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Capitulo | A pena na cultura dos povos primitivos 1, Consideracées iniciais Para 0 estudo do fenémeno do mito punitivo, a partir de uma visao diacrénica, torna-se imprescindivel, inicial- mente, examinar suas origens, para que se possa perceber como surgiu essa realidade mitica nos primeiros grupos de individuos. Na seqiiéncia, é importante compreender como ocorreu a transferéncia gradativa das formas de castigo para um poder central, encarregado de administrd-lo e aplica-lo. Atualmente, embora os sistemas penais busquem ali- cergar-se teoricamente em postulados tidos como racionais e cientificos, com limites tragados pelos princfpios funda- mentais de direitos humanos, constantes em textos consti- tucionais, do ponto de vista pratico arrimam-se em funda- mentos miticos de vinganga e castigo. De fato, como sublinha Alipio de Sousa Filho,“(...) nao podemos deixar de reconhe- cer a existéncia de uma relacdo entre o fendmeno da acei- taco dos castigos, tortura e penas de morte, em diversas so- ciedades, e o fendmeno, comum a todas essas sociedades, de produgao de representagdes sociais de culto 4 Ordem como natural, necesséria e inevitdvel, de que nascem os mi- tos legitimadores dos castigos que merecem todos aqueles que atentam contra o instituido, o estabelecido”'. 1.Alipio de Sousa Filho. Medos, mitose castigos: notas sobre a pena de mor- te, p. 10. Segundo o mesmo autor,"(..) as sociedades se valem dos mitos de Digitalizado com CamScanner 6 FUNDAMENTOS DA PENA Para o estudo dos mitos de castigos oriundos das comu. nidades primitivas, além dos antigos documentos, 0 exame comparativo do homem arcaico com 0s povos atuais, orien- tados por uma realidade simbdlica, de cunho primitivo, guardadas as necessarias reservas, poderia dar uma idéia de como viviam os homens primitivos, no que se refere a tu- tela social ea garantia da permanéncia da comunidade por meio da imposigdo de castigos a determinadas transgres- sides’ Se nos documentos antigos sobre os primitivos po- dem-se encontrar apenas fragmentos de uma época, nas observagdes atuais sobre os selvagens de hoje pode-se ob- servar todo um sistema de regras, que deve guardar seme- [hanga com o do homem primitivo quanto a forma de con- trole social. Segundo Freud, “ha homens vivendo em nossa época que, acreditamos, estao muito proximos do homem primi- tivo, muito mais do que nds, e a quem, portanto, conside- ramos como seus herdeiros e representantes diretos. Esse é © nosso ponto de vista a respeito daqueles que descreve- mos como selvagens ou semi-selvagens; e sua vida mental deve apresentar um interesse peculiar para nds, se estamos certos quando vemos nela um retrato bem conservado de um primitivo estégio de nosso proprio desenvolvimento”*. A partir desse raciocinio, percebe-se, por exemplo, a se- melhanga entre o fundo magico existente nas praticas pe- sigs pate incutir nos individuos 0 medo, de modo a evitar que desobede- ‘aun o noxmas socais ou destespeitem a vontade dos deuses, das autorida- des, du» anitepassadus etc. O que equivale a educar a todos para a aceitagio da Osdetn Social estabelecida’ (idem, ibidem, p. 19). 2 Tudavia, como observa Anibal Bruno, deve-se “considerar sempre a distinc que weparao homem arcaico das primeiras idades, que se perdeu no 1é-hstinco, ¢ 0 selvagem de hoje, que, por mais rude e primitive que se apnesente pos uma cultura influida por longa experiéncia, digamos, histérica « pelo contato mesmo eventual com homens e fatos da vida civilizada, e, as- sum, com espinio critic, podemos aplcar aos primeiros grupos humanos fa- {us calhidos da observagio atual”(Dieto penal, Parte geral, pp. 54-5). of Sigmund Freud."Totem e tabu”. In: Obras completas de Sigmund Freud, v Xill,p 21 Digitalizado com CamScanner A PENA NA CULTURA DOS POVOS PRIMITIVOS 7 nais das comunidades indigenas ¢ 0 existente nas comuni- dades primevas. Para alguns estudiosos do tema, tal verifi- cacao é constatada com base nas grandes diferengas obser- vadas entre 0 indigena eo homem civilizado. Consoante Joao Bernardino Gonzaga,”enquanto o ho- mem civilizado dispe de grande massa de informagGes (ou pelo menos tem meios de suspeitar a sua existéncia), que lhe dao nitida e tranqiiilizadora compreensao da trama causal que governa os fenémenos naturais -, o primitivo vive per- dido entre mistérios e perigos efetivos ou imagindrios, para os quais nao disp6e de explicacdes racionais. Falta-Ihe ou- trossim seguranca, porque nao tem consciéncia das pré- prias forcas. De conseguinte, sua formacao de imagens se tege pela afetividade; e, para satisfazer o instintivo anseio de explicagdes, o pensamento se volta para o fantastico’. E, contudo, bastante