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João Leonardo Medeiros - A Crítica de Postone Ao Marxismo Tradicional Atinge Lukács?
João Leonardo Medeiros - A Crítica de Postone Ao Marxismo Tradicional Atinge Lukács?
G . LUKÁCS
Introdução
' Agradeço aos colegas Mario Duayer e Bianca Imbiriba Bonente pela leitura cuidadosa e
pelos comentários sem os quais, certamente, a qualidade do texto aqui apresentado seria
muito inferior.
27
28 TRABALHO, ESTRANHAMENTO E mmm/«çâo
º A obra na qual Postone expõe de forma rigorosa, pela primeira vez, a sua interpretação
de Marx é Time, Labor a n d Social Domination, de 1993.
ª Não havia (ainda) u m a tradução integral d a Ontologia do Ser Social para o português
no momento da redação original deste artigo, por isso foram utilizadas principalmente a
tradução do capítulo sobre Marx — G. Lukács, Ontologia do Ser Social - os princípios onto-
lógicos fundamentais de Marx, 1979 — e a tradução do capítulo sobre o trabalho elaborada
por Ivo Tonet e reformulada por Mario Duayer, que circula como manuscrito entre os que
se ocupam d a obra. Para formalizar a s indicações e citações de passagens deste capítulo
sobre o trabalho, adotou—se como referência a tradução para o espanhol - Gyõrgy Lukács,
Ontologia del Ser Social — El Trabajo, 2004. Por fim, a “Introdução” da Ontologia, também
citada aqui, foi traduzida por Mario Duayer. As referências indicadas no texto remetem ªº
original em alemão Zur Ontologie des gesellschaftlíchen Seins — I Halbband, 1984.
A crítica de Postone ao marxismo tradicional atinge Lukács?
' 29
” Ibidem, p. 68-69.
'º Ibidem, p. 66.
“ No Capítulo 2. principalmente entre as páginas 44 e 58, Postone (Ibidem) cita diversos
autores que compreendem a teoria do valor de Marx basicamente como uma teoria da
É distribuição, dentre eles Sweezy. Dobb, Lange. Mandel. entre outros.
" Ibidem, p. 46.
” Ibidem, p. 8.
A crftiu de-Postone ao marxismo tradicional atinge Lukács? 31
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No marxismo tradicional, por consegumte, o trabalho
.
mdustrlal com- [UM Léº
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dª 19955313
Parece como uma instância de realizªç㺠humalndade, como 0 ) '
_?!lªjibçgégde". Liberdade essa que seria cerceada pela organização da pro- v
dução à base do mercado, com todos os seus pressupos tºs: ª Prºpriedª de jj ªrda“
privada como forma de propried ade dominan te, O mºnºpóliº dª
prop r ie- Oº '
,
.
capitalista: uma forma de dominação que se distingue não por seu caráter
Eessoal ou de classe_s (embora essas formas particulares se façam
presentes),
mas por sua natureza abstratª. Em suas palavras: “O capitalismo é um siste-
as fªtºs
riores, pessoas pa_recem ser independentes; mas elas _são_, de sujeitas a
BEÉÉÉHÁ de dpminaçãq soçial que parece não ser soçíal, mªs obj_ç____tivo” “.
Numa apresentação sucinta, pode- se assumir como ponto de partida
.
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A crítica de Postone ao marxismo tradicional atinge Lukacs?
33
goria do valor express aria, portant o, muito mais do que o modo de distri—
buição espontâ neo associado ao mercado: expressaria justamente o inédito
papel de mediação social obrigatória assumido pelo trabalho?“. Essa dupla
' dimensão do trabalho sob comando do capital manifestar-se-ia, por sua
vez, na dupla dimensão da riqueza na sociedade capitalista: além de seagª-
ráter material (Kcªl—025191149), & riqueza adquire, no capitalismo e somente
nele, uma dimensão tempºª (valor)”.
