigas ¢ isso irrita-me. Ainda por cima estou farta dele sexualmente. Depois de vinte anos ja se sabe tudo: o que € que © outro quer, o que € que 0 outro gosta, quanto tempo € que dura, nao tenho pachorra para ele. Catarina —Mas ao menos ainda te deseja ao fim destes anos todos. Beatriz — Ah, aquilo € porque € muito mais c6modo. Estar ali eu ou outra qualquer é o mesmo para ele. E por isso que eu me vingo! Ao menos ou outros com quem eu ando querem estar comigo porque sou jeitosa, ou porque tenho piada, ou porque acham que sou inteligente, nao é porque tem de ser. Catarina —Eagora, com quem é que andas? Beatriz —Como € que sabes? Catarina — Esse lume nos olhos, esse entusiasmo, nao és s6 tu que me conheces... Beatriz—Ai, ele élindo! Catarina—E mais? Beatriz—Juro que nao te zangas comigo. Catarina —Juro, mas diz l4. Beatriz—Tem vinte anos. Catarina—O qué? Beatriz —Sim, e € lindo, e eu sinto-me com quinze anos ao pé dele. Catarina —Es uma depravada! Beatriz — Catarina! Tu? Nunca pensei ouvir isso de ti. Quer dizer, se fosse um homem, era um grande macho porque tinha conseguido engatar uma mitida de vinte anos, agora eu, sou uma depravada! Francamente, nao te compreendo! Catarina —Tens razdo, € que me apanhaste assim desprevenida... Mas entao diz 14, como é que € elena cama? Beatriz—E o m4ximo! Est4 sempre pronto e é a noite inteira. E fantastico. Catarina —Sua comilona! Nunca hés-de mudar. Mas € assim que eu gosto de ti. Ecomoé quese conheceram? Beatriz — Nem imaginas! Foi numa discoteca. Estévamos os dois j4 muita bébados e quando demos por nés estévamos a dar uma queca num pontao dum cais que havia lé por perto. Catarina—Bem, que histéria!... Beatriz— Espero que nao te importes, mas disse-lhe para vir cé ter... Catarina - O qué?! Mas eu pensei que vinhas cé passar o fim-de-semana comigo! Beatriz — E que eu tenho tao poucas oportunidades... E assim o Filipe nao desconfia. Catarina - Contigo é sempre a mesma coisa. Beatriz—Tu perdoas-me, nao perdoas? Catarina —Tu sabes que sim. Beatriz— Era uma vez... Catarina —Era uma vez um colar de pérolas... Beatriz - Era uma vez um colar de pérolas dentro de uma caixinha de misica... 17 Catarina - Era uma vez um colar de pérolas dentro de uma caixinha de mtisica com uma bailarina a dancar... Beatriz - Era uma vez um colar de pérolas dentro de uma caixinha de musica com uma bailarina a dangar até que lhe fecham a caixa. Catarina - Era uma vez um colar de pérolas dentro de uma caixinha de musica com uma bailarina a dangar até que (Batem & porta). Beatriz— Deve ser ele! Deixa-me léir! Catarina — Até ele bater a porta... Deixem-se estar 4 vontade, suponho que precisas da cama. Nao te preocupes, eu durmo na sala. 22?ACTO Catarina—Acorda dorminhoca! Entdo a noite foi longa... Beatriz— O qué? Ja é manha? Hum... Foi delicioso. Estouc4 com uma fome... Oh, mas tu és sempre a mesma querida, trazeres-me o pequeno-almogo a cama. Comes comigo? Catarina —Porqué? Entao a crianga nao te faz companhia? Beatriz — Foi-se embora logo de madrugada. Tinha um treino nfo sei de qué. Ah, também no interessa. Agora tenho-te a ti para conversarmos. Catarina—Sim, e tu vais-me contar tudo com os pormenores todos. 