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Por Renato Sztutman, na Revista Cult, parceira editorial de Outras Palavras

O texto a seguir é parte da edição 273 da Revista Cult, que tem como destaque
um Dossiê Felix Guattari. Veja também o índice completo e como assiná-la ou comprar
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Título original do artigo: “O animismo hoje”

Muito se tem falado hoje em dia sobre o animismo. E mais, muito se tem falado
sobre uma necessidade de retomar o animismo – uma forma de responder ao projeto
racionalista da modernidade, que transformou o ambiente em algo inerte, opaco,
sinônimo de recurso, mercadoria. Em tempos de pandemia, constatamos que algo
muito importante se perdeu na relação entre os sujeitos humanos e o mundo que eles
habitam, e isso estaria na origem da profunda crise que vivemos.

Animismo é, em princípio, um conceito antropológico, proposto por Edward Tylor,


em Primitive Culture (1871), para se referir à forma mais “primitiva” de religião, aquela
que atribui “alma” a todos os habitantes do cosmos e que precederia o politeísmo e o
monoteísmo. O termo “alma” provém do latim anima – sopro, princípio vital. Seria a
causa mesma da vida, bem como algo capaz de se desprender do corpo, viajar para
outros planos e tempos. O raciocínio evolucionista de autores como Tylor foi refutado
por diferentes correntes da antropologia ao longo do século 20, embora possamos dizer
que ainda seja visto entranhado no senso comum da modernidade. A ideia de uma
religião embrionária, fundada em crenças desprovidas de lógica, perdeu lugar no
discurso dos antropólogos, que passaram a buscar racionalidades por trás de diferentes
práticas mágico-religiosas.

Uma reabilitação importante do conceito antropológico de animismo aparece com


Philippe Descola, em sua monografia “La nature domestique” (1986), sobre os Achuar
da Amazônia equatoriana. Descola demonstrou que, quando os Achuar dizem que
animais e plantas têm wakan (“alma” ou, mais precisamente, intencionalidade,
faculdade de comunicação ou inteligência), isso não deve ser interpretado de maneira
metafórica ou como simbolismo. Isso quer dizer que o modo de os Achuar descreverem
o mundo é diverso do modo como o fazem os naturalistas (baseados nos ditames da
Ciência moderna), por não pressuporem uma linha intransponível entre o que
costumamos chamar Natureza e Cultura. O animismo não seria mera crença,
representação simbólica ou forma primitiva de religião, mas, antes de tudo, uma
ontologia, modo de descrever tudo o que existe, associada a práticas. Os Achuar
engajam-se em relações efetivas com outras espécies, o que faz com que, por exemplo,
mulheres sejam tidas como mães das plantas que cultivam, e homens como cunhados
dos animais de caça.

Para Descola, a ontologia naturalista não pode ser tomada como único modo de
descrever o mundo, como fonte última de verdade. Outros três regimes ontológicos
deveriam ser considerados de maneira simétrica, entre eles o animismo. Esse ponto foi
desenvolvido de maneira exaustiva em Par-delà nature et culture (2005), no qual o
autor se lança em uma aventura comparatista cruzando etnografias de todo o globo. O
animismo inverte o quadro do naturalismo: se neste último caso a identificação entre
humanos e não humanos passa pelo plano da fisicalidade (o que chamamos corpo,
organismo ou biologia), no animismo essa mesma identificação se dá no plano da
interioridade (o que chamamos alma, espírito ou subjetividade). Para os naturalistas, a
alma seria privilégio da espécie humana, já para os animistas é uma mesma “alma
humana” que se distribui entre todos os seres do cosmos.

A ideia de perspectivismo, que autores como Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze
Lima atribuem a cosmologias ameríndias, estende e transforma a de animismo. O
perspectivismo seria, grosso modo, uma teoria ou metafísica indígena que afirma que
(idealmente) diferentes espécies se têm como humanas, mas têm as demais como não
humanas. Tudo o que existe no cosmos pode ser sujeito, mas todos não podem ser
sujeitos ao mesmo tempo, o que implica uma disputa. Diz-se, por exemplo, que onças
veem-se como humanas e veem humanos como presas. O que os humanos veem como
sangue é, para elas, cerveja de mandioca, bebida de festa. Onças e outros animais (mas
também plantas, astros, fenômenos meteorológicos) são, em suma, humanos “para si
mesmos”. Um xamã ameríndio seria capaz de mudar de perspectiva, de se colocar no
lugar de outrem e ver como ele o vê, portanto de compreender que a condição humana
é partilhada por outras criaturas.

