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Organizat;:ao: Rosana Schwartz;

PC Mello; Silvia Duarte; Wesley Santana


C: WWW
2

R O S A N A M A R I A P I R E S B A R B AT O S C H WA R T Z

Pa u l o C e z a r B a r b o s a M e l l o

Silvia Duarte

We s l e y S a n t a n a

TERRITÓRIOS DA PESQUISA

Capa

Ficha

Sumário

São Paulo

POMELLO DIGITAL

2023
3
São Paulo | SP | Brasil | POMello Digital | Novembro | 2023

P rojeto Gráfico: POMello Digital


A rte de capa : Sheila Aragão Caetano
I n ters ecç ões , 2023

ISBN: 978-65-990027-6-2

TERRITÓRIOS DA PESQUISA — Organização: Rosana Maria Pires Barbato Schwartz;

Paulo Cezar Barbosa Mello; Sílvia Lúcia Pereira Duarte; Wesley Espinosa Santana

270 Páginas. Il.


Capa

Ficha 1. História. 2. História Cultural. 3.Comunicação. 4. Pesquisa. I.Grupo de

Pesquisa. II. XXXXXXXX III.Título


Sumário
CDD - 707.301 | ISBN: 978-65-990027-6-2

Os textos aqui apresentados, sua ortografia, suas referências e desenvolvimento são de


inteira responsabilidade de seus autores.
4

Sumário

O Grupo de Pesquisa...........................................................................................................6
Autores...............................................................................................................................7
Prefácio............................................................................................................................ 11
Autor

Palavras da Organização.................................................................................................. 13
Fotografia como registro/documento: pesquisas, métodos e análises ............................. 16
Rosana Maria Pires Barbato Schwartz

Territórios Apropriados.................................................................................................... 32
Paulo Cezar Barbosa Mello

Mulheres militares:narrativas das vivências .................................................................... 44


Sílvia Lúcia Pereira Duarte

A formação do Estado biopolítico brasileiro e


a permanência da sociedade dos privilégios .................................................................... 59
Wesley Espinosa Santana

Bonecas do tipo Barbie, corpos e práxis: Um olhar sobre


a pesquisa em Arte .......................................................................................................... 79
Dângela Nunes Abiorana
Capa
Pesquisa em Artes: transições gráficas do analógico ao digital......................................... 93
Isabel Orestes Silveira
Ficha
Por uma abordagem dialética da pedagogia social ........................................................ 111
João Clemente de Souza Neto
Sumário
A cultura organizacional e o processo de diversidade e
inclusão dentro das organizações................................................................................... 127
Julia Magela Camilotti

Movimento feminista durante a ditadura militar: centro da mulher


brasileira (cmb) e sua contribuição para o feminismo................................................... 138
Larissa Azevedo Souza
5

Territórios da Afetividade Escolar.................................................................................. 152


Leo Mateus Soares Busollo

Pesquisando a história dos outros, percebi a importância da minha.............................. 172


Lilian Soares da Silva

Territórios da Comunicação Social e a Obrigatoriedade


da Missão Educativa...................................................................................................... 186
Lúcia Helena Polleti Bettini

Narrativa em par: uma análise de histórias e percursos................................................. 196


Miriam Marcolino dos Santos

Explorando Novos Territórios Feministas: A maternidade em questão........................... 204


Mirtes de Moraes

Sobre imagens e o imaginário........................................................................................ 216


Paula Serafim Daré

Mulheres brasileiras com deficiência física na educação:


trajetórias e experiências .............................................................................................. 227
Raquel de Assis Russo

Crianças com Deficiência Física: Um Estudo


sobre a Representação Lúdica Suprida por Bonecos Artesanais ................................... 239
Selma de Assis Russo

Capa

Ficha

Sumário
6

Grupo de Pesquisa

Capa

Ficha

Sumário
7

Autores

ORGANIZAÇÃO

R osana S chwartz —Vamos reduzir a 10 linhas?


P aulo C ezar B arbosa M ello —Publicitário, Diretor de criação, artista multimídia, curador
independente, mestre em estética e história da arte, PhD em Artes Visuais, Visiting

Professor na NYU, pesquisador em gênero, arte e cultura contemporânea e pesqui-

sador na cadeira de Arte, Cultura e Urbanidade. Atualmente desenvolve um pós

doutoramento em história e cultura contemporânea na vida urbana junto à Univer-

sidade Presbiteriana Mackenzie, sob a supervisão da Profª Drª Rosana Schwartz.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/2766104772518381/ Orcid: https://orcid.org/0000-

0001-7053-8736)

S ílvia L úcia P ereira D uarte —Doutoranda em Educação, Arte e História da Cultura no Pro-
grama de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura do Centro de

Educação, Filosofia e Teologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Mestre

em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero, Bacharel em Comunicação So-

cial, com habilitação em Relações Públicas. Bolsista CAPES /PROSUC II - Lattes:

1588250107483941 - Orcid: 0000-0003-0428-7523

Capa W esley E spinosa S antana —Doutor em Educação, Arte e História da Cultura no Programa de
Pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Mestre em História Social

Ficha pela Universidade de São Paulo, Pós-graduado em História, Sociedade e Cultura

pela Pontifícia Universidade Católica PUC-SP, Bacharel em Sociologia e Política pela

Sumário Escola de Sociologia e Política de São Paulo FESPSP e licenciado em História. Lattes:

http://lattes.cnpq.br/8448844197373682/

PESQUISADORES

D angela N unes A biorana — Mestre e Doutora em Educação, Artes e História da Cultura –


8

UMP. Universidade Mackenzie SP. - Especialista em Arte e Tecnologia – Universidade

de Brasília – UNB. - Pedagoga e Professora da Secretaria de Estado de Educação do

DF. - lattes: http://lattes.cnpq.br/96077422092903556.

I sabel O restes S ilveira — Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade


Católica de São Paulo-PUC/SP (2010), Mestre em Artes Visuais, pelo IA – Institu-

to de Artes da Universidade Estadual Paulista (UNESP - 2006). Possui Bacharel e

Licenciatura em Pedagogia e em Educação Artística pela UPM (1995). É cenógra-

fa e artista visual. É docente da Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo

(1986) e da Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação - FAPCOM (2008). É

pesquisadora e líder do CNPq no grupo de pesquisa: Linguagem, sociedade e iden-

tidade - estudos sobre a mídia. Lattes https://lattes.cnpq.br/1395062359818097/

J oão C lemente de S ouza N eto — doutor em Ciências Sociais, pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo; professor do curso de Pós-Graduação Educação, Arte e His-

tória da Cultura na UPM, São Paulo; membro da Ages, Associação Civil Gaudium et

Spes, uma ONG dedicada ao atendimento de crianças e adolescentes em situação

de privação de múltiplos direitos, da Pastoral do Menor da Região Episcopal Lapa,

do Instituto Catequético Secular São José e do Grupo de Estudo e Pesquisa em

Pedagogia Social da UPM. Autor de livros e artigos, sobretudo na área da criança e

do adolescente. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3200985522734291

J ulia M agela C amilotti — Mestranda em Educação, Arte e História da Cultura pela Univer-
sidade Presbiteriana Mackenzie, MBA em Gestão Estratégica de Pessoas pela FGV e

Capa Graduada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Lattes: http://

lattes.cnpq.br/0307819113713901

Ficha L arissa A zevedo S ouza — Bacharela em Relações Internacionais pela Universidade Paulista
(2018). Graduanda em História pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2023).

Sumário Membro do grupo de pesquisa Núcleo de Estudos de História da Cultura, Sociedades

e Mídias, na mesma universidade. Trabalho de pesquisa na área de História, com

ênfase em História da América, Mulheres na política sul-americana, movimentos

feministas, História Cultural e Gênero. Professora de História e Filosofia do ensino

fundamental II e Médio. http://lattes.cnpq.br/6447938350800317

L éo M ateus S oares B usollo — mestrando em Neurociências e Comportamento pelo Institu-


9

to de Psicologia da USP, neuropsicoterapeuta especialista no atendimento a crian-

ças, adolescentes, pais e educadores. Além disso, atua como assessor pedagógico

para escolas particulares e centros terapêuticos, com foco em educação especial e

bilinguismo, abrangendo São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Pós-graduado em Neuropsicopedagogia clínica pela Universidade Iguaçu, Graduado

em Pedagogia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e graduando em Psicolo-

gia pela Universidade Nove de Julho, ele une habilidades clínicas e educacionais

a favor do neurodesenvolvimento e bem estar social. Informações adicionais po-

dem ser acessadas em www.busollo.com e no currículo Lattes: http://lattes.cnpq.

br/9484043278238172

L ilian S oares da S ilva — Doutoranda em Educação, Arte e História da Cultura pela Univer-
sidade Presbiteriana Mackenzie - UPM - (2020). Mestre em História da África, da

Diáspora e dos Povos Indígenas na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia -

UFRB - (2019). Especialização de Educação em Direitos Humanos na Universidade

Federal de São Paulo - UNIFESP - (02/2020) e Universidade Federal do ABC - UFABC

- (01/2020). Pós Graduanda em Formação Pedagógica de Docentes para a Educação

Profissional de Nível Médio (2019). Pós-Graduada em Educação Profissional Inte-

grada à Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos - PROEJA

- (2017) e Turismóloga com formação em Gestão de Turismo no Instituto Federal

de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo - IFSP - (2013) com Especialização

Técnica e/ou Profissionalizante em Guia de Turismo na Universidade Anhanguera

Capa de São Paulo - UNIAN/SP - (2015). Graduada em Pedagogia com licenciatura plena

em Gestão Escolar, Séries Iniciais do Ensino Fundamental I e Educação Infantil pela

Ficha Universidade do Grande ABC - UNIABC - (2008).

L ucia H elena P olleti B ettini — Doutora em Direito do Estado na subárea Direito Constitucio-
Sumário nal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP (2009); Mestre em

Direito do Estado na subárea Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Ca-

tólica de São Paulo - PUC-SP(2004); Professora da Escola de Direito e Humanidades

e da Escola da Indústria da Criatividade da Universidade Municipal de São Caetano

do Sul – USCS; Professora do Programa de Pós-Graduação lato sensu e stricto sensu

na Instituição Toledo de Ensino – ITE – Bauru; Sócio membro do IBDC – Instituto


10

Brasileiro de Direito Constitucional; Advogada em São Paulo. Lattes: http://lattes.

cnpq.br/3473315770826280 / Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9011-5367

M irian M arcolino dos S antos — Pedagoga, especializada em Educação para Deficientes da


Áudio comunicação (PUC-SP) e em Supervisão Escolar (USP). Pós-graduada em

Educação, Sociedade e Cultura (PUC-SP). Mestra e doutoranda no Programa de Pós-

-Graduação em Educação, Artes e História da Cultura da Universidade Presbiteriana

Mackenzie (UPM).

M irtes M oraes — Pós Doutora (ECA-USP -CJE - Departamento Jornalismo e Editoração).


Doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PU-

C-SP). Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) - Centro de Co-

municação e Letras: Curso de Graduação do Jornalismo e do curso de Publicidade.).

P aula S erafim D aré — Mestre em Educação, Arte e História da Cultura no Programa de


Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura do Centro de Educação,

Filosofia e Teologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Psicóloga Clínica, es-

pecialista em Cinesiologia pelo Instituto Sedes Sapientiae; Analista junguiana pela

Associação Junguiana do Brasil (AJB) e International Association for Analytical

Psychology (IAAP). Lattes: 7234547135056983

Raquel de Assis Russo — Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação, Arte e His-


tória da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM/SP), com especia-

lização em Marketing de Conteúdo (UPM/SP), e bacharela em Comunicação Social

Habilitação em Jornalismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM/SP).

Capa Membro do grupo de pesquisa Núcleo de Estudos da História da Cultura, Sociedades

e Mídias, na mesma universidade. Bolsista CAPES /PROSUC II - Lattes: http://lat-

Ficha tes.cnpq.br/7889029126112587 - Orcid: https://orcid.org/0009-0000-2928-528X

S elma de A ssis R usso —Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação, Arte e His-


Sumário tória da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM/SP). Membro dos

grupos de pesquisa Núcleo de Estudos da História da Cultura, Sociedades, Mídias e

Linguagem, Sociedade e Identidade: estudos sobre a mídia, na mesma universidade.

Formada em Pedagogia, Comunicação Assistiva e Psicomotricidade na Área da Edu-

cação pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE/SP). Lattes: http://lattes.cnpq.

br/3844898018760521 Orcid: https://orcid.org/0009-0009-2172-313X


11

Prefácio

Autor

Capa

Ficha

Sumário
12

Capa

Ficha

Sumário
13

Palavras da Organização.

Capa

Ficha

Sumário
14

Apresetação2

Capa

Ficha

Sumário
15

Apresetação 3

Capa

Ficha

Sumário
16

Fotografia como registro/documento:


pesquisas, métodos e análises

Rosana Maria Pires Barbato Schwartz

Este capítulo apresenta o uso da fotografia como registro/documento da história,

ponderações teóricas que envolvem a compreensão da imagem na composição do conheci-

mento histórico e metodologias de análise desse documento. (BLOCH, 1997).

O território pesquisado foi o Centro Histórico e Cultural Mackenzie, em específico, o

arquivo iconográfico da instituição.

A palavra arquivo não apresenta uma origem definida, existem registros que remon-

tam ao período da antiga Grécia como arché, posteriormente transformada em archeion, com

o significado de “local de guarda ou depósito de documentos” ou de origem latina, archivum,

local que abriga um conjunto documental (ARQUIVO NACIONAL, 2005), não obstante, Jac-

ques Le Goff (2012), aponta que os arquivos foram criados no XVIII, na Europa, como depósi-
Capa
tos centrais de documentos. Na França foi chamada de Arquivo Nacional (lugar de reunião de

documentos considerados relevantes para a preservação da memória), durante o período de


Ficha
transição da sociedade baseada em estamentos para a da República (LE GOFF, 2012, p. 444).

Do acervo iconográfico pesquisado, optou-se em trabalhar as imagens de missioná-


Sumário
rias norte-americanas, que se deslocaram para o Brasil, durante o século XIX. A seleção do

universo documental, remonta às primeiras tentativas e experiências educacionais, missio-

narias, culturais e sociais, desses sujeitos e ações que abrangem e dialogam com a instituição

Mackenzie e apresentar, tanto para os pesquisadores experientes como iniciantes, de maneira

simples e direta, a metodologia de análise do documento/fotografia, discuti-lo como registro

referencial. Nesta perspectiva, foram trabalhadas as intersecções entre história, memória,


17

documento iconográfico.

Para os pesquisadores selecionarem e analisarem as fontes iconográficas é indispen-

sável conhecer métodos de leitura das informações, contidas nas fotografias, conceitos da

história sobre a imagem e, no caso de fotografias de um acervo, a sua a organização (questão

associada a classificação das imagens).

Na primeira imersão no acervo iconográfico constatou-se a existência, no arquivo

permanente, de imagem em papel (fotografia) e digitalizada. Um registro/documento em

seu “estado de conservação natural” é bem diferente do mesmo, “tratado e digitalizado”.

A observação dessas duas naturezas remete o pesquisador à problemática da intervenção

realizada pelo arquivista, de que o separou e catalogou, do restaurador. Outra questão, foi o

cuidado com fotografias deslocadas do conjunto dos documentos, retiradas de um álbum de

família ou de jornais, revistas, relatórios, soltas sem identificação, o que exige atenção redo-

brada, pois pode levar a interpretações errôneas ou efêmeras.

Ivan Lima (2017) ao teorizar sobre “a fotografia como fonte”, enfatiza a sua natureza

como documento carregado de significados, temporalidades, subjetividades, contextos so-

cioculturais e históricos, assim como, a sua interpretação deve ser encarada como uma ação

mental individualizada e coletiva repletas de construções históricas do sujeito que interpreta.

“A percepção visual” é uma ação recebida de forma diferente em cada sujeito, os componen-

tes de uma imagem (objetos, forma, cores), são interpretados de acordo com a sua formação

intelectual, profissional, faixa etária, sexo, ideologia.

A segunda imersão, por meio de um roteiro orientador, procurou-se o processo de

Capa produção: o conteúdo, o contexto da sua criação, o olhar do fotógrafo e a tecnologia utiliza-

da. Entendendo que o conteúdo é a imagem em si; o contexto, o momento histórico em que

Ficha a fotografia está inserida; o olhar, as subjetividades e objetividades de quem registrou e fixou

a imagem e a tecnologia, estilos, modelos e recursos de épocas (LISSOVSKY, 1993). Esse

Sumário roteiro possibilitou a constatação do caráter polissêmico de cada foto trabalhada, reflexões,

estabelecimento de hipóteses e escolha do método. Procedimentos que permitiram formular

“perguntas” e a busca de respostas. Salienta-se que pesquisas que obtém êxito é resultante do

método e da elaboração das perguntas certas e chaves, pois, a relação fontes-hipóteses aflora

os ditos e não ditos do texto imagético, e direciona o pesquisador para o estabelecimento de

etapas conforme suas hipóteses, questionamentos e problematizações. As informações obti-


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das, são “rastros”, “pistas” a serem perseguidas minuciosamente para apreender o conteúdo

e a mensagem que se processa ao longo das temporalidades (LE GOFF, 1995).

O terceiro contato, levou à caracterização da fotografia (retrato, paisagem, entre ou-

tras), sua origem, data e história. Essa postura diante da imagem propiciou entrelaçamentos

com outros documentos (verbais) do acervo e a complexidade (conteúdo, contexto, função,

o olhar do fotógrafo e técnica), a necessidade das escolhas das balizas teórico-metodológicas

que, segundo Roger Chartier (2000), afloram não somente as propriedades técnicas, estilís-

ticas e iconográficas, mas as ligações com os modos particulares de percepção moldados pela

experiência social, cultural e histórica, A disposição dos elementos na fotografia é reflexo

desses modos, o ângulo de visão, o recorte, a escolha do que se deseja fixar na imagem é

parte integrante da construção histórica de quem fotografou. Seguindo essas problematiza-

ções, observou-se nos registros os sistemas de significados reais e irreais, a sua estrutura, o

mundo a que pertence, a história local da instituição e da cidade de São Paulo, as criações

e recriações de memórias. As fotografias selecionadas, catalogadas e arquivadas, ganharam,

segundo Pierre Nora (1986), lugar de memória, vida no tempo presente, uma representação

do passado, carregada de magia salvaguardada no arquivo que preserva e organiza aconteci-

mentos segundo hierarquias.

Dessa forma, trabalhar as fotografias dos norte-americanos, principalmente as mu-

lheres, que para o Brasil se deslocaram durante o século XIX, evita-se a sua varredura da

história ou o seu isolamento, como asseveravam Le Goff (1985) e Nora (1986) ao afirmarem

que o documento/fotografia salvaguardado em lugares de memória, buscam a sua coroação.

Capa Os lugares de memória (arquivos e acervos), são seu próprio referente.

Ficha
O D ocumen to F otogr áfi co .

Sumário Segundo Boris Kossoy (1983), o fotógrafo posiciona os sujeitos, enquadra e recorta

um espaço na bidimensionalidade, interferindo na fixação da imagem, transformando-a em

documento que possibilita comprovar acontecimentos sob as lentes do presente. Do ponto

de vista historiográfico é por si só, fonte de pesquisa, um meio de expressão carregada de

artefatos representativos, estilos e recortes.

A sua análise deve ser realizada, por meio, da própria imagem, elegendo palavras-
19

-chaves baseadas no que aparece e no referente da fotografia. A contextualização alimenta

o estudo e as circunstâncias se ligam ao processo que originou a imagem e sua finalidade.

A compreensão enquanto signo é condição, pois reúne um significante, um referente e um

significado, apresenta aspectos explicitamente e o exercício de destrinchar sua construção

cultural.

Para a análise proposta foram eleitas as tipologias das imagens que compôs uma

categorização. Foram evitados diferentes tipos de imagens em uma mesma intenção de pro-

blematização, ou seja, foram agrupadas com critério categorial. Roger Chartier (2000) e

Michel Vovelle (1987) acrescentam que para analisar uma fotografia, a categorização é im-

prescindível para a interpretação das construções simbólicas, representações e o imaginário

social impregnado nas imagens.

Neste âmbito, as opiniões convergem para um ponto único: a


questão da grade interpretativa. Que unidades comporiam a grade de
interpretação das imagens do passado? Tal como no jogo de encaixe, ao
se tirar uma ‘caixa’, encontramos outra. Cabe, portanto, às perguntas:
como interpretar as imagens produzidas no passado? Qual a natu-
reza da produção imagética? Quais os condicionamentos históricos,
políticos e sociais dessa produção? Será a imagem das pinturas, dos
desenhos, da estatuária sagrada, dos vitrais das capelas medievais, da
mesma natureza que as imagens técnicas, a exemplo das do cinema e
da fotografia? Como fazer uso da imagem e do estético como evidência
do passado sem cair em erros? Em outras palavras, como as imagens
Capa podem se constituir em fontes visuais – documento histórico? (SCH-
WARTZ, MINARDI, 2010:30)

Ficha
Baudelaire (2005), acreditava que as imagens são documentos históricos, instru-

mentos de uma memória, indício legítimo de um tempo e espaço histórico, social, político
Sumário
e mental, nos quais se percebem não só os ditos e não-ditos, como também as permanên-

cias e transformações de um determinado período. São capazes tanto de informar aspectos

materiais concretos, cores, formas, conteúdos, quanto fatos que os indivíduos ou a própria

sociedade desejou perenizar. São testemunhos direto ou indireto do passado/presente com

força de iconicidade. A Indicialidade e a iconicidade trazem o que ela apresenta, representa

e significa. E sobre a eleição da imagem como documento, Barthes (2000) mostra que a de-
20

notação e conotação são elementos concomitantes relevantes e inseparáveis para a análise.

O território do sentido está dividido entre: o significado de-


notativo que surge quando um signo indica, direta e objetivamente,
um objeto referente, orientando-nos para a realidade; e o conotativo
que emerge pelas interpretações subjetivas ou pessoais, ou seja, as ima-
gens mentais. A semiótica e a semântica auxiliam na desconstrução
da imagem e na articulação dos elementos concretos (denotativos) e
imaginação (articulada ao campo simbólico e cultural). (SCHWARTZ,
MINARDI, 2010:32)

Um acontecimento histórico, como a imigração norte-americana para a cidade de

São Paulo, registrada pela fotografia, pode denotar as necessidades de buscar novas oportu-

nidade sociais e econômicas nas terras Brasilis, diante dos infortúnios da Guerra de Secessão,

reveladas nas posições e gestos dos sujeitos, como conotar o desejo de missionar, civilizar e

expandir o protestantismo. A busca das estruturas simbólicas, por trás dos acontecimentos

históricos, são pistas que devem ser levadas em consideração.

A fotografia apresenta o que já foi e esse já foi é o referente que proporciona caráter

indicial, assim, após a seleção das fotografias, o próximo direcionamento foi estabelecer os

níveis pré-icônicos do objeto representado pela significação implícita, como orienta E. Pa-

nofsky (1991).

Os eixos norteadores realizados até esta fase da análise instigaram novas perguntas

sobre a dimensão discursiva da fotografia encaminhando para a decodificação pelos aspec-


Capa
tos: técnicos, culturais, sociológicos e estéticos para decifração do discurso índice como re-

presentação visual de seu referente.


Ficha
O registro fotográfico foi cercado ponto a ponto, para em seguida realizar-se a trans-

posição e a condensação das informações obtidas, em forma de resumo com foco (central) e
Sumário
informações secundárias (extra-campo) que fornecem “corpo estrutural informativo” sobre o

tema e conteúdo fixado em imagem. As denominações centrais e extra-campo (o que gira em

torno da imagem principal), devem ser entrelaçados, pois trazem pistas espaciais e temporais

significativas para a desconstrução do documento. Ressalta-se que na análise não foram no-

meados os referentes, mas o que foi identificado como referente, pois o simbólico está nesse

referente, mas não é o referente.


21

Pela estrada interdisciplinar foram ligados os níveis externo e interno, o exercício da

educação do olhar sobre a fonte/documento para a decupagem do universo real e do ima-

ginário da imagem, a estrutura do conteúdo informacional e a forma, ou seja, as regras de

leitura compartilhadas pela comunidade acadêmica. Regras que resultam de disputas pelo

significado às representações culturais individuais e coletivas, Na opinião de Peter Burke

(1990), a imagem pode se constituir em fontes e testemunhas perigosas, pois um ‘olhar sem

método’ pode não destacar as circunstâncias da elaboração do documento: como e por quem

foi produzido; o contexto histórico, político, cultural; quais os propósitos do realizador dian-

te das diferentes imagens sobre o mesmo acontecimento; e quais seriam as ilusões sociais,

relações de poder, atitudes e mentalidades de um período do passado. Mostra os diferentes

tipos de imagens para diferentes modalidades de história, confirmando a pluralidade e pos-

sibilidades de uso desses indícios visuais como documentos.

Dentre as modalidades de fixação de imagens, o retrato é fonte privilegiada. A na-

tureza polissêmica da fotografia, passou na história, pela confecção de retratos de sujeitos

isoladamente ou de família ou grupos sociais, homens públicos. Os retratos de mulheres nor-

te-americanas analisados seguiram os seguintes passos:

Capa

Ficha

Sumário
22

Primeiro, a observação da tomada em pose em primeiro plano, na qual apresenta-se

com iluminação centralizada na personagem e fundo escuro, a fim de realçar a nitidez da

imagem. A pose, assume o caráter de simulacro, o sujeito torna-se o modelo no jogo teatral

das aparências. O fundo escuro busca resgatar, intencionalmente, a iconografia das pinturas

neoclássicas e dos retratos aristocráticos. Segundo o ponto de vista tradicional, o retrato é

o sujeito refletido e a tomada de consciência do rosto com centro da atenção. A pose é um

artifício técnico que permite a construção de inúmeras máscaras. Para Barthes, a pose cor-

responde aos anseios do fotógrafo e o desejo do fotografado em oferecer a melhor imagem

de si. A fotografia é um atestado preciso de presença. A sensualidade feminina está presente

nos cabelos soltos postos em um dos lados do rosto e ombro. A roupa clara remete significa a

pureza da jovem. A apropriação do código normativo da pose, se promove a partir da ruptura

com a ideia de coesão e unidade. Peter Burke (1994), em seu estudo sobre a construção da

imagem pública de Luís XIV, assevera que a característica dos retratos invoca a consciente ne-

cessidade de ocultar, no retrato, a pessoa comum. No retrato, o caráter ficcional e real da fo-

tografia se revela, posto que nele, estão presentes o caráter símbolos ‘conotativos’. (FLUSSER,

1985, p, 8), que a imagem oferece ao receptor, e a intencionalidade do fotógrafo e do sujeito

fotografado. A garota norte-ameri-

cana se tornou “ser representado” e

“ser representante” registrada.

Quando se tratou de retra-

tos de família levou-se em conta o

Capa teor extremamente simbólico que

está expresso no sentido de preser-

Ficha vação de memória. Essas fotografias

apresentaram funções afetivas.

Sumário

Fotografia da família Hawthorne

– Protestantes norte-americanos.
23

Segundo Bourdieu o álbum de família exprime uma recordação social. Funciona como rito

de manutenção de poder e de integração dos novos integrantes da família com os antigos. Quando

realizada em estúdio, como está, percebe-se que a imagem foi ainda mais mediada pelo olhar de

alguém de fora com seus critérios estéticos e condicionamentos técnicos. A fotografia da família Ha-

wthorne, materializa em imagens as regras familiares, ritos sociais e relações de poder da época. É

forma simbólica de representação pública do mundo privado. Nesse sentido foi importante considerar

as informações do contexto, cultural, social, político e econômico em que a família se encontrava

inserida. O fundo fotográfico é o mundo privado do lar, ressaltando o papel simbólico da propriedade

privada. A composição apresenta a metáfora da família integrada, reafirmada pela figura do pai de

família, alocado à frente, sentado, olhando diretamente para o observador. É o patriarca e o provedor.

A cor escura proporciona destaque e sensação de seriedade ao personagem. A criança sentada no colo,

também com vestes escuras, sugere o sexo masculino. A feminina encontra-se em pé, atrás do marido

e dos filhos, com expressão sóbria, simbolicamente representa a cuidadora da família. A roupa clara

e recatada, remete à pureza e delicadeza da mulher-mãe. A criança ao seu lado, também com vestes

claras, sugere o sexo feminino. A imagem apre-

senta a posição hierárquica das mulheres e dos

filhos naqueles tempos. Rigidez das posturas é

sinal da artificialidade da situação gerada pela

presença da máquina fotográfica e fotógrafo. A

fotografia da família Hotson, chama a atenção

para o recurso pictorialismo, um dos modos

Capa de conceber a imagem fotográfica da época.