Se a categoria valor expressa o caráter de mediação social assumido pelo
trabalho, a categoria capital é o nome associado ao movimento dinâmico
próprio do trabalho que produz valorºª. A produção capitalista, como pro-
dução de valor, organiza-se estruturalmente de uma forma tal que adquire
um movimento interno de autoexºansão. Movimento esse que comparece
diante dos indivíduos como a força de uma lei da natureza que não ape— (º'?
nas condiciona, mas efetivamente subordina os atos humanos em todas as podi»?
esferas da vida social”. O trabalho, com sua dinâmica estranhada, tornar—
se-ia, objetiva e subjetivamente, a determinação central da vida humana,
conformando o que Postone denomina dominaçãogºstrataºª. Em diversas
passagens, como a citada a seguir, o autor destaca o caráter peculiar desta
forma de dominação: “Na análise de Marx, a dominação social no capi-
talismo não consiste, em seu nível mais básico, na dominação de pessoas
por outras pessoas, m a s n a dominação d a s pessoas por estruturas sociais
abstratas que às próprias pessoas constitue m”ªº.
É importan te deixar claro que a dominaçã o abstrata de que fala Posto-
ne não exclui a dominaç ão de classe como determinaç㺠da sociedad e ca-
” Ibidem, p. 7233.
“ Ibide m, p. 154.
” Ibidem, p. 123.
“ Ibidem, p. 75.
” Ibide m, p. 77.
“ Ibidem, p. 30-31,182. º & w “
” Ibidem, p. 30.
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TRABALHO. ESTRANHAMENTO EEMANCIPAÇÃO
34
ciona lidad es etc. são subo rdina dos a uma log ica
social es tra nh gªa que
I
ªº Ibidem, p. 6.
” Com a expressão “semiautomática”, Postone pretende afastar qualquer resquício de es-
truturalismo. O autor repete. por diversas vezes, que a ª m t em dels-;
reproduzi da pelos atos individuai s, o que traz para o coração d a análise as questões re-
lativas à subjetividade, de u m lado, e à pºssibilidade d a prática revolucionáriª, de O u t r o . .
Em diversos momentos no texto, o autor procura dar conta d a relação entre a dinâmica
estrutural e as práticas individuais. Cf. Ibidem, p. 155, 162-165,182.
” Ibidem, p. 158-161.
A crítica de Postone ao marxismo tradicional allnge Lukács? 35
” G. Lukács, História e Consciência de Classe, 200321. O próprio Postone (op. cit., 1993,
p. 15) registra que sua reinterpretação de Marx é diretamente influenciada por. e cons—
“Chªm—
titui uma crítica de História e Consciência de Classe. Ao examinar u m dos artigos que
ª “-?n u . . . .71
..
compõem o livro, em Ibidem, p. 72-74, o autor explicita os termos de sua apreciação si-
um
multaneamente elogiosa e crítica da obra. Em textos mais recentes, Postone reafirma sua
“v iam
posição diante da obra de juventude de Lukács. Cf. M . Postone, Marx reloaded: repensar la
teoria crítica del capitalismo, 2007; e, “The Subject and Social Theory: Marx and Lukács on
Hegel” In: A. Chitty & M. Mclvor, Karl Marx and Contemporary Philosophy, 2009. Lukács,
por sua vez, não poderia ter qualquer diálogo direto com Postone pelo simples fato de ter
falecido em 1971. Postone só viria a doutorar-se em 1983, sendo sua obra mais conhecida
lançada exatamente uma década depois.
“ No famoso posfácio da edição comemorativa dos 45 anos da publicação de História e
Consciência de Classe, Lukács expõe as suas razões para considerar o livro equivocado
em seus argumentos teóricos mais difundidos. Cf. G. Lukács, “Prefácio de 1967”, Idem,
zoosb, p. 31-32.