dificil para 0 homem civilizado compreender os fenémenos relativos as sociedades de cul- tura primitiva, por viver em um mundo completamente dis- tinto, com ldgicas amparadas em discursos racionais sobre os fendmenos sociais e naturais. A esse respeito, Peter Winch chama a atengao para o fato de o antropdlogo, ao estudar 0s povos de cultura primitiva, tentar tornar inteligiveis para ele e seus leitores as praticas daqueles povos, apresentan- do por isso informagées que satisfagam critérios de racio- nalidade requisitados pela cultura dos destinatarios dessas informagoes. Em contrapartida, o homem civilizado consi- dera, como paradigma do irracional, a crenga na magia ou a pratica de consultas a ordculos, comuns nas sociedades de cultura primitiva’, Isso porque o pensamento racional arri- 4, Jodo Bernardino Gonzaga. O direito penal indigena, pp. 71-2, Como co- menta 0 mesmo autor,”no caso de um raio que mata certa pessoa, o homem de hoje sabe que o fato se deve ao acaso, e se satisfaz com a apreensio do curto vinculo de causa e efeito que se exaure entre os dois fenémenos, Para o selva~ gem, tal explicagdo nao basta, porque é levado a procurar outras, escondidas por detras do acontecido, nas névoas do sobrenatural” (idem, ibidem, p. 73). 5. Peter Winch. Comprender una Sociedad Primitiva, p. 32. Digitalizado com CamScanner 8 FUNDAMENTOS DA PENA ma-se nas leis da causalidade, enquanto 0 pensamento pri mitivo é simbélico e desse prisma deve ser analisado. Nao obstante a grande variedade de crengas e costu- mes entre as varias sociedades humanas, primitivas ou néo, consubstanciadas principalmente nas diferencas de com- preensao de varios fenémenos sociais e naturais, existem, como explica Peter Winch, principios que nao sao heterogé- neos, mas universais e imutaveis, como a dignidade humana, aconsideragao da crueldade pela tortura, a igualdade de to- dos perante a lei e 0 direito a liberdade®. O que ocorre com esses principios universais, ndo-he- terogéneos, talvez esteja acontecendo com diversos mitos de origem primitiva, como o do castigo, presente tanto nas praticas penais antigas quanto nas modernas. Atualmente, nas praticas penais, permanece uma demanda mitica de vinganga contra quem transgride normas consideradas im- prescindiveis & ordem social, nao obstante os avancos te6 i ibuidos as fungdes das sangGes penais, al | principios constitucionais fundamentais_e na dignidade da pessoa humana. Por isso, assiste razao a Sil- va Sanchez ao apontar, entre as fungdes nao-legitimadoras do Direito Penal, o castigo como necessidade psicol6gica da coletividade, Segundo seu entendimento, nao se admite que uma concepgio legitimadora da intervencao penal seja co- mandada por tendéncias irracionais, devendo haver uma ta- cionalizagao plena dessa intervengao’. Essa espécie de pena, equiparada a vinganga restaura- dora, na concepgao de Nietzsche’, nao resgata as perdas ocasionadas pela ofensa, nao preserva de novo dano e nao repara 0 ocasionado, embora possa pretender exercer a inti- midagio, como forma de autoconservagio da sociedade. Con- soante Mariano Ruiz Funes: "As penas devem inspirar-se em 6. Idem, ibidem, p. 11. 7 Jesis-Mara Silva Sanchez. Aproximacién al Derecho Penal Contemponi- seo, pp. 307-8, 8. Friedrich Nietzsche. Humano, demasiado humano, pp. 145-6. Digitalizado com CamScanner A PENA NA CULTURA DOS POVOS PRIMITIVOS 9 uma idéia de justiga, que corrija o intenso desejo expiatério e anule a vinganca. A justica, ao conferir proporgao razod- vel entre delito, culpabilidade ¢ pena, estabelece a melhor retificacao de todo anseio vingativo. A vinganga visa ao pas- sado. A justiga deve visar ao futuro.”* E importante ressaltar que as grandes diferencas veri- ficadas nas praticas das sangGes penais ao longo da hist6- ria nao se situam em seu contetido mitico de vinganca, mas nas pretensas finalidades a elas atribuidas em cada espécie de sociedade e em determinada época da histéria da hu- manidade. Dai a importancia do estudo dessas finalidades, em consonancia com os mitos de puni¢ao, a partir das prime- vas comunidades, para que se tenha compreensao global do fenémeno punitivo. O mito traduz uma realidade intrinseca.da natureza humana, na qual se insere_a-vinganca,de carter eminen- temente-emocional. Somente com a conscientizacao dessa demanda de vinganga nas praticas penais existira a possi- bilidade de refletir sobre essas praticas e de humanizé-las, tornando-as efetivamente benéficas para a sociedade. 2. Concepcio primitiva da punicao ea chamada vinganca de sangue Q homem primitivo enc Io comunidade, pois fora dela sentia-se Sean knee c6.dos-perigos imagindrios", Essa ligacdo refletia-se na or- 9, Mariano Ruiz Funes. Actualidad de la Venganza, p. 37. Tad. do autor. 