Trata-se do retoque da imagem para diminuir

Ficha ambiguidades que a técnica fotográfica não

escondia e aproximá-la a pintura. Muitos fotó-

Sumário grafos tinham sido pintores, sabiam, retocar as

fotografias com lápis grafite, colorir com óleo

e anilina.

A próxima foto analisada, o fotógrafo

centralizou a temática na alegoria da Mulher/

mãe.
24

A mulher é o centro e o grande enfoque que cria um jogo ambíguo de fundo-escuro, moldan-

do-a e envolvendo-a. Nos signos que emprega, não há espaço para aceitação e comodismo e sim, um

forte questionamento visual do que era ser mulher e mãe. A imagem incorpora o conteúdo social,

cultural e político do século XIX, de modo que a mãe e a criança se tornam uma só realidade, um

todo, uma unicidade. A figura realça-se sobre o fundo escuro, desperta sentido de organização, orde-

nação e estrutura. O espaço da fotografia mantém a divisão figura-fundo, concentrando-se na figura.

Assim, a área que tem a função de fundo não só parece recuar em nossa percepção, como também

recebe menos atenção. A ênfase nos olhos, circundados/delimitados sistematicamente e o brilho dos

lábios, marca a imagem. Do rosto da mãe os olhos correm para o da criança com o escuro dos fundos

circundando-os. Sabe-se que, o contraste de claro e escuro pode existir independente de um foco de

luz, pois a luz articula uma vibração no espaço. Quanto mais intenso o contraste, mais visível é o

efeito da vibração. Embora em cada contraste, os componentes claro e escuro apareçam intimamente

interligados, reunidos tornam-se expressivos e não perdem seu caráter individual. Assim, a incidência

maior de luminosidade nesta fotografia está na região mais clara, das roupas da mãe e da criança,

nas peles dos rostos dos dois personagens um tanto pálidos (nas bochechas e no queixo), com nariz

afunilado, delicado, evidenciado diagonalmente. Os lábios finos e delineados trazem características

da origem norte-americana e imigrante. A imagem é portadora de movimento direcional que contorna

a cabeça da mãe, sinalizando um fechamento com o cabelo preso e escuro. O fotógrafo trabalhou

substrato de rara beleza, no olhar, rosto/face da mãe e da criança remetendo o observador para algo de

sagrado, desvelando o ideal de mulher durante o século XIX. Com virtuosidade que envolve a cabeça

com cabelos escuros e presos em uma espécie de manto que acoberta a feminilidade. O pescoço e

Capa tronco estão cobertos pela rou-

pa branca pura e feminina do

Ficha rostos/retratos. A imagens pro-

porciona presença maternal,

Sumário mulher mãe- zelosa, muitas

vezes retratadas pela pintura

como a Virgem Maria que traz

o Menino Jesus em seu colo.

Fotografia da família

Hotson.
25

Trata-se de uma imagem dos membros da família Hotson, composta por sete pessoas alocadas

em meia lua na composição. As linhas de fuga e a triangulação convergem para a figura do patriarca,

em reconhecimento à sua hierarquia social e familiar. As mulheres nas laterais e ao fundo reforçam os

papéis femininos da época, ou seja, a posição da mulher/mãe e das filhas, traz os discursos e ciências

médicas do século XIX, que atribuíam aos seus corpos às obrigações impreterivelmente de: servir o

marido e filhos dando-lhe apoio e proteção. Ela está sentada ao lado do marido, é seu braço direito, as

filhas estão dispostas logo ao fundo, em sinal de apoio e aos dois personagens masculinos. O retrato

de família, acentua que os valores da família são assegurados por elas, que são elas que governam

o lar objetivando alcançar uma vida agradável para todos os membros; desempenham a função de

mediadora no interior da malha familiar, conciliando todos os integrantes do lar. O seu destino das

mulheres era gerar corpos herdeiros, criá-los e protegê-los dentro dos valores da sociedade patriarcal.

As relações de poder aparecem, por meio, da centralidade masculinas do pai/patriarca e do filho/

herdeiro. Os detalhes das mãos sobre o colo, roupas escuras e claras e olhares diretamente para o

observador mostram distinção, seriedade e que eram pessoas de posses. A centralidade na figura do

patriarca e a circularidade composta pelos outros elementos da família, são as pistas que reforçam os

conceitos de família nuclear da época. Este retrato de família, representa a família conjugal patriar-

cal, de grupo social abastado, na qual, a mulher, o casamento e a herança está presente. A disposição

dos corpos acentua as posições hierárquicas dentro da família. O reconhecimento da complexidade

das inúmeras representações e imagens simbólicas geradas pelos indivíduos no seio das sociedades

e a crença de que cada grupo social possui suas próprias formas locais culturais e ao mesmo tempo

globais (Schwarz, 1994, p. 380), cria possibilidades de entender o corpo como um documento da sua

Capa formação social (BLUNDELL, 1993, p.2). Observar as posições dos corpos na imagem, é reconhecê-

-los como memória/documento das relações de poder, culturais e econômicas, de gênero, no cotidia-

Ficha no das sociedades (HALL, 1975 e WILLIAMS, 1977). A disposição da imagem, acentua o ideal de

família nas cidades do século XIX, respaldada na ordem, na aversão ao ócio e na construção de uma

Sumário sociedade higienizada e positivista, visando o bem e o progresso. As filhas ao redor do pai e do irmão,

são as protetoras dos “corpos das nações”. Elas deveriam estudar e receber educação primária para

desenvolver a capacidade de exercer corretamente as funções de esposa, mãe, administradora do lar

e de educadora dos filhos. Nessa perspectiva, o retrato de família, realizado em estúdio, apresenta os

corpos femininos com vestes sóbrias, cabelos presos e poucas joias em representação do controle dos

indivíduos por um conjunto de regras prescritas para garantir a transmissão dos valores da descendên-
26

cia e dos bons costumes sem nenhum risco.

Enfermeira Agnes

No retrato da enfermeira protestante Agnes, o fo-

tografo estabeleceu a relação fotografia/pintura, propôs

estética distinta daqueles cânones pictóricos em função

da textura da imagem e jogo de luzes, mas assemelhou-a

na disposição da imagem. O retrato traz consigo, em seu

não dito, aspectos sociais do período, o trabalho feminino

aceito socialmente, em substituição do trabalho de enfer-

meiro pelos homens. Até meados do século XIX, eram os

enfermeiros que cuidavam dos pacientes e auxiliavam os

médicos. A representação fala das transformações dos es-

paços urbanos, tecnológicas, político e culturais daqueles tempos, das apropriações pelas mulheres

das profissões de educadoras e enfermeiras. (SCHWARTZ, 2017: 141). Os imigrantes protestantes,

para serem atendidos com respeito, diante da cultura de um país que não aceitava o estranho, o di-

ferente, construíram escolas e hospitais. Criaram e mantiveram o Hospital Samaritano. Segundo os

registros/documentos do hospital, os médicos contratados eram provenientes da América do Norte,

onde o sistema Nightingale para formação de enfermeiras já estava funcionando desde 1860. Em

1873, a instituição preocupou-se em formar mulheres enfermeiras, à altura do Hospital, para ajudar

os médicos.

Capa
Fundado, pela comunidade presbiteriana de São Paulo, o Hos-
pital Samaritano que, desde o início, tinha em serviço apenas enfer-
Ficha meiras. Dois anos depois, em 1896, no decreto nº 412, que aprovava
o regulamento dos Hospitais de Isolamento do Estado, verifica-se que
Sumário desaparecia o título de chefe dos enfermeiros, sendo substituído por
uma enfermeira chefe. Também no relatório da diretoria do Hospital
São Joaquim, referente ao ano de 1908, passa a ser defendida a substi-
tuição dos enfermeiros pelas enfermeiras. (MOTT, 1999:47)

O primeiro diretor médico do hospital Samaritano, Dr Willian London Strain, contratou cin-

co enfermeiras inglesas, que chegaram na cidade de São Paulo, em 1894 para trabalhar. Maggie K.
27

Grosart, inglesa, foi a enfermeira-chefe contratada, a partir de 1895. Entre as suas atribuições estava

o controle e treinamento de enfermeiras. Esse treinamento era realizado no próprio hospital. As me-

ninas passavam pela Escola Americana, magistério e depois curso de enfermagem que só se efetivou

entre 1900 ou 1901. A escola de enfermeiras do Hospital Samaritano seguia o Sistema Nightingale:

com curso dirigido por enfermeiras, currículo com duração de três anos, sendo três primeiros meses

de estágio probatório, aulas teóricas e práticas ministrado por enfermeiras e eventualmente por mé-

dicos. Essas enfermeiras, em sua maioria eram solteiras ou viúvas e moravam, estudavam e trabalha-

vam no mesmo local.

O fotografo, que provavelmente foi contratado pelo Hospital, agiu como mediador da cultura

imigrante uniformizando a imagem e criando um padrão para as representações dessas enfermeiras.

A imagem foi reproduzida em estúdio. Apresenta centralidade e equilíbrio. O foco de luz está centra-

lizado na personagem. Percebe-se as teorias do século XIX, com relação às mulheres, moldurando

a imagem, por meio, da delicada sensualidade da enfermeira, fisionomia e olhar, combinando com

vestes sóbrias. A figura feminina vem embalada por ícones da vida urbana moderna e tradicional, ao

mesmo tempo. O fotografo realça o padrão estético da mulher da época, cintura fina e marcada, pele

clara e corpo longilíneo. A fotografia apresenta códigos da pintura, na combinação dos tecidos das

roupas da enfermeira, somados ao jogo de claro e escuro, sombras na parede ao fundo e expressão

vaga e melancólica do olhar distante da personagem. Os olhos encontram-se em forma sígnica de

aparência severa, com os componentes essenciais de uma mulher de descendência da sociedade de

norte-americana, não faltando ao contexto, a cadeira e a mesa à moda da época.

Retrato das Enfermeiras Presbiterianas do Hospital Samaritano:


Capa

Ficha

Sumário
28

A imagem leva o observador a seriedade da profissão e valores protestante presbite-

rianos. Combina elementos que, na pintura, constroem a estética e equilíbrio da imagem. Os

cabelos presos, as mão postas atrás do corpo ou sobre o colo remetem à política higienista do

século XIX, que apregoava a disciplina, a ordem e valores comportamentais rígidos. O foto-

grafo conjuga no enquadramento e estética pictórica, condições sociais e educacionais com

as de gênero. As posturas retilíneas da moças em pé e os olhares diretos, para o espectador

desvelam o “empoderamento” e a importância consagrada pela profissão de enfermeira. Os

chapéus engomados dispostos nas cabeças e a alvura dos aventais ressaltam a inserção social

e as exigências da profissão das retratadas. Parâmetros que trazem a sintaxe própria da foto-

grafia. As articulações entre tradição e modernidade estão presentes na função dessas mulhe-

res no território do mundo produtivo e público. Revelam uma das faces do mundo feminino

que cresce no período, o da identidade de mulher educadora, disciplinadora e cuidadora

devotada ligada ao mundo do trabalho produtivo. Percebe-se, nessa fotografia, o destaque à

área dos olhos, abrindo-os frente ao novo universo feminino. As roupas como linhas demar-

catórias do espaço envolvem, e proporcionam volume. Os lábios esboçam de forma delicada

e sutilmente um sorriso, no sentido de não se fazer calar, como se as pessoas apresentadas

trouxessem recado e ao mesmo tempo, um não dito. Linhas e formas se esvaem das cabeças

para as roupas e espaço da frente do Hospital. Envolvem a mente do observador em alusão

ou tentativa de dizer ao mundo daqueles tempos que as mulheres estavam se transformando.

A cognição que a imagem apresenta não mostra apenas expressão e liberdade de criação do

fotografo. Passa pela corporeidade do ser humano, despertando e aguçando os seus sentidos

Capa A Imagem não está nomeada, elas não têm nome e nem sobrenome, apesar de pertencerem a

primeira escola criada para formação de profissionais de enfermagem em São Paulo, fundada

Ficha em 1894, no Hospital Samaritano. O Hospital que aparece ao fundo, emoldurando a imagem.

O fotografo trabalhou com contrastes e claro e escuro sabendo harmonizá-las no suporte, de

Sumário modo que se mesclam, se fundem e dialogam entre si pelo viés da imagem ou personagens/

objetos destacados na foto. Percebe-se a constância das linhas que se originam nos aventais

de cada mulher e ascendente direção às outras partes do corpo. Elementos que se mesclam,

se permutam e se fundem pela força da imagem repleta de sensações e visões dúbias. A

composição permite enxergar o grupo em retrato frontal, perfilado, num jogo inteligente de

formas imagéticas.
29

Assim, acredita-se que a confecção deste capítuli, advindo das pesquisas da autora

possa contribuir para que pesquisadores iniciantes ou de áreas distantes da história, interes-

sados em utilizar fotografias em suas pesquisas, possam refletir sobre o uso desse registro/

documento. A leitura breve e sintética oferecida das imagens, possui potencial de abrir possi-

bilidades de aprofundamentos e reflexões. A fotografia é polissêmica e sua absorção diversa,

segundo códigos culturais de quem observa e analisa.

Mais do que oferecer um modelo de análise das fotografias, a intenção foi ressalta o

cuidado que se deve ter com os elementos visuais e históricos do documento. Pretendeu-se

chamar a atenção para os sentidos das imagens, atores sociais, e contexto histórico a que

pertencem as imagens, o século XIX, no território do Centro Histórico e Cultural Mackenzie.

A fotografia é uma construção cultural, carregada de códigos. As linhas tecidas pro-

curaram costurar diálogo entre o visível e o invisível, entre o dito e não dito, nas imagens/

documentos.

As fotografias apresentaram maneiras de sentir e pensar de quem fotografou e de

quem foi fotografado. Mostram como a memória coletiva se constrói a partir de imagens e

que cada um percebe e compartilha segundo seus padrões de comportamento e identidades.

Ao analisar as fotografias aqui, selecionadas a autora apresenta a multiplicidade de

discussões sobre a imagem e jogos de significados repleto de magias. No conjunto, algumas

teorias e metodologias. Nesse sentido, ofereceu referenciais para o aprofundamento e am-

pliação da discussão em torno de como se deve trabalhar com fotografia, os cuidados que se

deve ter ao utilizar esse registro/documento e caminhos norteadores. Este capítulo, ousou

Capa abrir perguntas sobre a natureza das imagens fotográficas e categorias analíticas na ânsia de

mostrar diferentes olhares e diálogos com relação ao conhecimento histórico.

Ficha

R efer ê ncias
Sumário
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Capa

Ficha

Sumário
32

Territórios Apropriados

Paulo Cezar Barbosa Mello

O início deste projeto tinha como ponto de partida a pesquisa de uma possível identi-

dade, quer fosse em gênero, etnia, classes sociais ou até mesmo profissão. Para tanto algumas

abordagens foram ponderadas; um estudo de campo em que fosse possível nomear, enqua-

drar, generalizar o objeto. Resultado: Fiasco.

A falha foi identificada não no processo, mas nos motivos. A generalização resulta em

preconceitos e o objetivo maior é o de eliminar preconceitos e reconhecer a situação factual,

como um todo; uma visão sistêmica de uma parte da sociedade que se forma em meio às

respostas do cotidiano. Porém as políticas atuais e suas propostas de adequação, não levam

em consideração as manifestações de cada grupo. Talvez seja utópico pensar na sociedade

em subgrupos coesos, mas cabe a percepção das violências psicológicas que os territórios mal

ocupados, suas toponímias, suas homenagens fazem aos mesmos membros da sociedade. Tal
Capa
afirmação advém da geografia e sua definição de lugar como espaço de relação de trocas.

Este lugar sempre clama por uma ocupação territorial. Não existe regra de ocupação, ou
Ficha
existe? As apropriações no território urbano são simbólicas? Existe uma identidade a ser pon-

tuada? A partir destas questões, o artigo aqui apresentado convida a um debate da realidade
Sumário
contemporânea na cidade de São Paulo.

Para tanto é necessário compreender alguns autores que servem de base teórica e

têm reforçado as observações metodológicas.

Na perspectiva teórica e metodológica proposta por Terry Eagleton, a pesquisa tem

como objetivo principal investigar a origem, analisar as transformações e identificar as dinâ-

micas entre conflitos e convergências na sociedade. Neste contexto, é importante ressaltar


33

que a sociedade como um todo não deve ser exclusivamente culpabilizada, uma vez que tam-

bém desempenha um papel significativo na criação e no desenvolvimento. Para alcançar uma

compreensão mais abrangente da realidade contemporânea e suas nuances, é imperativo

considerar tanto as questões locais quanto as universais.

Outro autor cujas contribuições teóricas são relevantes para este estudo é Anthony

Giddens. Giddens é relevante por conceber a contemporaneidade como uma extensão da

modernidade tardia e por abordar questões relacionadas à multicentralização do local, tema

também discutido por Lucy Lippard, embora em contextos diferentes. Ambos os autores con-

seguem estabelecer uma compreensão sólida das sociedades e suas ações, destacando a im-

portância do local oculto na formação da identidade.

No contexto da História Cultural, é crucial considerar que a disciplina não se dedica

apenas ao estudo de eventos passados, mas sim à análise das ações humanas ao longo do

tempo, incluindo fenômenos de percepção individual e representações coletivas. A cultura é

inerente à estrutura social, e os indivíduos são vistos como agentes ativos que lidam com con-

tinuidades, rupturas e permanências relacionadas às suas experiências e à narrativa histórica.

A representação desempenha um papel central neste contexto, moldando o entendi-

mento do mundo por meio de discursos, imagens e práticas criativas. A interpretação da rea-

lidade é mediada pela cultura e, como tal, influencia os ecossistemas políticos. Compreender

as bases socioculturais desses ecossistemas, bem como os valores e normas que os sustentam,

é fundamental para a análise das representações coletivas e sua evolução ao longo do tempo.

A pesquisa se concentra na figura do sujeito como agente e pensador, examinando

Capa como diferentes grupos, incluindo mulheres, crianças, despossuídos, sem-terra, sem-teto e

deslocados, carregam ações impregnadas de identidades e pertencimentos distintos. As iden-

Ficha tidades são consideradas construções simbólicas que organizam o sentido de pertencimento e

coesão social, permitindo a identificação com o “eu” ou o “nós” em contraposição ao “outro”

Sumário como algo diferente e estranho.

Os principais eixos deste material envolvem a abordagem da História do Presente,

que lida com novos problemas, campos e representações. A história contemporânea emerge

em resposta às necessidades sociais, demandas sociais e influência de gerações de pesquisa-

dores, e representa uma interseção entre História, Política, Cidade, Cultura, Representações

e Memória.
34

A análise desta história do presente traz à tona questões metodológicas e epistemo-

lógicas complexas, relacionadas à presença física do pesquisador em seu tempo, ao tema e

aos fenômenos contemporâneos, incluindo as reverberações da memória e o papel das re-

presentações sociais, sejam elas expressas em pintura, pixações, esculturas, cinema, música,

teatro, dança, corpo, cidades ou arte/educação. Essas representações são essenciais para a

compreensão do imaginário urbano e, portanto, dos discursos, imagens e representações que

afetam espaços, atores e práticas sociais.

A cidade não é apenas vista como um local de produção ou ação social, mas também

como um objeto de reflexão e problematização. As representações urbanas são cruciais para

essa abordagem, pois fornecem insights sobre valores, comunidades e movimentos que com-

põem um imaginário coletivo. As imagens e pixações na cidade são exemplos de represen-

tações que se tornam mediadoras entre o espectador e o produtor, refletindo uma realidade

percebida, carregando códigos simbólicos e estéticos que remetem a uma lógica de significa-

dos específicos para sua época.

Este material busca examinar essas representações com perguntas específicas, consi-

derando os valores, sentimentos, sonhos e fantasias de uma determinada época, bem como

as expectativas sociais em relação aos atores representados.

Longe de ser uma conclusão definitiva, este estudo representa uma constatação pre-

liminar de como as políticas públicas e preconceitos, contribuem para a acentuação das de-

sigualdades sociais, resultando na aculturação sobre uma parcela significativa da sociedade

que permanece negligenciada e submersa em meio ao debate estético e moral.

Capa Para avançar nessa investigação, é pertinente expandir o exame das implicações so-

ciais, culturais e políticas do pixo e sua interação com o tecido urbano de São Paulo. A análise

Ficha deve ser enriquecida com referências bibliográficas que ofereçam insights críticos sobre as di-

nâmicas culturais e sociais envolvidas nesse fenômeno. Nesse contexto, autores como Stuart

Sumário Hall (2006), que discute a representação cultural e a identidade, e Michel de Certeau (1998),

que aborda as práticas cotidianas e o espaço urbano, podem fornecer fundamentos teóricos

sólidos para a compreensão mais aprofundada das questões em jogo.

Além disso, a pesquisa deve se concentrar em desvendar as relações de poder subja-

centes à subcultura do pixo, bem como os modos pelos quais os atores envolvidos negociam

sua identidade e agência em um ambiente urbano dinâmico e multifacetado. Para tal análise,
35

teóricos como Pierre Bourdieu (1987), com suas contribuições sobre o capital simbólico e o

habitus, podem fornecer uma estrutura conceitual relevante.

A compreensão das políticas públicas em relação ao pixo e sua influência nas desi-

gualdades sociais também requer uma análise mais aprofundada. Autores como Zygmunt

Bauman (2005), que exploram a liquidez das estruturas sociais contemporâneas, e Saskia

Sassen (2016), que se dedica ao estudo das cidades globais e das dinâmicas urbanas, podem

contribuir para uma discussão mais rica sobre as implicações políticas e sociais do pixo em

São Paulo.

Nesse sentido, é importante estabelecer uma abordagem metodológica sólida que

envolva a coleta de dados empíricos, como entrevistas com pichadores e observações parti-

cipantes em eventos relacionados à cultura do pixo. Isso permitirá uma análise mais apro-

fundada das experiências individuais e coletivas dos atores envolvidos, bem como uma com-

preensão mais precisa das dinâmicas sociais e políticas em jogo.

Em última análise, esta pesquisa aspira a lançar luz sobre as complexas interações

entre cultura urbana, políticas públicas e desigualdades sociais em São Paulo, contribuindo

para um diálogo crítico sobre as realidades muitas vezes invisíveis da sociedade contempo-

rânea. Portanto, a ampliação deste estudo por meio da incorporação de abordagens teóricas

sólidas e metodologias robustas é essencial para alcançar uma compreensão mais completa e

enriquecedora dessas questões complexas e multifacetadas.

U ma pesquisa ant ropo logi c a urb ana


Capa
No estágio inicial da pesquisa, foi imperativo estabelecer uma afinidade com o grupo ou

Ficha campo de estudo selecionado. O primeiro passo envolveu a integração, mesmo que de forma super-

ficial, ao referido grupo. Esta abordagem está em conformidade com as premissas de Franz Boas

Sumário (2023), que sustentam que a compreensão e, por conseguinte, a análise das culturas humanas são mais

bem alcançadas por meio da imersão direta em contextos específicos. Nesse sentido, a delimitação

inicial da pesquisa concentrou-se nos pichadores, com a investigação sendo iniciada em qualquer

evento, reunião, festa ou encontro em que este grupo estivesse presente, embora com certo grau de

inclusão. Vale ressaltar que a maioria desses eventos ocorre em contextos como batalhas de rap ou

locais de troca de assinaturas1.


1 Conforme dito anteriormente este material é uma prévia de um relatório de pós-doutoramento.
36

Fig.1.: Folhinha de assinaturas durante uma batalha de RAP - 2022 – acervo pessoal

Conforme a imersão nos ambientes e grupos selecionados progredia, foram necessá-

rias algumas escolhas metodológicas. Dentro do contexto da arte urbana2, este artigo se con-

centra especificamente nos materiais impressos, como lambe e adesivos3 — stickers. Essa se-

leção se justifica pelo fato de que as contestações presentes nesses materiais apresentam uma

dinâmica social particularmente interessante e de mais fácil acesso, além de uma excelente

Capa receptividade. Essa dinâmica abrange desde uma preocupação genuína com os integrantes

do grupo até um certo grau de pedagogia, envolvendo a formalização de identidades, regras,

Ficha traços e a apropriação de outros hábitos sociais.

Este estudo apresenta uma abordagem em camadas para a análise da dinâmica so-

Sumário cial relacionada ao pixo e à cultura urbana em São Paulo. A fim de compreender a situação

hipotetizada, foi essencial realizar um estudo antropológico preliminar. O autor imergiu nas

Ali haverá mais informações detalhadas sobre os eventos visitados, suas peculiaridades e seus partici-
pantes.
2 Referência utilizada pelo autor a partir deste momento, pois nas ramificações possíveis encon-
tram-se, além do pixo, o grafitti, os lambes, os adesivos/stickers entre outros. Este material não retoma,
ou acredita ser necessário, as definições do que é e do que deixa de ser arte.
3 Dentro do meio/grupo/sociedade utiliza-se o anglicismo sticker, que doravante será utilizado.
37

nuances desse meio, assumindo um papel ativo e construindo uma identidade4 reconhecível

dentro desta sociedade, até então visto como grupo apenas.

Fig.2.: Pixação de uma identidade - 2022 – acervo pessoal

Esse processo culminou na formação de uma nova identidade, que permeia as várias

camadas do universo do pixo, incluindo murais e stickers – Fig.3. As concepções pré-existen-

tes e os preconceitos reais estão atualmente passando por uma desconstrução contínua, à

Capa medida que mudanças significativas emergem como respostas contextuais. Além disso, uma

série de outras formas de “marcações” igualmente se encaixam no espectro do pixo, amplian-

Ficha do as possibilidades de compreensão e intervenção.

É fundamental destacar que esta pesquisa se encontra em andamento e está funda-

Sumário mentada na realidade urbana de São Paulo, suas populações e suas particularidades culturais

e locais, além das especificidades das ‘sociedades de vândalos5’. Artistas na Europa apresen-

tam um sentido profundo para o sticker, também chamado de Pós-Grafite, Arte de Rua ou

4 A frase ‘se não te vi tu não existe’ ressoa como um lema que não apenas descreve parte do tra-
balho realizado, mas também lança luz sobre o que permanece invisível às políticas públicas.
5 Vândalos é um termo apropriado pelos grupos e utilizado largamente entre si. Por exemplo um
convite para uma pichação ou mesmo sair colando adesivos e lambes seria algo como ‘Bora vandalizar?’
entre outros semelhantes. Portanto, a partir daqui neste material, a menção de sociedade dos vândalos
refere-se às sociedades do pixo, do sticker, dos lambes.
38

mesmo Arte Urbana, conforme dito anteriormente. No entanto tudo se resume à técnica uti-

lizada para marcar o espaço, fazer seu manifesto, tomar posse fortalecendo vínculos sociais.

Fig.3.: Stickers trabalhados na cidade pelo autor. - 2022 – acervo pessoal

A ideia de tomar posse e fazer seu manifesto, tem sido a maior conexão entre as téc-

nicas e atitudes desta sociedade. O pensamento ‘vândalo’ deixa claro que o território urbano

não é privado; está nas ruas e calçadas é público. As apropriações de espaços e territórios

como lugar de manifesto não é tão ideológico quanto se quer fazer crer. As discrepâncias so-

ciais ainda excluem as pessoas que não partilham dos pensamentos coloniais. Atitudes como
Capa
o pixo à estátua do Borba Gato6, ou mesmo ao monumento às bandeiras reforçam esta ideia

de opressor e oprimido. Os estímulos aos manifestos são saudáveis, mas quando se tem ainda
Ficha
repressão e seleção de quem é apreendido ou não, torna-se muito claro a eugenia sugerida e

alimentada ao longo de tantos tempos.


Sumário
Esta compreensão não justifica qualquer forma de manifesto ou depredação, mas

deixa claro que com um pouco mais de percepção humanizada, as consciências de classe,

talvez se tornassem mais comuns e fornecesse efetivamente amparos. Quando se pensa em

uma pedagogia social que abraça o indivíduo e beneficia a participação e os direitos, nota-se

6 Conforme explicado anteriormente, todo este material estará pormenorizado no relatório de


pós-dooutoramento.
39

como os desafios do vandalismo é simplesmente uma válvula de escape.

O pixo evidencia todo um grupo de pessoas — homens, mulheres, trans, heterosse-

xuais, homossexuais, negros, indígenas, brancos etc. — sem distinções gritando e tomando

posse de um território que lhes foi negado, nomeado muitas vezes por uma minoria iludida

que se acham no direito de oprimir.

As outras técnicas e formas de expressão podem ser comparadas ao trabalho de um

formigueiro, que ao seu modo, reforçam o burburinho, garimpando territórios diferentes,

como uma placa, um portal, um banco ou ponto de ônibus, sem, no entanto, se diferenciar

nos objetivos, na coletividade, nos ideais. Não é uma utopia viver diferentemente em um gru-

po de pessoas, requer talvez um pouco mais de pensamento coletivo; até agora, face à estas

artes urbanas, pode-se perceber o exposto acima.

