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A CACHORRA DA MÃE DO DELEGADO

Morando juntos, Zé e Rosa agora dividiam as tarefas. Todos os dias, Zé Firmino acordava mais
cedo e preparava o café. Rosa, apesar de ser a mulher da casa, nunca havia cozinhado, e Zé, tendo morado
sozinho por um bom tempo, teve que aprender a fazê-lo. Claro que o café dele não era lá grandes coisas,
mas não tinha outro mesmo.
Depois Rosa acordava (era mal-costume mesmo), tomava seu café e ia fazer seu trabalho. A Zé
Firmino cabia plantar e colher. Também era ele quem ia vender tudo na feira depois. Não queria que a
mulher, que antes morava na cidade, trabalhasse como feirante ou calejasse as mãos na roça.
Depois de ter voltado da capital, Rosa ficava em casa vendo o tempo passar. Não estudava,
trabalhava ou fazia qualquer coisa que pudesse ocupar seu tempo. No máximo conversava com alguma das
mulheres da casa ou saía para ver o movimento na rua.
No sítio, Rosa apenas cuidava dos animais: algumas galinhas, uns passarinhos que criavam e uma
ou duas vaquinhas que Zé comprou outro dia. Sempre gostou de animal. Claro que animal da cidade é
diferente. O povo da cidade cria gato, cachorro, no máximo um passarinho. Na roça era diferente, mas
Rosa gostava. Gostava até do Zeferino, que apesar de lerdo, já agüentou muito tranco na vida.
Mais difícil foi se acostumar com o pouco movimento, com os mosquitos, com a dificuldade para
comprar alguma coisa. Durante a semana, praticamente não ia até a cidade. Preferia ficar sozinha no sítio,
enquanto o marido ia até à cidade para comercializar. Contudo, passados alguns meses, também já estava
mais adaptada à nova rotina do campo.
A casa onde moravam era muito simples: um pequeno espaço na frente que se assemelhava a uma
varanda; depois uma sala, com dois sofás já velhinhos; um pequeno corredor que dava na cozinha,
localizada nos fundos da casa; de frente para o corredor, as portas dos quartos, dois, apenas do lado direito
de quem olhava da sala para a cozinha. Já fora da casa, depois da cozinha, um tanque para lavar as roupas.
Mais adiante, uma cacimba. E, finalmente, mais para trás ainda, a casinha, que seria o banheiro da casa.
Próximo, tinham ainda um galinheiro.
Eles praticamente não recebiam visitas. Sua mãe nunca a visitou. As vezes que via a mãe era
quando ia à cidade com Zé. Quem mais visitava o casal era Pedro Pereba, melhor (e único) amigo de Zé
Firmino.
O povo da cidade ignorava Rosa. Tanto porque agora ela morava no campo, quanto porque havia
escolhido justamente o único homem que não esperavam que pudesse se casar com ela. Já de Zé, alguns
tinham raiva mesmo: Dona Adélia, principalmente, boa parte dos homens da cidade e até padre Lauro,
pelas insinuações que voltara a fazer sobre sua cobrança pelo dinheiro dos fiéis durante as missas.
Mas eles não se importavam. Aos domingos, Zé levava Rosa para a missa na igreja da cidade.
Também levava a esposa para visitar sua mãe algumas vezes.
A vida do casal era essa mesma. Pouca coisa mudava. Mas, de uns tempos pra cá, Rosa anda muito
preocupada. Parece que um ladrão resolveu roubar o sítio deles. Primeiro foi só uma desconfiança, mas a
moça andou contando as galinhas e notou que faltavam algumas. Também notou que alguns pertences
andaram sumindo.
- Ô, Zé. Contei as galinha hoje e dei falta de duas.
- Ôxe! De novo essa cunversa, muié?
- E parece que aquela sua samba-canção de bolinha sumiu do varal também.
- Como é?! Agora danou-se tudo! Vou falar com o delegado, e é agora mermo!