r.-
ANCIPAÇÃO
TRABALHO, ESTRANHAMÉNTO EEM
6
3
, ' 1”, Mesmo nesse caso
1930» principalmente em sua Ontologiª do Ser 8061; is trabalhos colidem,
dª
como veremos, a impressão inicial é ª que º s o
. sa algu ma s categ orias e
fron talm ente , uma vez que o prim elro auto r recu
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Den tre as font es poss ívei s d e dive rgên CIa , pºd
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sua origem na negagão exglícita, Pºr parte d ª Postonet do ºlªª t ' Tmª
“transistórico”: ou seja, o caráter l_lníVºfêêlÉl? dªtçfmmªçºeã,Pªf.1____nªn es ª
g ç ão de
ª“; orlç gga rtlc' ula r. Na ve rdade, a ne a
A'
cate gon' as de u m con text o hlst
Postone do que ele chama de “transistórico” n㺠prºf“? ª atingir apencas ou
espec iõcam ente Lukács, mas todo o marx ismo trad1c10nal. (.Jomo' dlto na
arla cºm a
últim a seção , para Posto ne, o marx ismo tradi ciona l comP artllh
Economia Política criticada por Marx o BQUÍVºCº de prºjetar categorias e
determinações típicas da sociedade capitalista para além do seu conutexto
histórico. Categorias históricas seriam , dessa manei ra, consid eradas tran-
sistóricas ”, de modo que s e tornaria difícil circunscre ver historicam ente a
sociedade capitalista, distinguin do-a das formas de sociedade do passado
e do próprio comunismo projetado para o futuro.
Do conjunto de categorias que são tratadas como transiítºliçis pelo
marxismo tradicional, Postone põe em destaque, como vimos, o gªlº
industrial (isto é, a atividade produtiva sob comando do capital). D e acordo
com o autor, as diversas versões do marxismo tradicional não conseguem
distinguir as propriedades específicas do trabalho comandado pelo capital.
Por essa razão, essa forma particulàírãêíàgílh—E) fmda por ser confundida
iogª & atividade produtiva dos seres humanos e m geral, caracterizada pe-
los atributos universais que Marx descreve no Capítulo V de O Capital“.
ªs A década de 1930 marca uma “virada ontológica” no pensament o de Lukács, que cul—
mina n a elaboração d a Ontologia, já n o final de sua vida. Nesta (duradour a) fase de s u a
produção, o autor preocupa—se em explicitar os “fundam entos sociais do pensamento de
uma época” (Cf. G. Lukács, op. cit., 1984, p. 329), ou seja, a procedência e as implicações
ontológicas das diferentes concepções sobre o mundo social. A respeito da “virada onto-
lógica” de Lukács, ver ]. P. Netto, “Georg Lukács: u m exílio n a pós-mo dernida de”
In: M.
O. Pinassi & S. L_essa (org.) Lukács e a atualid ade do marxis mo, 2002, e N. Tertuli
an, “O
Pensamento do Ultimo Lukács” In: Outubro — revista do Institu to de Estudo
s Socialistas,
n . 16, 2007.
36 K. Marx, O Capital: crítica da economia política, 1998. O fato de que a
descri ção abstra ta
do trabalho não seja suficiente para caracterizar o trabalh o em nenhu ma forma
concre ta
como Postone enfatiza (op. cit., 1993, p. 56), é obviamente levado em conta por Lukács
,
que nos recorda, ademais, que “a sociabilidade, a prime ira divisã o do
trabal ho, a lingua :
A crítica de Postone ao marxismo tradicional atinge Lukács?
37
O resultad o é que o marxis mo tradicio nal faz-se valer dessa caracte rização
Abs,!tªtâªojgabfalrholmgq defender como transistórica uma centralidade
&ªºítâhêlhwºxirªªâmâªÉídªdª Cªpitªl issªªª
Numa leitura pouco atenta, parece que a Ontologia de Lukács é atin—
gida, desde a raiz, por e s s a crítica de Postone. Afinal de contas, como o
próprio Lukács faz questão de esclarece r, a análise do trabalho (baseada
n a descrição geral, abstrata, oferecida por Marx) é a pedra fundamen tal
de sua ontologia d a sociedade ; M a i s do que isso, Lukács justiflca & ênfase
na categoria do trabalho com o argumento de que essa atividade é o fun—
damento último da vida social, o “momento predomina nte” do desenvol-
vimento social, o seu “determinan te em última instância”33 (Lukács, 2004,
p. 61—62).