Longe de ser uma conclusão definitiva, este estudo representa uma constatação pre-

liminar de como as políticas públicas e preconceitos, contribuem para a acentuação das de-

sigualdades sociais, resultando na aculturação sobre uma parcela significativa da sociedade

que permanece negligenciada e submersa em meio ao debate estético e moral.

P róx i mos capí tul os

Uma compreensão da linha de raciocínio para o relatório final.

Para avançar nessa investigação, é pertinente expandir o exame das implicações so-

ciais, culturais e políticas do pixo e sua interação com o tecido urbano de São Paulo. A análise

Capa deve ser enriquecida com referências bibliográficas que ofereçam insights críticos sobre as di-

nâmicas culturais e sociais envolvidas nesse fenômeno. Nesse contexto, autores como Stuart

Ficha Hall, que discute a representação cultural e a identidade, e Michel de Certeau, que aborda as

práticas cotidianas e o espaço urbano, podem fornecer fundamentos teóricos sólidos para a

Sumário compreensão mais aprofundada das questões em jogo.

Além disso, a pesquisa deve se concentrar em desvendar as relações de poder subja-

centes à subcultura do pixo, bem como os modos pelos quais os atores envolvidos negociam

sua identidade e agência em um ambiente urbano dinâmico e multifacetado. Para tal análise,

teóricos como Pierre Bourdieu, com suas contribuições sobre o capital simbólico e o habitus,

podem fornecer uma estrutura conceitual relevante.


40

A compreensão das políticas públicas em relação ao pixo e sua influência nas desi-

gualdades sociais também requer uma análise mais aprofundada. Autores como Zygmunt

Bauman, que exploram a liquidez das estruturas sociais contemporâneas, e Saskia Sassen,

que se dedica ao estudo das cidades globais e das dinâmicas urbanas, podem contribuir para

uma discussão mais rica sobre as implicações políticas e sociais do pixo em São Paulo.

Nesse sentido, é importante estabelecer uma abordagem metodológica sólida que

envolva a coleta de dados empíricos, como entrevistas com pichadores e observações parti-

cipantes em eventos relacionados à cultura do pixo. Isso permitirá uma análise mais apro-

fundada das experiências individuais e coletivas dos atores envolvidos, bem como uma com-

preensão mais precisa das dinâmicas sociais e políticas em jogo.

Em última análise, esta pesquisa aspira a lançar luz sobre as complexas interações

entre cultura urbana, políticas públicas e desigualdades sociais em São Paulo, contribuindo

para um diálogo crítico sobre as realidades muitas vezes invisíveis da sociedade contempo-

rânea. Portanto, a ampliação deste estudo por meio da incorporação de abordagens teóricas

sólidas e metodologias robustas é essencial para alcançar uma compreensão mais completa e

enriquecedora dessas questões complexas e multifacetadas.

Historicamente tem-se muitos engendramentos. Um forte exemplo deste pressuposto

é a Semana de Arte Moderna, que como um movimento que dá origem às buscas identitárias,

proporciona novas imagens e diálogos sociais.

Em sua devida proporção existe uma maior aproximação das artes e cultura da po-

pulação em geral, uma vez que atualmente as artes estão por todos os lados, até nas “ruas ao

Capa ar livre”; o que antes era restrito à uma pequena parcela da população, atualmente está, ao

menos, mais disponível a todos.

Ficha Do mesmo modo que a população se expandiu nos grandes centros urbanos, em uma

contextualização maior nomeadamente São Paulo, criaram-se grupos sociais distintos, cada

Sumário um com suas especificidades ímpares. No entanto, no âmbito social das últimas décadas,

observa-se um agravamento das condições enfrentadas pela população em geral, cuja busca

por conscientização de classe ainda são uma constante. A persistência da estratificação so-

cial, evidenciada pela capacidade da elite de participar de eventos culturais contemporâneos,

como a Semana de Arte Moderna, reflete, ainda hoje, a continuidade de desigualdades. Toda-

via, deve-se ressaltar que, proporcionalmente, houve uma maior aproximação das camadas
41

populares com as artes e a cultura ao longo desse período, com o desenvolvimento e incenti-

vo de diversos espaços culturais.

Não obstante, muitos indivíduos permanecem excluídos desses espaços, seja devido

à falta de interesse, inacessibilidade física ou desconhecimento. As mídias digitais ou urba-

nas, têm o potencial de aproximar e afastar o público, mas é importante salientar que, em

algumas circunstâncias, até mesmo essas mídias podem ser inacessíveis.

Paralelamente ao crescimento populacional nos grandes centros urbanos surgiram

grupos sociais distintos, cada um com suas características particulares. Dentro da própria

cidade, existem comunidades invisíveis e negligenciadas, semelhantes às discussões sobre o

destino de escravos alforriados no século XX, que careciam de uma identidade reconhecida.

Tais cidadãos, que não faziam parte da elite, frequentemente careciam de direitos ou desco-

nheciam-nos, e as mudanças ao longo dos últimos cem anos foram limitadas.

Um elemento comum ao longo deste período é a expressão artística, que desempe-

nhou um papel fundamental na manifestação do descontentamento e da afirmação da exis-

tência da população. Os “lambes”, como Abraham Moles (1974) observou, desempenham

um papel significativo na configuração do espaço urbano, destacando conteúdos funcionais e

estéticos que abordam uma área ambígua de aspirações e desejos entre funcionalidade e es-

tética. Os cartazes, por muito tempo, foram uma forma de expressão política e transgressora,

muitas vezes associados à proibição.

Enquanto isso, a forma de expressão evoluiu ao longo do tempo, reduzindo-se em

tamanho para se tornar adesivos que representam discursos ideológicos contemporâneos,

Capa amplamente difundidos entre as mesmas sociedades invisíveis, negligenciada e até margi-

nalizadas, que se identificam por meio de nomes artísticos e imagens produzidas, tal qual a

Ficha sociedade do pixo. Esses adesivos têm uma ampla disseminação tanto na cidade quanto na

internet, fortalecendo o reconhecimento e as conexões entre os grupos sociais. Além disso, as

Sumário imagens não se limitam a adesivos ou papéis, sendo incorporadas diretamente nas paredes

através de grafites e pixações, duas formas distintas de expressão em constante evolução.

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Ficha

Sumário
44

Mulheres militares:
narrativas das vivências

Sílvia Lúcia Pereira Duarte

As pesquisas acadêmicas, nas áreas das Ciências Sociais Aplicadas e Humanas, per-

mitem metodologias diversas para sua realização, contextualização e problematização, então

objetiva-se realçar a vivência de algumas militares e desta forma dar ênfase a um período

específico do incremento do trabalho feminino no mundo produtivo economicamente.

As práticas da pesquisa determinadas pela problematização teórico-epistemológica

da História Cultural apresentam boa aderência ao tema ao permitir o entrelaçamento das

experiências vividas pelas entrevistadas e ressaltar características das missões onde atuaram

e ampliar a História de si da pesquisadora que por escolha própria e necessidades familia-

res permaneceu na mesma unidade militar por toda a carreira; ainda segundo Thompson

(1998), a História Oral ressalta a importância de cada experiência pessoal na construção da


Capa
História e na utilização desta como aprendizagem para o futuro.

Os marcos temporais mundiais, como a industrialização e urbanização foram consi-


Ficha
derados por trazerem modificações na organização da sociedade, como a crescente participa-

ção da mulher no auxílio ao sustento, afinal as condições financeiras das famílias as compe-
Sumário
liam a dupla jornada de trabalho, naquele momento elas complementavam a renda familiar e

continuavam com as responsabilidades domésticas. Além de terem salários menores e serem

consideradas um ser subalterno que precisava de tutela, um responsável homem para tomar

suas decisões, pois os direitos humanos advindos da Independência dos EUA e Revolução

Francesa garantiam o acesso a cidadania somente aos homens.

Após a II Grande Guerra Mundial a criação da Organização das Nações Unidas (ONU)
45

e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, são marcos na reformulação dos Direitos do

Homem e do Cidadão, porém, como ressalta Rosana MPB Schwartz, a salvaguarda destes

direitos a todos, independentemente de raça, nacionalidade, etnia, língua, religião e sexo, só

ocorre em 1966 após o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional

de Direitos Econômicos Sociais e Culturais.

À época a perspectiva dada a mulher; “devido à construção do estereótipo de infe-

rioridade física e intelectual e seu status de dependente, frágil e submissa” (Schwartz, 2017,

p.79); impossibilitava a metade da população a plenitude de seus direitos, porém o descon-

tentamento com esta diferença, dá início aos movimentos pela igualdade de direitos, que

culminaram em 1947 com o estabelecimento da Comissão Sobre a Condição da Mulher pela

ONU

As mulheres correspondem a quase metade da população economicamente ativa, se-

gundo Schwartz, porém no Brasil sua participação na esfera pública é considerada pequena

até a segunda metade do século XX quando esta participação sofre um incremento. Ao estu-

darmos as transformações sociais e o ingresso do feminino no mercado de trabalho, segundo

Maria Izilda de Santos Matos, Rosana M.P.B. Schwartz e Andrea Borelli, devemos refletir que

as mudanças tiveram um aumento a partir dos anos de 1960, impulsionadas pelo uso de con-

traceptivos orais e um maior controle da mulher sobre seu sistema reprodutivo. Em 1975 a

ONU instaura o Ano Internacional da Mulher.

No campo militar, a Segunda Grande Guerra Mundial (GGM), foi um divisor não so-

mente pela criação da ONU, mas pela necessária mão de obra, que auxiliou a conquista por

Capa direitos mais igualitários. O Brasil pela primeira vez teve voluntárias mulheres, as enfermei-

ras que seguiram para os campos de batalha, o engajamento delas no que é considerado um

Ficha momento crucial na história,

impulsionou mudanças nos

Sumário costumes.

Ilustração 01: Enfermeiras

da FEB - acervo do Museu

Casa de Memória dos Ex-

-Combatentes
46

A atuação das enfermeiras voluntárias foi considerada exitosa, porém embora as mu-

lheres estivessem numa área conhecida e franqueadas a elas, ou seja, o cuidado com a saúde

alheia, permanecer no exército era uma quebra do paradigma vigente do lugar da mulher na

sociedade, então no retorno ao Brasil elas são licenciadas do serviço ativo.

B ases me todoló gi cas

A escuta atenta para ressaltar vivências dos comuns é o mote desta pesquisa que pro-

blematiza e contextualiza os indícios sobre as mudanças ocorridas no trabalho da mulher a

partir da segunda metade do século XX. e em especial a inserção da mulher no Exército, que

começa no Quadro Complementar de oficiais e atualmente embora não seja permitido uma

livre concorrência já apresenta mulheres na Academia Militar das Agulhas Negras, escola que

forma militares da carreira da linha militar bélica1

Os pressupostos da História Cultural são a amálgama teórica para uma reflexão epis-

temológica dos questionamentos a partir das impressões, subjetividades e muitas vezes sen-

timentos das entrevistadas, com a escuta de várias experiências foi possível obter indícios

sobre a percepção do ingresso das mulheres, suas motivações, as vivências, as dificuldades,

as oportunidades encontradas e os óbices ao desenvolvimento da carreira, bem como na

vida pessoal e os caminhos que precisam ser percorridos, para manter e incrementar a par-

ticipação feminina em instituições perenes e tradicionais. Segundo Walter Benjamin (2022),

a experiência pressupõe a permanência da tradição a conquista por meio dela, reviver im-

Capa pressões passadas, muitas vezes inconscientes, mas que levam aprendizados coletivos que

podem apresentar novos caminhos, neste caso para refletir e problematizar a inserção da

Ficha mulher no exército. Além disso para Benjamin a experiência sofre influência do meio, então

ao analisá-la deve-se ter cuidado em não reproduzir posturas, apesar das permanências cul-

Sumário turais. O diálogo com os autores das bases teóricas escolhidas leva a entender e ressaltar a

importância do papel da mulher e sua contribuição para o desenvolvimento da sociedade e

da humanidade, além de refletir sobre as oportunidades e evidenciar a assimetrias sociais.

Segundo Sandra Jathay Pesavento (2003), a História Cultural permite recolher fragmentos

1 Ensino Militar Bélico, destinado ao preparo e adestramento de pessoal incumbido do planeja-


mento, preparação, direção e realização das ações que, no quadro do Exército, interessam à Segurança
Nacional (CAMARA DOS DEPUTADOS)
47

do micro e descortinar questões para a interpretação e conhecimento dos significados das

atitudes e da produção do conhecimento em distintas épocas, sendo a cultura uma forma de

expressão da realidade.

Nos anos 1960 a 1970 os historiadores e sociólogos perceberam a importância meto-

dológica da História Oral para a entrevistada acessar suas memórias como um instrumento

capaz de ressaltar as vivências do sujeito comum, nesta pesquisa, as memórias individuais

permitem construir um relato multifacetado com experiências diversas, para tanto, foram

elencadas integrantes do Quadro Complementar de Oficiais do Exército Brasileiro, que re-

lataram suas experiências singulares para ajudar a compreender um período histórico da

instituição ao revelar características próprias e dos lugares e missões onde atuaram. “As en-

trevistas, como todo testemunho, contêm afirmações que podem ser avaliadas. Entrelaçam

símbolos e mitos com informação, e podem fornecer-nos informações tão válidas quanto as

que podemos obter de qualquer outra fonte humana” (THOMPSON, 1998, p. 315). Ao pri-

vilegiar as experiências femininas, restaura-se trajetórias individuais e questiona-se posicio-

namentos. ainda segundo Thompson (1998), a História Oral ressalta a importância de cada

experiência pessoal na construção da história e na utilização desta como aprendizagem para

o futuro, pois além das comunicações orais, podemos analisar expressões e gestos, toda a

comunicação não verbal da entrevista.

O que as pessoas contam tem uma história que suas palavras


e ações traem [...]; uma história que explica por que usam as palavras
que usam, dizem o que dizem e agem como agem. [...] Suas afirmações
Capa não são simplesmente declarações sobre a “realidade”, mas comentá-
rios sobre experiências do momento, lembranças de um passado legado

Ficha por precursores e antecipações de um futuro que desejam criar. (COS-


TA, 1998, p.15)

Sumário
Não se pretende esgotar o assunto, pois com estes relatos descortina-se muitas nuan-

ces, sempre lembrando que segundo Gabrielle Rosenthal a história narrada apresenta ar-

gumentação influenciada pelo momento presente e pelas experiências pessoais por isso são

utilizados depoimentos de mulheres com experiências diversas. O objetivo é por meio da

inferência, classificar e entender as convergências e divergências que denotam a assimila-

ção das mulheres nestes trinta primeiros anos de inserção de forma estruturada no Exército
48

Brasileiro, coletando índices intrínsecos nas mensagens proferidas. Outro cuidado necessário

são as ideias estereotipadas que podem ser identificadas nas entrevistas, elas precisam de

um tratamento específico e a verificação de em qual período os fatos narrados ocorreram.

Este cuidado se faz necessário para a objetividade científica, que se pretende conseguir por

fragmentação, baseada principalmente na delimitação sistêmica: exclusivas, objetivas e ade-

quadas.

As entrevistadas serviram em locais diferentes e, é possível que embora pertençam

a mesma instituição, suas vivências e experiências tenham peculiaridades que após a aná-

lise permitirão uma interpretação sobre as algumas variáveis institucionais, que de forma

abrangente e por meio do debate teórico e epistemológico envolvem a escrita de pesquisas

acadêmicas e podem construir narrativas retóricas, porém sempre observando os diálogos

entre história e ficção que se tornam mais tênues, em especial na História Oral e História

de Si, onde as experiências e vivências permeiam o saber acadêmico. Além de permitir

colocar a mulher comum no centro da narrativa, pois segundo Carlo Ginzburg através da

escuta atenta dos comuns, subalternos podemos perceber as nuances culturais e quem sabe

agregar mudanças ao futuro, afinal esta escuta da micro-história, com pesquisas de caráter

específicos “podem modificar as visões de conjunto desenhadas pela macro-história” (Ginz-

burg, 2007 p. 269)

No quadro abaixo tem-se uma perspectiva do perfil das entrevistadas

ANO DE CIDADE EM
ATUAÇÃO SITUAÇÃO
FORMAÇÃO QUE VIVE
1992 Integrou a Missão de Paz no Haiti e a Operação Acolhida Ativa/Reserva Brasília
Capa
1992 Atuou em Colégio Militar e escolas de formação Reserva São Paulo

1996 Atuou em Missão da ONU Reserva Rio de Janeiro


Ficha
1996 Atuou em Região Militar Reserva Curitiba

1998 Atua em Escola de Formação Ativa Salvador


Sumário 1999 Atua em Hospital Militar Ativa São Paulo

1999 Atua no STM Ativa Brasília

2005 Atua em Missão da ONU Ativa Africa Central

2006 Atua no Centro de Comunicação Social Ativa Brasília

2013 Atua em Região Militar e atuou em CM Ativa São Paulo

Gráfico 01: Perfil das entrevistadas-Fonte: acervo pessoal


49

A pesquisadora também integra a instituição e é partícipe deste ingresso da mulher

no Exército, desta forma seu relato por meio da História de Si, revela suas experiências e uma

análise das condições de vida e talvez caminhos que poderiam ser diferentes; pois por escolha

própria e necessidades familiares permaneceu na mesma unidade militar por toda a carreira.

Esse acesso direto à observação, em termos de análise histórica é extremamente com-

plexo, pois a sua verdade pode e tem muito das suas expectativas e crenças por isso optou-se

por confrontá-la com os relatos da História Oral para tentar minimizar os desvios de sentido.

Além disso impressões trocadas em conversas informais com outras militares no decorrer da

carreira são durante todo o relato reveladas e problematizadas.

Estudos foram pensados nos ego-escritos e quanto da própria experiência o pesqui-

sador relata em seus textos, mesmo quando não é em primeira pessoa, porém essa análise

sociológica ao ser mesclada com outras realidades e contextos pode contribuir para a compo-

sição de um período, desta forma esta pesquisa foi planejada, não como uma biografia, mas

na possibilidade de uma escuta atenta ao outro e uma mescla com as próprias experiências.

Ressalta-se, sempre, a singularidade de cada entrevistada e da pesquisadora na com-

posição do todo que é a inclusão do feminino no exército. Ainda segundo Pierre Bourdier esta

experiência precisa ser analisada de modo distanciado, como um objeto de estudo para se

ajustar a necessidade sociológica e produzir reflexões, não devendo ser pensada como uma

autobiografia, para que o pesquisador não caia na armadilha de entender sua experiência

como algo singular, nas sim como um emaranhado de vivências comum a sociedade de sua

época.

Capa As informações coletadas estão imbricadas com a análise da formação da identidade

brasileira, descritas por Marilena Chauí e Sérgio Buarque de Holanda, além de pensar sobre

Ficha a cultura tão intrínseca na organização pela discrição da História Cultural de Sandra Jatahy

Pesavento. As narrativas das militares que trazem a história oral contada pelos comuns evi-

Sumário denciam a importância da memória e nos seus possíveis impactos em decisões futuras, pois

como nos diz Walter Benjamin a experiência de um ser é partilhada pela comunidade a que

pertence o que leva a circularidade historiográfica das interações culturais, e as represen-

tações coletivas de Roger Chartier, sem esquecer a hermenêutica e suas possibilidades de

interpretação.

A representação social da mulher, disseminada principalmente no positivismo co-


50

loca-a como um ser de segunda categoria que precisa ser domada e tutelada e através das

representações há a possibilidade de analisar o quanto destes conceitos permeiam a cultura

e as interpretações.

Os efeitos dessa dupla revolução da história, estruturalista e


“galileana”, não foram poucos. Graças a ela, a disciplina pôde assim
reatar com a ambição que fundara no início deste século a ciência so-
cial, em particular em sua versão sociológica e durkheimiana: ou seja,
identificar estruturas e regularidade, portanto, formular relações ge-
rais. (CHARTIER, 2002, p.83)

As regularidades e as permanências na cultura ocasionam a repetição de posicio-

namentos e atitudes e na análise sobre a inserção da mulher no mercado de trabalho e em

especial no exército que sofre influências destas estruturas e da cultura vigente.

Capa

Ficha
Ilustração 2: Página 14 da Revista Verde-Oliva Ano XX Nº 133 Ago 1992 Centro de

Sumário Comunicação Social do Exército – Brasília/DF - Fonte: https://www.calameo.com/exer-

cito-brasileiro/read/001238206ae5c051041a5

Afinal a história narrada apresenta argumentação experimentada e comprovadas pe-

los contextos e vivências diversos que dificultam e influem no processo recordativo.

Os que (...) assumem a tarefa de contar sua experiência par-


51

ticular emaranhada a outros destinos em comum e reforçam as vozes


que se querem fazer ouvir. Trata-se da verdade da memória, que reúne
elementos dispersos, apresentando ao mesmo tempo retrato pessoal, co-
letivo e identitário, por meio dos quais (...) mulheres reconstituem sua
própria unidade e identidade num tempo que a narrativa revela com-
plexamente subjetivo, emotivo e racionalizado. Não se trata somente
da “verdade histórica”, crítica, distanciada pelo método, decifração e
análise dos signos, mas da “verdade do testemunho”, dinâmica, incom-
pleta e sempre presentificada. (Rovai, 2013, os. 110, 111).

Os relatos coletados permearão todas as análises sobre convergência e divergência

na percepção das mulheres, bem como na percepção da pesquisadora. “(...) a partir destes

momentos iniciais do desenvolvimento da consciência social, a menina pequena aprende que

é uma fêmea que ingressa numa cultura que privilegia a masculinidade, por isso, privilegia

os homens” (Thompson, 1998, p.203). O privilégio do masculino pode ser percebido em al-

guns comentários sobre acessos à instituição, cursos e outras formações. Um discurso usual

na instituição é afirmar que não há diferenciação.

Vários estudos foram pensados nos ego-escritos e quanto da própria experiência o

pesquisador relata em seus textos, mesmo quando não é em primeira pessoa, porém essa

análise sociológica ao ser mesclada com outras realidades e contextos pode contribuir para a

composição de um período, foi desta forma que planejamos meus relatos pessoais, não como

uma biografia, mas na possibilidade de uma escuta atenta ao outro e uma mescla com as

próprias experiências.
Capa
As regularidades e as permanências na cultura ocasionam a repetição de posicio-

namentos e atitudes e na análise que fazemos sobre a inserção da mulher no mercado de


Ficha
trabalho e em especial no exército sofrem influências destas estruturas e da cultura vigente.

Procuramos indícios das (des) continuidades que poderão auxiliar a tomada de decisões futu-
Sumário
ras quanto a maneira de integração do feminino à instituição. Neste estudo multi e transdis-

ciplinar o interesse em coletar os dados e interações de cada integrante pode nos levar a uma

melhor radiografia da instituição, conforme nos propõe Eliana Almeida de Souza.

Ainda no período de prospecção das entrevistadas uma conversa com uma militar

com a qual a pesquisadora já havia labutado em missão2 e ela recusou-se a participar com

2 atividades extras desenvolvidas por militar com uma finalidade específica.


52

muita gentileza explicou não querer falar sobre suas experiências militares. Na metodologia

de História Oral, tão importante quantos as palavras, são as pausas e impressões faciais e

gestos, então colocou-se com autorização da possível entrevistada esta observação então fala

para problematiza as máculas da vida militar e os indícios de o quanto as militares das pri-

meiras turmas, foram percebidas como alguém que não estava no seu devido lugar.

As conversas com familiares e amigos das militares trouxeram a percepção da ex-

periência destas mulheres e dos homens que convivem com as primeiras militares podem

nos levar a vislumbrar um outro prisma, uma visão diferenciada de quem não é militar, mas

por opção convive com a vida na caserna. Então temos um capítulo em construção que trará

estas impressões e possivelmente revele quebras de paradigma no papel social esperado das

mulheres na vida familiar.

O espírito militar e ethos militar até a criação do Quadro Complementar de Oficiais

era construído ao longo de 4 anos, tempo em que se cursava a Academia Militar das Agulhas

Negras (AMAN), frequentada somente por homens, ou melhor, adolescentes, numa idade

em que é mais fácil a influência dos professores e de militares mais velhos e com patentes3

superiores. Desta forma a possibilidade de uma outra forma de ingresso para seguir carreira

foi uma quebra de paradigma que sofre a segunda ruptura com o ingresso da mulher, essa

dissonância é sentida por mim e por todas as entrevistadas com quem eu conversei, percebe-

mos uma aceitação gradativa da mulher em consonância com as mudanças que a sociedade

vive no trabalho feminino em todas as áreas.

O panorama apresentado sobre as mulheres no exército ajuda a situar o objeto de

Capa pesquisa desta tese que por meio da narrativa da História Oral e História de Si traz luz aos

sentimentos, questionamentos, oportunidades e motivações destas mulheres que integram a

Ficha instituição ou integraram nestes primeiros trinta anos da inserção permanente das mulheres.

Sumário

3 é um sistema hierárquico que estabelece diferentes níveis de autoridade e responsabilidade den-


tro da instituição
53

Ilustração 3: Páginas 24 e 25 da Revista Verde-Oliva Ano XXI Nº 136 Jun 1993 Centro

de Comunicação Social do Exército – Brasília/DF - Fonte: https://www.calameo.com/

exercito-brasileiro/read/001238206ae5c051041a5

A ilustração acima demonstra a aceitação da mulher no EB após o primeiro ano de

seu ingresso.

Problematizar questões relativas à emancipação feminina a tendo como marco a Re-

Capa volução Industrial que desloca a sociedade rural para urbana e interfere na divisão sexual

do trabalho, incitando novos movimentos sociais que caminham para as conquistas das

Ficha mulheres nos campos dos direitos civis, políticos, sociais, econômicos, entre outros; a fim

de refletir sobre considerações médicas, positivistas e higienistas, a obtenção do direito de

Sumário estudo e participação na vida pública. Não esquecendo de momentos de exceção mundiais

como guerras e batalhas onde toda força de trabalho tornou-se necessária e chancelou a

importância do trabalho da mulher no mundo produtivo.

Estes relatos retratam as conquistas de pessoas comuns que estão intrínsecas na his-

tória, segundo Ginzburg a trajetória dos comuns impacta nas narrativas históricas que reme-

tem a um tempo. A ênfase nos relatos de vida de algumas militares que por particularidades
54

foram convidadas a compartilhar suas experiências, deixam as impressões aqui e pretendem

por meio de um mosaico, retratar por óticas diversas um período da história, onde há uma

crescente participação feminina no trabalho e em especial no exército. As conexões tempo-

rais e temáticas são centradas nas vidas militares, nas motivações, óbices, conquistas e nos

impactos na vida pessoal e familiar, desta forma impressões de várias militares com trajetó-

rias distintas tecem o panorama do momento atual e problematizam esta tese. O conceito de

circularidade cultural permite analisar realidades históricas similares, que são constituídas de

uma forma ou de outra por diferenças culturais e, consequentemente, pela tramitação de ele-

mentos culturais comuns existentes no ambiente das diferentes classes sociais que fazem par-

te de qualquer sociedade. Assim, por meio da personagens anônimos retrata -se um período,

tirando a cidadã comum da invisibilidade, pois a circularidade da sociedade leva a pressões

e influências dos comuns na história vivida e repercutida. Segundo (LE GOFF, 1990, p.10)

“Hoje os documentos chegam a abranger a palavra, o gesto. Constituem-se arquivos orais;

são coletados etnotextos”. Estas impressões relatadas pela História Oral permitem colher as

impressões e as reações das entrevistadas, o que não seria possível pela simples análise de

material escrito previamente produzido. A historiografia da mulher comum, segundo (FÉLIX,

1998, p.64) “...investigação histórica desde questionamentos envolvendo ... estudos referen-

tes a mulheres...e outros temas não valorizados até há bem pouco tempo”.

No primeiro momento levantou-se o perfil de dez possíveis entrevistadas de anos de

formação diferentes e que cumpriram missão em todo o mundo. Interessante que algumas

não quiseram participar pois alguns episódios traziam a elas recordações tristes, não que a

Capa autora só tenha boas recordações, mas decidiu compartilhar sua trajetória para auxiliar as

gerações futuras, afinal este é o objetivo de todo pesquisador, contribuir para um desenvol-

Ficha vimento de nossa sociedade.