Zé Firmino aprontou Zeferino e partiu para a cidade. Só não foi correndo por causa da lentidão do
jegue. Mas se pudesse, viajaria que nem um raio pra poder falar logo com o delegado. Depois de algum
tempo, chegou à cidade e à delegacia local.
- Bom dia. Quero falar com o delegado.
- Sinto muito, mas ele não se encontra. – respondeu o policial quase sem se mexer.
- Como não? Pois acabou de passar ali! – apontou pro pequeno corredor mais adiante por onde o
delegado passava.
- Passou. Mas pediu pra ninguém importunar ele hoje.
- Péra só.
Firmino passou pelo policial que, de tanta preguiça, mal se mexeu, e abriu a porta por onde o
delegado havia passado.
- Olha só, seu delegado. O senhor vai me atender ou não?
- Vou sim. – disse o delegado olhando pra trás. – Mas dá pra esperar eu sair do banheiro?
Firmino olhou em volta.
- O senhor me desculpe... É, é... Tô esperando na sua sala do senhor.
Zé Firmino esperou alguns minutos até que o delegado viesse. Este entrou na sala e sentou-se em
sua cadeira fazendo pose de importante.
- Vamos. Me diga qual o problema.
- Eu vim aqui porque tem algum safado roubando as coisas lá do sítio. Primeiro minha muié deu
falta de umas galinhas que nós criamo por lá. São umas galinhas boas. O senhor tem que ver o ovo que as
danada bota...
- Isso não interessa agora!
- Mas são ovo da mió qualidade...
- Certo, certo... Agora continue que o tempo é curto!
- Calma! – parou por um tempo. – Depois demo falta de outras coisas. Até minha cueca de
estimação o peste carregou!
- E o que eu tenho a ver com isso? Vê lá se eu vou ficar atrás de ladrão de galinha... e de cuecas!
- Mas o sinhor é o delegado!
- Sou, mas só para assuntos de maior importância.
- Bom, assim sendo, num posso fazer nada. Vou voltar pro sítio e avisar a Rosa que o delegado não
pode ajudar...
- Você disse Rosa?
- Disse. O sinhor tá ficando môco?
- Não tô mouco, não. E o senhor me respeite, que sou a autoridade local!
O delegado se aproximou de Zé Firmino e lhe falou próximo do ouvido:
- Mas venha cá. Você acha que Rosa pode contar a mãe dela?
- Bom, e por que não?
O delegado colocou a mão no queixo e parou para pensar um pouco. Ele não podia contrariar Dona
Adélia, a mãe de Rosa. E se esta soubesse que ele deixou de ajudar sua filha, estaria frito. Aproximou-se
novamente de Zé Firmino.
- Veja bem. A cachorra da minha mãe deu cria há pouco tempo. Eu vou lhe arranjar um filhote. E
para pegar o gatuno, vou mandar um policial ficar escondido na sua casa hoje. Quando o ladrão aparecer,
pega ele no flagra.
- Muito obrigado, dôtor delegado! Agora posso ficar tranqüilo.
Zé Firmino levantou-se da cadeira e caminhou em direção à porta. Quando ia saindo, o delegado
lhe recomendou:
- Lembre-se de dizer à Dona Adélia da ajuda que estou prestando à filha dela.
Zé balançou a cabeça e saiu.
Alguns diziam ser o delegado apaixonado por Dona Adélia, outros afirmavam ser só medo mesmo.
Independente do que fosse, tudo o que tivesse a ver com a mulher deixava o delegado Abelardo Poltrão
preocupado.

Anoiteceu e, ainda cedo, um homem bateu à porta do sítio.


- Boa noite. Eu fui mandado pelo delegado. Meu nome é Manoel.
- Pode entrar.
Quando o homem entrou, Zé percebeu que este carregava um cachorro nos braços.
- Presente do delegado. Ele mandou um bilhete também.
Assim que entraram em casa, Zé chamou Rosa. Ela, que estava no quarto, foi ver do que se tratava.
O homem que entrara com Zé deu uma boa olhada em Rosa. “Isso aí é mulher pra deixar qualquer um
doido...”