10. Como comenta Hans von Hentig:“Em condigdes de vida primitivas, sé existem grupos compostos de membros, nao de individuos. Os gigantes, os devoradores de homens e os cliclopes podiam viver solitérios por si mesmos, ‘Mas os homens comuns somente unidos podiam fazer frente & prepoténcia das forgas da natureza e aos inimigos humanos, as feras e aos fantasmas. Somente ‘mantendo-e unidos teriam protegao e seguranga” (La Pena: Formas Primitioas y Conexiones Hist6rico-Culturales, p. 117. Trad. do autor). Segundo Anibal Bruno, “nessas formas primérias de comunidade, a que falta um érgio que exerga a au- toridade coletiva, a vigéncia das normas resulta do habito e a sua obrigatorie- Digitalizado com CamScanner i FUNDAMENTOS DA PENA ganizacao juridica primitiva, baseada no chamado pfcullade sangue, representado pela recfproca tutela daqueles que pos sufam descendéncia comum. Dele originava-se a chamada vinganga de sangue, definida por Erich Fromm como “um dever sagrado que recai num membro de determinada famt- lia, de um cla ou de uma tribo, que tem de matar um membro de uma unidade correspondente, se um de seus companhei- Tos tiver sido morto’". Segundo Freud,”se um membro de um cla é morto por alguém nao pertencente a ele, todo o cla do assassinado se une no pedido de satisfagdo pelo sangue que foi derrama- do”®, Todavia, se uma pessoa de determinado grupo era atingida por um grupo estrangeiro, a vinganca era coletiva e incidia sobre todo o grupo agressor. Passava a existit, as- sim, uma reuniao de varias familias, que formavam 0 gru- po de reacao, com o interesse comum da vinganga coletiva. Mas, como informa Giorgio Del Vecchio,“no caso dea ofensa ser praticada por membro do mesmo grupo,.o mes- mo principio exige ulsaio do ofensor. Este, uma vez ex- pulso do grupo, que é a tinica forma de tutela juridica nes- ta fase, fica destituido de qualquer direito e equiparado.a uma fera, ou seja: exposto.as ofensas de todos. O desterro primi- tivo, imposto por meio de formulas sacras — sacer esto, inter- dictio aquoe et ignis, etc. -, apresenta-se assim com gravidade extrema e nao deve confundir-se com 0 exilio de épocas pos- dade assenta no temor religioso ou mégico, sobretudo em relago com o culto dos antepassados, cumpridores das normas, e com certasinstituigdes de fundo magico ou religioso, como o tabu” (Direito penal. Parte geral, cit, p. 54). 11. Erich Fromm. Anaiomia da destrutividade humana, p. 366 (na mesma obra o autor informa a existncia dessa espécie de vinganca, como instituigio politicamente organizada, em varias tribos do Nordeste da {ndia, na Polinésia, na Cérsega e entre os aborigines norte-americanos. Ver p. 366), De acolo com Robertson Smith, citado por Hans von Hentig:“os membros de um de- terminado cide ele proprio consideram-se como tinico e mesmo ser vivo, como ‘uma massa jnica de carne, sangue e ossos vivos, Nenhuma de suas partes pode ser ferida sem danificar as outras (..)” (La Pena: Formas Primitivas y Co- nnexiones Hist6rco-Cultuals, cit, p. 132. Trad. do autor. 12, Sigmund Freud, "Totem e tabu’, cit, p. 113, Digitalizado com CamScanner A PENA NA CULTURA DOS POVOS PRIMITIVOS 11 teriores, em que o individuo, mesmo banido do grupo, con- tinua a dispor de outros meios de tutela juridica””. Tal vinganga, de forma simbdlica, tinha 0 poder de des- fazer a aco do malfeitor, por meio de sua propria destruigao ou banimento do grupo. Retratava o sentimento coletivo de repulsa ou represdlia que se expressava no grupo contra o agressor, gerado pela frustracao ocasionada pela ofensa"’. A vinganca de sangue, contudo, porquanto desvincu- lada de um poder central e sem nenhum controle externo de sua extensao, tornava-se intermindvel e gerava guerras infindaveis entre as familias, em_prejuizo.da propria c nidade, que restava enfraquecida,.principalmente diante de guerras externas. Algumas vezes, a vinganga.atingia os combatentes, mas também as criangas e as pessoas doen- tes. Noutras, recaia até sobre coisas e animais. Por essa razio, passou posteriormente_a_serregulamentada e administra- da por um poder central’*. Pouco a pouco, o particular foi impedido de exercer a vinganga e passou a constituir crime o fazer justiga por maos_préprias_O_que_antes era regra_ passou a caracterizar infragado penal”. A vinganca, no seu aspecto primitivo e privado, perdu- rou até ser substitufda vagarosamente pelas penas piiblicas, 13, Giorgio del Vecchio. Ligdes de ilosofia do direito, p.521, 14, Segundo Erich Fromm, “a destrutividade vingativa é uma reacio es- pontdnea a um sofrimento intenso e nao justificado infligido a uma pessoa ou ‘a0s membros de um grupo com quem essa pessoa acha-se identificada. Dife- re da agressao defensiva normal de duas maneiras: (1) Ocorre depois que a le- sao jd se verficou e, por conseguinte, nao constitui defesa contra qualquer pe- rigo ameacador. (2) E intensamente muito maior e freqiientemente cruel, vo- luptuosa e insacivel. A propria lingua expressa essa qualidade particular da vinganga, quando fala em’sede de vinganga’ (Anatomia da destrutividade hu- ‘mana, cit, pp. 365-6). 