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Animismo Revista Cult
Animismo Revista Cult
O texto a seguir é parte da edição 273 da Revista Cult, que tem como destaque
um Dossiê Felix Guattari. Veja também o índice completo e como assiná-la ou comprar
um exemplar avulso.
Título original do artigo: “O animismo hoje”
Muito se tem falado hoje em dia sobre o animismo. E mais, muito se tem falado
sobre uma necessidade de retomar o animismo – uma forma de responder ao projeto
racionalista da modernidade, que transformou o ambiente em algo inerte, opaco,
sinônimo de recurso, mercadoria. Em tempos de pandemia, constatamos que algo
muito importante se perdeu na relação entre os sujeitos humanos e o mundo que eles
habitam, e isso estaria na origem da profunda crise que vivemos.
Para Descola, a ontologia naturalista não pode ser tomada como único modo de
descrever o mundo, como fonte última de verdade. Outros três regimes ontológicos
deveriam ser considerados de maneira simétrica, entre eles o animismo. Esse ponto foi
desenvolvido de maneira exaustiva em Par-delà nature et culture (2005), no qual o
autor se lança em uma aventura comparatista cruzando etnografias de todo o globo. O
animismo inverte o quadro do naturalismo: se neste último caso a identificação entre
humanos e não humanos passa pelo plano da fisicalidade (o que chamamos corpo,
organismo ou biologia), no animismo essa mesma identificação se dá no plano da
interioridade (o que chamamos alma, espírito ou subjetividade). Para os naturalistas, a
alma seria privilégio da espécie humana, já para os animistas é uma mesma “alma
humana” que se distribui entre todos os seres do cosmos.
A ideia de perspectivismo, que autores como Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze
Lima atribuem a cosmologias ameríndias, estende e transforma a de animismo. O
perspectivismo seria, grosso modo, uma teoria ou metafísica indígena que afirma que
(idealmente) diferentes espécies se têm como humanas, mas têm as demais como não
humanas. Tudo o que existe no cosmos pode ser sujeito, mas todos não podem ser
sujeitos ao mesmo tempo, o que implica uma disputa. Diz-se, por exemplo, que onças
veem-se como humanas e veem humanos como presas. O que os humanos veem como
sangue é, para elas, cerveja de mandioca, bebida de festa. Onças e outros animais (mas
também plantas, astros, fenômenos meteorológicos) são, em suma, humanos “para si
mesmos”. Um xamã ameríndio seria capaz de mudar de perspectiva, de se colocar no
lugar de outrem e ver como ele o vê, portanto de compreender que a condição humana
é partilhada por outras criaturas.
O livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu (2010), traz exemplos
luminosos desses animismos e perspectivismos amazônicos. Toda a narrativa de
Kopenawa está baseada em sua formação como xamã yanomami, que se define pelo
trato com os espíritos xapiripë, seres antropomórficos que nada mais são que “almas”
ou “imagens” (tradução que Albert prefere dar para o termo utupë) dos “ancestrais
animais” (yaroripë). Segundo a mitologia yanomami, os animais eram humanos em
tempos primordiais, mas se metamorfosearam em seus corpos atuais. O que uniria
humanos e animais seria justamente utupë, e é como utupë que seus ancestrais
aparecem aos xamãs. Quando os xamãs yanomami inalam a yãkoana (pó psicoativo),
seus olhos “morrem” e – mudando de perspectiva – eles acessam a realidade invisível
dos xapiripë, que se apresentam em uma grande festa, dançando e cantando,
adornados e brilhosos. O xamanismo yanomami – apoiando-se em experiências de
transe e sonho – é um modo de conhecer e descrever o mundo. É nesse sentido que
Kopenawa diz dos brancos, “povo da mercadoria”, que eles não conhecem a terra-
floresta (urihi), pois não sabem ver. Onde eles identificam uma natureza inerte, os
Yanomami apreendem um emaranhado de relações. O conhecimento dessa realidade
oculta é o que permitiria a esses xamãs impedir a queda do céu, catalisada pela ação
destrutiva dos brancos. E assim, insiste Kopenawa, esse conhecimento passa a dizer
respeito não apenas aos Yanomami, mas a todos os habitantes do planeta.
Isabelle Stengers vai além da analogia entre fatos (“fatiches”) e fetiches para buscar na
história das ciências modernas a tensão constitutiva com as práticas ditas mágicas.