19 Beatriz —Nao sei se me consigo lembrar de tudo... Catarina —Deixa-te de tretas! Os pormenores todos e ja! Beatriz—Que queres que te diga? Olha, foram trés seguidas! Catarina—O qué? Como é que foste arranjar um gajo assim? Beatriz—E é dos que gostam de chupées! Catarina —Uau! Beatriz —E faz umas massagens nas costas quase tao boas como as tuas. Catarina —Endo te escreveu nada? Beatriz—Tentou, coitado, mas nada que se parega com o que tu me costumavas escrever. Catarina —Estou a perder qualidades... Beatriz—Tu? Nao, tununca as perdeste. Catarina —Nao é nada disso, sao estes putos novos que j4 nao sabem escrever. Beatriz — Também nfo é assim. Olha, est banal mas nao deixa de ter estilo. ( Mostra-lhe um papel). Catarina—Nada mal, um papel perfumado... O rapaz é romantico, sim senhor. Beatriz —Pois, o pior é que diz que quer casar comigo. Catarina—Jura! 20 Beatriz— Sim, quer que eu deixe 0 Filipe para me casar comele. Catarina—E entao, o que é que vais fazer? Beatriz— Estas-me a ver deixar o Filipe para me casar com um puto musculoso! Catarina — Beatriz, estas a ser uma cabra! O rapaz é capaz de gostar mesmo de til Beatriz — O que é que queres? Sao muito divertido na cama, mas depois uma pessoa fala-lhes em Mondrian e eles dizem que nunca ouviram nada desse cantor. (Risos) Catarina — Mas isso nao € razAo, podias ensiné-lo... Beatriz — Eu, armada em pigmaleao? Nao, nao tenho paciéncia. J4 estou velha paraisso. Catarina —Velha, a partir o corago.a meninos novos... Beatriz — A queimar os tiltimos cartuchos... Catarina — Tens é medo de te apaixonar. Beatriz—E de voltar a comer o pé da alcatifa... Nao, nao estou para isso. JA viste o que seria de nés, de mim daqui a dez anos? Ele na forga da vida e eu uma velha muito acabada e gasta. Catarina — Nao digas isso. Sabes bem que és uma mulher cheia de encantos. E depois, se ele te deixasse por causa do teu corpo, também nao era digno de ti. Beatriz —L4 ests tua pensar que toda a gente é como tu. A minha alma ja ta dei hd muito tempo... Catarina — Eu sei, mas podias deixar alguma coisa para os desgragados que tm oazar de se queimarem nas chamas da tua paixao.(Riem) Tens um cigarro? Beatriz—Mas tu agora fumas? Catarina — Muito de vezem quando, para saborear 4 vontade o prazer do fumo. Beatriz — Vou verse ainda tenho umna minha carteira. E que a noite foi mesmo longa... Sabes que dei por mim com a blusa toda desabotoada sem me ter apercebido? O raio do puto percebe mesmo da coisa. Sabes como é? Uma subtileza misturada coma arte de ser selvagem? Catarina—Vagamente, o Manel também... Beatriz — Ai agora sou eu que no quero que fales do Manel. Nao te quero ver deprimida por causa desse parvalhao. Catarina—Mas sabes a melhor? Parece que agora est4 impotente. Beatriz—Ha! HA! Bem feito! Deus escreve direito por linhas tortas. A desprezar aminha amiga... Olha, foi um belo castigo. (Otelefone toca. Catarina vai atender. Imediatamente apaga o cigarro). Catarina — Olé mae. Sim, esta tudo bem, e tu? Ai €? Nao, vou-me embora hoje... Néo, nao. Olha, sabes quem é que est4 aqui comigo? Eaminha amiga da faculdade, a Beatriz, ndo lhe queres falar? Ok, fica para a proxima. Sim, esté descansada que eu fecho tudo. Nao, os mitidos esto com o Humberto, nao ha problema. Nao, ndo quero que vis Ié,...nido. Sim, outro para ti, tchau. Desligao telefone) Uf! Que chata! Imagina que agora queria ir lé para casa. Para além de ter de ouvir o Humberto durante um ano, mal ela visse a pilha de roupa por passar, nunca mais se calava com isso para 0 resto da vida Que eu sou uma desleixada, que eu... Beatriz ~ Catarina! Agora estas com