15, Consoante Paul Frischauer, jé entre os sumerianos os reis-sacerdo- tes proclamavam o direito vigente em nome da divindade e regulavam a vida de seus stiditos por leis, cuja transgressao ocasionaria o castigo imposto pela di- vindade (Estd escrito, p. 15). 16. A esse respeito, o artigo 345 do Cédigo Penal Brasileiro em vigor: “Fazer justica pelas proprias maos, para satisfazer pretensio, embora legitima, salvo quando a lei o permite: Pena - detengao de 15 (quinze) dias a 1 (um) més ou multa, além da pena correspondente & violéncia.” Digitalizado com CamScanner D FUNDAMENTOS DA PENA oriundas do fortalecimento do poder social, circunstancia que s6 iria ocorrer na Antiguidade. Com 0 progresso politico dos povos, passou a haver uma limitagao cada vez maior da autonomia dos grupos e familias e, por via de conseqiién- cia, o afastamento gradativo da vinganga privada, como for- ma de reacdo punitiva. Entretanto, como comentado, a trans- feréncia_da_punicdo para um poder central nao teve por fundamento abrandar a vinganca em si, mas sim manter cer- ta ordem social e evitar guerras infindaveis entre grupos, que enfraqueciam a propria comunidade. Mesmo assim, em al- gumas sociedades, ja com certa organizacao politica, a vingan- ¢a privada perdurava, conquanto administrada por um poder central. No Pentateuco, por exemplo, como sera visto no pré- ximo capitulo, a pena imposta ao homicida constituia uma vinganga regulamentada, na qual a familia da vitima era encarregada da execucao do culpado, embora essa pratica fosse supervisionada pelo poder central”. Como consegiiéncia da transferéncia da vinganca do particular para o poder central, ela_passou_a ser_aceita no contexto social e inserida nos sistemas punitivos. Porisso,ge- ralmente, nao é interpretada como forma de.agressio des- ttutiva. Entretanto, o fundo do sentimento vingativo persiste, embora abrandado nas suas.conseqiiéncias.-Exemplo.desse abrandamento é o talido nas leis mais antigas,.como-o-Cé- digo de Hamurabi", no século-XXIII-a:C;-Combase-nessas 17. Como informa Paul Faulconnet,“a familia da vitima é encarregada da execuo, mas com pleno assentimento e controle da sociedade politica e religiosa, maculada pelo homicidio e interessada em sua expiagio” (La Res- ponsabilité, p. 106. Trad. do autor). O mesmo autor faz mengao ao crime de ho- ‘micidio, previsto na legislagao de Dracon, em Atenas. Embora o processo para sua apuragao fosse de alcada publica, a pena era aplicada pela vinganca pri- vada (idem, ibidem, p. 109). 18, Cédigo instituido por Hamurabi, rei da Babildnia, cujo principio era a desforra:“olho por olho, dente por dente”, “Quem quebrasse os membros de outrem deveria sofrer 0 mesmo em seu prdprio corpo. Quando um homem castigava a filha de outro e ela morria disso, sua propria filha seria castigada tanto, até que também sucumbisse, O construtor que erigisse uma casa de modo tal que seu desabamento ocasionasse a morte do comprador deveria pagar com a vida” (Paul Frischauer. Estd escrito, cit., p. 22). A titulo de exemplo, 0 ar- Digitalizado com CamScanner A PENA NA CULTURA DOS POVOS PRIMITIVOS 13 legislagoes, instituiu-se uma espécie de sistema judiciario, apto a abrandar a vinganga, sem contudo afasté-la. Como explica René Girard, 0 sistema judiciério “nao a suprime, mas limita-se efetivamente a uma represalia unica, cujo exerci- cio é confiado a uma autoridade soberana e especializada em seu domjnio. As decisdes da autoridade judiciaria afir- mam-se sempre como a tiltima palavra da vinganga””. René Girard cita os seguintes meios de protecdo con- tra a vinganga intermindvel:“1) Os meios preventivos, que lem todos ser definidos como desvios sactificiais do es- pirito de vinganca. 2) As regulagdes e os entraves a vingan- (a, tais como as composigées, os duelos judiciarios, etc., cuja agao curativa é ainda precdria. 