A história oral é uma história construída em torno de pes-


Sumário
soas. Ela lança a vida para dentro da própria história e isso alarga
seu campo de ação. Admite heróis vindos não só dentre os líderes, mas
dentre a maioria desconhecida do povo. Estimula professores e alunos
a se tornarem companheiros de trabalho. Traz a história para dentro
da comunidade e extrai a história de dentro da comunidade. Ajuda os
menos privilegiados, e especialmente os idosos, a conquistar dignidade
e autoconfiança. Propicia o contato – e, pois, a compreensão – entre
55

classes sociais e entre gerações. E para cada um dos historiadores e dos


outros que partilhem das mesmas intenções, ela pode dar um sentimen-
to de pertencer a determinado lugar e a determinada época. Em suma,
contribui para formar seres humanos mais completos. Paralelamente,
a história oral propõe um desafio aos mitos consagrados da história,
ao juízo autoritário inerente a sua tradição. E oferece os meios para
uma transformação radical no sentido social da história (THOMPSON,
2002, p. 44).

A escuta atenta das militares permitiu ressignificar suas experiências pela ótica das

(des) continuidades históricas e ressaltar a assimilação do trabalho da mulher no decorrer

do final do século XX e no início do século XXI pelos relatos das mulheres comuns que vi-

venciaram e vivenciam a experiência, além de refletir o passado no momento presente e

problematizar as divergências na assimilação do trabalho da mulher quando comparado ao

trabalho do homem. O interesse nesta compreensão baseia-se na recente (in) visibilidade da

contribuição da mulher no mercado de trabalho e na vida pública.

No EB os exercícios em campo são considerados parte do treinamento para a ativida-

de fim e como as mulheres só começaram a integrar os quadros que exercem esta atividade

em 2017, pesquisar a visão delas em um exercício pode nos apresentar indícios da divisão do

trabalho em campo, bem como auxiliar a compreensão de atividades da Instituição Exército

Brasileiro.

Capa C onsideraç ões

Na história cultural os mitos fundadores são bem descritos por hábitos, palavras e a
Ficha
observação dos costumes de cada povo presente no início da colonização brasileira, desta for-

ma a consolidação da nação suplantou este aspectos e começou com o desafio de montar uma
Sumário
sociedade com tantas variações culturais e uma estratificação na população, neste momento

uma instituição já de caráter nacional era o exército que esteve presente em todas as fases,

cria uma estrutura sólida e perene com uma identidade propícia a sua própria manutenção.

A Instituição Exército Brasileiro se apresenta na sociedade como conhecedora e de-

fensora dos direitos e desejos de seu povo desde sua gênese, por outro lado, a instituição mes-

mo com sólidos preceitos baseados na sua identidade não está imune à influência da socieda-
56

de em que está inserida e embora suas mudanças sejam lentas e graduais, são uma constante,

inserida no contexto de cada época, no século XIX , o positivismo e as teorias higienistas que

acreditavam numa diferença de capacidade entre o masculino e feminino, durante o século

XX a organização se moderniza como um reflexo da sociedade e ao final daquele século a in-

serção da mulher, na área de apoio, ou seja, atividades administrativa e de magistério, como

nos primórdios da educação feminina. A experiencia destes primeiros trinta anos levaram a

inserção da mulher na atividade fim da instituição, já no século XXI em 2017, embora ainda

não possam atuar em todas as áreas.

Os relatos das entrevistas realçam as vivencias, bem como o seu cruzamento com a

observação pessoal da pesquisadora podem representar o retrato de um pequeno momento

institucional pelos olhos destas mulheres, além de trazer as impressões das e dos integrantes

das famílias, desde o orgulho, apreensão e desprendimento.

Para as mulheres as atividades diárias são colocadas como conquistas, perde-se a sen-

sação de direito e fazer parte de um local. A mulher ainda é vista como um ser responsável

pelos cuidados e educação. No EB por ser pertencer a uma área de apoio muitas vezes não

tem toda a sua formação educacional considerada e formalmente reconhecida institucional-

mente, pois as legislações ainda não atendem ou preveem muitas das formações possíveis

às mulheres. Com o passar dos anos o acesso ao regramento de direitos foi aos poucos reco-

nhecidos como a licença maternidade que integra a constituição Federal de 1988. Ainda no

EB somente no século XXI passa a integrar áreas de atividade fim, e seu acesso a Academia

Militar das Agulhas Negras é permitida em números bem menores (10%) do permitido aos

Capa homens e ainda é considerada como um fardo para a tropa que vier a integrar.

As pautas que englobam mulheres saem da invisibilidade e embora haja dificuldades

Ficha estas podem ser superadas para uma proposta de sociedade com oportunidades e acessos

igualitários em todos os campos de trabalho, não como uma conquista, mas um direito que

Sumário toda cidadã e cidadão deve ter

A Instituição militar embora tradicional e com características de permanência no

tempo têm percebido a necessidade de modernização nos relacionamentos interpessoais pro-

fissionais e nas suas posturas frente ao novo, de forma geral no século passado a moderniza-

ção era mais presente e proeminente na obtenção de novos equipamentos, porém a atualida-

de ressalta a importância da preocupação com o pessoal militar e seu desenvolvimento. Neste


57

interim os avanços nas rotinas e o incremento das mídias sociais ressaltam a importância do

capital humano e da diversidade, inclusive com o ingresso da mulher.

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Capa

Ficha

Sumário
59

A formação do Estado biopolítico brasileiro e a


permanência da sociedade dos privilégios

Wesley Espinosa Santana

Durante as nossas pesquisas para a produção da Dissertação de Mestrado no Depar-

tamento de História Social da Universidade de São Paulo (2006 a 2009), nos debruçamos

sobre a documentação do Arquivo Washington Luís, que se encontra no Arquivo Histórico do

Estado de São Paulo. Estas fontes históricas eram cartas, telegramas, bilhetes, missivas priva-

das e públicas entre o ex-presidente exilado com familiares e correligionários perrepistas no

Brasil e, também, fora dele. O ex-presidente foi deposto em 1930 e viveu no exílio até 1947,

vindo a falecer em São Paulo, em 1957. O nosso objetivo era estudar o período chamado

de Era Vargas, compreendido entre os anos 1930 e 1945, utilizando-se desta documentação

referente ao ex-presidente Washington Luís para identificar e esclarecer características deste

governo a partir da ótica da formação do Estado de exceção, do nacionalismo e suas políticas


Capa
sociais à margem da consolidação do capitalismo industrial. Entre os objetivos específicos,

havia o interesse em detalhar como o processo de exceção política deu-se logo no início dos
Ficha
anos 1930 e, não apenas, em 1937 com a criação do Estado Novo.

A historiografia in loco descreveu o início deste período como Revolução de 1930,


Sumário
onde a mudança era sua grande marca e bandeira em que o presidente Getúlio Vargas tor-

nou-se líder político e messiânico, sob a égide de solucionar problemas histórico-sociais e

desmantelar a estrutura política descentralizada das oligarquias agrícolas. Desta perspectiva,

a proposta de política populista foi elaborada com a utilização do rádio como principal meio

de comunicação, envolvendo os brasileiros no projeto de centralização da burocracia nacio-

nal, criando autarquias e associações federais e trabalhistas que culminariam na formação de


60

um novo Estado e de um cidadão brasileiro.

Seguindo este estudo e a continuidade de nossas inquietações, vimos para o douto-

rado com a intenção de estudarmos novamente o período, porém sob a ótica de um projeto

nacional de políticas educacionais que levaram a criação de direitos sociais e da formação

de um cidadão brasileiro controlado por uma política de exceção ao mesmo tempo em que

consolidaria o capitalismo industrial. O presidente Getúlio Vargas tinha, ao seu lado, teóri-

cos, políticos e intelectuais que vinham da própria oligarquia, mas que concordavam com a

ideia de modernização do país através desta mudança econômica e do fim da dependência

da produção agrícola, sobretudo, do café que seria, inicialmente, o alicerce financiador para

esse projeto. Assim, os cursos técnicos e profissionalizantes, o nacionalismo, a identidade na-

cional, a comunicação via rádio e jornal, a oposição silenciada e a busca da formação do novo

cidadão brasileiro estavam na base estrutural de uma governabilidade com um novo modelo

de Estado que, em nossa interpretação, é o Estado biopolítico.

Nesse contexto, analisamos as Constituições da década de 1930, as reformas educa-

cionais de Francisco Campos e Gustavo Capanema, o Manifesto dos Pioneiros e as decisões

da Casa Dom Vital, o movimento conservador da Igreja Católica e o escolanovismo etc. Vimos

a necessidade, também, de nos debruçarmos sobre a formação dos professores. Leis, juristas,

políticos, conteúdos programáticos e lideranças frente ao Ministério da Educação e Saúde

Pública. Sabemos da importância dos governos varguistas com relação às mudanças sociais

instituídas, os ministérios da Educação e Saúde Pública (MESP) e do Trabalho, Indústria

e Comércio (MTIC), os direitos trabalhistas que foram contemplados pela Constituição de

Capa 1934, a Consolidação das Leis Trabalhistas (1943), a fundação de empresas estatais, incen-

tivos à escola e à saúde públicas, aos ensinos Superior e Técnico, à formação de professores,

Ficha às novas profissões, à cultura etc. Este trabalho não se propõe a discutir os direitos e políticas

sociais implementadas por estes governos que se tornaram referência do Estado do bem-es-

Sumário tar social e que, atualmente, estão sendo retirados, mas sim, queremos entender como estes

direitos e políticas não foram suficientes para transformar a realidade social da desigualdade

no Brasil. A nossa pergunta é como tantas políticas públicas e, entre elas, as políticas educa-

cionais com verbas e orçamentos milionários não conseguiram dirimir as questões sociais?

Qual o papel do Estado no aumento desta desigualdade? Qual a lacuna ou as lacunas entre

tantas mudanças sociais, investimentos e políticas educacionais que levaram a atual condi-
61

ção da escola pública ser destinada para pobres e pretos? Não temos a intenção de culpar

apenas as questões externas como o imperialismo estadunidense ou europeu e nem incorrer

ao erro de analisar todo o período republicano ou todo o Sistema Educacional. Mas, sim,

pretendemos, inicialmente, fazer uma análise sobre o Estado, pois é ele o responsável pela

organização da sociedade e da distribuição das oportunidades e riquezas. E a partir de 1930

queremos justificar o nascimento do Estado biopolítico produzido por estes governos como

responsável em criar o projeto varguista que, diga-se de passagem, não é obra de um homem,

mas sim construído por relações de poder entre elites brasileiras e estrangeiras e seus gover-

nos a partir deste período. Partindo da ideia de que viver é consumir, que para se consumir

é preciso produzir, que produzir é exercer trabalho e que se precisa de educação e formação,

nós não podemos nos esquecer de que a desigualdade não é algo natural, mas sim, cultural.

Não podemos nos esquecer de que a riqueza é finita, que os indivíduos se tornam diferen-

tes ao consumir, que o consumir está subordinado ao dinheiro e de que este intermediário

se tornou o deus agambeniano1 entre a vida dos indivíduos em sociedade. Talvez, esta seja

a maior parte desta lacuna que separa o poder de criar biopolíticas educacionais e o poder

de fazer uma educação emancipatória para todos. Enquanto discutimos a concentração de

renda no mundo ou no Brasil, vemos cada vez mais políticas públicas de cunho neoliberal

que garantem esta condição. Sabemos que a educação por ela só, também, não resolve o pro-

blema e, por isso, vamos nos debruçar para justificar esta situação com o desenvolvimento

do conceito tripé do fracasso social: família, escola e trabalho2 como ferramenta da nossa

tese para defender que o problema não é só educar, mas discutir ideologias, papel do Estado,

Capa organização social, política, economia e subjetividade humana, como a luta pela felicidade

como utopia ou distopia.

Ficha Nessa pesquisa, temos como objetivo defender a tese de que os governos de Getúlio

Vargas foram responsáveis pela formação de um Estado biopolítico, produtor de biopolíticas

Sumário públicas que contribuíram para a realização do projeto varguista. Novamente, de sobrema-

1 Referência a entrevista dada pelo filósofo com o título de Deus se tornou dinheiro em www.
ragusanews com Peppe Savamo em 16 de agosto de 2012.
2 Esse conceito tem como objetivo de explicar não apenas que a educação não é a única saída
para o problema da desigualdade, mas também, que a sociedade brasileira, administrada pelo Estado
biopolítico, produz um processo contínuo de desigualdades que se torna cíclico, passando da formação
familiar à oferta educacional e, dessa, à oportunidade de emprego e trabalho, produzindo formas de
vida, de pensamento, de função social e de expectativas e sonhos de indivíduos em suas vidas nuas
desprovidos de direitos e, sobretudo, de garantia de sobrevivência dentro dos valores garantidos pela
constituição.
62

neira, não negaremos as benfeitorias e as transformações sociais e econômicas do período,

mas defendemos a ideia de que suas biopolíticas e, sobretudo, em nosso recorte, suas biopolí-

ticas educacionais, foram direcionadas à permanência das desigualdades entre ricos e pobres

por meio da consolidação da sociedade dos privilégios e da formação do cidadão nacional.

Acreditamos que, desde a formação do Estado biopolítico, nenhuma medida foi positiva para

combater o que José Murilo de Carvalho denominou como os quatro pecados capitais. Se-

gundo Carvalho,

como historiador, cabe-me perguntar por que, ao longo de qui-


nhentos anos, houve esta persistência. O Brasil cresceu, não há dúvida.
Somos a oitava economia do mundo. Por que crescendo dessa maneira
não se alterou a desigualdade entre os brasileiros? (...) A título de
explicação, diria que, olhando o problema do ponto de vista histórico,
temos quatro pecados capitais que ajudam a entender a persistência.
(...) A primeira delas é a escravidão. (...) O segundo pecado capital é
o latifúndio. (...) O terceiro pecado capital é o patriarcalismo. (...) O
quarto pecado é o patrimonialismo, isto é, a relação entre a sociedade
e o Estado em que o bem público é apropriado privadamente (CARVA-
LHO, 2017, p. 38 e 39).

A escravidão, a concentração de terras e de rendas, o preconceito étnico e de gênero

e a intensa insistência na desvalorização do que é público – defendida pela ideologia liberal/

neoliberal – transformaram-se em instrumentos da lógica capitalista que só fizeram agravar

Capa os instintos e desejos da humanidade em ser livre, mas diferente por consequência do que

se consome e do que se acumula, como superioridade e garantia de sobrevivência pelo seu

Ficha enriquecimento em detrimento do aumento da pobreza de todos os outros.

Optamos em trabalhar com a Filosofia Política, História Cultural e História da Edu-

Sumário cação. Propomos analisar documentos escritos e bibliografias que possibilitam construir uma

narrativa que justifique a pretensão de nossa tese. Assim,, buscando que as áreas estudadas

dialoguem-se entre si, sem que haja um eixo referencial, mas, preferencialmente, uma com-

pletude entre as partes, pois há uma perspectiva histórica, sobretudo, da Teoria da Histó-

ria, na visão de que os documentos oficiais são vernáculos da escrita dos vencedores, mas,

ao mesmo tempo, importantes para que possamos utilizá-los ao fazer novas perguntas que
63

transformam estas fontes históricas em reais possiblidades de interpretação pelo método teó-

rico-analítico que não busca o resgate histórico, mas sim, suas historicidades de acordo com

Peter Burke, como que

reconstruir o que as pessoas pensavam, baseando-se naquilo


que os acusados, que podem não ter sido um grupo típico, tinham pre-
parado para dizer na situação incomum (para não dizer terrificante)
em que se encontravam. Por isso é necessário ler os documentos nas
entrelinhas. Não há nada de errado em tentar ler nas entrelinhas, par-
ticularmente quando a tentativa é realizada por historiadores com a
sutileza de um Ginzburg ou de um Le Roy Ladurie (BURKE, 1992, p.
25-26).

Para embasar teoricamente a nossa intenção de trabalho há decisão em trazer um

pensador contemporâneo que servirá como base teórica para as nossas inquietações sobre os

métodos e conteúdos propostos para a criação de um sistema educacional. A identificação

com as ideias de Agamben, um pensador que ocupa lugar de destaque no debate contempo-

râneo sobre a discussão na qual “a política captura a vida”, a biopolítica, e, sobretudo, o cerne

do conceito e da teoria do homo sacer. Aquele ser humano que é oriundo do Direito Romano

que compreende o indivíduo “matável”, ou seja, aquele que pode ser morto, que está à mar-

gem da sociedade, ao limbo, em sua vida nua, construído a partir da releitura e dos estudos

das obras de Aristóteles, Hanna Arendt e Michel Foucault.

Na década de 1930 no Brasil, os direitos sociais eram, pela primeira vez, pauta de dis-
Capa
cussões e da formulação de documentos que propuseram novas abordagens e estudos sobre

cidadania e o papel do cidadão brasileiro. Nas escolas e universidades, alunos e professores,


Ficha
conjuntamente, com intelectuais e artistas, traduziam os tempos de mudança e da urgência

destes direitos, ao mesmo tempo em que outros direitos, políticos e civis, eram reprimidos
Sumário
dentro de um estado de exceção que queremos analisar sob a ótica agambeniana da forma-

ção do biopoder, conceito oriundo da teoria foucaultiana. Essa exceção política, discriminada

a partir da discussão aristotélica das traduções de vida, zoé (a vida comum de qualquer ser

vivo) e bíos (a vida em grupo com características étnicas e políticas) se desmembra na ideia

de vida nua e da sacralização negativa do homo politicus, o homo sacer que se tornou, em

nossa concepção inicial, prática do processo colonizatório e civilizatório que originou o país
64

e formou a nação através de sua elite, permanentemente, agroexportadora.

Segundo Aristóteles, o homem é um animal político e, como ser racional, é dotado

de ação política que produz as relações de poder. Todos os humanos são homo politikos que

se relacionam de forma hierárquica, utilizando-se da força, da persuasão, da capacidade, da

habilidade, da inteligência, dos sentidos, enfim. Os humanos, como indivíduos membros de

grupos e sociedades, exercem a política em suas relações sociais como sobrevivência, interes-

se, ganância, maldade, benevolência, moral, crença, razão ou emoção. Assim, a política como

relação de poder pode exercer sobre outros indivíduos influência sobre o modo de viver, de

se proteger, de se cuidar, de consumir ou, sobretudo, de sobreviver. Agamben defende que

as relações políticas a partir do Estado sempre foram biopolíticas, pois os soberanos sempre

governaram sobre a vida e os corpos de seus seguidores, interferindo no cotidiano e contri-

buindo para o destino e a morte deles. Para ele, a política sempre foi a biopolítica. Para nós,

a biopolítica aparece como relações de poder pelo Estado no momento em que este consegue

legitimidade da sociedade, apoio, hegemonia, controle a partir da organização do sistema

econômico capitalista e da tecnologia como controladores da vida. Por isso, acreditamos que

o Estado como fazedor de biopolíticas no Brasil começou a partir de 1930, porque foi o mo-

mento em que a maior parte dos trabalhadores puderam estar na pólis, obtendo direitos, sen-

do mencionados, publicamente, pelos discursos e biomídia, exercendo um papel específico

de consolidador do capitalismo industrial e vendendo sua força de trabalho ao mesmo tempo

que impunha padrões de consumo, ganhando identidade e produzindo subjetividades. No

aspecto educacional, sobretudo, das biopolíticas educacionais, o Estado procurava exercer

Capa influência política, ideológica, propagandística, futurista, utópica e moral sobre professores

e alunos, mostrando que algo contrário ao que era proposto estava contra os interesses da

Ficha própria sociedade e do seu desenvolvimento.

Segundo Lemke, de acordo com o seu sentido literal, biopolítica significa a política

Sumário que se ocupa com a vida (LEMKE, 2018, p. 11 e 12). O primeiro que temos informação que

se utilizou do conceito de biopolítica foi o cientista político sueco Rudolf Kjéllen em obra

publicada em 1924. Ele compreendia o Estado como um organismo vivo. Para ele, a forma

natural do Estado é o Estado nacional, que expressaria sua “individualidade étnica” (Kjéllen,

1924, p. 35. IN: Idem, p. 22). Kjéllen e outros autores do início do século XX trabalharam

muito mais o conceito de vida, bíos, do que o conceito de política e, isso, de forma que ela é
65

determinante para a formação do pensamento biológico da vida política. A vida é condição

para a política e, portanto, tudo deve partir dela. Desta forma, a biologização da política

deve garantir não só a vida, mas sim, a forma de vida e a espécie numa cadeia darwiniana

de organização e hierarquia social. A bíos é construída a partir de uma biopolítica em que as

diferenças são naturais, como a propensão às doenças, estrutura física e a luta pela sobrevi-

vência e pelo espaço vital.

Os biopolitólogos utilizam-se de pesquisas e dados da Biologia, como genética, fisio-

logia, psicofarmacologia e sociobiologia para desenvolver o conceito de biopolítica. O foco

principal destes especialistas é a explicação do comportamento político dos indivíduos decor-

rente de suas características biológicas. Os biopolitólogos veem os indivíduos somente como

produto de processos de desenvolvimento bioculturais e não também como seus produtores

(Idem, p. 36). Sob a referência das ameaças ao meio ambiente que se abateu sobre o mundo

nas décadas de 1960 e 1970, a biopolítica ganhou contornos ecológicos, de possibilidades de

preservação da vida através do uso da tecnologia. Desta perspectiva surgiu, também, a bio-

tecnologia com o estudo do DNA que, juntamente com a bioética, tornaram-se a política para

o futuro, para as próximas gerações. Havia a premissa de perceber que era necessário frear

algumas condutas e resoluções a partir do que se poderia fazer com as novas tecnologias. A

intervenção do Estado era imprescindível para viabilizar este controle, mas o mercado e a

iniciativa privada utilizaram de mecanismos de desvio ou de persuasão destas restrições e

situações como a disputa por patentes de remédios e tratamentos que usaram como cobaias

inúmeras populações de países pobres da África e da América Latina.

Capa Neste trabalho, a nossa primeira referência sobre biopolítica é de Michel Foucault

que abordou o conceito numa palestra em 1974 e, depois no curso no Collège de France em

Ficha 1976, publicado na obra História da Sexualidade V.1: a vontade do saber, onde ele escreve

que

Sumário
por muito tempo, um dos privilégios característicos do poder
soberano fora o direito de vida e morte. Sem dúvida, ele derivava for-
malmente da velha pátria potestas que concedia ao pai de família ro-
mano o direito de “dispor” da vida de seus filhos e de seus escravos;
podia retirar-lhes a vida, já que a tinha “dado”. (...) Seria o caso de
concebê-lo, com Hobbes, como a transposição para o príncipe do direito
que todos possuiriam, no estado de natureza, de defender sua própria
66

vida à custa da morte dos outros? (...) Pode se dizer que o velho direito
de causar a morte ou deixar viver foi substituído por um poder de cau-
sar a vida e devolver à morte. (...) “Uma bio-política da população”.
As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois
polos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre
a vida. A instalação – durante a época clássica, desta grande tecnologia
de duas faces – anatômica e biológica – individualizante e especifica-
mente, voltada para os desempenhos do corpo e encarando os processos
da vida – caracteriza um poder cuja função mais elevada já não é mais
matar, mas investir sobre a vida, de cima a baixo (FOUCAULT, 1988,
p.127, 130 e 131).

Em 1979, na obra, Nascimento da Biopolítica, Foucault define.

Biopolítica: eu entendia por isso a maneira como se procurou,


desde o século XVIII, racionalizar os problemas postos à prática gover-
namental pelos fenômenos próprios de um conjunto de viventes consti-
tuídos em população: saúde, higiene, natalidade, longevidade, raças, ...
(FOUCAULT, 1979, p. 431).

Para o filósofo francês, a biopolítica pode ser tratada de três diferentes formas: na

primeira, é a continuação do poder estabelecido pelo soberano, só que em vez de fazer mor-

rer e deixar viver é o fazer viver e deixar morrer, ou seja, do soberano como dono da vida de

seus súditos passaria para o poder do governante administrar e cultivá-la. Com isso, a velha

potência da morte em que se simboliza o poder soberano é agora, cuidadosamente, recoberta


Capa
pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida (FOUCAULT,1988, p.131); na

segunda, a biopolítica está na gênese do racismo moderno, passando de um discurso político-


Ficha
-militar para um biológico-racista; e a terceira, está numa forma particular de governar com

técnicas liberais, sob a ótica da Economia Política como uma nova maneira de governar que
Sumário
é resultante das relações de produção e da transformação da vida em sociedade. Segundo

Foucault,

o que se poderia chamar de “limiar de modernidade biológica”


de uma sociedade se situa no momento em que a espécie entra como
algo em jogo em suas próprias estratégias políticas. O homem, durante
milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e,
67

além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um ani-


mal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão (FOUCAULT,
1988, p. 134).

Na crítica ao liberalismo, Foucault trata biopolítica como a ação orgânica e direta

para se garantir a produção de mercadorias, valorizando a competição e o controle pelo

mercado, em detrimento das diferentes realidades sociais que ampliam as desigualdades nas
sociedades modernas. A movimentação de mercadorias pelo mundo torna-se maior do que

a movimentação de pessoas. Sua crítica à Economia Política como método liberal de desen-

volvimento da sociedade era o questionamento sobre a função do Estado que, a partir do

século XVIII, substituiria sua função de legitimidade ou ilegitimidade do poder pelo sucesso

ou fracasso diante da economia. Segundo Lemke,

a ação governamental deveria, assim, ser uníssona com as leis


de uma naturalidade que ela mesma constituiu. Com isso, o princípio
do governo desloca-se da orientação em relação a uma congruência
externa a uma regulação interna: as coordenadas da ação política não
são mais formadas pela legitimidade ou ilegitimidade, mas sim pelo
sucesso ou fracasso; no centro da reflexão não estão mais o abuso ou
usurpação do poder, mas sim o desconhecimento de seu uso (LEMKE,
2018, p.70).

Foucault utiliza-se do termo biopolítica ou biopoder, não dando uma distinção cla-

ra entre os dois conceitos, mas garantindo amplitude teórica para continuidade do estudo
Capa
com análises contemporâneas e, diametralmente, opostas como de Antonio Negri e Michael

Hardt e Giorgio Agamben. Para Negri e Hardt, a biopolítica significa uma nova etapa da
Ficha
configuração social capitalista (LEMKE, 2018, p. 95), onde economia e política se fundem,

eliminando fronteiras e o centro das relações humanas. Para eles, a biopolítica é responsável
Sumário
pela produção e reprodução do corpo, intelecto, afeto e não fica destinada apenas à ação

político-jurídica do Estado, mas sim, a todas as relações sociais. A globalização, como rede

informatizada, produziu o que Negri chama de capitalismo cognitivo (NEGRI, 2003, p. 94),

ou seja, a completa mudança das necessidades relacionais de trabalho, onde a criatividade e

o afeto tornam-se centrais nas relações de produção e reprodução. A partir do surgimento da

sociedade do controle, Antonio Negri e Michael Hardt consideram o conceito de biopolítica


68

de Foucault como o novo paradigma de poder. Onde concluem que o biopoder é a forma de

poder que regula a vida social por dentro, acompanhando-a, interpretando-a, absorvendo-a

e rearticulando-a (HARDT & NEGRI, 2001, p. 43). Para ambos, o poder assume um papel

total, de forma a induzir sobre os costumes e desejos, onde a produção e a reprodução são da

própria vida. Segundo os autores,

na passagem da sociedade disciplinar para a sociedade do con-


trole, um novo paradigma de poder é realizado, o qual é definido pelas
tecnologias que reconhecem a sociedade como o reino do biopoder. Na
sociedade disciplinar os efeitos das tecnologias biopolíticas ainda eram
parciais, no sentido em que o ato de disciplinar se desenvolvia de acor-
do com as lógicas relativamente fechadas, geométricas e quantitativas.
A disciplinaridade fixou indivíduos dentro de instituições, mas não teve
êxito em consumi-los completamente no ritmo das práticas produtivas e
da socialização produtiva; não chegou a permear inteiramente a cons-
ciência e o corpo dos indivíduos, ao ponto de tratá-los e organizá-los
na totalidade de suas atividades. (...) Em contraste com isso, quando o
poder se torna inteiramente biopolítico, todo o corpo social é abarcado
pela máquina do poder e desenvolvido em suas virtualidades. (...) Essas
concepções da sociedade de controle e do biopoder descrevem aspectos
centrais do conceito de Império. O conceito de Império é a estrutura
na qual a nova omniversalidade de sujeitos deve ser entendida, e é o
objetivo em cuja direção o novo paradigma de poder conduz (HARDT
& NEGRI, 2001, p. 43 e 43).
Capa
Este império, por onde o mundo é governado, sem centro e com a diminuição da

Ficha influência política do Estado-nação, dando lugar a uma rede de relações tecnológicas e eco-

nômico-financeiras que fazem as escolhas políticas e que, para eles, são biopolíticas, é o con-

Sumário trole sobre a vida em sociedade pela influência do que se deve consumir e acreditar. Como

para Gilles Deleuze, a biopolítica para estes autores exerce papel preponderante na consciên-

cia e nos corpos dos indivíduos. Para eles, o biopoder advém do império como novo governo

soberano, nova forma de repressão e limitação, e, como contrapartida a este biopoder, há o

biodesejo como resistência e luta da multidão onde ambas são, opostamente, biopolíticas.