Ao se observar, no entanto, as justificativas apresentadas por Lukács
para pôr em destaque a categoria do trabalho, fica claro que sua interven-
ção passa longe da alça de mira de Postone, ao menos no que tange à ques-
tão da “centralidade do trabalho”. A importância atribuída por Lukács à
categoria do trabalho é amparada por u m argumento (sólido, em nosso
juízo) mediante o qual o autor procura demonstrar que essa forma de prá-
tica funciona como uma esPécie de “modelo ontológico” que nos permite
revelarzªº (1) os atributos que distinguem o agir humano das práticas cor—
respondentes dos demais a n i m a i s ; (2) o m o d o particular como o s seres
humanos interagem com o ambiente e, assim, destacam—se d a natureza; (3)
a própria dinâmica evolutiva da sociedade que, ao contrário da processua—
lidade que caracteriza as demais formas da existência (no caso da biologia,
gem etc. surgem do trabalho, mas não numa sucessão temporal claramente identificável, &
sim, quanto à sua essência, simultaneamente. O que fazemos [ao tomar o trabalho como
categoria isolada das demais] é. pois, uma abstração sui generis”. Cf. Lukács, op. cit., 2004,
p. 59.
” M. Postone, op. cit., 1993, p. 16, 56-62.
ªª G. Lukács, op. cit., 2004, p. 61—62.
” Quanto à relação entre a práxis humana e o “ser social”, por exemplo, Lukács assinala,
já na Introdução da Ontologia (op. cit., 1984, p.328), que “o ser social e' a única esfera da
realidade na qual a práxis cumpre o papel de conditío sine qua non na manutenção e no
movimento da objetividade, de sua reprodução e desenvolvimento”. No prefácio da edi-
ção de 1967 de História e Consciência de Classe (Lukács, op. cit., 2003b, p.l8—19), o autor
acrescenta que “o terreno da práxis (sem modificação de sua estrutura básica) se tornou,
no curso de seu desenvolvimento, mais extenso, complexo e mediado do que no simples
trabalho [...]”.
NCIPAÇÃO
TRABALHO, esmmumemo EEMA
38
s, o das
ª evºlu ção
das espécies), envolve uma articulação de dois domínio
práticas teleológicas e o das estruturas sociaisªº.
' ipária
Agora, o reconhecimento de que o trabalho constitui a fgrm. va”Qçig
dº ªº leva
_ EÉEigàhpmam e, nessa condição, 0 seu “mºdelººíªíºm lºr dº CºmPÍICJfº
gabªr & a que Lukács lhe atribua qualquer supçgirqridlêªd? no inter
Aº
“tw? da atividade humana ou na organização social em geral“. contrar*º*
“”x &? Lukács procura, com todo cuidado, esclarecer que a “QM
a ver com hle rarg ula de
' '
b&“?
XKLL
Elª, . .
*º G. Lukács, op. cit., 2004, p. 55-58. A análise da categoria do trabalho realizada por
Lukács ocupa todo um extenso capítulo da Ontologia (Lukács, op. cit., 2004), além de in-
dicações dispersas em outros momentos d a obra. Num texto preparado para apresentação
numa conferência, Lukács oferece uma descrição ao mesmo tempo sintética e profunda
do papel exercido pelo trabalho na formação e desenvolvimento do ser social. Cf. Lukács,
“As Bases Ontológicas do Pensamento e da Atividade” In: O Jovem Marx e Outros Escritos
de Filosofa, 2007.
“ G. Lukács, op. cit., 2003 (b), p. 17-19.
“ G. Lukács, op. cit., 1979, p. 40-41.
A crítica de Poslone ao "marxismo tradicional atinge Lukács?
39
sem economia; ao mesmo tempo, por outro lado, afirma-se que a essência
do ser econômico é de tal natureza que não pode se reproduzir sem trazer
à v1da uma superestr utura que, mesmo de modo contraditó rio, correspon -
da a esse ser econ ômic o".
Quando examina o trabalho, então, Lukács não o faz por algum in-
teresse particular nesta categoria, n a forma específica que ela assume na
sociedade capitalista ou mesmo na dinâmica desta formação social. Na
realidade, seu interesse reside primordialme nte na capacidade de revelar,
pela inspeção do trabalho, a peculiaridade da prática humana enquanto
tal e, por seu intermédio, a especificidade da vida social com relação às
formas de ser a partir das quais ela emerge“. Exatamente porque o objeto
de investigação não é a prática humana ou a sociedade numa configuração
histórico—concreta, mas os atributos universais que defmem abstratamente
essas categorias, é crucial concentrar—se em categorias que tenham a 9%
cidade de atravessar formações históricas distintas até o “longo salto onto-
lógico” a partir do qual & sociedáde emerge da natureza“. O trabalho tem
obviamente essa cagacidade, como reconhece o próprio Postone, quando
afirma que “a produção material é sempre uma condição da vida huma—
93” ou, ainda de modo mais mªi—“EE), que—ª_ajmçmçàºÁmetªbÓliC—Jlgºmª
natureza efetuada pelo trabalho é pré—condição da existência de qualquer
sociedade”“.