3) O sistema judicidrio, do- tado de uma incomparavel eficdcia curativa.”” Dessa otica, na pena estatal estaria canalizado o instinto de vinganga, desenvolvendo uma fungao psicolégica profunda sobre a sociedade, satisfazendo a necessidade das demandas incons- cientes do coletivo™. Embora o sistema judicidrio almeje racionalizar toda a sede de vinganca expressada pelo contexto social, a experién- cia verificada diante de casos concretos - em especial de crimes graves - demonstra que muitas vezes os individuos nao se satisfazem com a expectativa de puni¢ao decorrente tigo 2° do Cédigo de Hamurabi é significativo:”Se um homem lancou contra ‘outro homem uma acusagio de feiticaria, mas nao péde comprovar, aquele contra quem foi langada a acusagio seré mergulhado no rio. Se o tio o domi- nar, seu acusador tomard para si a sua casa. Se 0 rio o purifcar e ele sair ile~ 80, aquele que langou a acusagio de feitigaria serd morto e o que mergulhou no rio tomaré para si a casa do acusador” (Codigo de Hamurabi. Codigo de Manu ~ Excertos da Lei das XII Tébuas, p.11), 19, René Girard. A violéncia e o sagrado, p. 29. 20, Idem, ibidem, pp, 34-5. René Girard, citando Lowie (Primitive So- ciety), dé 0 seguinte exemplo de desvio sacrificial, com finalidade de afastar a vinganga intermindvel:”Os Chukchi geralmente fazem as pazes apds um tini- co ato de represélias. Enquanto os Ifugao tendem a apoiar seus parentes pra- ticamente em qualquer circunstancia, os Chukchi freqiientemente procuram evitar 0 confronto, imolando um membro da familia” (idem, ibidem, p. 39). 21..A esse respeito, Jestis-Maria Silva Sanchez. Apraximacién al Derecho Penal Contemporéneo, cit, pp. 233-4. Digitalizado com CamScanner 14 FUNDAMENTOS DA PENA de um processo judicial”. Como nao hd - nem poderia ha- ver na atualidade, proporgao exata entre a ofensa e a pena, os individuos passam a exigir sacrificios suplementares para os responsdveis pelas transgressdes, 0 que coloca em dtivida aquela eficdcia curativa mencionada por René Gi- tard. Jé as sociedades carentes ou desprovidas da pretendi- da eficdcia do sistema judicidrio ficam ameacadas pela vin- gan¢a, motivo pelo qual o sacrificio e o rito desempenham papel essencial”, Pela anilise feita até o presente, pode-se perceber nao ter sido a racionalidade juridica, ou a busca do equilibrio en- tre a ofensa e 0 castigo, a razao de serem impostos limites a vinganga, p' ‘a sempre esteve inserida no sentimen- to humano e em nenhum momento deixou de integrar as praticas penais, quer no passado, quer no presente. Atual- mente, procura-se excluir da reagao legal punitiva qualquer objetivo de vinganca, téo-somente porque a punicao en- contra respaldo na legislacao e, por isso, desempenha pa- pel referendado pelo contexto social. A razdo_primoxdi dos limites impostos 4 vinganca foi a preservacao da comu- nidade, posta em perigo pela vinganca interminavel no 4m- bito particular, impregnada de emocio e de auséncia de pro- porcao.com a ofensa. O fundo de vinganga, contudo, como realidade intrin- seca da natureza humana, permariece, mesmo com o pre- tendido aperfeigoamento das penas ptiblicas, e expressa-se com nitidez toda vez que o controle social nao se faz pre- sente ou se mostra ineficaz na solugao de crises geradas pe- los mais diversos conflitos*. Nesse contexto, sao exemplos 22. Como comenta, por exemplo, Hans von Hentig, um resquicio da vinganga ocorre nos pedidos de assisténcia nas execugdes de pena de morte {eitos por parentes da vitima (La Pena: Formas Primitioas y Coneriones Histrio- Cultuales, cit, p.141), 23, René Girard. A violencia e 0 sagrado, cit., p. 32. 24, Nao 6 outra a conclusdo de Erich Fromm, para quem“o homem pa toe fer utig el rp rao quando Deu ou a autores sel res nio a promovem. & como se, em sua paixo por vinganca, homem se Digitalizado com CamScanner A PENA NA CULTURA DOS POVOS PRIMITIVOS: 15 as vingangas entre familias rivais, que se prolongam por va- rias geragdes, ¢ as guerras entre organizagées criminosas, que criam um ordenamento paralelo em face das institui- goes, comprometendo o tecido social. Os linchamentos pti- blicos constituem outro exemplo de vinganga descontrolada, gerada pela repulsa imediata & infragao cometida. Com a destruigao do autor, busca-se em vao apagar ou compensar o dano por ele causado, gerador da frustragao. Segundo Jac- queline Sinhoretto, “(...) para além de uma reagao instintiva de vinganca imediata provocada pela ocorréncia de um cri- me, o linchamento é uma maneira de punicao que se contra- poe as instituigdes do Estado. Seja porque existe uma des- confianga com relacao a eficiéncia da policia e da justiga em conter a criminalidade, seja porque a populacao que pratica o linchamento reivindica uma outra forma de fazer justiga’”®. Além desses aspectos, nao se pode deixar de mencio- nar a possibilidade de grande ntimero de condutas que pos- sam ser ofensivas e gerar sentimentos de vinganga no con- texto social, como, por exemplo, traigdes em relagdes afetivas ou nao. Tais condutas, por nao constituirem qualquer tipo de ito, nao estariam submetidas ao crivo do sistema judicid- tio. Nesses casos, o controle social e irrenuncidvel na vida cotidiana seria exercido pelas chamadas sancées sociais, em relacdo as quais se poderia atribuir a finalidade de garan- tir a vida em sociedade e de canalizar a vinganca, a exemplo da fungao atribuida ao sistema judiciario*. elevasse a0 papel de Deus e ao dos anjos da vinganca, O ato de vinganca pode constituir sua hora principal, exatamente por causa dessa auto-elevacao” (Anatomia da destrutividade humana, cit., pp. 367-8), 25, Jacqueline Sinhoretto. Os justigadores sua justi umes e confito, p.41. 