O desejo da vida, sua força, sua riqueza, são as únicas coisas


69

que podemos lhe opor. O poder tem necessidade de estabelecer limites


para o biodesejo (NEGRI, 2006, p. 76 IN: LEMKE, 2018, p. 107).

Como produto deste império, como a nova forma global de soberania, os autores de-

senvolveram o conceito de multidão, como a formação da emergente classe global, onde essa

multidão é a resistência ao controle biopolítico do império. Segundo os autores,

a multidão, em contrapartida, é múltipla. A multidão é com-


posta de inúmeras diferenças internas que nunca poderão ser reduzidas
a uma unidade ou identidade única – diferentes culturas, raças, etnias,
gêneros e orientações sexuais; diferentes formas de trabalho; diferentes
maneiras de viver; diferentes visões de mundo; e diferentes desejos. A
multidão é uma multiplicidade de todas essas diferenças singulares.
(...) Na multidão, as diferenças sociais mantêm-se diferentes, a multi-
dão é multicolorida. Desse modo, o desafio apresentado pelo conceito
de multidão consiste em fazer com uma multiplicidade social seja capaz
de se comunicar e agir em comum, ao mesmo tempo em que se mantém
internamente diferente (HARDT & NEGRI, 2005, p. 12 e 13).

Desta forma, democracia, guerra civil, estado de exceção permanente e biopolítica

tornam-se alicerces teóricos e pós-modernos para a consolidação dos conceitos de império

e multidão. Para eles, a democracia está cada vez mais longe de alcançar sua finalidade de

atingir a todos de forma igual, pois, ao contrário, vivemos cada vez mais em estado de guerra,

numa guerra civil, que se resume quando o estado de exceção torna-se regra e o tempo de
Capa
guerra é interminável, a tradicional distinção entre guerra e política fica cada vez mais obs-

cura (HARDT & NEGRI, 2005, p. 33). Entretanto, é cara aos autores a importância da demo-
Ficha
cracia, mesmo essa de resultados ínfimos e superficiais, pois é imprescindível para combater

a violência legítima dentro de um estado de guerra global, onde o Estado é o único capaz de
Sumário
exercê-la.

A guerra sempre envolveu destruição de vida, mas no século


XX esse poder destrutivo chegou aos limites da pura produção da mor-
te, simbolicamente representada por Auschwitz e Hiroshima. (...) O
poder soberano que controla tais meios de destruição é uma forma de
biopoder neste sentido mais negativo e terrível da palavra, um poder
70

que decide de maneira direta sobre a morte – não apenas a morte de


um indivíduo ou grupo, mas da própria humanidade e talvez mesmo
de tudo que existe (HARDT & NEGRI, 2005, p. 41).

Em nosso caso, por uma questão de leitura e de interpretação com o recorte histórico

e os objetivos da tese, a principal referência sobre a biopolítica será a obra de Giorgio Agam-

ben. Ao lermos Estado de Exceção – Homo sacer, II, I e Homo Sacer – O poder soberano e a
vida nua I vimos que os governos varguistas que estudamos desde o mestrado poderiam ser

analisados na perspectiva agambeniana do estado de exceção, da formação do homo sacer

e, sobretudo, da presença do Estado biopolítico. Este Estado biopolítico, como produtor da

condição da vida e do campo de concentração3, é responsável em transformar os indivíduos

em sagrados e, ao mesmo tempo, matáveis, incluídos/excluídos dentro de uma sociedade dos

privilégios. Para o filósofo italiano, o conceito de biopolítica é atemporal e se concentra na

discussão político-jurídica, ou seja, dentro das relações de poder e controle da vida – corpos,

mentes, hábitos – a partir do Estado. Podemos ilustrar que a biopolítica de Agamben é como

a grande metáfora do Leviatã, cujo corpo é formado por to-


dos os corpos dos indivíduos, (e que) deve ser lida sob esta luz. São os
corpos absolutamente matáveis dos súditos que formam o novo corpo
político do Ocidente (AGAMBEN, 2010, p. 122).

Nesta perspectiva, o papel deste Estado em seu processo de modernização justificado

pela consolidação do capitalismo industrial e da urbanização intensificou o estado de exce-


Capa ção4 e de anomia que se estabelecem como ordem social independente dos governos estarem

3 Dentro da perspectiva agambeniana, o campo de concentração é um conceito teórico oriundo do


auge da condição de exceção que o filósofo considera ter percebido nos campos de concentração nazistas
Ficha durante a Segunda Guerra Mundial. Ao colocar o conceito na segunda metade do século XX, o filósofo o
define como o espaço ou não-espaço, os locais ou não-locais, de onde é visível observar a política da so-
brevivência ou a biopolítica que coloca o indivíduo em sua vida nua, desprovido de direitos, de consumo
e de sonhos. Estes indivíduos citados em nosso trabalho como indesejáveis, marginalizados, incluídos/
Sumário
excluídos, homo sacer ou cidadão nacional são sacralizados e matáveis. Ou seja, tem garantida a sua
criação divina, mas têm suas vidas desprovidas de valor, pois não são necessários na lógica capitalista.
4 Já citado, mas que não deixa de ser oportuno acrescentarmos algo sobre ele, o conceito refere-se
a um espaço vago entre o direito público e o fato político, onde este não cidadão está incluído/excluído,
vivendo sob o controle de um Estado biopolítico produtor de sua vida nua. Vida esta desprovida de dire-
itos, onde o indivíduo encontra-se matável. Uma referência de Agamben é Walter Benjamin que desen-
volveu o conceito de estado de exceção permanente a partir de suas análises dos campos no pós-guerra
em seu famoso ensaio Zur Kritik der Gewalt (1921), onde o termo Gewalt pode ser traduzido tanto por
poder como por violência. Neste texto, Walter Benjamin expressa que a violência só deixa de ser poder
quando ela interfere nas relações éticas. Um teórico importante para a análise crítica de Agamben é o
jurista nazista Carl Schmitt que, em sua obra Teologia Política, define como estado de exceção o poder
71

sobre o regime democrático ou autocrático, auctoritas ou potestas.

Segundo opinião generalizada, realmente o estado de exceção


constitui um ponto de desequilíbrio entre direito público e fato político
(Saint-Bonnet, 2001, p.28) que – como a guerra civil, a insurreição e
a resistência – situa-se numa franja ambígua e incerta, na intersecção
entre o jurídico e o político (Fontana, 1999, p. 16). A questão dos li-
mites torna-se ainda mais urgente: se são fruto dos períodos de crise
política e, como tais, devem ser compreendidas no terreno político e
não no jurídico-constitucional (De Martino, 1973, p. 320), as medidas
excepcionais encontram-se na situação paradoxal de medidas jurídicas
que não podem ser compreendidas no plano do direito, e o estado de
exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode ter for-
ma legal. Por outro lado, se a exceção é o dispositivo original graças ao
qual o direito se refere à vida e a inclui em si por meio de sua própria
suspensão, uma teoria do estado de exceção é, então, condição prelimi-
nar para se definir a relação que liga e, ao mesmo tempo, abandona o
vivente ao direito. (...) Desde então, a criação voluntária de um estado
de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado
no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados
contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos (AGAMBEN,
2004, p. 11,12 e 13).

Nesta fase, a política como relações de poder entre os indivíduos em grupos ou so-

Capa ciedades é, também, a biopolítica. Porém, esta política sobre a vida é subjetivada, pois no

âmbito do Estado e da esfera pública, o Estado biopolítico torna-se uma extensão da proprie-

Ficha dade privada das elites que, mediante a superestrutura hegemônica, forma a subjetividade

neoliberal que se impõe sobre as territorialidades do indivíduo, a sua formação familiar e

Sumário escolar, a convivência social, trabalho, vida e morte. Em nossa proposta, a biopolítica é fruto

das relações a partir do Estado biopolítico formado pelos grupos dominantes que produzem a

hegemonia por meio de um aparato tecnológico e biomidiático que regra a vida sob o estado

oriundo do soberano, onde sua ação política é estabelecida pela teoria do decisionismo no fenômeno
político da relação dialética amigo/inimigo, onde o poder é contra todos. Para Schmitt, a verdade do
Direito está no poder, pois o Direito é apenas um assentamento de competências. E, nesta perspectiva, o
jurista define o Estado moderno como a Igreja Católica secularizada, enquanto o Protestantismo é base
das relações econômicas liberais não intervencionistas.
72

de exceção, tornando-se responsável em determinar o destino da vida e da morte dos indi-

víduos, sem se ater a suas subjetividades, mantendo a sociedade dos privilégios a partir da

teoria das três etapas do processo de fracassos: família, escola e trabalho. Daí, entrarmos com

a questão das biopolíticas educacionais é parte da explicação sobre como as políticas públicas

são feitas para garantir esta permanência e, isso, mesmo que haja transformações sociais e

que estudantes e trabalhadores alcancem uma condição intelectual ou socioeconômica supe-

rior, esse método funciona, pois o que interessa para o Estado biopolítico e as suas elites é a

maioria que permanece incluída/excluída, aqueles que terão suas subjetividades modifica-

das, suas histórias, suas vidas, sem acesso a uma condição familiar, sem educação adequada

e, sobretudo, subempregado e sem renda. As políticas educacionais tornam-se biopolíticas

a partir do momento em que elas integram a estrutura familiar com as formações escolar e

profissional para a garantia dos contínuos fracassos. Do começo ao fim da trajetória de um

indivíduo na sociedade sob o Estado biopolítico, percebemos que ter a maioria subjugada a

uma hegemonia dominante garante as biopolíticas não como um panóptico instalado em tor-

res de observação, ou terrenos vizinhos, mas como um dispositivo produtor da subjetividade

no próprio indivíduo. Desta forma, a biopolítica é esta relação de força sobre a subjetividade

do indivíduo, dando-lhe uma função social através da subjetividade neoliberal, fazendo com

que o seu destino seja traçado e, ideologicamente, imutável, destinado a uma vida nua, des-

provida de direitos, como se isso fosse da ordem da natureza humana ou destino divino.

A partir dessas referências documentais, teorias e conceitos, pudemos indagar se o

papel do historiador de olhar para o passado para entender o presente se torna sugestivo

Capa para a discussão sobre a formação desta cidadania, Estado e de seus desdobramentos na

contemporaneidade. Será que a proposta estava moldada na formação de um “novo” cidadão

Ficha para que culminasse sobre a lógica capitalista do mercado ou, oniricamente, de forma revo-

lucionária até então, na intenção de valorização das raízes socioculturais, étnicas e políticas

Sumário de um Brasil para todos? Essa proposta era a tentativa de criar um cidadão para participar de

um Estado democrático, de todos, ou criar políticas que garantissem a permanência histórica

da desigualdade, privilegiando as classes mais abastadas que vinham desde a colonização

portuguesa e formasse o homo sacer como o indivíduo que pode ser assassinado.

A partir da pesquisa feita no doutorado, analisaremos a relação do Estado, capitalis-

mo financeiro/fictício/neoliberal e a sociedade dos privilégios com o projeto político de poder


73

a partir da permanente crise da educação brasileira e da espetacularização e padronização da

vida feita pela biomídia5. Nessa relação, teremos como alicerce teórico os conceitos agam-

benianos de Homo sacer, estado de exceção, inoperosidade e vida nua interligando-se com o

nosso conceito de tripé do fracasso social: família, escola e trabalho, onde além da discussão

sobre os mecanismos de permanência histórica faremos, também, a leitura de mundo a partir

da desconexão sociológica entre as relações políticas, econômicas e culturais que mostram o

Brasil em estatísticas catastróficas com relação à educação e outras questões sociais. No cami-

nhar, desde a década de 1930, vimos pesquisando a quantidade de mudanças sócio-políticas

que foram feitas a partir do Estado e que não foram suficientes para garantir a concentração

de renda, de poder político-econômico e de espetacularização biomidiática. Isso posto, parti-

mos para a discussão se essa transformação social passa pela necessidade de se impor o fim

do capitalismo e, para isso, usaremos como referência a obra A educação para além do capi-

tal, de István Mezsáros e Como ser um anti-capitalista no século XXI, de Erik Wright, com o

intuito de verificar as possibilidades e saídas de ambos para a crise social que enfrentamos no

mundo atual e, sobretudo, em países periféricos do capitalismo como o Brasil.

Tendo em vista o alcance das mazelas de um Estado representado pelas elites na-

cionais e enviesado pela influência das nações centrais do capitalismo atual, encontramos a

angústia e o desejo de continuar a discutir tal situação que leva a garantia da permanência

da sociedade dos privilégios. Da origem do Estado biopolítico, na década de 1930, vemos a

educação como um projeto de poder e de controle social, garantindo a ampliação da desi-

gualdade e fragmentando a luta de classes.

Capa Outra condição, é fazermos a leitura de Giorgio Agamben na perspectiva da constru-

ção de um cidadão nacional6 e de um Estado biopolítico que, centralizante tem, ao mesmo

Ficha 5 Conceito proposto por nós no sentido de que a mídia aparecia, definitivamente, pelos jornais es-
critos e, sobretudo, pelo rádio, como instrumento de construção das bandeiras defendidas pelo governo
de Vargas, propondo um discurso de modernização e de futuro utópico que se iniciariam pela perspecti-
va foucaultiana, da passagem de uma sociedade da disciplina para uma sociedade do controle, enlaçan-
Sumário
do a vida em volta do biopoder, recriando hábitos e crenças mediante a garantia da permanência dos
valores morais e éticos da formação judaico-cristã europeia. Assim, mesmo não sendo nosso objeto de
estudo, a biomídia foi essencial para a formação do Estado biopolítico e da criação do cidadão nacion-
al, juntamente, com as biopolíticas educacionais.
6 Esses não-cidadãos, em nossa nomenclatura, iniciarão a formação do que chamaremos de
cidadão nacional que foi constituído pelo projeto varguista de modernização da sociedade através do
Estado, onde a maioria da população brasileira, ao contrário dos discursos de Vargas e da imprensa ofi-
cial, foi obrigada a se manter no caminho do não-pertencimento, da despolitização e da alienação que,
na perspectiva do filósofo italiano Giorgio Agamben, transformaram comunidades, grupos e até classes
sociais em nichos degredados e desprovidos de direitos como que em campos de concentração nazistas
ocupados por despossuídos que se tornaram matáveis. Desenvolveremos esse conceito de cidadão nacio-
74

tempo, base ideológica neoliberal e biomidiática. Assim, usaríamos a teoria agambeniana

para uma realidade histórica e política do Brasil justificada pela universalização da lógica do

capital. Acreditamos que, com essa pesquisa e a produção desse artigo, trataremos da pers-

pectiva de que a crise educacional é um projeto de poder das elites nacionais e estrangeiras e

a biomídia como ferramenta da escolha e do consumo é a padronização da vida pelo estado

de exceção e da constituição do homo sacer como natural e evidente.

O bje t i vos

A partir da análise e interpretação do pensamento agambeniano discutir a formação

e o papel do Estado como responsável em garantir a permanência da sociedade dos privilé-

gios como a representação das elites, da rende, do poder político-econômico e da espetacu-

larização da biomídia.

Comparar a teoria agambeniana com as diretrizes políticas para a Educação na Era

Vargas e na formação do homo sacer que trazem desdobramentos ao tempo presente.

Relacionar a política educacional varguista com a política educacional atual sob o

olhar do pensamento agambeniano.

Contemplar diacronicamente o Estado varguista e o atual Estado que tange aos pro-

jetos educacionais, autarquias, instituições com a realidade econômica neoliberal da concen-

tração da renda e do poder.

Trazer uma resposta do que é o projeto político de poder a partir do controle da qua-

Capa lidade de ensino e da reprodução das castas sociais.

Ampliar o escopo das justificativas sobre a ideia de que não há como garantir edu-

Ficha cação igualitária e emancipatória para todos com a formação do Estado biopolítico e suas

biopolíticas educacionais em função do sistema capitalista. Ou seja, não haverá essa proposta

Sumário de educação social dentro da realidade da lógica do capital.

nal durante o trabalho sob a ótica da Filosofia Política de Giorgio Agamben, acompanhado de outros
pensadores críticos do liberalismo/neoliberalismo e dos regimes autoritários que marcaram o séc. XX
e que tanto crescem pelo mundo afora em tempos atuais. A modernização deste Estado varguista, que
chamaremos de biopolítico, foi responsável em criar este cidadão nacional a partir da permanência do
estado de exceção e de uma sociedade dos privilégios.
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Sumário
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Capa

Ficha

Sumário
79

Bonecas do tipo Barbie, corpos e práxis:


Um olhar sobre a pesquisa em Arte

Dângela Nunes Abiorana

Para pensar em metodologia e caminhos para trilhar a pesquisa em Arte busquei vol-

tar o olhar para a minha prática artística, desde o feitio das obras, quanto para a montagem

de exposição aos atravessamentos a criação. Foi estabelecendo assim a investigação concei-

tual e registros sobre esse caminhar olhando para a obra, que surgiu metodologicamente a

exposição Botenas.

A compreensão e pesquisa que envolvem a materialidade de Botenas é ponto inicial

do contorno metodológico da pesquisa, uma vez que tanto a escolha da materialidade dialo-

ga diretamente com os conceitos que a pesquisa apresenta envolvendo o plástico, quanto os

procedimentos práxis, aqui tratados como o feitio das peças, buscando caminhar em direção

aos temas problematizados: Gênero - feminino contemporâneo.


Capa
Assim, estando no lugar de pesquisadora e artista plástica que atenta as questões

contemporâneas sobre gênero, especificamente as estruturas de perpetuação patriarcais de


Ficha
desterritorialização da compreensão de si, expressas nas dinâmicas de controle dos corpos,

onde especificamente foi criado um objeto para trazer em si determinações não só sociais,
Sumário
como estéticas e econômicas, que aqui tratamos como bonecas do tipo Barbie.

Desta forma, a escolha metodológica de caminhar com a pesquisa acadêmica sob a

investigação e desconstrução da materialidade em vez de outras trilhas, se fez em observância

a proximidades conceituais entre o feitio das peças, sua materialidade e os atravessamentos

tanto históricos quanto conceituais. O que aqui buscamos olhar para as dinâmicas criativas

e processuais da série, aspectos próprios da produção, como a materialidade e a construção


80

física das peças.

O trabalho aqui apresentado convida a pensar prioritariamente o brinquedo dentro

da ordem criativa e investigativa de sua materialidade, pois dela derivam as obras. Todas as

obras apresentadas nessa pesquisa foram realizadas tendo como base matérica brinquedos.

Contudo a pesquisa vai além da ordem criativa, tendo em vista que a investigação da ma-

terialidade é atravessada por alguns aspectos sociais desse objeto, como o fato de em certo

momento histórico ter se tornado objeto de consumo, ter tido a alteração de sua produção

caseira para ser em massa e da determinação de sua materialidade, que passou a ser em sua

grande maioria em peças de plástico. Nesse sentido, tais eventos não podem ser deixados de

fora, pois esses mesmos aspectos são parte composicional das obras. Tendo em vista que o

objeto brinquedo fora escolhido como base das obras por possuir também dimensões cultu-

rais e sociais específicas do contexto contemporâneo e ocidental, torna-se oportuno analisar

o objeto brinquedo sem ignorar as dimensões culturais e sociais.

Mas não se trata de qualquer brinquedo, ou do composto conceitual brinquedo como

genérico, mas de brinquedos específicos, de bonecas de plástico, de modo que esse trabalho

fora composto através do olhar sob as bonecas de plástico como forma, plástico enformado;

o plástico, também como construto social; a boneca também como produto cultural e por

fim, uma breve história sobre a origem da boneca Barbie, uma vez que essa foi a precursora

das bonecas vendidas em massa como primeira em réplica de corpo idealizado culturalmente

como belo do ser adulto feminino e por ter sua origem e destinação aos fins eróticos, sendo

posteriormente largamente copiada, dando início ao que podemos considerar uma tipolo-

Capa gia de bonecas. Neste trabalho, denominamos essa tipologia de bonecas como tipo Barbie

aquelas fabricadas em plástico, geralmente em processo de rotomoldagem e que apresentam

Ficha o corpo com traços do que fora estabelecido como corpo ideal feminino contemporâneo e

serviram de base para a construção da série Botenas. A série também contou com bonecas,

Sumário que são miniaturas de corpos tidos culturalmente como ideal de adultos masculinos, aqui

apresentadas em menor quantidade, mas tipificadas como tipo Ken, que é o boneco que faz

parte da coleção Barbie desempenhando o papel do masculino da boneca, seu companheiro,

marido ou namorado, mas que trazem em si a visualidade da normalização de elementos do

corpóreo másculo aceito como belo.

Tais elementos visuais tipificados do que culturalmente fora estabelecido como belos,
81

presentes nesses brinquedos são observados e a saturação desses elementos é o fio inicial

do que aqui é tratado como Hiperbeleza. O termo hiperbeleza foi criado e expresso na tese

doutoral, cuja metodologia também olharmos aqui e se desenvolve no sentimento da arte,

demonstrado na série Botenas. Assim, a série Botenas é a demonstração, no sentimento da

arte da Hiperbeleza. Em outros termos, tomando essa linha de argumentação apresento a

dinâmica da criação, da autocriação, assim demonstro o que é o termo Hiperbeleza, através

da série Botenas.

Imagens do processo do feitio das obras da série Botenas, em ateliê, 2016. Acervo da

artista.

As bonecas de plástico que serviram de base para as Botenas foram compradas em


Capa
lojas especializadas em brinquedos, localizadas na rua 25 de Março, centro da cidade de São

Paulo. O critério estabelecido para sua escolha se deu por duas questões principais: a pri-
Ficha
meira por se tratar de uma representação cultural em miniatura de figuras humanas adultas,

digo figuras pois as bonecas são tanto como as do “tipo Barbie” quanto as do “tipo Ken”, essa
Sumário
segunda em menor quantidade, e pela materialidade do plástico e seus derivados; as peças

adquiridas foram, dentre as opções de bonecas das lojas, as de menor preço com a descrição

pleiteada, assim os valores individuais ficaram entre 1 real e 15 reais.

É interessante pontuar que as bonecas utilizadas não foram as bonecas Barbie, da

fabricante Mattel. Inicialmente esta opção foi levada em consideração, no entanto, em rela-

ção ao preço, outras opções parecidas foram encontradas e atenderam ao que se esperava em
82

materialidade. A variação do composto plástico das bonecas não se fez tão grande a ponto

de justificar pagar um valor tão mais elevado, e apesar de ser considerada também popular,

as outras bonecas de marcas diversas apresentavam as mesmas características investigadas

nessa pesquisa.

O processo de fabricação industrial das bonecas utiliza geralmente o método de ro-

tomoldagem, que consiste basicamente no aquecimento e rotação da massa plástica dentro

de molde. Após aquecida, adquire a superfície da forma por rotação e em seguida é resfria-

do ainda dentro da forma, imerso em água e desenformado. Outras formas de fabricação,

como injeção de ar em plástico sob molde e pressão também são utilizadas, mas comumente

em bonecas do “tipo bebê” que tem o corpo de plástico mais rígido. Tal método consiste no

aquecimento mecânico do plástico em massa já na coloração em “tom de pele” e que ao re-

ceber uma injeção de ar é expandido e adquire a forma da fôrma que o envolve. No caso das

miniaturas adultas de plástico, a injeção de ar é feita sob maior pressão para que a massa

plástica aquecida chegue até as extremidades da forma e receba a moldagem dos detalhes

como dedos das mãos e dos pés.

Depois de resfriada as peças são desenformadas e passam para a montagem, essa

etapa geralmente é feita em linha de produção onde as peças são encaixadas e recebem a

“cabeça” completa com olhos, boca e maquiagem, que é a única parte onde é acrescida de ou-

tras cores, que a fazem parecer pintada/maquiada, além de já estarem com os fios, também

de plástico, costurados no topo da peça. O acréscimo de detalhes na cabeça como os olhos,

maquiagem e boca geralmente é feito por massa plástica adesiva em processo maquínico e

Capa que utiliza formas que aquecidas acrescentam esse material a massa plástica da pele da cabe-

ça, em transferência. Os processos de pintura manual já são raros e pouco utilizados nessas

Ficha peças pesquisadas. Os cabelos são costurados em tufos e mechas finas no topo da cabeça por

máquinas de costura específicas em manuseio manual ou automatizado.

Sumário Assim, depois de montadas recebem as roupas e a cabeça e então são embaladas

junto aos acessórios em caixas individuais, agrupadas em caixas maiores para seguirem à

distribuição em lojas.

A embalagem individual é um ponto muito específico do processo, pois nela contém

informações sobre a boneca além da descrição de sua materialidade e avisos de cuidados.

Costuma apresentar ainda o contexto ao qual a boneca está inserida, que geralmente são
83

imagens do cotidiano de uma mulher adulta branca, magra, de classe média alta, que variam

desde opções de profissões a manutenção de rotina doméstica como cozinhar, decorar a casa,

praticar esportes, além das várias opções de rotina de beleza cosmética, sempre acompanha-

da do sorriso aberto da boca que foi acrescida na parte dianteira da cabeça. Sobre as embala-

gens destacou-se no critério de escolha e para a pesquisa frases como “para meninas” e a pre-

dominância de cores entre vermelho, rosa e lilás. Nas bonecas do tipo Ken foram escolhidas

as que também continham informações e direcionamento de gênero, no caso o masculino, e

foram encontrados em uma sessão especialmente descrita como “Para meninos”. Os acessó-

rios vendidos à parte também contêm tais informações.

A escolha pelo plástico como base das obras se deu por saturação. O plástico foi ma-

terial em que convivi em maior abundância durante a vida, ao lado do papel sempre esteve

presente no cotidiano de estudo de materialidade e carrega em si aspectos muito interes-

santes da natureza humana. Ressalta-se que o plástico, como o conhecemos hoje, não é um

produto encontrado originalmente na natureza, mas fora criado e desenvolvido no século

XIX e se firmou como ícone no período industrial no século XX. Antes disso, a definição de

plástico como deriva do grego plastikos, significa flexível e se aplica na definição não só da ca-

racterística maleável, mas também denomina qualquer material que pode ser moldado para

gerar outro objeto. Assim, de acordo com o conceito originário, pode ser considerado den-

tro do espectro conceitual uma infinita gama de resinas de árvores na natureza que podem

ser denominadas plásticos naturais, e se ampliarmos o conceito, o próprio marfim também

entraria nessa designação de plástico natural.

Capa Contudo, nessa pesquisa o que se chama de plástico é o produto artificial, fruto de

várias contribuições inventivas em um longo tempo até chegar ao plástico totalmente sintéti-

Ficha co, como temos hoje em maior utilização na produção de brinquedos. Antes disso, é interes-

sante pontuar os estudos dos químicos estadunidenses como Charles Goodyear, que em 1839

Sumário apresentou o processo de vulcanização da borracha natural, possibilitando maior resistência

as variações de pressão e temperatura do material e ainda John Wesley Hyatt, que usou ce-

lulose das plantas para produzir bolas de bilhar dispensando o uso de marfim. No entanto,

somente no início do século XX Leo Baekeland, belga naturalizado estadunidense, apresen-

tou o primeiro plástico totalmente sintético, o bakelite, que com o processo de polimerização

e utilizando como base petróleo, carvão e gás natural conseguiu chegar ao produto composto
84

por moléculas grandes de maior resistência e durabilidade. No caso, o plástico utilizado na

série Botenas é basicamente o policloreto de vinila, comumente chamado PVC e o silicone,

que vieram a serem desenvolvidos em 1933 e 1943, respectivamente.

O plástico, logo que fora produzido em larga escala, passou a ser utilizado em inú-

meras aplicabilidades e consumido também de modo abundante. Apesar de alguns tipos se-

rem recicláveis, seu descarte direto na natureza trouxe problemas de dimensões gigantescas,

como é o caso das ilhas de plástico nos oceanos, uma delas é o Trash Vortex, que é uma massa

flutuante de lixo plástico no oceano pacifico, aproximadamente entre os meridianos de 135º

e 155º Oeste e entre 35º e 42º paralelo norte, sua extensão ainda não calculada em exatidão,

mas aproximadamente 680mil km2. Estima-se que possua algo em torno de 100 milhões1 de

toneladas de resíduo. Descoberta pelo oceanógrafo Charles Moore em 1997, essa imensidão

de lixo, em sua maioria plástico, formou-se através do movimento das correntes marítimas

que trouxe tanto os detritos jogados ao mar quanto os descartados em navios.

O conteúdo das ilhas de lixo é em maioria partículas de microplástico, sendo somen-

te alguns pedaços e peças possíveis de serem vistas e identificadas mesmo por fotos em saté-

lites. Vale ressaltar também que essa imensidão de plástico flutuante é uma pequena parte do

lixo que é lançado ao oceano, ao passo que 70% dos detritos marinhos afundam no oceano.