Como insiste Viveiros de Castro em A inconstância da alma selvagem (2002), a


perspectiva está nos corpos, conjuntos de afecções mais do que organismos. A mudança
de perspectiva seria, assim, uma metamorfose somática e se ancoraria na ideia de um
fundo comum de humanidade, numa potencialidade anímica distribuída
horizontalmente no cosmos. Se o perspectivismo é o avesso do antropocentrismo, ele
não se separa de certo antropomorfismo, fazendo com que prerrogativas humanas
deixem de ser exclusividade da espécie humana, assumindo formas as mais diversas.

O livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu (2010), traz exemplos
luminosos desses animismos e perspectivismos amazônicos. Toda a narrativa de
Kopenawa está baseada em sua formação como xamã yanomami, que se define pelo
trato com os espíritos xapiripë, seres antropomórficos que nada mais são que “almas”
ou “imagens” (tradução que Albert prefere dar para o termo utupë) dos “ancestrais
animais” (yaroripë). Segundo a mitologia yanomami, os animais eram humanos em
tempos primordiais, mas se metamorfosearam em seus corpos atuais. O que uniria
humanos e animais seria justamente utupë, e é como utupë que seus ancestrais
aparecem aos xamãs. Quando os xamãs yanomami inalam a yãkoana (pó psicoativo),
seus olhos “morrem” e – mudando de perspectiva – eles acessam a realidade invisível
dos xapiripë, que se apresentam em uma grande festa, dançando e cantando,
adornados e brilhosos. O xamanismo yanomami – apoiando-se em experiências de
transe e sonho – é um modo de conhecer e descrever o mundo. É nesse sentido que
Kopenawa diz dos brancos, “povo da mercadoria”, que eles não conhecem a terra-
floresta (urihi), pois não sabem ver. Onde eles identificam uma natureza inerte, os
Yanomami apreendem um emaranhado de relações. O conhecimento dessa realidade
oculta é o que permitiria a esses xamãs impedir a queda do céu, catalisada pela ação
destrutiva dos brancos. E assim, insiste Kopenawa, esse conhecimento passa a dizer
respeito não apenas aos Yanomami, mas a todos os habitantes do planeta.

Embora distintas, as propostas de Descola e de Ingold buscam na experiência animista


um contraponto às visões naturalistas e racionalistas, que impõem uma barreira entre o
sujeito (humano) e o mundo. Como propõe Viveiros de Castro, essa crítica consiste na
“descolonização do pensamento”, pondo em xeque o excepcionalismo humano e a
pretensão de uma ontologia exclusiva detida pelos modernos. Contraponto e
descolonização que não desembocam de modo algum na negação das ciências
modernas, mas que exigem imaginar que é possível outra ciência ou que é possível
reencontrar o animismo nas ciências. Tal tem sido o esforço de autores como Bruno
Latour e Isabelle Stengers, expoentes mais expressivos dos science studies: mostrar que
a ciência em ação desmente o discurso oficial, para o qual conhecer é desanimar
(dessubjetivar) o mundo, reduzi-lo a seu caráter imutável, objetivo.
No livro Sobre o culto moderno dos deuses “fatiches” (1996), Latour aproxima a ideia
de fetiche nas religiões africanas à ideia de fato nas ciências modernas. Um fetiche é um
objeto de culto (ou mesmo uma divindade) feito por humanos e que, ao mesmo tempo,
age sobre eles. Com seu trabalho etnográfico em laboratórios, Latour sugeriu que os
fatos científicos não são meramente “dados”, mas dependem de interações e
articulações em rede. Num laboratório, moléculas e células não seriam simplesmente
objetos, mas actantes imprevisíveis, constantemente interrogados pelo pesquisador.
Em seu pioneiro Jamais fomos modernos (1991), Latour assume que fatos científicos
são em certo sentido feitos, e só serão aceitos como fatos quando submetidos à prova
das controvérsias, isto é, quando conseguirem ser estabilizados como verdades.