26. Nesse sentido, Winfried Hassemer, para quem: “As sancdes sociais, assim como as juridico-penais, mantém o seu sentido somente através da sua referéncia as normas sociais. © mal que elas realizam tem motivo e funda- ‘mento: 0 desvio das normas sociais, a violagdo a norma, Sem uma relagdo com © desvio perceptivel pelos participantes as sangSes seriam um infortinio ou uma lesio; mas dentro do contexto clas se tornam compreensiveis como con- duta final, dirigida a um fim, como conduta em sentido social” (trodusao acs ‘undamentos do direito penal, pp. 413-4), inchamentos, cos- Digitalizado com CamScanner 16 FUNDAMENTOS DA PENA 3. As punicdes decorrentes de violagées dos totens e tabus Além dos referidos aspectos relativos 4 vinganga de sangue, nao se pode deixar de mencionar os totens € 0s ta- bus que regiam as comunidades primitivas, com reflexos no sistema punitivo. A néo-compreensao dos fendmenos na- turais conduzia os homens primitivos 4 crenga em forcas sobrenaturais, que os levavam a ser dominados por totens e tabus. Segundo Freud, os primitivos“povoam o mundo com inumerdveis seres espirituais, benevolentes e malignos; e consideram esses espiritos e deménios como as causas dos fenémenos naturais acreditando que nao apenas os ani- mais e vegetais, mas todos os objetos inanimados do mun- do sao animados por eles”””. Mclennan, citado por Freud, foi quem pela primeira vez, em 1869, chamou a atencao para a suspeita de que um elevado ntimero de costumes e de pré- ticas comuns, tanto nas sociedades antigas quanto nas mo- dernas, seria remanescente de uma época totémica™. Consoante Freud, totem“via de regra é um animal (co- mivel e inofensivo, ou perigoso e temido) e mais raramen- te um vegetal ou um fendmeno natural (como a chuvae a gua), que mantém relacSo peculiar com tode.o.cla. Em pri- meiro lugar, o totem é 0 passado comum do cla; ao mesmo tempo, é 0 seu espirito guardiao e auxiliar, que lhe envia ord- culos e, embora perigoso para os outros, reconhece e poupa seus proprios filhos. Em compensagio, os integrantes estao na obrigacdo sagrada (sujeita a san¢des automaticas) de ndo matar nem destruir seu totem e evitar comer sua carne (ou tirar proveito dele de outras maneiras)’”. O cardter totémico era inerente a todos os individuos do cla, e nao somente a alguma entidade individual ou a al- gum animal considerado sagrado. Havia, ainda, comemo- 27. Sigmund Freud,""Totem ¢ tabu”, cit, p. 87, 28. Idem, ibidem, p. 109. 29. Idem, ibidem, p. 22. Digitalizado com CamScanner 4 PENA NA CULTURA DOS POVOS PRIMITIVOS 17 ragdes periddicas destinadas a homenagear os totens, com cerimGnias revestidas de determinado ritual. O totemismo estava assim inserido no contexto primitivo, seja no aspec- to religioso, seja no social, caracterizado pelas relagdes man- tidas entre os homens e as mulheres do mesmo totem com individuos de outros grupos totémicos. J4 no aspecto reli- gioso, 0 totemismo compreendia as relagdes entre o ho- mem primitivo e o seu totem. O totemismo constituia a base da organizacao social e das restrigdes morais da tribo. A violagio aos principios to- témicos implicava punigao para os transgressores, como ocor- ria no seguinte exemplo mencionado por Frazer, acerca da exogamia totémica:”Na Australia, a penalidade comum para as relagdes sexuais com uma pessoa do cla proibido é a morte. Nao importa se a mulher é do mesmo grupo local ou foi capturada de outra tribo, durante a guerra; o homem do cla improprio que a usar como esposa é perseguido e morto por seus irmaos do cla, assim como a mulher; embora, em alguns casos, se os transgressores conseguem evitar a cap- tura por um certo tempo, a ofensa possa ser perdoada.”” Segundo Malinowski, “a proibicéo exogamica é uma das pedras fundamentais do totemismo, do direito da mae e do sistema classificatorio de parentesco. Um homem cha- ma todas as mulheres de seu cla de irmas e, como tais, elas Ihe so proibidas. E axioma da antropologia que nada des- perta maior horror do que a violacao desse interdito e que, além de uma forte reagao da opiniao publica, ha também castigos sobrenaturais infligidos a esse crime. (...) os nati- vos tém horror a idéia de violacao das regras da exogamia e acreditam que tlceras, moléstias e até mesmo a morte po- dem sobrevir ao incesto no cla’, 30, Idem, ibidem, p. 24. 