- Olha aqui, muié. Presente do delegado. Vai pegar os ladrão que andam roubando o sítio.
- Não tá muito pequeno, não?
- Pequena. É fêmea. Mas vai crescer. É bom de pequeno pra acostumar. – disse o policial.
Rosa pegou a cachorrinha e gostou dela logo que viu. Zé Firmino lhe entregou o bilhete que o
delegado mandara.
- Aqui diz que era uma das preferidas da mãe dele. Pede pra cuidar muito bem dela. Diz pra
lembrar de contar a minha mãe que ele me ajudou. Que preocupação mais besta... Sabe o que é isso, Zé?
- Bom... É... É... E qual é que vai ser o nome?
- Princesa.
- Princesa?! E isso lá é nome de cachorro?! Bota piaba, tainha, baleia...
- Nada disso. A minha vai ser princesa.
- Nominho mais esquisito... – comentou Zé Firmino. -Rosa, a cachorra tá cum raiva deu. Tá
rosnando.
- Deixa de cisma, hômi. Ela é educada que nem uma princesinha.
Começou a ficar tarde e o policial achou que já era hora que se esconder pra pegar o ladrão. Quase
convenceu Zé de que a melhor vista era do quarto onde Rosa dormia e de que Zé deveria se esconder no
galinheiro. Rosa, percebendo a esperteza, fez com que trocasse os lugares. Assim, Zé ficou dentro de casa,
espiando pela janela, e o policial foi pro galinheiro.
Lá pelas tantas da madrugada, a barriga de Zé roncou. Alguma coisa lá dentro não ia muito bem. O
rapaz estava realmente muito apertado.
- Ô desgraça! Preciso ir na casinha agora mermo!
Zé Firmino nem teve tempo de pegar o candeeiro. Com uma mão na barriga e a outra... (bom, deixa
pra lá!), Zé passou pela cozinha e correu pelos fundos da casa até a casinha.
No galinheiro, o policial, que deveria estar vigiando, já estava no décimo quinto sono. Só acordou
quando ouviu o barulho da porta da casinha fechando.
- Quer dizer que é ali que o fio da peste se esconde... Na certa, deve ter visto eu aqui e resolveu se
esconder de tanto medo. Mas agora eu acerto a vida desse sujeitinho...
Manoel armou sua espingarda e, devagarinho, caminhou até a porta da casinha. Esperou alguns
segundos e bateu forte duas vezes.
- Pode ir saindo daí! – gritou o policial.
- Ôxe! Nem vem que eu acabei de entrar! – respondeu Zé.
“Mas que ladrãozinho mais ousado esse...” – pensou Manoel. Vou acertar a vida dele. Ele vai ver
só!
- Saia daí agora, se não vai levar chumbo!
- Respeite os outro, rapaz! Espere eu sair ou então procure uma moita procê.
- Se num abrir essa porta, eu vou arrombar!
- Tenha paciência, hômi! Tenho certeza que, com uma caganeira maior que a minha, você num tá!
Manoel tomou distância, correu e, com um chute, abriu a porta da casinha. Nem esperou pra ver
quem era. Levantou sua espingarda, armou-a e apontou para a testa de Zé Firmino.
- Ave Maria do Céu! – gritou Zé, desesperado. – Se tu tivesse cum tanta vontade assim era só falar.
- Oxê! É tu, hômi? – Manoel estranhou ter encontrado Zé Firmino lá dentro.
- Num precisa ficar nervoso... O senhor já pode usar que, depois dessa, já desceu foi tudinho...
Esperaram o resto da noite. Parece que o tal ladrão desistiu de roubar o sítio do Zé. Vai ver arranjou
um lugar melhor. Assim sendo, de manhãzinha, o policial foi embora.
Zé notou logo que a esposa tinha muita estima pela cachorrinha que ganharam. Isso é bom. Pelo
menos agora Rosa não se sentiria tão só. Mas que Princesa não era nome de cachorro, isso não era!

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