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Capítulo 1

Estou morto. Para ser mais claro, estou literalmente morto. Às vezes vagando entre os vivos
como um mero espírito, ou vagando pelo vazio eterno na espera de um lugar no paraíso, ou de
uma segunda chance de vida.

Posso dizer que eu Alec sou como uma flor, fui perdendo minhas pétalas com o tempo, e agora
perdi a vida que nem ao menos vivi direito. Estou sentado em uma cafeteria em Paris, na frente
da belíssima torre Eiffel, não posso dizer se o clima está frio ou quente afinal o sangue não
corre mais pelas minhas veias, mas vejo as estrelas e a lua no céu iluminado acima. Ninguém
me vê, no máximo conseguem sentir um calafrio se estiverem perto, mas para eles serei
apenas um vento gelado, em qualquer uma das estações do ano. Não consigo mais dizer ao
certo em que ano estamos ou mês, nem ao menos o dia. À dias que me pego pensando em
lembranças de uma vida que agora não é mais minha, vejo imagens breves passando em minha
mente do futuro que eu poderia ter tido.

Observo um casal jovem se aproximar da mesa que estou sentado, há quatro cadeiras
dispostas, como se eu nem ao menos ocupasse uma delas. São dois garotos, jovens e bonitos,
um ruivo com a pele um pouco queimada pelo sol, ele é alto e esguio diferente de seu
parceiro, um garoto loiro da pele bronzeada, seu corpo é mais forte, seu olhar brilhando ao
olhar para o outro. Não levanto-me da mesa para observar o amor, algo que eu nunca pude ter,
nunca tive algo que desse certo, já tive pessoas de momento, que eu tinha uma transa ou
apenas carícias, e que logo após partiam sem ao menos dizer adeus.

Suas mãos estão uma sobre a outra na mesa quando chamam o garçom que os chamam de
messieurs. Quando ele sai, os dois voltam a conversar, sobre coisas que não consigo entender,
que um dia, quando eu tive uma vida, eu poderia ter entendido. Provavelmente trocas de
elogio ou planejamentos de um futuro com filhos e um cachorro que animará a casa.

Decido ir embora deixando os dois sozinhos, vou em direção à calçada observando pessoas
passarem em minha volta ou até me atravessando meu corpo espectral, elas estão sorrindo de
assuntos que hoje já não entendo, mas que me animo ao ver a felicidade, a animação. Queria
ter meus sentimentos de volta, queria poder sentir da felicidade à tristeza, dar gargalhadas até
meu estômago doer ou chorar até não haver mais lágrima em meus olhos, que em minhas
lembranças eram azuis como o oceano.

Em algum tempo quando paro de contar percebo minha chegada ao famoso rio Sena, estou
andando sobre a ponte que percorre logo acima da água cristalina que brilha com a luz das
estrelas, observo casais apaixonados passarem em minha frente, com os braços envoltos um
sobre o outro. Mas para minha surpresa vejo uma garota, sozinha observando a tela que está
em sua mão, lágrimas começam a deslizar sobre suas bochechas, que ao luar parece diamantes
derretidos, tenho vontade de abraçá-la e fazer de seus problemas lembranças de um passado
ruim e vago, vou em sua direção, pousando minha mão em seu ombro, quando a toco consigo
sentir suas vibrações, que agora estão aceleradas e confusas. Vejo um lampejo de sua vida, as
discussões de seus pais, uma mãe boa demais com tudo, e um pai ausente causando
problemas em sua filha, uma namorada que acabou de deixá-la, por um meio de comunicação
impróprio para a situação.
Ela sobe no parapeito da ponte, ficando em pé, tento tocá-la, segurá-la, mas quando pisco já é
tarde, vejo o lampejo de respingos da água, quando a garota decidi tirar a própria vida. Vejo
seu espírito subir para a ponte e ficar ao meu lado, seu olhar está calmo, como se nada daquilo
tivesse acontecido, ela me olha, me dizendo cautelosamente:

-Por quê ainda estou aqui?

-Você tirou sua vida, terá que vagar na terra assim como eu, até que algum ser poderoso tenha
dó de você e te dê seu sono eterno.

Vou embora largando a alma dela, agora perdida, sozinha para vagar onde quiser.

...

Agora o sol está sobre mim, não sinto seu calor, seu brilho já não incomoda mais meus olhos,
viro meu olhar até o chão, vendo a luz bater na calçada de mármore de um hotel que fico
quando tem um quarto vazio, afinal não estarei ocupando verdadeiramente, o mármore
branco reluz com o brilho do sol, onde era para estar minha sombra agora já está vazio, a
espera de sua volta, de minha sombra alta e esguia , que há muito já não sei como é ter sua
presença.