Sendo essa, literalmente uma pequena amostra do que há embaixo das águas marinhas, em

camadas de problemas acumulados diariamente durante anos.

Essa amostra, é a parte que se revela ao sol me interessa, se fazendo exposta denun-

cia a saturação de entre outras coisas, desse material no planeta, que se quer existia há pouco

Capa tempo atrás. Esse transbordo fez-se presente na mostra Botenas, nas duas caixas expositivas

que ficaram no centro da sala. Uma das caixas era preenchida de corpos de bonecas do tipo

Ficha Barbie, sem as cabeças, peças soltas de partes dos corpos, em cores diferentes entre si, mas

todas seguindo um padrão de cor bege “cor de pele” que não expressa ou representa a diver-

Sumário sidade de tons de pele de pessoas reais, menos ainda a diversidade de coloração das peles da

população brasileira, mais miscigenada e diversa, mas que foram as que estavam à venda nas

lojas de brinquedos, como já dito aqui seguindo o critério de peças mais baratas. Aqui obser-

va-se um dos aspectos do que conhecemos como racismo estrutural, onde a normalização da

cor da pele clara como “cor de pele” foi estabelecida durante anos, esse aspecto foi notado em

1 De acordo com MARKS, Kathy et al. O depósito de lixo do mundo: uma ponta de lixo que se
estende do Havaí ao Japão. The Independent , v. 25, p. 2008, 2008.
85

vários momentos da pesquisa. Essa caixa composta dessa maneira apresentou essas partes de

corpos juntos, aglomerados, mas não sobrepostos. Foram dispostos assim para serem vistos

como individualidades em unidade, um transbordamento lento que revela sua composição,

gradativamente as peças repousavam em várias camadas alternadas de papel seda branco,

que estava levemente deslocado, para não dizer amassados, pois as folhas de papel foram

manipuladas para que trouxesse o efeito de ondulação leve, mas que não chamasse a atenção

para si ou para esse movimento, e sim destacasse as peças que estavam sobre si.

A outra caixa continha brinquedos da linha “Para Meninas”, assim, apresentava vá-

rios brinquedos de plástico em cores diversas posicionados em aglomerado, mas não sobre-

postos, as peças também repousavam sobre as camadas de papel seda. Em suas embalagens,

quando os brinquedos foram comprados, vinha descrito na parte da frente a orientação do

padrão de gênero ao qual tais objetos se destinam a normalizar, as embalagens não foram

usadas na composição da obra, mas foram um critério de escolha dos brinquedos, como já

dito antes que viessem na embalagem tais descrições. Os brinquedos eram réplicas figurativas

de objetos destinado ao uso adulto, em procedimentos tidos como embelezadores estéticos

cosméticos, como chapinhas alisadoras de cabelo, esmaltes, aparelhos depilatórios, tesouras,

prendedores de cabelo, unhas postiças, utensílios para maquiagem e etc. Vale aludir aqui que

cada item por si só caberia um estudo distinto dentro de várias áreas das ciências humanas e

sociais, como a pesquisa em Biopoder e Biopolítica do filósofo francês Michel Foucault, além

das interseccionalidades que atravessam cada um dos objetos na normalização do processo

de embranquecimento incidindo sobre a ações de alisamento de cabelos. Contudo intencio-

Capa nei ao aglomerá-los, fazê-los em um transbordo, talvez seguindo ainda a ideia de explorar a

materialidade e seu efeito de flutuação social, mais do que especificamente físico (como é o

Ficha processo das peças que boiam nas águas do mar e se aglomeram nas ilhas trash vortex). Se-

guindo assim essa intenção de aglomerado em transbordo e ao optar por separar porções de

Sumário objetos em duas caixas distintas, além de posicionar as duas caixas alinhadas entre si e cen-

trá-las na sala expositiva, intencionei uma relação de diálogo entre elas e as peças suspensas

que se encontravam dispostas em semicírculo superior.

Cabendo no diálogo entre elas a diferença que em uma das caixas haviam pedaços

de corpos de bonecas e na outra caixa réplicas de objetos que são usados como instrumentos

disciplinantes dos corpos. Dentro desses processos disciplinantes há a presença das intersec-
86

cionalidades de raça e o nítido processo de embranquecimento; de classe social e consumo;

gênero naturalização de comportamentos normalizantes que foram colocadas em emersão.

As cores foram um ponto fundamental para esse diálogo, que se contrastavam entre as cai-

xas que em uma haviam objetos multicoloridos e em outra objetos num mesmo padrão de

bege as cores foram potencializadas pelo direcionamento da luz, as lâmpadas spots direcio-

nadas para dentro das caixas e deixavam ressaltadas pelas camadas de papel seda branco

expunham o contraste das cores tornando-as mais vibrantes em relação a luminosidade que

a moldura da caixa branca de madeira que quase não era iluminado. A luminosidade que

o papel seda branco intercalado com ar recebeu favoreceu também a intenção de efeito de

flutuação das peças, que em relação as peças suspensas apresentavam diálogo, sendo que as

peças suspensas no ar não intencionavam o efeito e sensação de flutuação, tendo seu peso

marcado pela valorização das linhas de cor preta que foram iluminadas juntamente com a

peça em foco direcional pelas lâmpadas. Como se as que estivessem no ar estivessem mais

presas, capturadas e encapsuladas em relação as que estavam repousando sobre camadas de

papel seda branco, que apesar de estavam dentro da caixa fechada, tinha como tampo supe-

rior uma placa de vidro transparente, que supunha uma intencionalidade de liberdade que

em ambas peças da exposição não existia.

Buscou-se apresentar em Botenas o diálogo em três planos, sendo eles o chão, onde

estava a expografia, etiquetas como nome das peças, o plano baixo onde se tem que olhar

para baixo para ver o que há dentro das caixas e o plano superior onde as peças estavam

suspensas entre a média e acima da linha do olhar, para que com esse movimento de corpo e

Capa trânsito de olhar o público pudesse acessar a experiência do deslocamento, mesmo que lento

entre as peças. Intencionei que o deslocamento físico do público fosse autônomo, por isso

Ficha optei por não marcar o chão com fita para delimitar espaço expositivo e restringir acesso ao

público, mas busquei criar dentro daquela sala não muito iluminada e cheia de peças crava-

Sumário das de agulhas uma atenção para as peças, desejando assim o aumento do tempo de atenção

e observação que acredito serem necessários para a conexão com os diálogos ali propostos

e investi nesse movimento do corpo do público para tal. Pois essa imensidão de plástico flu-

tuante em nossa sociedade foi algo que sempre me deslocou de minha conformidade cotidia-

na, não apenas do plástico enquanto lixo, mas dos volumes de objetos de plástico a venda em

lojas diversas, desde produtos de utilidades para casa até os brinquedos e quis proporcionar
87

ao público um pouco dessa afetação.

Sobre esse sentimento, essa afetação que me atravessava com esse material foi me-

lhor entendida por mim quando trabalhei no Jardim de Infância 1 do Riacho Fundo 2, re-

gião periférica de Brasília, a escola fica muito próxima da cooperativa de coleta seletiva e

reciclagem Cooperativa 100 Dimensão, onde trabalhavam os pais dos alunos. Nesse período

foi proposto na escola a construção de uma Ecobrinquedoteca, e como o material que mais

abundava na região era o plástico, foi esse o material eleito pela minha turma que seria a

base dos brinquedos que foram construídos pelas crianças. A proposta de construção de brin-

quedos foge a lógica de consumo de brinquedos, como também a utilização do mesmo pro-

duto, no caso o plástico como base para o feitio de brinquedos despertou em mim, em 2009,

as primeiras reflexões estéticas sobre essa materialidade. Sendo uma das primeiras reflexões

especificamente sobre o plástico como composto misto, que profusa irregularmente no pla-

neta através da ação humana, que permitiu a produção em larga escala, com baixo custo, de

vários objetos, um deles o brinquedo, em especial a boneca. Daí passei a criar algumas peças

e processos que foram se desenvolvendo até chegar na série Botenas.

Ao discutir a metodologia aqui aponto especificamente sobre os procedimentos e ma-

terialidades, voltemo-nos a análise da sua usabilidade na série Botenas, que se deu também

pela aplicação de agulhas sob faces do plástico do corpo de bonecas. Por meio desse meu ges-

to de junção das peças e aplicação de suspenção escolhi o processo de costura. Pois a escolha

por atividade tipicamente feminina, a costura, para a fatura do trabalho também intenciona

pontuar dentro de um espaço museológico, através de uma obra de arte, que não é uma ta-

Capa peçaria, um processo/técnica que historicamente fora “menosprezado” por ser considerado

feminino, como “arte inferior” ou artesanato. De maneira que esse gesto também busca a

Ficha subordinação à textura do suporte em si, que ao costurar buscaria fissurar o suporte plástico,

como se possível fosse mostrar a possibilidade de causar fissuras em conceitos sociais vigen-

Sumário tes, para causar e expor maiores fissuras decidi que algumas peças fossem costuradas com

alfinetes. Ao impingir delicada e precisa força de violência ao plástico com alfinetes, sem que

esses o atravessassem, mas que o causassem expostas fissuras intencionei deixar a mostra

essas possibilidades de aberturas na superfície.


88

Botenas, 2017. Acervo da artista

De maneira que em algumas peças foram inseridos vários alfinetes no plástico e em

seguida amarrada a linha com nó duplo e firme em cada alfinete para a peça assim ganhar

o contorno trabalhado em linhas. Logo que a peça foi suspensa, a tensão incidida nas voltas

da linha direcionou de modo concêntrico a linha para mais perto do corpo plástico, deixando

os alfinetes mais expostos e cobrindo mais a superfície plástica fissurada, de maneira que a

pele da Botena ficasse sobreposta por linhas, contudo o efeito de costura ficava menos evi-

dente neste contexto, como também a pele plástica ferida. O alfinete então desempenhou o
Capa
papel basicamente perfurante/fissurante, que apesar de segurar em si o nó que desliza da

cabeça do alfinete para o ponto de junção da perfuração com o plástico, na base, não sus-
Ficha
tenta a linha que envolve a peça na altura que se deixava inicialmente. Esse processo se deu

pela incidência do peso da peça suspensa que gera a tensão na linha, que repuxa os outros
Sumário
nós aproximando a linha cada vez mais do plástico. Vale mencionar que não fora um efeito

programado, mas exatamente a materialidade se comportando de acordo com a gravidade

e tensão exposta, isso mostra o que trouxe às peças com alfinete maior potência elucidativa

sobre o encapsulamento e potência concêntrica que se busca nessas peças.

A operação de costurar com agulhas e linha para restituir um corpo com partes de

corpos que haviam sido retalhados em cortes, visava também a junção de diferentes partes,
89

de diferentes corpos que foram cortados de modos diferentes, em alguns casos as cisões eram

apenas para separar as partes das bonecas, em outras peças os cortes foram elaborados em

desenhos complexos que buscavam expor o interior das peças, sem causar perdas da anato-

mia e contorno que apresentavam. Contudo esses cortes, cisões seguidas de costura das par-

tes e peles consistirem em um processo que pode lembrar uma cirurgia. Mas não quis fazê-lo

como uma cirurgia médica, como uma reparação a algo defeituoso, mas busquei desenvolver

nesse gesto a criação de algo totalmente novo com base em componentes antigos, assim e

por isso, rejeitei a hipótese do uso da linha cirúrgica, como também da agulha cirúrgica, por

mais interessantes que fossem suas durabilidade e resistência.

A linha utilizada foi a linha comum de costura na cor preta. Mesmo já tendo inicia-

do testes com fios de cabelo artificiais (em plástico), ainda não tinha com exatidão os dados

sobre a capacidade de sustentação, isto é, não sabia ao certo por quanto tempo os fios aguen-

tariam sustentar o peso suportado do plástico e das agulhas, nem sua durabilidade. Assim,

a saída mais segura foi a linha de costura, que ao ser iluminada revelou-se também mais

eficiente em expressar a sensação de suspensão e peso das peças, como já dito antes. A ideia

de sustentação, peso/leveza e continuidade em tensão, além da ligação e composição da

peça em retas, se deu via suspensão, e a esse papel que coube a linha. Linha aqui tomada em

singular pois originalmente é um único fio que perpassa o orifício de cada agulha, e o mesmo

fio que é alçado até a barra de ferro sob o teto e retorna à peça em vai e volta constante que

torna a sustentação em suspensão possível. Assim, foi quase obvia a escolha por direcionar a

iluminação para este ponto. Nessa direção a iluminação revelou a textura da linha de costura

Capa que é mais felpuda que a linha cirúrgica e do que o náilon por exemplo, acentuando a poten-

cia expressiva à suspensão.

Ficha A busca em manter a continuidade da linha nesse movimento de ir e vir não atribui

a peça a característica obsessiva que o processo se dá. Chega a ser exaustiva sua montagem e

Sumário costura, mas o processo dessa forma revelou-se necessário para conseguir atingir exatamente

a suspensão sem amarras aparentes, sem os nós ou emendas na linha e diretamente apontan-

do para a peça e para o teto as posições que a princípio são estáticas.

No entanto, como era esperado pela tensão sobre a linha, depois de montadas as

Botenas apresentaram alguns rompimentos e embolo. Algumas peças foram giradas em torno

do próprio eixo, de modo manual possivelmente por alguém do público, uma vez que não há
90

corrente de ar dentro da sala que fizesse tal movimento. Algumas peças ao fim da exposição

estavam enroladas, mas na abertura estavam estáticas e inteiriças.

Para criar a mesma tensão concêntrica em suspensão de modo que a linha não des-

lizasse para a base, deixando-a mais afastada da pele de plástico da Botena, e de forma que

não extrapolasse seu limite de expansão, mantendo o desenho e forma mais “obediente”,

foram utilizadas então as agulhas em aço niquelado de costura manual.

As primeiras peças contendo agulhas foram elaboradas no Ateliê Paulista, sob orien-

tação de Branca de Oliveira. As agulhas utilizadas foram as usadas em costura manual, pro-

duzidas em aço niquelado ou níquel puramente. Apenas posteriormente à série é que se

passei a desenvolver as próprias agulhas em 100% cobre. O processo de feitio das agulhas em

cobre tem como base a técnica do fio de cobre, uma técnica simples mas que demanda força

física, o método é basicamente cortar em tiras a placa de cobre, prensar a tira até atingir diâ-

metro de um fio, que possa ser esticado em prensa de diâmetro cada vez menor, esse esticar

é feito por movimento de puxar o fio, que apesar de ser exaustivo rende finos fios de cobre,

que ao serem cortados em 3 ou 4 centímetros tem um lado afiado, para perfuração e o outro

lado na ponta planificado e perfurado por onde passará a linha de costura, assim tornam-se

agulhas. Esse processo torna mais acessível a aquisição das agulhas, mas o material traz em

si colorações diferentes, o cobre em contato com os dedos tende a apresentar uma reação de

escurecimento, que ao final pode ser clareado se mergulhado em solução química para isso,

mas assim mesmo ao decorrer do tempo pode apresentar variação na tonalidade e brilho

das agulhas. Efeitos totalmente aceitáveis e que não alteram a expressividade que se busca

Capa com as agulhas. Contudo só consegui desenvolver essa técnica posteriormente à exposição

do MIS-Campinas, mas esteve presente em peças em outras exposições, não contempladas

Ficha nessa tese.

No processo de agulhamento é que é definida a forma da peça: a altura das agulhas

Sumário e a pressão colocada nela que definem volume e a forma, pois as agulhas são fixadas em

cima e entre (como em círculo superior) às peças soltas nas caixas. Como já dito antes as

partes das peças não são coladas, mas somente costuradas. Contudo, a forma final é definida

pelo peso da peça e adequação dessa em suspensão, sendo essa fase associada por mim ao

que o filósofo e ensaísta tcheco Vilém Flusser denomina de gesto de “evaluação”. Esse gesto

é unicamente estabelecido pelo objeto que se adequa a nova forma imposta, evidente que
91

submetido a pressão das agulhas e peso da peça suspensa. Como aponta o autor, a forma do

objeto também é em parte definida por ele, nesse movimento. Apesar da forma das peças de

boneca separadas terem sido em parte mantidas, pois as agulhas e os vários agulhamentos

sobre a superfície do plástico mantiveram em boa parte seu relevo impresso sob forma da

indústria que fabricou o brinquedo. Contudo, a nova organização das partes das bonecas,

sendo uma perna de uma boneca, braço de outra, e cabeça podendo ser de uma terceira,

mesmo mantendo o conjunto numérico de partes (cabeça, pernas, braços, dorso e virilha) a

nova organização desses membros estabelece forma completamente distinta e em alguns ca-

sos irreconhecível, mas o resultado final sem dúvida depende do gesto de evaluação da peça.

Assim define o autor:

O que observamos no gesto é a tentativa das mãos de imprimir


determinada forma sobre o objeto compreendido, isto é, de forçar o
objeto dentro da forma. É óbvio que tal forma foi determinada par-
cialmente pelo próprio objeto e parcialmente por escolha das mãos,
embora não possamos observar no próprio movimento das mãos todos
os aspectos desse processo. A decisão “isto é couro e deve ser sapato”, ou
“a forma de mesa convém a esta madeira” não está toda ela imanente
ao gesto. Mas podemos observar alguns dos seus aspectos no gesto por
movimentos hesitantes, pelos quais as mãos como que comparam o
objeto com várias formas possíveis. Esta fase de adequação do objeto a
uma forma é o gesto de “evaluação” do objeto. (FLUSSER, 2014, p. 87)

Capa A boneca como produto industrial possui uma natureza construída para apresentar

exatamente aquela forma. Reorganizar a forma fabricada da boneca e criar um corpo reins-

Ficha taurado de significado e evaluado em gesto pela própria peça, como define Flusser, faz com

ela saia do conjunto de coisas como são e esse processo de instauração do objeto em obra de

Sumário arte é algo que me interessa muito, por isso me lancei aos textos de Flusser como também

os textos do filósofo Martin Heiddeger, especificamente na obra “A origem da obra de arte”.

Ainda sobre a forma, que diferente das agulhas, onde sua forma permaneceu intacta, as peças

de plástico se comportaram de modo a mover-se e a adequar-se entre o dia da montagem e o

dia da abertura da exposição até apresentar aparente estática.

Foi uma longa jornada de busca de tipos de agulhas e de diferentes tamanhos e


92

composição até chegar ao níquel, sendo fato que a escolha se deu também por esse material

apresentar maior versatilidade, isto é, já havia iniciado os estudos de derretimento da massa

plástica em forno doméstico, forno do ateliê e forno de cerâmica e buscava outros materiais

que suportassem o aquecimento sem perder sua forma, cor, textura e brilho. Assim, depois de

testes e composição de materiais das agulhas e como esse material se comportava aquecido,

chegamos à agulha niquelada de costura manual. O procedimento de agulhamento das peças

foi totalmente manual e corporal - pois foi necessário usar várias partes do corpo (como a

boca e busto) para sustentar as pequenas peças e conseguir enxergar os mais difíceis lugares

a serem agulhados, uma verdadeira ginástica: longa, dolorosa e exaustiva atividade. Esse

processo de feitio das peças e sua investigação fazem parte da metodologia da pesquisa e do-

cumenta-lo tornou possível o maior aprofundamento como também ato de registrar fez parte

da metodologia que envolveu além da pesquisa teórica, o feitio das peças, a investigação e

exploração da materialidade até a construção da exposição meios aproximaram a pesquisa

do próprio fazer artístico.

A metodologia de pesquisa em Arte que possibilita meios de investigação e instiga

novas produções artísticas, são o que tornam fluida e sustentam a pesquisa, criar para si uma

própria metodologia de pesquisa é um desafio instigante, que demanda bastante entrega e

abertura, mas faz com que todo o contínuo movimento de pesquisa mostre a que veio. Com

isso concluo que observar e se atentar a diversos modos de pesquisa e que essa diversidade

esteja viva nos campos das Artes, das ciências sociais tende a possibilitar novos modos de

existir academicamente.

Capa

R efer ê ncias
Ficha
ABIORANA, Dângela Nunes. Botenas: um gesto de hiperbeleza. Tese (Doutorado
em Educação, Arte e História da Cultura) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo,
2020.
Sumário
FLUSSER. Vilém. Gestos. São Paulo: Annablume, 2014.
93

Pesquisa em Artes:
transições gráficas do analógico ao digital

Isabel Orestes Silveira

“É a arte que pode resgatar a unidade entre o cognitivo e o


afetivo, a criatividade e a criticidade. A arte é um dos caminhos para se
compreender a própria vida e possibilita a transformação da sociedade”.
(SILVEIRA, 2006, 59).

Partindo do pressuposto da epígrafe citada, este estudo tem o propósito de contribuir

para que arte seja compreendida como objeto de pesquisa e investigação. Ao questionar sobre

a expressão gráfica e o modo como o ser humano utiliza o desenho como forma de represen-

tação, interessa apresentar uma reflexão sobre o desenvolvimento gráfico e suas transições ao

longo do tempo. Obviamente se considera que a técnica manual, ou seja, o fazer em processo
Capa analógico, não desapareceu. No entanto, intenta-se evidenciar o aporte tecnológico como

possibilidade que modifica os modos como os processos criativos se dão, para os que optam
Ficha pelos aportes digitais.

Obviamente não se dispensa, de partida, a crítica sobre o acesso seletivo e discrimi-


Sumário natório quando se contempla o cenário brasileiro, uma vez que o país não sendo produtor de

tecnologia, exacerba as diferenças sociais ao ponto de deixar evidente que os bens tecnológi-

cos são privilégios de alguns, sobretudo para os países de centro.

Isso posto, cabe aferir que apesar de reconhecer a relevância e a pertinência de tais

aspectos, o recorte aqui proposto não contempla as demandas que exigem profundidade

reflexiva e investigativa, uma vez que se tem consciência de que a esfera socioeconômica e
94

política do Brasil requer um estudo aprofundado, o que e se torna inviável para o momento.

Porém, o pensamento que segue pode somar no sentido de pensarmos as questões

inovadoras trazidas pela tecnologia, mas também o distanciamento de grande parte da popu-

lação aos benefícios proporcionados pela exclusão social.

À medida que o mundo natural, tal como o conheceram as


gerações de outros séculos, vai sendo substituído pela tecnosfera – a
natureza criada ou modificada pela ciência –, novas realidades se im-
põem: de um lado, aumento das expectativas de vida, incremento da
produtividade, multiplicação das riquezas materiais e culturais, mu-
danças profundas nos modos de existir, circular, relacionar-se, perceber
e representar o mundo, campo fértil para experiências artísticas ino-
vadoras. De outro lado, generalização dos efeitos colaterais, dos riscos
de acidentes de toda espécie, centralização da produção e do poder nas
mãos de um número cada vez menor de nações e empresas transnacio-
nais, ampliação da exclusão social, do apartheid econômico, do gap en-
tre ricos e pobres, produtores e consumidores, hegemônicos e marginais
(MACHADO, 2005, p.71).

Por isso, o recorte tenciona problematizar algumas questões: Como as mudanças

tecnológicas e o uso crescente de ferramentas digitais impactaram a evolução da expressão

gráfica ao longo do tempo? Essa pergunta faz com que outras surjam e sirvam de aporte refle-

xivo, por exemplo: de que forma o processo analógico ainda se mantém relevante na criação

artística, mesmo em um contexto cada vez mais digital?


Capa
Tais questões abrangentes implicam considerar os processos criativos e as transições

tecnológicas destacando tanto a continuidade dos processos analógicos na atualidade, quan-


Ficha
to as mudanças significativas introduzidas pelas ferramentas digitais.

Por isso, a hipótese que se aventa é de que há um uso crescente de ferramentas digi-
Sumário
tais a disposição de artistas, os quais promovem uma diversificação de estilos e abordagens

criativas ainda que se faça uso analógico em sua prática criativa.

O argumento sugere que os modos operandi analógicos continuam desempenhando

um papel importante na criação artística devido a sua natureza tátil e sua capacidade de for-

necer uma conexão mais visceral entre o artista e a obra, entre obra e público.

A pesquisa qualitativa prevê uma metodologia de base bibliográfica apoiando-se em


95

autores como Gombrich (1995), Ostrower (1998), Baitello Jr. (2000), Silveira (2006/ 2010)

e Mello (2010), dentre outros, os quais poderão dialogar sobre o fazer artístico e criativo.

Para fornecer dados sobre a migração da expressão gráfica para os meios digitais, Benjamin

(1992) e Machado (2005) poderão servirão de aporte.

Conscientes de que há outros nomes de pesquisadores que poderiam ampliar esse

repertório e aquecer o diálogo, recorre-se aos citados, deixando aberto o tema ao atestar as

limitações das abordagens, as quais surgem como fruto de uma reflexão autoral que se pre-

tende caminhar em territórios incertos do que manter necessariamente uma teoria rígida e

categórica.

Tais bases teóricas ainda que simplificadas, estabelecem expectativas sobre os pos-

síveis resultados da pesquisa, sustentando o fato de que as tecnologias gráficas e as ferra-

mentas ditais provavelmente desempenham um papel significativo na evolução da expressão

humana.

Assim, o leitor poderá encontrar a seguinte estrutura do capítulo que segue: a primei-

ra parte traz abordagens gerais sobre a contextualização dos diferentes períodos da pesquisa

gráfica ao longo do tempo, para em um segundo momento, enfatizar a transição da técnica

analógica para digitais.

D esenvolvi men to gr á fi c o ao longo do te m po

No que concerne as diferentes manifestações expressivas, compreende-se que

Capa há toda uma vasta amplitude histórica que diz respeito a evolução da vida humana. O homo

sapiens sapiens, foi conquistando tecnologias na intenção de permanecer no tempo e deixar

Ficha nele sua marca e memória. E como parte construtiva de sua adaptação, buscou aprimorar

recursos expressivos para se comunicar e extravasar pensamentos. São, portanto, inúmeros

Sumário os fatores que moldam as sociedades ao longo de eras e épocas.

O recorte aqui proposto, assume um caráter mais modesto ao tensionar os as-

pectos relacionados ao ser humano quando nos aventurarmos em um domínio cativante,

enigmático e notavelmente complexo que se relaciona ao desenvolvimento da expressão ar-

tística.

Tal empreitada exige uma postura sensível frente a uma potência criadora. Essa ca-
96

racterística inata da humanidade que é a expressão, assume diferentes significados ao longo

do tempo, além da diversificação estética de cada cultura:

Harmonia e equilíbrio e a figura humana, em cada cultura


têm uma significativa importância que transcendem o próprio tempo.
Percebemos isto quando consideramos especialmente as pinturas das
cavernas e observamos o que o homem pré-histórico nos legou. Imagens
de figuras humanas que correm com lanças nas mãos atrás de bisões,
retratam uma época e um modo de vida que se eterniza através da
pintura rupestre. Desde que foram feitos os primeiros registros de tais
desenhos, o homem evoluiu e articulou novas formas de linguagem.
(SILVEIRA, 2006, p.31).

Isso posto, segue-se um panorama simplificado das manifestações gráficas analógi-

cas. Dito de outro modo, pretende-se esboçar um arco temporal dos movimentos artísticos

que evidenciam o uso dos meios tradicionais e não digitais para a criação de representações

visuais, como desenho, pinturas, ilustrações, gravuras etc.

Vale destacar o papel do artista e a materialidade das obras visuais analógicas. O pri-

meiro pelo empenho e exigência pessoal no processo de produção da obra, pois muitas vezes,

de forma sôfrega, busca saciar sua sede de sentido expressivo.

Todas as obras de arte são de certa forma encomendadas, no


sentido de que nenhum artista cria a partir de um simples ato da von-
tade. Ao contrário, ele é obrigado a esperar até que surja algo que
Capa pareça uma boa idéia. Entre as obras que fracassam em virtude de sua
concepção inicial ter sido falsa ou inadequada, é bem possível que o

Ficha número de obras ‘encomendadas’ pelos próprios autores seja maior do


que as encomendas por terceiros. (AUDEN,1907, p.23).

Sumário
Tais “obras encomendadas” pelo próprio artista, pressupõe sua exigência pessoal e

estética, as quais não sessam e não se satisfazem, enquanto o resultado não lhe for satisfató-

rio. De igual modo, a materialidade das obras merece destaque pois se trata dos recursos que

o artista faz uso e dialoga.

O artista trabalha e deseja a perfeição a despeito da impossibilidade de encontrá-la.

Há em seu ato laboral uma intencionalidade, um componente pessoal que o motiva a agir
97

de forma criativa. Nesse sentido a criatividade pode estar associada ao devaneio ou à fanta-

sia, ou ainda pode se manifestar por meio de uma dimensão lúdica, como se a atividade do

brincar despertasse a imaginação adormecida do artista. A produção do artista revela sua

expressão pessoal conectada com a realidade e seu entorno, podendo isso, fundamentar suas

escolhas e seus procedimentos.