31, Bronislaw Malinowski. Crime e costume na sociedade setoagem, p. 64. Segundo Renata Udler Cromberg, ao comentar e citar uma das conclusdes de Lévi-Strauss sobre o tema: “A exogamia fornece o tinico meio de manter 0 grupo como grupo, de evitar o fracionamento e a divisao indefinidos que se- riam o resultado da prética dos casamentos consangiiineos.’Caso houvesse 0 Digitalizado com CamScanner 18 FUNDAMENTOS DA PENA Isso demonstra a crenga entre os primitivos no castigo sobrenatural decorrente da violagao das proibigdes totémi cas. A idéia de contaminacdo de todo o cla pela ofensa fez com que, pouco a pouco, a responsabilidade recaisse sobre 0 transgressor e sua punigao fosse aplicada pela prdpria co- munidade. Essa busca de purificagdo da comunidade com a punicao do culpado perdura ao longo da histéria, ndo obs- tante a pretensa racionalidade dos sistemas legais de penas e da pretendida eficdcia na canalizacdo da vinganga pelo sistema judicidrio, como comentado anteriormente. O tabu, por sua vez, considerado o cédigo nao escrito mais antigo do homem, constituia proibigao convencional, decorrente de uma tradicao, com carater sagrado, sem ex- Plicagao ou origem precisa, destituida de motivo e misterio- Sana origem, que passava a integrar os princfpios da comu- Nidade e era transmitida de geragao para geragao”. O tabu Tefere-se néo somente ao carater sagrado (ou impuro) de Coisas ou pessoas, mas também a espécie de proibicao re- sultante desse cardter®. Segundo Frazer,"ndo parece improvavel que, em nossas préprias regras de comportamento, naquilo a que chama- mos de decéncia comum da vida, bem como nas questées recurso a eles persistentemente, ou apenas de maneira demasiado freqdente, estes casamentos nao tardariam em fazer 0 grupo social ‘explo’ em uma multidio de familias, que formariam uma muiltidéo de familias, que forma- riam outros tantos sistemas fechados, ménadas sem porta nem janela,cuja proliferacdo e antagonismos nao poderiam ser impedidos por nenhuma hat- monia preestabelecida’* (Cena incestuosa; abuso e violéncia sexual, p, 196). 32. Segundo Alipio de Sousa Filho:*Nas sociedades primitivas os tabus €-05 mits sio formas do discurso do poder que asseguram a coesio e a re produsio do sistema de sociedade a que os individuos estio submetios. As aameagas constantes de que sobre os transgressors ds tabus se abateré a mal- digo dos Deuses, que se abaterd a ira sagrada sobre todos aqueles que deso- bedecerem i lei socal da comunidade ~ como se conta nos mitos -, sio provas dda existéncia de uma forma pela qual o poder de dominagéo se exerce sem «ue para isso tenha que fazer uso da voléncia ou mesmo que precise aparece como tal para se fazer obedecer” (Medos, mos castigo: niotas sobre a pena de morte cit, pp. 75-6). 33, Sigmund Freud. "Totem e tabu’, cit, p. 38. Digitalizado com CamScanner A PENA NA CULTURA DOS POVOS PRIMITIVOS 19 mais séri tabus dos selvagens, que, apresentando-se como expressao da vontade divina ou envolvidos nas roupagens de uma fal- sa filosofia, mantém seu crédito até muito depois de as idéias simplérias que lhes deram origem terem sido afastadas pelo progresso do pensamento e do conhecimento”™. Na visio de Freud: “A punicio pela violagéo do tabu era, sem dtivida, originalmente deixada a um agente inter- no automatico: o préprio tabu violado se vingava. Quando, numa fase posterior, surgiram idéias de deuses e espiritos, com os quais os tabus se associaram, esperava-se que a pe- nalidade proviesse automaticamente do poder divino. Em outros casos, provavelmente como resultado de uma ulte- rior evolucao do conceito, a propria sociedade encarregava- se da puni¢ao dos transgressores, cuja conduta levava seus semelhantes ao perigo. Dessa forma, os primeiros sistemas penais humanos podem ser remontados ao tabu.”* Assim, a punigao do culpado, por meio de um poder central, como forma de controle social, visava garantir a sobrevivéncia dos membros da comunidade, porquanto a transgressao colo- cava todos em perigo. Aviolagao do tabu transformava 0 transgressor em tabu, tornando-o perigoso e impuro, e 0 contagio deveria ser evi- tado por atos de expiagio e purificacao, por meio de ceri- ménias purificadoras*. De acordo com Frazer,quando uma naco se torna civilizada, se nao abandona totalmente os ias de moral, sobrevivam nado poucos dos antigos 34, Sir James George Frazer. O ramo de ouro, p. 95. 35, Sigmund Freud.” Totem e tabu’, cit, p, 38. 