Se se trata, todavia, de tomar o trabalho como uma categoria capaz
de revelar a estrutura interna da prática humana (e a relação da prática
com a realidade que a circunda), então não faria nenhum sentido partir
de uma caracterização do trabalho numa forma histórica particular — o
trabalho assalariado, servil, escravo etc. O nível de abstração da análise
pretendida por Lukács exige uma caracterização suficientemente abstrata
do trabalho para apreender as determinações categoriais que dão conta
não de sua plasticidade formal não de sua dlfereíiCIaçao historica, màé de
sua preservação como categoria-em—mudança. Por outro lado, se o traba-
ªª Ibidem, p. 155. Cf. também, entre outras passagens, Lukács, op. cit., 2004, p. 142 e op.
cit.,1979, p. 15.
“ G. Lukács, op. cit., 2004, p. 121.
45 Ibidem, p.55, 6 1 - 6 2 , 102—106.
“ M. Postone, 1993, p. 157.
ANCIPAÇÃO
TRABALHO. ESTRANHAMENTO EEM
40
Vºl)»
projeta como a história da humanidade as qualidades específicas do
capit alism o“.
Uma solução mais sólida para o problema parece ser oferecida por
Lukács, que procura dar conta da questão da historicidade num nível de
abstração muito mais elevado, em que se torna possível indagar a respeito
do modo de existência típico (e exclusivo) de nossa espécie. No centro do
argumento do autor está a análise do trabalho, categoria que, como ex-
posto anteriormente, reconhecidamente atravessa, no tempo e no espaço,
diferentes contextos sociais por ser condição de existência da própria so-
ciedade. O autor oferece, assim, o argumento que Postone julga inexistente
quando afirma que “não há base teórica ou evidência histórica” disponível
que confirme a possibilidade de fundar, na inspeção do trabalho, a alega-
ção da existência de um movimento universal da história”.
Em sua análise ontológica do trabalho, Lukács sai, então, à procura de
determinações universais, de tendências (leis) muito gerais, abstratas, que
percorrem a história da humanidade desde sua origem, caracterizando a
constituição da espécie humana não como espécie simplesmente biológi—
ca, mas como “ser social”. Como tendências altamente abstratas e gerais,
as determinações que respondem pela processualidade característica da
história humana dependem de circunstâncias diversas, de inúmeras par-
ticularidades e singularidades, para manifestar-se. Comportando avanços
e retrocessos, além de inúmeros “becos sem saída”, a dinâmica implicada
por aquelas tendências impõe-se como determinante em última instância
do desenvolvimento da sociedade, justamente por emanar das proprieda—
des rnais arraigadas de nosso ser social-“ªª. 1443
Não seria o caso de reproduzir extensamente o argumento de Luká- ] da”;
vºª,"
cs, e nem lsto sena posswel neste espaço, mas e mteressante ao menos
. . I I . º
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mencionar a s três únicas “orientações evolutivas” universais da higgória w.,“ *“
cuja existência, segundo o autor, pode ser teoricamente justificada”. Em pw
1 ) Ender-nao nº o u m b h r o do produ nºw!-ªlºe“ —- cuoa» abº ªnd,» 00. R a w / k w
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D::ÍWOM ! [nm-ch r o ol. ” T w i n / b a i ª (Conor—aq.“ crm “º(º locos vol-'
vê./nºn ro ryuu; <
sªªIbidem,p. “'e'-mp5 w m u n . d º q c : o n m 1 ,I r d . J o J
306. ”“""“ ª""< .