Segundo ela, as ciências modernas se estabelecem a partir da desqualificação de outras
práticas, acusadas de equívoco ou charlatanismo. Ela acompanha, por exemplo, como a
química se divorciou da alquimia, e a psicanálise, do magnetismo e da hipnose. Em
suma, as ciências modernas desqualificam aquilo que está na sua origem. E isso,
segundo Stengers, não pode ser dissociado do lastro entre a história das ciências e a do
capitalismo. Em La sorcellerie capitaliste (A feitiçaria do capitalismo, 2005), no
diálogo com a ativista neopagã Starhawk, Stengers e Philippe Pignarre lembram que o
advento da ciência moderna e do capitalismo nos séculos 17 e 18 não se separa da
perseguição às práticas de bruxaria lideradas por mulheres. Se o capitalismo, ancorado
na propriedade privada e no patriarcado, emergia com a política dos cercamentos
(expulsão dos camponeses das terras comuns), a revolução científica se fazia às custas
da destruição de práticas mágicas. Stengers e Pignarre encontram no ativismo de
Starhawk e de seu grupo Reclaim, que despontou na Califórnia no final dos anos 1980,
um exemplo de resistência anticapitalista. Para Starhawk, resistir ao capitalismo é
justamente retomar (reclaim) práticas – no caso, a tradição wicca, de origem europeia
– que foram sacrificadas para que ele florescesse.
Retomar a magia, retomar o animismo seria, para Stengers, uma forma de existência e
de resistência. Como escreveu em Cosmopolíticas (1997), quando falamos de práticas
desqualificadas pelas ciências modernas, não deveríamos apenas incorrer em um ato de
tolerância. Não se trata de considerar a magia uma crença ou “cultura”, como fez-se na
antropologia da época de Tylor e até pouco tempo atrás. Ir além da “maldição da
tolerância” é levar a sério asserções indígenas, por exemplo, de que uma rocha tem vida
ou uma árvore pensa. Stengers não está interessada no animismo como “outra”
ontologia: isso o tornaria inteiramente exterior à experiência moderna. Ela tampouco
se interessa em tomar o animismo como verdade única, nova ontologia que viria
desbancar as demais. Mais importante seria experimentá-lo, seria fazê-lo funcionar no
mundo moderno.
Que outra ciência seria capaz de retomar o animismo hoje? Eis uma questão
propriamente stengersiana. Hoje vivemos mundialmente uma crise sanitária em
proporções jamais vistas, que não pode ser dissociada da devastação ambiental e do
compromisso estabelecido entre as ciências e o mercado. A outra ciência, diriam Latour
e Stengers, seria a do sistema terra e do clima, que tem como marco a teoria de Gaia,
elaborada por James Lovelock e Lynn Margulis nos anos 1970. Gaia é para esses
cientistas a Terra como um organismo senciente, a Terra como resultante de um
emaranhado de relações entre seres vivos e não vivos. Poderíamos dizer que Gaia é um
conceito propriamente animista que irrompe no seio das ciências modernas, causando
desconfortos e ceticismos. O que Stengers chama de “intrusão de Gaia”, em sua
obra No tempo das catástrofes (2009), é uma reação ou resposta do planeta aos efeitos
destruidores do capitalismo, é a ocorrência cada vez mais frequente de catástrofes
ambientais e o alerta para um eventual colapso do globo. Mas é também, ou sobretudo,
um chamado para a conexão entre práticas não hegemônicas – científicas, artísticas,
políticas – e a possibilidade de recriar uma inteligência coletiva e imaginar novos
mundos.
O chamado de Stengers nos obriga a pensar a urgência de uma conexão efetiva entre as
ciências modernas e as ciências indígenas, uma conexão que retoma o animismo,
reconhecendo nele um modo de engajar humanos ao mundo, contribuindo assim para
evitar ou adiar a destruição do planeta. Como escreve Ailton Krenak, profeta de nosso
tempo, em Ideias para adiar o fim do mundo (2019), “quando despersonalizamos o
rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é
atributo exclusivo de humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem
resíduos da atividade industrial e extrativista”. Em outras palavras, quando
desanimamos o mundo, o deixamos à mercê de um poder mortífero. Retomar o
animismo surge como um chamado de sobrevivência, como uma chance para
reconstruir a vida e o sentido no tempo pós-pandêmico que há de vir.