medo da tua mae por causa da roupa por passar? Caramba, és uma mulher licenciada, tens mais com que te preocupar do que coma lida da casa! Manda os preconceitos da tua mae as urtigas! Catarina — Tu ao menos nao te podes queixar. A tua mac deve ser a mae mais querida do mundo. Agora a minha, sd pensa em festas e divertir-se. Beatriz — Realmente a tua mae é um bocado estranha, mas que mal tem em ela querer divertir-se? Catarina — Nao sei, é algo que ainda nao consegui resolver dentro de mim. Acho que ela nao foi uma boa mie, e no fundo, com que direito 6 que eu digo isto? Beatriz—Por ter agarradoa carreira? J4 pareces um homema falar! Catarina — Nao sei... Quando era mitida o meu maior sonho era que a minha mae me aparecesse de avental 4 porta, toda coradinha, deixando adivinhar um cheiro a bolinhos vindo do forno. Estipido, nao é? Principalmente quando as minhas amigas me pediam para eu lhes emprestar a me por uma semana. Beatriz—E quando andavas furiosamente a lutar pela libertagao da mulher! Catarina - Mas as mies delas nao [hes davam comida congelada todos os dias. Nao admira que o meu pai nao tenha aguentado. Ela nunca mereceu o meu pai. Beatriz - Mas parece que ela no gostava muito de mim, pois nao? Catarina — Nao. Pensava que me levavas por maus caminhos. (risos )Mas ela ainda exerce um grande dom{nio sobre mim. N&o viste como € que eu apaguei logo ocigarro? Que parvotce! S6 por causa disso vou acender outro! Beatriz—Bravo! Rebeldia acima de tudo! Qual é0 signo da tua mae? Catarina~E Ledo. Beatriz—Claro! Os Ledes adoram dominar. Catarina —Ai ledo, ledo, se eu tivesse aqui 0 beijo de uma donzela e uma sopa de pao, eu te diria a timeu ledo. Olha 14, quando é que fazes a minha carta astral? Beatriz — Pois é, j4 te prometi isso hé tanto tempo... Sou mesmo uma malvada, naosou? Catarina—Es, mas eu adoro-te. Beatriz — Eu sei, minha bichinha querida. E por isso que eu As vezes abuso. Sabes uma coisa? Estamos aqui hé horas e eu ainda nao tomei banho. Catarina —Dizantes, euainda nao ouvi ninguém gritar comigo. Beatriz—Era tao bom passar 0 resto do tempo assim... contigo. Catarina —Pois era, era bom de mais. Estou farta de aturar homens. Beatriz—Qualquer dia fujo contigo. Catarina — Boa! Fugimos as duas! Para onde? Beatriz—Para um pafs latino cheio de homens bonitos! feararinats (omic level ar de desapontamento) Alte (Distireando) Sins para o México, para Itélia, paraa Grécia! Onde ninguém nos conhega! Beatriz —Ento est combinado. Vou tomar banho e quando vier fugimos! Catarina—Combinado! 24 (Catarina fica s6. Comega a arrumar a louga do pequeno-almogo e de repente véum homem a porta.) Catarina — O que é que ests aqui a fazer? Nao te chegou a noite toda? Nao, a Beatriz nao est, j4 foi para Lisboa! (Deixa cair 0 tabuleiro. Comega a gritar histericamente): Porra! $6 a mim é que me acontece isto. J nao basta a minha vida ser uma merda, agora isto. O meu servigode cha preferido! Beatriz— (De dentro) O que foi querida? © que aconteceu? Catarina —Parti tudo Beatriz — (Chegando ao pé de Catarina) E estds a fazer uma cena dessas por causa da merda de umas chévenas? Eu oferego-te outras. Catarina — Nunca percebeste nada pois néo? Deixa-me, vai ter com o teu musculoso! Beatriz—O que é que eununca percebi? Que ressentimentos sio esses? Catarina ~ Nada, sou eu que ja nao sei o que digo. Beatriz — Olha para mim. Nao mintas. Sou ou nao sou a tua