57 M. Postone, op. cit., 1993, p. 304.
5ª
G. Lukács, op. cit., 1979, p. 134.
” Uma longa descrição das três tendências acima é oferecida por Lukács ao longo do capí-
tulo sobre Marx da Ontologia, (Ibidem). A apresentação acima se baseia na síntese encon—
trada em G. Lukács, op. cit., 2007, p. 237-238.
CIPAÇÃO
TRABALHO, ESTRANHAMENTO EEMAN
44
6:
primeiro lugar, está a tendência ao aumento dªggªgtÍVÍdªdº portanto,
da reduç ão do temp o ÍÃ'EàÍa—ÃÍHÓ—ÉlíêpenSª"dº à produção material, sendo
esta uma condição sine qua non da diversificação das práticªs humanas,
do incremento populacio%1l e do próprio povoamento espacxal do .globo.
Em segundo lugar, está hendência ao “recuo das barreiras naturals , ou
seja, ao aumento do contmiíamente social da atividade de repro-
dução da humanidade e de seus produtos. O metabolismo imediato entre
a humanidade e a natureza tende, portanto, a reduzir-se em favor de um
metabolismo no qual estão envolvidos crescentemente objetos, processos,
estruturas etc. já filtrados pelo trato social. Por fim,_9_desenvolvimento d ª
atividade econômica tende a riar laços quªlitªtivºs e ualitativos C ª d ª
vez mais próximos entre comunidade;;níes isoladª. Por mais que essa
aproximação possa, num lonéóírííéió;défiíónêífaflàe conflituosa, é preci-
so reconhecer que ela é a base objetiva da emergência da história universal
e do próprio reconhecimento do gênero humano.
É preciso enfatizar que Lukács admite que as tendências universais,
abstratas, justamente por serem universais e abstratas, “se traduzem na
prática de modo bastante desigualª'ªº. O autor também reconhece, por ou-
tro lado, a associação entre a emergência da história mundial e o capi-
tal, uma tese abertamente defendida por Postone. Por isso se pode sugerir
que suas considerações a respeito da existência de uma processualidade
histórica universal não são totalmente inconciliáveis com o entendimento
de Postone, e ainda lhe prestam o serviço de oferecer argumentos sólidos
para refletir criticamente sobre sua contraintuitiva conclusão de que não
há nenhum sentido geral que amarre a história de comunidades apartadas
temporal e/ou espacialmente.
Se Lukács contribui, nesta questão da historicidade — como em mui-
tas outras que infelizmente não podemos abordar agora61 —, para o refl-
namento crítico do trabalho de Postone, este último autor, por outro lado,
enriquece notavelmente as primeiras formulações da ética do primeiro ao
tratar da peculiarid ade do trabalho sob o comando do capital. Em particu-
lar, a intervenção de Postone pode livrar a Ontologia de Lukács de proble-
mas teóricos inconvenientes, muitos dos quais clarame nte causado s pelo
con cebido (que envolv e prática s e juíz os liga dos à esté tica , a art e, à
assim
trab alh o que já com par ece
religião, ao con hec ime nto etc.) e o tem po de
a prop ried ade priv ada etc.
como “valor” — o que pressupõe o mercado,
5 arr isc a o ter mo “va lor eco -
Para delimitar o terreno da análise, Lukác
em toda s as form açõe s
nômico” paia designar o fato de que as pessoas,
ao fazê-lo, conferem al-
sociais, produzem a vida por e em sua atividade e,
.
edidas e a. seus resuliã-
gum valor às atividades econômicas mais bem-sue
dade), mas
dos, o que envolve um juízo não sótâ' qualidade do produto (utlh
também do tempo de trabalho necessário para produzi-loªª. Partin do desta
Cºlºca ção,
Lukács consegue demonstrar que as na oes etO-mO-
rais são constitu tivas d a humanid ade, Bºis corn arecem como moment os
cruciais da forma mais longínqua de prática social (o trabalho “simples”,
produtor de valores de uso). O autor estabelece assim a base para delinear
os primeiros traços de uma ética que supera os equívocos do subjetivismo
e do empirismo, que, por caminhos distintos, findam por tomar o valor
como categoria cuja gênese é inteiramente apartada da prática humana“.