36, Idem, ibidem, p. 39. Segundo Hans von Hentig: “Quando se trans- gride uma proibigéo, um tabu, surge da prdpria regra um mal como castigo. Tudo quanto possa acontecer aos homens ~ morte prematura, aborto, cegueira, surdez, grandes enfermidades, ms colheitas, esterlidade dos campos, animais homens, pragas causadas por insetos, estiagens, fracasso de cacadores, pes- cadores, jogadores ou enamorados, derrotas em batalhas ~ tudo guarda um profundo significado (...). 0 injusto era como uma mina, cuja explosao atin- gia quem nao evitava seu contato. As regras da sociedade primitiva nao pre- cisavam ser impostas. Impunham-se por si mesmas” (La Pena: Formas Primitivas y Conexiones Hist6rico-Culturales, cit, p. 111. Trad. do autor).. Digitalizado com CamScanner 20 FUNDAMENTOS DA PENA sacrificios humanos, pelo menos escolhe como vitimas aque- les que, de qualquer modo, seriam condenados a morte””. Freud sustenta que o tabu tem por base uma condu- ta proibida, para cuja realizagao ha forte inclinagao do in- consciente, tornando-se contagiosa, pelo risco da imitacao. Por esse motivo, o transgressor deve ser punido e expiado por todos os membros da comunidade, para evitarem conduta proibida®. N§o é outro o pensamento contido no livro A violéncia eo sagrado, de René Girard, no sentido de que os homens sao governados por um mimetismo instintivo, causador de “comportamentos de apropriagéo mimética”, que geram conflitos e rivalidades de tal ordem. A violéncia, nesse con- texto, afigura-se natural nas sociedades humanas, necessi- tando ser exorcizada pelo sacrificio de vitimas expiatérias®. O sentimento de vinganca, como manifestagao toté- mica, ou decorrente dos tabus, foi sem dtivida a primeira expresso da fase mais remota de reagao punitiva entre os povos primitivos. A violagdo aos principios inexplicdveis dos totens e tabus conduzia o homem primitivo ao senti- mento de aversao ao mal provocado pelo autor da violacao. Esse sentimento, entdo, expressava-se por meio da vingan- ga exercida pela propria comunidade, sem qualquer finali- dade voltada para a prevencao de novas transgressdes. A vinganca, consubstanciada na represélia, tinha por finalida- de a destruicéo simbélica do crime, como forma de purifi- car a comunidade contaminada pela transgressio. Anibal Bruno observa que,“desconhecido o verdadeiro agente, vai, muitas vezes, 0 ato punitivo incidir sobre qual- quer outro, a quem seja atribufdo o fato de natureza magi- ca, Ea responsabilidade flutuante, em busca de um respon- 37, Sir James George Frazer, O ramo de ouro, cit, p. 178. 38. Sigmund Freud, "Totem e tabu", cit, pp. 49-50, 39, Edgar de Assis Carvalho, Apresentacao do livro A violéncia eo sagrado, cit,, de René Girard, p. 9. Digitalizado com CamScanner 4 PENA NA CULTURA DOS POVOS PRIMITIVOS 21 savel para a pena, que libertard 0 cla da impureza com que ‘© crime o contaminou”®. Essa responsabilidade flutuante permite concluir, com Edgar de Assis Carvalho, que,“de certa forma, nao é 0 cul- pado que mais interessa, mas as vitimas nao vingadas. E de- las que vem o perigo mais imediato e é a elas que é preciso oferecer uma satisfagao répida, para que uma reconciliagao social, ainda que fortuita, seja conseguida”'. Tal conclusao reforca a tese de que a vinganga cumpre seu papel simbé- lico de funcionar como um golpe de magica capaz de des- fazer a conduta criminosa, com o castigo imposto ao ofensor. E importante ressaltar, contudo, que a vinganga para compensar a perda de membros de determinada familia e a vinganga para purificar a comunidade das violagées totémi- cas ou decorrentes de tabus tinham um ponto em comum: ambas refletiam uma agressividade destrutiva e incapaz de realizar a reparacao magica da qual estavam incumbidas ou de resgatar as perdas ocasionadas pelas infragdes. Examinados esses aspectos da vinganca no contexto primitivo, pode-se concluir que a demanda de vinganca, por- quanto inerente natureza humana, permanece ao longo da histéria e no é afastada pelos fundamentos cientificos das diversas finalidades atribuidas as penalidades, ou pelas so- lugSes penais modernas. Nao obstante tal concluséo, em uma concepcao contemporanea da pena, procura-se afastar qual- quer justificativa baseada na desforra ou represélia, como se fossem incompativeis com 0 atual estagio de desenvol- vimento da humanidade. Por esse motivo, somente com a conscientizagio dessa realidade mitica da vinganga existiré a possibilidade de refletir sobre as praticas penais e de hu- manizé-las, a fim de que, na pratica, possam transformar-se e tornar-se efetivamente benéficas para a comunidade. 40. Anfbal Bruno, Direito penal. Parte geral, cit, p. 58. 41. Apresentacdo do livo A violéncia¢ 0 sagrado, cit, de René Girard, p.9. Digitalizado com CamScanner

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