melhor amiga? Entao em nome dessa amizade zanga-te comigo, faz uma cena! Catarina — E a minha vida que anda uma merda! Hé mais de vinte anos que ando a tentar acertar e nao consigo. E olha ao que eu cheguei. Acho que falhei emtudo. Beatriz—Tens-mea mim. Catarina —Eununca te tive a ti. Nunca deixaste. Beatriz—Nunca deixei o qué? 25 Catarina — Que ficdssemos sozinhas. Tinhas sempre que trazer uma catrefada de homens cé para casa. Beatriz — Era para nos divertirmos. Nao me digas que tu também no... Nao! Tues Catarina — Sim. Sempre te amei. Sempre te desejei. Nunca homem nenhum me soube fazer feliz porque lhe faltava a delicadeza das tuas mos femininas, 0 rocar dos teus cabelos nas minhas costas, o toque suave dos teus dedos quando me pintavas os olhos. Beatriz — Mas parecias sempre téo entusiasmada quando arranjavas um namorado novo... Catarina — Porque gostava de te ver feliz. Beatriz — Mas tu sabes que eu nunca te poderia dar... sexo. Gosto demais de homens. Catarina — E que diferenga é que isso faz? Também nfo o tenho agora... E sempre tinha a felicidade de te ver acada momento. Beatriz—E eu? Também ficava celibataria convicta? Catarina — Nao,... Podias andar como andas agora, com outros tantos Zés, musculosos e burros. Eu sabia que nao era importante e via-te feliz. Beatriz —Nao, no, nao pode ser. Diz-me que nao € verdade. Isto nao tem légica nenhuma. Catarina — Pois nao. Nao tem légica nenhuma mas é assim. Eu sinto por ti uma paixdo enorme e nao tenho de ter vergonha dea sentir. Beatriz — Mas tenho eu vergonha de nao a saber receber e de te fazer sofrer assim. Eu nao quero. Es a minha melhor amiga, eu adoro-te. $6 tens que encontrar o homem certo. Catarina — Nao Beatriz, eu procurei muito. Tive centenas de casos mas nunca deram certo. Acabei por casar com o Humberto porque era o que tinha uma sensibilidade mais feminina, mais parecida contigo. Mas foi um erro. Beatriz —Entao foge, salta dessa relagao que te esté a amargurar e a fazer pensar coisas que nao sao verdade. Catarina — Sao verdade! Se nao tens estofo para as aguentar sai de vez da minha vida. Beatriz — Eu no quero perder a tua amizade. S6 nao quero que confundas as coisas. Catarina — Onde € que foste buscar essa pseudo-moralidadezinha? Nao te estoua reconhecer! Beatriz — Sei lé... E uma parvoice, eu sei... Estou a pensar no que seria a minha vida se tivesse percebido... e ficado contigo. Catarina—E tarde. Beatriz—Tujé me terias deixado. Eu sou horrorosa quando vivo com alguém. Catarina—Nao tinha. Beatriz—O que deves ter sofrido... porque € que nunca me disseste? Catarina — Porque sempre pensei que adivinhasses. Beatriz—Eagora? Catarina—E agora o qué? Beatriz—Nunca mais nos veremos? Catarina— Nao, nunca mais nos veremos. Beatriz—Perdoas-me? Catarina —Sempre. Perdoa-me tu também. Beatriz—Adeus. (Pega na roupa e sai) Catarina — Adeus Beatriz. (Toca o telefone e Catarina atende) Estou, ah. Es tu, sim... estou bem. Sim, vou-me embora hoje. Sim, diverti-me imenso. Os mitidos, esto bem? Optimo. Sim, era uma ideia. Onde? Ao chinés? Esté bem Vens-me cd buscar? Est4 bem, entdo eu espero. Também tive muitas saudades tuas. Sim, um beijinho e até logo. Dé um beijinho por mim aos mitidos. ‘Tehau. (Catarina vai ver o mar. Fecha ajanela. Apagam-se as luzes). FIM IDEIAS DO LEVANTE Associag4o Cultural de Lagoa 2? edigdo 500 Exemplares Janeiro de 2000 Lagoa

Você também pode gostar