Isabelle Stengers vai além da analogia entre fatos (“fatiches”) e fetiches para buscar na
história das ciências modernas a tensão constitutiva com as práticas ditas mágicas.
Segundo ela, as ciências modernas se estabelecem a partir da desqualificação de outras
práticas, acusadas de equívoco ou charlatanismo. Ela acompanha, por exemplo, como a
química se divorciou da alquimia, e a psicanálise, do magnetismo e da hipnose. Em
suma, as ciências modernas desqualificam aquilo que está na sua origem. E isso,
segundo Stengers, não pode ser dissociado do lastro entre a história das ciências e a do
capitalismo. Em La sorcellerie capitaliste (A feitiçaria do capitalismo, 2005), no
diálogo com a ativista neopagã Starhawk, Stengers e Philippe Pignarre lembram que o
advento da ciência moderna e do capitalismo nos séculos 17 e 18 não se separa da
perseguição às práticas de bruxaria lideradas por mulheres. Se o capitalismo, ancorado
na propriedade privada e no patriarcado, emergia com a política dos cercamentos
(expulsão dos camponeses das terras comuns), a revolução científica se fazia às custas
da destruição de práticas mágicas. Stengers e Pignarre encontram no ativismo de
Starhawk e de seu grupo Reclaim, que despontou na Califórnia no final dos anos 1980,
um exemplo de resistência anticapitalista. Para Starhawk, resistir ao capitalismo é
justamente retomar (reclaim) práticas – no caso, a tradição wicca, de origem europeia
– que foram sacrificadas para que ele florescesse.

Retomar a magia, retomar o animismo seria, para Stengers, uma forma de existência e
de resistência. Como escreveu em Cosmopolíticas (1997), quando falamos de práticas
desqualificadas pelas ciências modernas, não deveríamos apenas incorrer em um ato de
tolerância. Não se trata de considerar a magia uma crença ou “cultura”, como fez-se na
antropologia da época de Tylor e até pouco tempo atrás. Ir além da “maldição da
tolerância” é levar a sério asserções indígenas, por exemplo, de que uma rocha tem vida
ou uma árvore pensa. Stengers não está interessada no animismo como “outra”
ontologia: isso o tornaria inteiramente exterior à experiência moderna. Ela tampouco
se interessa em tomar o animismo como verdade única, nova ontologia que viria
desbancar as demais. Mais importante seria experimentá-lo, seria fazê-lo funcionar no
mundo moderno.

Que outra ciência seria capaz de retomar o animismo hoje? Eis uma questão
propriamente stengersiana. Hoje vivemos mundialmente uma crise sanitária em
proporções jamais vistas, que não pode ser dissociada da devastação ambiental e do
compromisso estabelecido entre as ciências e o mercado. A outra ciência, diriam Latour
e Stengers, seria a do sistema terra e do clima, que tem como marco a teoria de Gaia,
elaborada por James Lovelock e Lynn Margulis nos anos 1970. Gaia é para esses
cientistas a Terra como um organismo senciente, a Terra como resultante de um
emaranhado de relações entre seres vivos e não vivos. Poderíamos dizer que Gaia é um
conceito propriamente animista que irrompe no seio das ciências modernas, causando
desconfortos e ceticismos. O que Stengers chama de “intrusão de Gaia”, em sua
obra No tempo das catástrofes (2009), é uma reação ou resposta do planeta aos efeitos
destruidores do capitalismo, é a ocorrência cada vez mais frequente de catástrofes
ambientais e o alerta para um eventual colapso do globo. Mas é também, ou sobretudo,
um chamado para a conexão entre práticas não hegemônicas – científicas, artísticas,
políticas – e a possibilidade de recriar uma inteligência coletiva e imaginar novos
mundos.

O chamado de Stengers nos obriga a pensar a urgência de uma conexão efetiva entre as
ciências modernas e as ciências indígenas, uma conexão que retoma o animismo,
reconhecendo nele um modo de engajar humanos ao mundo, contribuindo assim para
evitar ou adiar a destruição do planeta. Como escreve Ailton Krenak, profeta de nosso
tempo, em Ideias para adiar o fim do mundo (2019), “quando despersonalizamos o
rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é
atributo exclusivo de humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem
resíduos da atividade industrial e extrativista”. Em outras palavras, quando
desanimamos o mundo, o deixamos à mercê de um poder mortífero. Retomar o
animismo surge como um chamado de sobrevivência, como uma chance para
reconstruir a vida e o sentido no tempo pós-pandêmico que há de vir.

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