O problema do argumento de Lukács, para enfatizar, é que o autor não
chega a distinguir com clareza as condições sociais necessárias para que o
“valor econômico” converta-se numa forma de ser que escapa ao controle
dos seres humanos e domina a existência social, nem as implicações exatas
dessa dominação para o campo da ética e da prática social. É precisamente
neste ponto que a contribuição de Postone é valiosa, por ser capaz de pôr
em destaque um argumento de Marx absolutame nte central, mas rara-
mente enfatizado ou mesmo compreen dido de modo correto.
Da interpre tação da crítica social de Marx oferecid a por Postone , su-
mariada na seção 2, pode—se depreender que o que distingue a formação
social capitalista é, antes de tudo, o fato peculi ar de que o trabal ho se apre-
sente como “valor”, como finalida de persegu ida pelas práticas humanas.
Aliás, o trabalh º não soment e se apresen ta como valor, mas como o valor
central. da conv1vênciíl social, ao qual todos os outros valores, amb
ições,
pro.pós.1tos buga r-los sao subordinados. Em outros termos, o trab alho é, ªº
capltallslmo, o unlco valor que todos os seres humanos têm de realizar em
sua prática, sob a pena de amea çare m sua existência socia l e
mesmo física;
“7 Em Postone (op. cit., 1993, p. 163-164), o autor aborda a conexão entre a dominação
abstrata e o valor da liberdade de um modo muito rico para o entendimento deste ponto.
“ Optou-se por empregar a expressão “mais-valor” e não “mais-valia” tanto porque ela é
mais apropriada como tradução d a categoria empregada por Marx, quanto porque assim
se ressalta o fato de que o mais—valor não se distingue qualitativamente do valor.
ªº M . Postone, op. cit., 1993, p. 182. Num texto mais recente, Postone resume o argumento
o
acima de modo muito articulado: “..[.] _opjetjyo daEroduçao no capxtahsmo _defrontggg
produtores como uma necessidade externa. Não está dado pela trad_çâo sogal ogela coer-
ção social manifesta. nem se decide conscientemente. Pelo contrário, este obíetivo apresen-
“ta'-'se wmv ailuaáo para além do controle humano”. M. Postone, op. cit., 2007, p. 40.
mmm , ESTRANHAMENTO eEMANCIPAÇÃO
48
esse é o sentido da
famosa ªnálise
Gºngºlª
319 lhes escapa ªº É Clªrº que r ue são raros os autores
do fetichismo de Marx, mas é Prªdsº r e c o n h e c-e q e vale esse _
que conseguem extrair daí a correta conclusª º de ran & o-
5 nto (-1.e., ªfã“
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mento, a categoria central da obra“de Marx é o est _
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ª domma窺 d s .e por
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maaamaãgúiãiã por Lukács: a ªg-,«ú— w», doM M. Valhor (0
min ação
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# Se, na questão da historicidade, a intervençao de Lukacs e capaz de
funcionar como um balizador crítico das concepções de Postone Pºr con—
duzir o argumento para um plano de abstração mais elevado, no que diz
respeito ao valor, a teoria de Postone desempe nha u m papel semelha nte
diante do promissor raciocínio de Lukács por conduzir o argumento para
um plano de maior concretude. Como dissemos, por partirem de uma
fonte comum, Marx, e p o r compartilharem u m a atitude autenticamente
crítica, que recusa qualquer dogmatismo em favor do enriquecimento da
compreensão do objeto, Lukács e Postone oferecem contribuições para o
campo marxista que se articulam formando uma interpretação indispen-
sável — sobretudo para a esquerda, é claro — nos dias atuais. Na conclusão
a seguir, procuramos explicitar a relação entre a interpretação dos dois
autores e a obra de Marx.
Conclusão
po present e o seu objeto, Marx diferenc ia-se da maior parte dos analista s
Inc—».ná» .
7”
M. Postone, op. cit.. 1993, p. 31.
A crítica de Postone ao marxismo tradicional atinge Luká
cs?
49
Reierências
DUAYER, M . e MOR AES, M. C . “Neo pragm atism o: a histór ia como con-
s/
tingê ncia absoluta”. In: Revista Tempo, 11. 4. Rio de Janeiro: Sette Letra
Depa rtam ento de Histó ria da UFF, 1997.