Sigo em direção ao Champ de Mars, sua grama está verde e viva, algo que eu já não estou. Há
famílias sentadas em lençóis fazendo piqueniques, que um dia já sonhei em fazer com amigos
que não me lembro mais. Um gato passa por mim com um cachorro em seu encalço, nesse
momento minha boca se curva em um leve sorriso que gosto de sentir, olhando assim lembro-
me daqueles filmes que passavam na TV, me causando sensações diferentes a cada instante.

Lembro-me dos livros, com capas diferentes sempre chamando minha atenção, histórias
diversas do drama até o romance, do mistério à fantasia, lembro do aroma das páginas quando
o livro era aberto, da xícara de café quente posta à mesa. Mas agora só posso pensar nas
lembranças , que agora já não são mais minhas.

Saio em direção à rua, vendo de carros mais caros como um Bugatti Centodiec à um simples
Corsa. Vejo pessoas que esbanjam os bens que possuem com sacolas cheias de produtos
desnecessários, mas também há os mais simples, que mesmo com o pouco, continuam felizes.
Uma mãe anda com o filho de mãos dadas na rua, ouço a conversa dos dois, a criança com
toda pureza que tem pede:

-Maman compra um croissant para mim?

Ela revira os bolsos atrás de algum trocada para saciar a vontade da criança, quando não acha
nada ela responde:

-Mon amour estou sem dinheiro agora, juro que a maman compra para você outro dia.

A criança balança a cabeça em aceitação, sem chorar ou fazer cara feia. Mas quando preto
atenção, vejo que havia uma senhora os olhando, ela estava com um pacote na mão, ela andou
mais rápido em direção à mãe e o filho, segurando seu ombro para pará-los.

-Olhe, comprei para seu filho.


-Madame não precisa se incomodar com isso.

-Aceite minha jovem, e faça uma boa ação à alguém quando puder.

A mãe aceita o pacote entregando à criança que dá pequenos pulos de alegria, ela agradece a
senhora partindo logo em seguida.

...

Vago noite à dentro, postes de luz brilham sobre fachadas de diferentes restaurantes, um deles
me atrai, a parte da frente é revestida em mármore branco , com reflexos que já estão perdidos
em meu olhar. Há pessoas jantando do lado de fora, onde um homem alto toca um violino, o
som suave, que me causaria alegria se eu estivesse vivo. Presto atenção em um casal a minha
frente, o homem se levanta da mesa assustando a jovem moça à sua frente, ela fica espantada
e começa a chorar, ele sem saber o que fazer vai embora, deixando-a sozinha em prantos.

Poucas quadras depois vejo um bordel já muito famoso, sua entrada tem luzes vermelhas
dando contraste ao piso de madeira. Sigo em direção à entrada, do lado de dentro vejo
homens de diversos lugares, falando línguas que há muito não me lembro, eles esbanjam seu
dinheiro sujo. No palco à frente mulheres nuas dançam sem parar, uma delas desse do palco
até um homem de aparência jovem, sua pele negra brilha com a luz e o pouco suar que escorre
sobre ela, seus seios fartos chamam o olhar do rapaz até ela. Isso mostra-me o quão suja a
sociedade pode ser, o jeito que esses homens tratam essas mulheres, como se elas fossem
meros objetos; pelo olhar delas consigo identificar muitas coisas, como a dor, o
arrependimento e até mesmo a tristeza. Algumas estão aqui para se sustentar, porque
precisam do dinheiro, isso não é por diversão, nunca foi por diversão ou amor.

Decido ir embora, sinto uma sensação igual ao enjoo que já não posso mais ter, se ainda
tivesse minhas entranhas elas estariam doloridas, propícias ao enjoo, a vontade intensa de
vomitar, mas agora isso não é possível.

Decido voltar o Rio Sena uma última vez antes de partir. A ponte está vazia, nenhum rastro do
suicídio cometido pela garota na noite passada, alguém realmente pensou onde ela estava?
Alguém se preocupou em procurá-la? Ou se perguntou se ela estava viva.

Vejo uma sombra que eu temo à um tempo, ela está vindo em minha direção, sua forma é de
uma mulher muito bela, cabelos escuros como a noite vão até sua cintura, seus olhos sãos
vazios sem nenhuma expressão. É ela, a morte.

-Boa noite monsieur Alec. Estava a sua procura.

Sua voz está calma e cansada, provavelmente por dizer a mesma coisa para outras pessoas
todos os dias.

-Eu não esperava vê-la aqui madame morte. Diga-me o que tanto aflige você.

-Sua indecisão. Por quê não parte logo. Você poderia estar em paz agora, descansando em um
lugar calmo, ou poderia viver outra vida se assim desejasse. Não entendo seu fascínio pelo
mundo humano, que agora não pertence mais à ti.
-Quero ver lugares que não pude ver quando era vivo, conhecer costumes e ver as pessoas
vivendo o que não pude viver.

-Você me deixa confusa, mas é sua escolha. Eu voltarei Alec, e você precisará tomar uma
decisão, e se não tomar, garanto a você, que seu descanso nunca existirá.

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