No decorrer da história, esse tema tão rico encontrou respaldo em diferentes teóricos

que estudaram a criatividade, suas origens e causas. Para não ampliar o assunto, que merece

uma pesquisa especifica, opta-se pela narrativa piagetiana “[...] a criação do novo ocorre

devido a um processo de abstração reflexiva”. (PIAGET, 2001, apud SILVEIRA, 2011, p.29).

O artista exerce ação reflexiva, pela consciência da totalidade de seus atos, porém

durante as experiências e seus inúmeros procedimentos inventivos, trabalha de modo diver-

sificado e aberto. Está livre para percorrer com autonomia o exercício da criatividade.

Fazendo uso da expressão gráfica analógica em seu labor, abarca as materialidades

como os pigmentos naturais, lápis, canetas, tintas pincéis, tela, guache, aquarela, pastel,

carvão entre outros materiais que dependem da mão do artista, que executa traços, formas,

texturas e inúmeras manualidades em diferentes suportes.

Tais considerações permitem o estudo e as pesquisas dos estilos e técnicas que foram

desenvolvidas no passado, mas que também servem de documentos preciosos no tempo pre-

sente, pois revelam os períodos históricos, os estilos de cada época, e continuam a ser uma

forma de criação artística apreciada por seu apelo tátil e estético.

A imagem também se constitui em diálogo com seu entorno.


Capa
Assim temos que considerar seu espaço circundante como parte inte-
grante essencial das imagens. As cavernas nas quais nasceram as pri-
Ficha meiras manifestações artísticas, ao lado de serem locais de provável
culto e provável introspecção, eram incubadoras de imagens, espaços

Sumário nos quais o homem se permitia conviver lado a lado com suas imagens
[ ] (BAITELO Jr.2000, p.9)

Da arte rupestre, com as pinturas e desenhos nas rochas e nas cavernas, passa-se a

destacar as figuras estilizadas da arte egípcia em que eram frequentes o uso dos símbolos de

grandes projeções para a figura dos faraós, ao passo que as imagens menores eram utilizadas

para retratar a figura humana, objetos e os elementos da vida após a morte.


98

Já na Grécia Antiga e na Roma Antiga, conhecida como arte Greco-Romana, o foco

das representações gráficas se dava pelo esforço em apresentar a perfeição do corpo humano

e a busca pelas proporções. No entanto com a Arte Bizantina, destaca-se temas religiosos e o

uso de cores douradas.

No Renascimento, entre os séculos XIV a XVI, retoma-se o desenho de realismo e se

introduz a perspectiva de modo inovador, especialmente com os artistas Leonardo da Vinci,

Michelangelo e Rafael. O claro-escuro do Barroco promoveu o drama e a profundidade das

obras de arte.

Posteriormente, o abandono das formas em favor das pinceladas soltas se deu no

movimento Impressionista com as representações dos momentos fugazes do cotidiano, pela

captura da luz e da atmosfera.

A geometria desconfigurando a realidade, vai no movimento Cubista, promover a

experimentação e a abstração.

O dinamismo de espaços em movimento fascinava os cubistas.


Espaços sempre relativos, cujas formas se recriavam em relacionamen-
tos recíprocos. Nas imagens cubistas surge uma realidade composta de
fenômenos fragmentários. Os planos são fragmentados mais e mais,
e desintegrados até chegarem a facetas diminutas e quase uniformes,
como se fossem uma espécie de ‘átomos’ de matéria. (OSTROWER,
1998, p. 47)

As transições artísticas e as diversidades de estilos e movimentos citados se ampliam


Capa
e podem ser percebidas na Arte Contemporânea a partir dos séculos XX em diante.

Ficha O mundo vivia um período movimentado e turbulento, espe-


cialmente pelo conflito causado pela Guerra do Vietnã, que durou qua-
se 20 anos, entre o final dos anos 50 e o início dos 60.
Sumário

Nesse tempo, a juventude manifestava-se a favor de uma rup-


tura com a sociedade vigente e manifestava sua indignação por meio
de greves, protestos e organizações políticas, que lutavam pelo fim da
guerra, do racismo, contra toda forma de injustiça, pela democracia e
liberdade de expressão, propondo novas mudanças de comportamento.
99

Surgem, nessa década, muitos movimentos artísticos contes-


tadores. Nas Artes Plásticas, o impacto da Pop Art torna-se símbolo
de irreverência e ironia contra a cultura norte-americana. A Pop Art
(abreviatura de optical art, explora fenômenos ópticos) também fez
parte dessa época, juntamente com outro movimento: o Psicodélico.
Este teve seu auge entre 1965 e 1966, fazendo uma ponte com a Euro-
pa a partir de Londres. (SILVEIRA, 2010, p.132).

No cenário brasileiro observa-se o crescimento da indústria da informática em mea-

dos da década de 70, sendo que dez anos antes, havia chegado o primeiro computador à

válvula ao Brasil. Essas inovações foram lentamente estabelecendo novas formas de relações

sociais, culturais e profissionais, mediadas pelos recursos de comunicação e informação.

As representações artísticas se intensificaram na década de 90 uma vez que obtive-

ram apoio para e maior patrocínio das estatais. Enquanto o cinema nacional esforçava-se na

promoção de novas produções, a televisão tornava-se prioridade em muitos lares, principal-

mente por causa da TV a Cabo, que incrementou a quantidade de canais e a qualidade das

imagens.

Nesta mesma década os artistas passam a perceber a nítida diferença empreendida

no seu tempo de trabalho e na qualidade da produção gráfica quando utilizavam o computa-

dor; todavia, o preço desse meio ainda era um obstáculo a ser superado.

Não obstante a chegada do computador como ferramenta de trabalho, o desenvolvi-

mento com técnicas manuais com o uso de papel, régua e do compasso, serviam ainda como

instrumentos indispensáveis para os artistas.


Capa
O designer gráfico Mario Cafieiro assevera a importância do analógico quando em

tempos idos, dizia: “O computador assume desde os serviços de uma máquina de escrever até
Ficha
a digitalização de imagens; ele é uma mini gráfica [...] mas o desenho feito à mão tem uma

espontaneidade que o computador não permite”. Ao contrário de Cafieiro, o designer Guto


Sumário
Lacaz complementa: “Coisas que gostava de construir com régua, no computador ficavam

absolutas, com vértices e agudos bem definidos” (Coletânea de portfólios, 2000, p. 60).

Emilie Chami (2005), reflete acerca de produção enquanto designer e comenta:

Atualmente, afiro minha criação no computador; aliás, esse é


o maior mérito do computador: ser um grande instrumento de aferição
do que foi realizado [...] depois de muita experiência, você armazena
100

na cabeça todo o visual que pretende, você sabe chegar ao computador,


colocar as coisas já resolvidas. Percebo, no entanto, que antes, com a fo-
tocomposição, a liberdade era maior; hoje a gente começa a ver sempre
as mesmas coisas. Apesar da oferta enorme, a prática é mais redutiva,
o próprio computador é muito redutivo – a internet faz das pessoas
umas solitárias e criam-se cacoetes, você fica com redução mecânica;
começa a faltar exuberância. Vejo essa atitude em mais pessoas, vejo
sempre os mesmos tipos utilizados. Até eu mesma começo sofrer disso e
devo me cuidar [...]. (CHAMI, 2005, p. 56-59).

O computador, ainda sendo um instrumento caro, era desejado por muitos que con-

seguiram incorporá-los à rotina de trabalho alterando a produção gráfica e o tempo empreen-

dido no planejamento e na execução de projetos de artista se designer.

A internet propiciava uma nova forma de comunicação e entretenimento e gerou um

grande impacto em várias áreas laborais e culturais. Enquanto para uns a novidade trazia

benefícios, para outros a revolução tecnológica prejudicava a indústria fonológica, pois os

compositores, gravadoras, produtores musicais e executivos ficaram prejudicados com a ex-

pansão e a duplicação de obras originais. Esse fato fez com que muitos artistas repensaram o

modo de produzirem e reproduzirem suas músicas em novos formatos para compactação de

áudio para a web.

Não só no Brasil, mas no mundo, não somente no passado, mas também nos dias de

hoje, foi e é nítido a presença marcante das tecnologias que impôs nesta década e nas vindou-

ras os efeitos da velocidade vertiginosa e das transformações provocadas pelas novas mídias.
Capa
Dessa visão geral depreende-se que apesar do desenvolvimento tecnológico, a evolu-

ção analógica, as quais abrangem diversas formas de mídia e técnicas de representação feitas
Ficha
à mão, ao longo do tempo continuam desempenhando uma importante forma de representa-

ção cultural, social e individual. Afinal:


Sumário
[ ] criar, formar, dar uma forma às coisas não depende neces-
sariamente da capacidade de verbalizar ou conceituar (ainda que possa
abrangê-la). Depende sim, de um senso interior de forma, de equilíbrio
e justeza das formas, enfim, depende da sensibilidade conscientizadora,
ordenadora, significadora do ser humano (OSTROWER, 1998, p. 266)
101

Todavia cabe destacar agora o desenvolvimento tecnológico e o uso avançado de

aplicativos, os quais permitem a precisão do traço, as opções de técnicas e composições para

o desenho e pintura, além da manipulação de imagens e as possibilidades ampliadas de expe-

rimentação das variações imagéticas. Com a tecnologia muda-se completamente a forma de

salvar os esboços sem necessidade de apagar a obra original por meio dos arquivos digitais. A

Arte com o aporte tecnológico, torna-se frequentemente usada para a expressão criativa em

ambientes de software, uma vez que a digitalização expandiu as possibilidades na área das

artes permitindo maior criação, difusão e interação entre artistas e obras e entre o público e

as obras.

Dependendo da tecnologia, as experiências são inúmeras, bem como as formas de

interação criativa que vão desde as instalações, happenings ou performances dentre outras.

Do analó gi co ao digital

Atualmente, há uma grande difusão e acesso às diferentes formas de recursos tec-

nológicos capazes de realizar tarefas que exigiriam grande esforço das ações humanas. Para

citarmos alguns exemplos, observa-se o desenvolvimento de IA no ramo industrial, no setor

automobilístico, na área financeira, na cultura do entretenimento, na segurança governa-

mental, nos serviços públicos, no campo da Comunicação, da Educação e Pesquisas Científi-

cas, dentre outras.

De forma criativa o ser humano desenvolve ferramentas e dispositivos de busca de

Capa informações como os chatbots inteligentes (assistentes virtuais como Siri da Apple, Alexa

da Amazon, Google), e outros, cujo acesso fornecem respostas para buscas de informações.

Ficha Outras Inteligências Artificiais possibilitam diversas funções comunicativas como a tradução

de idiomas, redação de texto pelo reconhecimento da voz etc. Há os dispositivos domésticos

Sumário munidos de IA que respondem perguntas, outros auxiliam na medicina e saúde propondo

diagnósticos, orientando cirurgias, dentre inúmeras ações na área.

Uma vez que a busca humana por mecanismos inteligentes foi sendo conquistado,

houve modificação no modo de se trabalhar, de ensinar, de aprender e de se relacionar. O

conceito de localidade, globalidade e distância passaram por mudanças significativas e trans-

formaram a percepção do tempo e do espaço.


102

A IA, que permite a comunicação online, sugere uma ampla facilidade na conexão

em rede, uma vez que a comunicação, quase instantânea, permite o contato entre culturas e o

acesso às diferentes notícias, de diferentes lugares e, propõe modos de percepção de mundo.

A comunicação em rede também favoreceu o surgimento das comunidades virtuais baseadas

em interesses comuns, o que acentua cada vez mais a individualidade exacerbada e, que pode

custar a segurança e a privacidade.

No entanto ao se expressar o ser humano pode manifestar seu desejo por comunicar

seu pensamento, transmitir suas ideias e estabelecer conexões interpessoais. Essa autoex-

pressão revela opiniões, valores e reforça a identidade e o sentimento de pertencimento. A

expressão humana pode se revelar através de inúmeros sentimentos e, no esforço de liberar

emoções, é próprio do humano a manifestação de sua criatividade.

Por meio da Arte como a música, a dança, a escrita, o desenho, dentre outras formas

de linguagem, se constroem as identidades pessoais e coletivas. Desta forma ocorre o desen-

volvimento da imaginação, da inovação e das habilidades criativas ao longo da vida.

Dentre tantos aspectos vastos e complexos, se lança luz sobre o avanço das técnicas

artísticas, mas também para as mudanças culturais, sociais e especialmente tecnológicas que

moldaram a maneira como as pessoas, no caso mais específico, como os artistas passaram a

representar visual e graficamente seus processos criativos.

Então, o advento das mudanças tecnológicas gráficas e o uso crescente de ferramen-

tas digitais tiveram um impacto profundo no modo de agir do artista. O acesso as novas mí-

dias e técnicas permitem o acesso a ferramentas digitais que favorecem a produção de obras

Capa como arte 3D, animação, realidade virtual, além de facilitar a edição e revisão das propostas.

Se as atitudes manuais analógicas demandam tempo, agora há maior facilidade de

Ficha edição sem dizer da possibilidade de publicização das obras ou a democratização da arte que

passa a ser compartilhada em rede.

Sumário A apreciação das obras de arte ganha visibilidade em escala global e tais fenômenos

passam a influenciar o modo de produção dos artistas. Muitos combinam mídias tradicionais

e digitais em seus trabalhos e valorizam as hibridizações e as técnicas mistas, as quais não

seriam possíveis de outra forma.

Os “artistas-digitais” são os alfabetizados digitalmente e os que conseguem interfe-

rirem na linguagem do meio digital. Por isso a informática introduziu um novo modelo em
103

relação à produção artística analógica uma vez que os programas ou softwares se interpõem

entre a máquina (hardware) e o usuário (MACHADO, 1996).

Essa prática comum na arte contemporânea, pode ocorrer de várias maneiras com

o suporte da tela branca e a aplicação da pintura tradicional (analógica) para em seguida

passar a utilização da caneta ou tablet gráfico, a fim de adicionar elementos digitais como

detalhes, intervenções, texturas alterando o resultado da obra. O que importa, antes do re-

sultado de uma obra, é o domínio dos programas, uma vez que tais mecanismos estão sendo

atualizados constantemente.

Um grande exemplo do uso desta prática é o artista britânico David Hockney (1937)

que aos 85 anos ainda produz obras enigmáticas com o uso de iPad. É conhecido pelo uso de

cores contrastantes e pela originalidade de suas produções.

Atualmente ficou ainda mais famoso, pois sua obra Portrait of an Artist (Pool With

Two Figures) (“Retrato de um Artista, Piscina com dois vultos, em tradução livre) foi arrema-

tado no valor de mais de US$ 90 milhões (cerca de R$340 milhões) em novembro de 2018,

em um leilão na Christie’s em Nova York e, virou notícia no mundo todo.

Capa

Ficha

Sumário

Figura 1: Portrait of an Artist (Pool With Two Figures) 1972, obra de David Hockney.

A experiência de Hockney com a tecnologia se deu no inicio dos anos 2000 e ao uti-
104

lizar um dispositivo chamado “Bebop”conseguia desenhar na tela do computador enquanto

mantinha uma abordagem de pintura tradicional em suas telas em lona, conseguindo efeitos

especiais com o uso das cores.

Hockney usou aplicativos de desenho digital em seu iPad para criar cada componente

da obra “The Bigger Picture”. Esses aplicativos oferecem uma variedade de pinceis e ferra-

mentas que simulam técnicas de pintura tradicional.

Cada parte da obra foi composta separadamente e as cenas muitas vezes foram fei-

tas em ar livre. A montagem composta reunia toda a série, criando uma visão expandida do

cenário.

Assim, pelo digital, conseguiu reunir vários pontos de vista da paisagem e realizar

uma única composição gráfica.

Capa Figura 2: “The Bigger Picture”, obra de David Hockney.

Atualmente, David Hockney apresenta exposições que demostram sua trajetória rica
Ficha
e multifacetada como artista, que abrange um amplo espectro de mídias, desde as formas tra-

dicionais de lápis, caneta, tinta e giz de cera, até a exploração ousada da fotografia de última
Sumário
geração e o uso vanguardista do iPad. Tudo isso destacando a inovação notável e contínua

que caracterizam a obra de Hockney ao longo de sua carreira artística.

Outra artista e teórica pesquisadora da mídia, que ficou conhecida por suas obras de

arte digital é Giselle Beiguelman (1962), pioneira na interseção da arte digital e tecnologia

no país. É reconhecida internacionalmente tendo diversos projetos premiados.

Sua produção já esteve em museus prestigiados revelando sua prática artística e


105

intelectual fundamentada em uma abordagem crítica das mídias digitais e de seus sistemas

de informação. Além disso, ela explora as estéticas da memória e faz referências a eventos

sociais e utiliza a arte como voz de protesto.

Seus trabalhos abrangem intervenções em espaços públicos, projetos de rede e apli-

cativos para dispositivos móveis. Como pesquisadora, escreve sobre arte e tecnologia incluin-

do temas como arte em rede, cultura digital e cibercultura.

Ao utilizar a net art, ou arte na internet como forma de expressão artística, Giselle

engloba uma gama de abordagens para criar, expor e distribuir suas obras que exploram

possibilidades representativas pelo ambiente online. “Desmemória” (Figura 3) foi uma obra

produzida em 2004 e intenta investigar a ideia de memória coletiva e a forma como as trans-

formações urbanas, a especulação imobiliária e a rápida evolução tecnológica podem levar

ao apagamento de lugares e histórias importantes.

Capa

Ficha

Sumário
Figura 3. Net art de 2004. Obra de Giselle Beiguelman. Itaú cultural.

Por meio de um mapeamento digital de espaços urbanos na cidade de São Paulo que

foram submetidos a mudanças drásticas, Beiguelman captura imagens desses lugares e, por

meio de sua obra, convida os espectadores a refletirem sobre as transformações urbanas e o

que foi perdido no processo da urbe. Outra produção de 2004 que ilustra a net art, é “Esc for
106

escape” (Figura 4).

Nas imagens da artista percebe-se um dinamismo, dissimulam segredos e estratégias

que as tornam tangíveis de serem decodificadas, são inteligíveis pois os símbolos e códigos

visuais são facilmente decodificados, uma vez que tais imagens proporcionam emoções e va-

liosas informações sobre os espaços urbanos que foram destruídos com a passagem do tempo.

Figura 4. Net art de 2004. Esc for escape. Obra de Giselle Beiguelman. Itaú cultural.

Capa A proposta da artista foi pensar no tema “isolamento” em um mundo altamente co-

nectado. O título da obra sugere que muitas pessoas utilizam as redes sociais como fuga da

Ficha realidade, mas também evidencia o paradoxo entre a possibilidade de conexão, mas também

o uso dos meios digitais como forma de alienação.

Sumário A pertinência de seu trabalho diz respeito ao gesto de colocar em contato, ou em re-

lação, o receptor da imagem com os sistemas tecnológicos, provocando o imaginário da reali-

dade da vida secular sendo capaz de ativar a consciência de uma memória pessoal e coletiva.

Hockney e Beiguelman são dois exemplos, dentre tantos artistas, que frente às novas

tecnologias, se permitem o uso de diversos recursos que vão desde a manipulação de câmeras

fotográficas tradicionais para em seguida utilizarem software de edição de imagens. O mes-


107

mo ocorre no campo da escultura com a possibilidade da impressora 3D.

No que se refere a percepção do público e sua interação com os espaços expositivos,

verifica-se que atualmente são permeados por processos dinâmicos provocados pelos efeitos

de projeção no ambiente.

Então, novas formas de narrativas estão sendo desenvolvidas com uso das tecnolo-

gias e modificando o modo como a arte pode ser criada, compartilhada, preservada e aprecia-

da. Trata-se de um convite que mobiliza o receptor ao ser afetado e ao participar da criação

que se expande no cyberespaço.

As ações artísticas em rede são como não objetos, não locais


em constante transformação. Seus ambientes são desterritorializados e
presentificados ao vivo. Encontramos mudanças no processo da criação
artística, no modo de articular as relações de autoria e na maneira
como se propõem novas formas de estabelecer contato com o outro.
Uma escritura descontínua e em tempo presente: um tipo de experiên-
cia capaz de fazer circular a informação por meio de comunidades e
geografias inusitadas (MELLO, 2010, p.63).

Neste breve ensaio percebe-se que as mudanças tecnológicas gráficas e o uso crescen-

te de ferramentas digitais impactaram a evolução da expressão gráfica ao longo do tempo, de

forma que o processo analógico, mesmo se mantendo relevante nas criações artísticas, vem

se intensificando ainda mais no contexto atual por conta do recurso digital.

Capa [ ] a arte não só quer acompanhar a marcha da ciência e


tecnologia, mas também pretende fornecer um escape a esses monstros.
Por essa razão, como vimos, é que os artistas passaram a furtar-se ao
Ficha
que é racional e mecânico, e tantos deles abraçaram alguma fé místi-
ca que enfatiza o valor da espontaneidade e da individualidade. Na
Sumário
verdade, é fácil entender como as pessoas podem sentir-se ameaçadas
pela mecanização e automação, pela superorganização e padronização
de suas vidas, e o insípido conformismo que tudo isso implica. A arte
parece ser o único refúgio onde a fantasia, a inconstância e as singula-
ridades pessoais ainda são permitidas e até apreciadas. (GOMBRICH,
1995, p.440).
108

As diferentes expressões humanas bem como as grandes inovações tecnológicas sem-

pre acompanharam a humanidade, porém o que se nota atualmente é que o intervalo entre

as inovações foi se estreitando cada vez mais, e a busca pelo novo vai se transformando numa

velocidade antes inimaginável.

No atual estágio, chamado por Flusser de pós-histórico, a “es-


critura” é construída com ou por máquinas e ela consiste essencial-
mente numa articulação de imagens – no limite, imagens digitaliza-
das, multiplicáveis ao infinito, manipuláveis à vontade e passíveis de
distribuição instantânea a todo o planeta. Caracteres se tornam bytes,
seqüências de texto se convertem em seqüências de pixels, os fins e os
meios são substituídos pelo acaso, as leis pelas probabilidades e a razão
pela programação (FLUSSER, 1978, apud MACHADO,1996, p.74).

Nesse sentido as transformações da arte ao longo da história como resultantes do di-

namismo vivenciado pelos indivíduos, depreende que “determinadas expectativas e demandas

[...] podem também estimular ou quando menos mantê-las vivas” (GOMBRICH,1995, p. 48).

C onsideraç ões finais

Foi possível observar, neste curto espaço, alguns enfoques históricos que tangenciam

as perspectivas das pesquisas em artes. Interessou recordar as distintas formas e estilos de ex-

pressão humana que acompanharam os movimentos ou as vanguardas artísticas na intenção


Capa
ampliada em cartografar as transições temporais que envolveram as manifestações gráficas

no formato analógico bem como evidenciou-se a incorporação dos novos formatos gráficos e
Ficha
pictóricos que se tornaram possíveis com o advento da tecnologia.

O argumento dessa transição ora comentada ratifica a convicção de que as mudan-


Sumário
ças e os avanços tecnológicos não excluem as linguagens visuais tradicionais, uma vez que os

signos e as representações garantem a transmissão de saberes, valores e experiências histori-

camente vivenciadas pelos artistas e seu público. Porém, evidenciou-se a potencialidade dos

recursos tecnológicos e seu uso no processo de criação artística.

Embora, de certa maneira, alguns exemplos de artistas visuais que foram citados e de

tantos outros que ficaram ausentes, denotem certo receio pelas expressões da visualidade em
109

formato digital, outros ao contrário, como David Hockney e Giselle Beiguelman, sentiram-se

motivados em refletir, praticar ou teorizar sobre a arte e a tecnologia. Ambos não se sentiram

impedidos e tiveram o acesso a grande variedade de dispositivos tecnológicos que os convo-

cam, até os dias atuais à experimentação.

Tais reflexões se tornam instigantes em dois momentos: primeiro, quando são apon-

tados os impasses enfrentados pelos artistas, sobretudo, o designer gráfico, que vivenciou

o dilema de optar ou não pelo uso do computador como foi o caso de Mario Cafieiro; e se-

gundo, quando são destacadas as influências tecnológicas expressas nas produções de Guto

Lacaz e Émile Chami.

Por isso, imaginar as possibilidades artísticas via tecnologia é ter claro uma cons-

ciência do tempo contemporâneo e ousar aos experimentos que tendem a permanecer e a se

ampliar. São tentativas humanas de permanecer no tempo, uma vez que se sabe ou não se te-

nha consciência de que “O universo dura. Quanto mais aprofundarmos a natureza do tempo,

melhor compreenderemos que a duração significa invenção, criação de formas, elaboração

contínua do absolutamente novo” (BERGSON, 2005, p. 12).

Assim o artista vive e tende a durar no tempo a medida em que partilha a vida

pela arte.

R efer ê ncias
AUDEM, W. H. A mão do artista; trad de José Roberto O’Shea. São Paulo: Siciliano,
1993.
Capa
BAITELLO Jr. N. As imagens que nos devoram. Antropofagia e Iconofagia. Centro
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2000.
Ficha
BENJAMIN, W. Sobre arte, técnica, linguagem e política. Lisboa: Relógio D’Água,
1992, p.100.
Sumário
BERGSON, H. Trad. Bento Prado Neto. A evolução criadora. São Paulo, SP: Martins
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GOMBRICH, H. Arte e ilusão: um estudo sobre a psicologia da representação pictórica.


São Paulo: Martins Fontes, 1995.

MACHADO, A. Máquina e imaginário: O Desafio das Poéticas Tecnológicas, EDUSP:


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poética do espaço. p.63

OSTROWER, F. A sensibilidade do intelecto: visões paralelas de espaço e tempo na


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Revista Porto Arte: Porto Alegre, v. 17, Nº 28, Maio/2010. Disponível em: https://
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SILVEIRA, I. Tempo, Semiose e Cultura: uma visão sistêmica sobre os processos de


criação no design gráfico brasileiro. Tese de doutorado, apresentado ao Programa de Pós-
Graduação em Comunicação e Semiótica. Linha de Pesquisa: Processos de Criação nas mídias
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. PUC/SP – 2010.

Portrait of an Artist (Pool With Two Figures) 1972, obra de David Hockney. Disponível
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do-futuro-das-artes/ Acesso em: 18/10/2023.

“The Bigger Picture”, obra de David Hockney. Disponivel em: https://www.


guggenheim-bilbao.eus/en/exhibitions/david-hockney-a-bigger-picture. Acesso em:
18/10/2023.

Net art de 2004. Obra de Giselle Beiguelman. Itaú cultural. Disponível em: https://
enciclopedia.itaucultural.org.br/obra63332/desmemorias. Acesso em: 18/10/2023.

Capa

Ficha

Sumário
111

Por uma abordagem dialética da pedagogia social 1

João Clemente de Souza Neto

O objetivo deste capítulo é apresentar acenos para uma epistemologia libertadora.

Um dos pressupostos da pedagogia social é a convivência humana e a formação do sujeito

ético criativo, reconstrutor e empreendedor. Esta perspectiva parte da compreensão de que

a realidade social e existencial já está dada. Cabe ao sujeito descobrir e criar estratégias de

agir neste contexto. Para isso, é necessário compreender, interpretar, agir e transformar o

cotidiano.

Na pedagogia freiriana, há uma metodologia que se constitui do ouvir, interpretar,

agir, refletir, o que poderíamos sintetizar como um diálogo permanente entre o sujeito, a

realidade e seus companheiros. É uma luta permanente para combater a cultura da opressão,

que se alimenta e realimenta pelas estruturas sociais e econômicas, e também pela subjetivi-

dade.
Capa
Em cada canto e em cada pessoa, existe a dinâmica do opressor e do oprimido e,

mesmo com algumas alterações, essa dinâmica se recria. Às vezes, até podemos afirmar que
Ficha
o oprimido de hoje se torna o opressor de amanhã. Neste sentido, é necessária uma metodo-

logia de abordagem dialética ou freiriana, para levar as pessoas e sujeitos a refletirem cons-
Sumário
tantemente sobre a sua prática.

É preciso, porém, deixar claro que, em coerência com a posição


dialética em que me ponho, em que percebo as relações mundo-cons-
ciência-prática-teoria-leitura-do-mundo-leitura-da-palavra-contexto-

1 Neste texto atualizo a primeira versão deste artigo, a qual apresentei em 2002, no curso de
Psicopedagogia da UNISA.
112

-texto, a leitura do mundo não pode ser uma leitura dos acadêmicos
imposta às classes populares. Nem tampouco pode tal leitura reduzir-
-se a um exercício complacente dos educadores ou educadoras em que,
como prova de respeito à cultura popular, silenciem em face do saber de
experiência feito e a ele se adaptem. (FREIRE, 1992, p. 106.)

No encontro ético e libertador com o outro, é que se desvelam realidades e práticas


de opressão e desumanização. Neste movimento, enfatizamos que o educador social deve

estar familiarizado ou familiarizar-se com o conhecimento e com a cultura popular, para es-

tabelecer uma síntese libertadora. A pedagogia social tem como pressuposto a defesa incon-

dicional da democracia e da vida.

Uma leitura do mundo tem suas manhas e tramoias a serem depuradas no bojo das

relações sociais, econômicas e humanas. O educador social e mesmo a pedagogia social não

devem escamotear as contradições presentes no mundo e na vida. Em muitas ocasiões, a

cultura e a educação popular são cooptadas pelo mercado e pelo Estado. As reflexões acadê-

micas e da classe dominante trazem conteúdos e processos de reificação, assim como ocorre

na cultura popular e na educação popular. Diálogo e reflexão são essenciais para desreificar a

prática e os conceitos dos processos de apropriação e transformação do cotidiano.

Gramsci chama atenção para o fato de que nem sempre agimos de acordo com nossas

concepções. É com se em nós coexistissem duas perspectivas, a concepção de mundo que car-

regamos e nossas ações efetivas. Não é uma questão de má-fé, é que existe um hiato entre o

que nós pensamos e nossa forma de agir. Há necessidade de uma educação permanente para
Capa tomarmos consciência dessa contradição e buscar um jeito de superá-la. A filosofia da práxis

tende a nos ajudar.


Ficha A pergunta central diz respeito à nossa concepção de mundo. É ela a que eu recebi

nas escolas? Ou a que aprendi ao longo da vida, na família, no partido, no trabalho? Ou mi-
Sumário nha concepção de mundo é a que aparece na minha prática? Como se estabelece em minha

vida a coexistência entre o racional, o cultural e o emocional? Se as coisas fossem claras nes-

ses campos, a ciência seria desnecessária, assim como o papel do intelectual orgânico. (Cf.

GRAMSCI, 1978.) A pedagogia social tem sempre em foco as seguintes questões: qual é o

sentido da vida? Qual é a direção da vida? Qual é a finalidade da vida? São questões a serem

respondidas ou desveladas no encontro com o outro e nas contradições sociais. (Cf. BOFF,
113

2018.)

Diferentemente das demais, a espécie humana aprende, simultaneamente, a ser, con-

viver, fazer, saber, morrer, orientada por crenças, valores e sabedoria. Com base nessa refe-

rência, a pedagogia social contém elementos para resgatar no sujeito o desejo de aprender

a aprender e de aprender a fazer, nos diferentes espaços, da escola, da família e das institui-

ções. A pedagogia social aspira ao resgate do prazer pela vida (CAMPOS, 2000), busca recu-

perar no sujeito o desejo de saber ver, esperar, conversar, abraçar (MARIOTTI, 2000). Serve,

portanto, de instrumento para a percepção das dificuldades de aprendizagem no processo de

aquisição do saber.

A apropriação do conhecimento e sua construção pressupõem um sujeito constituído

de identidade e autonomia (CAMPOS, 2000). Aprender significa, sobretudo, preparar o indi-

víduo para escolher, no seu entorno, o que há de melhor para sua vida. Por essa perspectiva, a

aprendizagem ultrapassa a escola, abrange a apropriação do mundo cotidiano. Ela se refere,

sobretudo, a uma forma de apropriação do mundo, de assimilação de um complexo cultural.

Além de facilitar o processo de aquisição do conhecimento, a pedagogia social se

empenha na criação de mecanismos que ajudem o sujeito a remover os obstáculos à aprendi-

zagem. Tanto quanto possível, ela busca ajudá-lo a aprender a conviver com as dificuldades,

de tal forma que não impeçam a construção do saber. O campo de conhecimento da peda-

gogia social é o transfazer do sujeito, o exercício de sua capacidade de ressignificar os fatos

históricos e de usá-los como estratégias de superação. De uma forma ou de outra, o sujeito

aprende a receber e a dar sentido aos acontecimentos da vida e a extrair do próprio cotidiano

Capa as energias para consolidar ou construir seu projeto histórico.

Procuramos refletir sobre a questão da ciência e do método dialético aplicado à cons-

Ficha trução do conhecimento pedagógico, com base no pressuposto de que a ciência e, sobretudo,

as denominadas ciências abertas, não nos oferecem certezas absolutas. Aquela que se pro-

Sumário puser a fazer isso poderá se transformar num dogma religioso ou num fanatismo de feição

fundamentalista, prisioneira em sua própria teia. Se as ciências fechadas, como a física, a

química e a biologia, são complexas, as ciências abertas, como a sociologia, a antropologia e

a psicologia, têm uma complexidade ainda maior. Demonstram as descobertas científicas que

o conhecimento é uma aventura em progressão contínua. Entretanto, também a ignorância

parece progredir indefinidamente.


114

A construção do conhecimento não mais se deve fazer pela lógica mecanicista de

simples causas e efeitos. Para olhar a realidade e o mundo, é necessário saber ver e pensar.

Isto não significa a exclusão de certas leituras ou análises, mas sim a apropriação crítica

delas. É pensar o pensado, mas não ficar nele, e ultrapassá-lo. A exclusão pela exclusão

pode impedir o avanço e levar-nos a cair numa mutilação do conhecimento. Às vezes, para

construir o conhecimento, é necessário distinguir e separar os fatos. Mas, em seguida ou até

simultaneamente, temos que fazer os acontecimentos se comunicarem.

Acreditamos que o pensar do conhecimento por uma perspectiva aberta deva acon-

tecer por uma visão multidimensional, na qual as hipóteses e proposições podem parecer

contraditórias e até antagônicas. Pela ótica da simplificação, encontramos alternativas que

evitam a necessidade de sua exclusão.

Tomemos, por exemplo, as duas proposições: 1. Os homens fa-


zem a história. 2. A história faz os homens. A primeira proposição
significa que as ações, vontades e estratégias humanas estão na ori-
gem dos processos de transformação, o que, sob este ângulo, não é
contestável. A segunda proposição significa que os processos históricos
dominam a consciência dos homens, controlam as suas vontades, fa-
zem derivar suas ações e estratégias, e que, finalmente, o conjunto dos
processos histórico-sociais determina as condutas e os comportamentos
dos homens, o que, sob este ângulo, não é contestável. Todavia, consi-
derada isoladamente, cada uma de suas proposições é insuficiente ou
mutilante: a primeira faz depender a história da vontade consciente
Capa dos homens, que se torna então demiúrgica; a segunda transcendenta-
liza a história em relação às ações humanas, que não passam de puros

Ficha efeitos de seus determinismos. (MORIN, 1994, p. 98.)

A questão que se coloca é que os fenômenos humanos e mesmo naturais estão li-
Sumário
gados na mesma base. Aparentemente, estão desvinculados. Mas, na sua essência, estão li-

gados. Nesse sentido, o método dialético propõe a compreensão das coisas pela perspectiva

da aparência à essência e vice-versa. Quando afirmamos que a história faz o homem e que

o homem faz a história, da aparência à essência e vice-versa, queremos deixar claro que não

estamos diante de uma soma de pressuposições, mas de um movimento. Neste ponto, reside

um problema vital para a ciência e, sobretudo, para a pedagogia social, que tem o desejo e a
115

razão como fontes de conhecimento.

Vivemos, hoje, um momento de repensar o conhecimento, uma vez que o avanço

da ciência e sua libertação só foram possíveis a partir das grandes transformações sociais,

políticas, religiosas e econômicas ocorridas nos séculos XVI e XVII. Nesse período, grandes

invenções e descobertas criaram as condições para o desabrochar das ciências, sobretudo das

ciências sociais.

No início do século XVII, Galileu Galilei, ao retomar a tese copernicana do movimen-

to da Terra em torno do Sol, chocou-se com concepções que compreendiam a Bíblia como

uma espécie de paradigma-chefe ao qual deveriam submeter-se todos os demais paradigmas.

Em 1637, Descartes publicou o Discurso do Método, que tem como sustentação o cogito. No

debate sobre a construção de um paradigma teológico, circunscrito por uma perspectiva de

separação entre o bem e o mal, entre o corpo e a alma, entre a razão e o desejo, Shakespeare

e Espinosa buscaram deslocar as bases do conhecimento. Até então, este se fundamentava

na lógica da natureza e numa perspectiva de disjunção. Com eles, se evidencia a coexistência

entre razão e desejo, subjetividade e objetividade.

A relação entre a alma e o corpo não é a da ação e da paixão


– a alma ativa e o corpo passivo; nem a obscura relação cartesiana de
uma ação recíproca do corpo sobre a alma e vice-versa. A relação es-
pinosana é uma relação de correspondência ou de expressão. Espinosa
foge de uma explicação de tipo mecanicista: o corpo não é a causa das
idéias e nem as idéias são causa dos movimentos do corpo. A alma e
o corpo exprimem no seu modo próprio o mesmo evento. O indivíduo
Capa
é uma estrutura: isto é, uma organização relacionada de partes rela-
cionadas necessariamente entre si e esta organização e relacionamento
Ficha
são inteligíveis. Desta maneira, Espinosa critica o mecanicismo carte-
siano: o indivíduo é uma máquina complexa no sentido de que essa
Sumário máquina é um organismo ou uma estrutura e não uma soma ou jus-
taposição de partes exteriores umas às outras. Há uma unidade e uma
inteligibilidade intrínsecas e que constituem a essência de um modo
singular. (CHAUÍ, 1973, p. XIX.)

A perspectiva espinosana permite-nos elaborar uma crítica ao pensamento mecani-

cista de cunho racionalista, para pensarmos a construção do conhecimento a partir de um


116

movimento ou, como diz ele, pela ótica da correspondência e não da antinomia. As ciências,

desde a revolução burguesa, seguiram a tendência do racionalismo ou do irracionalismo, em

detrimento da razão do esclarecimento ou dialética, o que Lukács denominou de decadência

da filosofia e, mais tarde, Coutinho, (1972) de miséria da razão.

Esse processo de irracionalismo ou de fortalecimento de uma razão instrumental

ganha força nas revoluções de 1830 e 1848, quando são abandonadas ou reprimidas as

contribuições dos pensadores progressistas, sobretudo da revolução burguesa, tais como de

Locke, Rousseau, Adam Smith, Galileu e Pascal, entre outros, para salvaguardar interesses da

ordem vigente. O irracionalismo ou a razão instrumental acaba por conduzir a humanidade

à barbárie, a exemplo do fascismo.

As filosofias imediatistas que tomam a práxis burocrática


como modelo de vida humana sem dissolvê-la na totalidade essencial,
explicitada da objetividade econômico-social, assumem também esse
tipo de racionalidade como único parâmetro. E, com isso, empobrecem
decisivamente as várias esferas da vida. A práxis aparece agora como
uma mera atividade técnica de manipulação; a objetividade fragmen-
ta-se numa coleção de dados a serem homogeneizados; e, finalmente, a
razão reduz-se a um conjunto de regras formais subjetivas, designadas
do conteúdo objetivo daquilo a que se aplicam. Essa miséria da ra-
zão transforma em algo irracional todos os momentos significativos da
vida humana. (COUTINHO, 1972, p. 29.)

Capa Desvelar a realidade a partir da razão do esclarecimento significa subsidiar os excluí-

dos a compreenderem a dinâmica da história e os valores da humanidade. Interessa ao grupo

Ficha detentor do poder operacionalizar as suas práticas dentro da razão instrumental. Nesse sen-

tido, a razão deixa de ser uma ferramenta de libertação para satisfazer os interesses de um

Sumário determinado grupo, em detrimento da humanidade. A partir de 1830, a razão dialética ou

do esclarecimento reúne as condições para produzir um conhecimento que possa contribuir

para a emancipação da humanidade e, ao mesmo tempo, contrapor-se ao discurso da razão

instrumental de cunho mecanicista, bem como da fragmentação e da disjunção das dimen-

sões do ser humano.

A crise dos paradigmas é uma crise de hegemonia, que coloca em confronto as ten-
117

dências das ciências. À luz do pensamento de Espinosa, essa crise ganharia contornos na

tensão entre a tristeza, que significa tirania e a destruição dos corpos, e a alegria, entendida

como democracia, felicidade e prazer dos corpos. O que está em jogo é a implantação do

projeto da cultura democrática, defendida pelas forças progressistas da humanidade, cuja ân-

cora se esteia na razão, e da cultura autoritária, pelas forças conservadoras, fundamentadas

na racionalidade e que acabam por fortalecer a disjunção entre o particular e a totalidade.

No Discurso sobre a Ciência e as Artes, século XVIII, aparece uma indagação sobre

a possibilidade de o conhecimento purificar os homens ou deformá-los. Rousseau comple-

menta esse questionamento, ao buscar a ligação entre ciência e virtude, fazendo a seguinte

pergunta: Como poderia a ciência colaborar para diminuir o fosso entre os que sabem e os

que não sabem, entre os detentores do poder e os que não o detêm, entre a teoria e a prática,

entre os pobres e os ricos?

Se essas questões levam a pensar na ciência como uma ferramenta emancipatória,

por outro lado, podem nos conduzir ao risco de fazer dela um novo messias, depósito da

certeza da condução da humanidade ao paraíso, e transformá-la numa superstição. Nesse

sentido, assumimos a hipótese de que a construção do conhecimento deve ser circunscrita

nas contradições da vida humana, sem desvincular o homem da natureza, da história, do

cotidiano e da vida.

Sob esse aspecto, a pedagogia social deve se cuidar. Por se tratar de um conheci-

mento feito no fio da navalha, corre o risco de deslizar e cair para um ou outro lado. Outra

tentação que os pedagogos, como outros cientistas, devem evitar é a de transformar a rea-

Capa lidade num leito de Procusto, para que as hipóteses e os pressupostos estejam de acordo. O

que ultrapassa o paradigma deve ser excluído, assim como deve ser tracionado tudo aquilo

Ficha que não se adaptar aos limites que se impõem, ao que denominaríamos, com Lakatos (1979),

de falseacionismo metodológico. Os paradigmas nascem dos reclamos da realidade, a qual é

Sumário contraditória em si mesma.

Em Questão de Método, destaca Sartre que a “[...] experiência social e histórica esca-

pa do saber” (1978, p. 123). Isto nos leva a constatar que a realidade é mais ampla e se altera

com mais celeridade do que a ciência. Por isso, chamamos atenção para a necessidade de

se revisitar e de se elaborar uma adequação dos paradigmas, para que possam responder às

questões sociais e humanas, na direção das indagações de Rousseau ou, ainda, de se refletir a
118

partir das questões colocadas por Hegel, Marx, Lukács, Popper, Feyerabend e Thomas Khun.

Isso não significa, ainda, um rompimento com o cogito cartesiano, mas que o homem

continua sujeito do universo e da história. O que se seguiu a Descartes foi uma melhor expli-

citação do cogito, pela dialética, incluindo outras dimensões da razão, que Descartes não va-

lorizou suficientemente. A dialética tem por objetivo construir um projeto de conhecimento

voltado para o esclarecimento, a clarificação e a ilustração das relações humanas e sociais.

Ela não somente nega o cartesianismo, mas o assimila e transforma.

Na epistemologia das ciências (1987), ao caracterizar um paradigma e como este se

altera, Khun afirmou que à transmutação do paradigma segue-se sua perda de sustentação

ou aceitação diante da comunidade científica. Em parte, Khun tem razão, quando diz que o

paradigma necessita ser balizado e reconhecido pela comunidade científica. Segundo nossa

concepção, além desses vetores apresentados por Khun, é necessário que o paradigma apre-

sente seus critérios de verificação e veracidade, sustentados pela própria realidade social,

tendo em vista que a ciência nasce na processualidade da vida social, política e econômica.

É por essa perspectiva que assumimos as concepções lukacsiana e gramsciana de que

a realidade irrompe contra as teorias que não levam em consideração a processualidade. Nos-

sa perspectiva é de que a ciência tem que ser produzida com consciência e compromisso com

a humanidade. Por esta ótica, a ciência deve estar comprometida com a vida, que é refletida

nas atividades desenvolvidas por homens e mulheres.

Para a filosofia da práxis, o ser não pode ser separado do pen-


sar, o homem da natureza, a atividade da matéria, o sujeito do objeto;
Capa se se faz essa separação, cai-se em uma das muitas formas de religião
ou na abstração sem sentido. Colocar a ciência na base da vida, fazer
Ficha da ciência a concepção do mundo por excelência, a que liberta os olhos
de qualquer ilusão ideológica, que põe o homem em face da realidade
tal como ela é, isso significa recair no conceito de que a filosofia da
Sumário
práxis tenha necessidade de sustentáculos filosóficos fora de si mesma.
(GRAMSCI, 1984, p. 70.)

Nessa mesma lógica de raciocínio gramsciano, poderíamos inferir que o conhecimen-

to e, em especial o pedagógico, deve-se desenvolver a partir da e com a vida. Sua razão de

ser é responder às indagações colocadas pela prática da vida cotidiana. E,


119

[...] na vida, quer saibamos e queiramos ou não, somos obri-


gados a nos comportar espontaneamente de modo ontológico. A pas-
sagem à cientificidade pode tornar consciente e crítica essa inevitável
tendência da vida, mas pode também atenuá-la ou mesmo fazê-la de-
saparecer (LUKÁCS, 1979, p. 24).

Queremos ressaltar o caráter ontológico da epistemologia marxiana, que não faz


uma dicotomia excludente entre a natureza e o humano, mas a ambos qualifica e deles se

apropria, na construção do conhecimento científico. Neste leque de amplitudes, esta episte-

mologia não justifica a crise do paradigma apenas do ponto de vista empírico, filosófico e da

aceitação ou não da comunidade científica, mas assimila como pressuposto fundante o modo

de os homens se organizarem para satisfazer suas necessidades.

A razão dialética está voltada para o desvelamento das relações humanas. Eis aí a

objetividade da ciência, que tem como critério de veracidade a dinâmica da própria vida.

Marx, citado por COUTINHO, 1972, p. 33, apanha esse espírito, dizendo que os indivíduos

“[...] universalmente desenvolvidos, cujas relações sociais [...] são igualmente submetidas ao

seu próprio controle comum, não são um produto da natureza, mas sim da história”.

Marx apresenta a unidade entre o homem e a natureza e a construção da história

como um elemento de verificação e aceitação do paradigma. Já no século XVIII e início do

século XIX, afirmava Hegel que o real é o pensado e o pensado é o real. Dentro da lógica

gramsciana, poderíamos afirmar que a realidade e a teoria devem conter a mesma essência.

No momento em que essa articulação não acontece, existe a possibilidade de os paradigmas


Capa entrarem em crise e do ressurgimento da barbárie.

A crise dos paradigmas, segundo nosso entendimento, é aquela para a qual Marx e
Ficha os marxistas acenaram, ao afirmarem a importância da unidade entre teoria e prática. Pela

perspectiva da práxis, a construção do pensamento não se deve separar da realidade e nem


Sumário esta realidade deve ser fracionada sem que se criem elementos comunicativos entre seus di-

ferentes aspectos, para se evitar uma queda numa “[...] abstração sem sentido”.

Entendemos que a crise não tem sua gênese nos paradigmas, mas nos desdobra-

mentos da própria modernidade e na processualidade do contexto social, que exigem uma

unidade entre teoria e prática, para que os paradigmas possam ser reinventados e abarcar a

realidade de forma permanente. Esta é uma das características da dialética como ciência do
120

complexo dos complexos.

A aparência e a essência não são coincidentes de imediato. Se assim fosse, a ciência

não teria nenhuma finalidade. Na pedagogia social, a fenômeno estudado deve ser conduzido

a sua essência, uma vez que a dificuldade do aprendizado é apenas um sinal que pode revelar

uma multiplicidade de outros fatores. Afirmava Marx (1980, p. 352) que toda ciência “[...]

seria supérflua se a essência das coisas e a sua forma fenomênica coincidissem imediatamen-

te”. A construção do conhecimento vai da aparência à essência. Por esse caminho, vale dizer

que há níveis de realidade. Cada vez que elaboramos uma síntese, descrevemos um desses

níveis. Uma vez que a pedagogia social, como outros conhecimentos, trabalha com o sujeito,

que é um ser inacabado, ela apanha apenas aspectos desse ser.

Apesar dessa concepção da incompletude do ser, há necessidade de sistematizar al-

gumas categorias, para poder compreendê-lo melhor. As categorias não podem ser vistas

por uma perspectiva hierárquica que acaba tendo uma primazia sobre o fenômeno, mas

devem ser sempre uma ferramenta de ajuda para desvendar a realidade apresentada. É uma

ingenuidade negar a importância das categorias, pois são elementos de uma arquitetura do

conhecimento. Entretanto, cada uma delas está num nível da realidade e nunca constitui a

realidade total. Neste sentido, devem sempre ser reinventadas, para que não se perca a com-

preensão da realidade, sobretudo em áreas do conhecimento que se desenvolvem a partir da

experiência da vida e na vida, como a pedagogia social. Suas categorias são dinâmicas, pois

buscam a ontologia do sujeito.

O conhecimento detém três características importantes. É prático, social e histórico.

Capa A primeira perspectiva é no sentido de que o conhecimento sempre tende a emergir de uma

experiência prática, por meio da qual se pode entrar em contato com uma realidade mais am-

Ficha pla. Exemplo: o professor, no processo de ensino e aprendizagem, observa certa dificuldade

do aluno, que pode levá-lo a uma descoberta mais ampla da dificuldade como tal.

Sumário Um segundo aspecto é que nos descobrimos sempre nas relações com o outro e com a

natureza. Nenhum indivíduo sabe quem ele é por si mesmo. Necessita do outro para sua des-

coberta. Assim, o homem se descobre na mulher, o filho no pai, o feio no bonito, e vice-versa.

Enfim, cada um age e reage diante de um contraponto, e se vê provocado a agir.

Transmitimos o conhecimento uns para os outros, por meio do testemunho, do ensi-

no, do relacionamento, dos acontecimentos do imenso oceano de conhecimento construído


121

pela humanidade. Cada sujeito traz em si a potencialidade de apropriar-se desse conteúdo e

de transformá-lo. Finalmente, o conhecimento tem o seu caráter histórico, é construído entre

lutas multisseculares, na busca da passagem da ignorância para o conhecimento.

Nessa história, misturam-se as diferentes formas de se compreender o mundo, em

suas várias tendências, entre as quais aparece a dialética. Concebemos este método como

um movimento, pois a realidade é dinâmica e contraditória e isto faz com que ela se modi-

fique permanentemente. A vida e a história são impulsionadas pela força das contradições,

perspectiva pela qual Heráclito considerava a luta como a mãe de todas as coisas. O método

dialético não está fora do real,

[...] não difere de seu objeto e de seu conteúdo, pois é o próprio


conteúdo. A dialética que nele existe, expressando-se no movimento do
pensamento; de tal modo que a dialética não é atividade exterior de
um pensamento subjetivo, mas a alma do conteúdo que produz organi-
camente seus galhos e seus frutos. [...] A negação de um conceito é um
conceito novo, mais rico que o anterior, pois se enriquece de seu oposto;
ela o contém, mas também a algo mais que ele, pois ela é já a unidade
de si mesma e do seu oposto (LEFEBVRE, 1995, p. 116).

A ideia de superação, presente na dialética, significa que o aspecto do fenômeno

superado não deixa de existir, mas é conduzido a um outro patamar. Por isso se diz que a

dialética é a negação da negação. Ela nega, mas não exclui totalmente, uma vez que alcança

diferentes níveis do real. Ao invés de nos prendermos aos dogmatismos do conhecimento,


Capa
talvez seja melhor apropriar-nos do que existe de melhor em cada epistemologia e superá-la.

Nesse sentido, falar que Descartes não deu conta suficientemente da questão do desejo e da
Ficha
emoção não significa que o excluímos totalmente. A perspectiva é de incorporá-lo, numa

linha de superação, e assumir tanto o desejo quanto a razão como fontes de conhecimento.
Sumário
A superação não tem por finalidade o escamoteamento ou a amortização das dife-

renças. Ao contrário, quer evidenciá-las. A superação é a possibilidade de recomeçar a vida

de forma diferente. É um aprofundamento do passado para estabelecer um diálogo com o

presente, na busca de deixar emergir o novo. Nessa direção, Marx explicita que não devemos

deixar que os mortos dominem o cérebro dos vivos. E acrescentamos: que os vivos saibam

dialogar com os mortos e com os fantasmas do passado e do presente, para melhor conduzir
122

suas vidas dentro do palco das contradições. Estas colocam a história a céu aberto, como um

raio que, ao cair, clareia melhor as coisas.

Na superação, o que é superado é abolido, suprimido – num


certo sentido. Não obstante, num outro sentido, o superado não deixa
de existir, não recai no puro e simples nada; ao contrário, o superado é
elevado a nível superior. E isso porque ele serviu de etapa, de mediação
para a obtenção do resultado superior; certamente, a etapa atraves-
sada não mais existe em si mesma, isoladamente, como ocorria num
estágio anterior; mas persiste no resultado, através de sua negação.
(LEFEBVRE, 1995, p. 230.)

Por essa perspectiva de transformação, em que o conhecimento anterior é apropriado

e superado, podemos inferir, para a pedagogia social, a categoria transfazer. O sujeito não

nega sua história passada, mas a ultrapassa, vai além dela. Apropriando-se dos contextos e

do enredo de sua história, confere-lhe novos sentidos, o que facilita a articulação entre a ex-

periência do irracional com a racionalidade, da fantasia com a realidade, da frustração com

a realização pessoal.

O sujeito não é compreendido de maneira linear, mas sim pela ótica da dialeticidade,

na qual ele é autor e resultado de sua própria história. Este movimento está circunscrito em

determinado contexto. “As pessoas negam sua história, mas não podem excluí-la, quando,

de um modo ou de outro, apropriam-se de novos elementos e dão à própria vida um novo

sentido.” (SOUZA NETO, 2001.) Assim concebemos o transfazer.


Capa
Quando está desorientado e perdido em meio a conflitos, o sujeito passa a conceber

o mundo de modo confuso, ambíguo e incerto. Esta percepção não lhe permite visualizar as
Ficha
estratégias que estão no cerne das contradições e dos conflitos. A adversidade se lhe apresen-

ta como algo inevitável e intransponível. Daí, sua dificuldade para transformar o seu mundo.
Sumário
Aprendizagem é aprender a apropriar-se da história e nela superar a condição de ser apenas

ator para ser autor.

É relevante que o sujeito aprenda a ressignificar os fatos e acontecimentos de sua

vida, para poder transfazê-los. O conhecimento lhe permite refletir por uma perspectiva de

destruição e de construção de seu mundo, a acreditar nas potencialidades e possibilidades,

suas e do coletivo. O sujeito começa a transformar a vida, quando aprende a dar sentido ao
123

que sabe e se apropria de alternativas. Esta perspectiva nos remete à idéia de superação, pre-

sente na obra marxista. Na obra marxiana, o conhecimento deve dar prioridade à busca da

unidade entre teoria e prática, uma não deve se antecipar à outra.

Após essa digressão, gostaria de retomar alguns aspectos que servem de apontamen-

tos da análise marxista, para serem aplicados na pedagogia social. O primeiro princípio é

que a realidade é uma síntese de múltiplas determinações. Esta afirmação pode nos levar à

inferência de que a dificuldade de aprendizagem de uma criança, de um adulto, de um jo-

vem deve ser apanhada não por um único fator, mas por uma constelação de fatores, desde a

história do próprio indivíduo, ao desejo, ao meio ambiente, às relações afetivas, aos aspectos

biológicos. Entre esses fatores, podemos evidenciar um fator determinante, tomando o cuida-

do de não transformar o educador num objeto das nossas convicções teóricas, na perspectiva

do leito de Procusto.

Outro princípio é de que o homem faz a história e a história faz o homem. Portanto,

se o homem é resultado da história, não é menos verdade que ele a produz. Esses dois pres-

supostos não devem ser compreendidos como uma soma, nem como uma via de mão dupla.

Há entre eles uma correspondência que provoca transformações permanentes. Nesse sentido,

não existe um determinismo da história sobre o indivíduo e nem o contrário.

O terceiro princípio é de que não basta conhecer a realidade, mas é preciso trans-

formá-la. Neste sentido, o conhecimento se torna importante para o sujeito, à medida que

é resultado de sua própria experiência e da experiência da comunidade. A partir desse co-

nhecimento, o sujeito se transforma e também influencia a mudança de seus companheiros

Capa e do espaço em que está inserido. O conhecimento não é apenas uma abstração, mas uma

ferramenta que facilita o viver bem e melhor. Finalmente, um quarto princípio diz respeito à

Ficha ação e reação humana sobre a natureza e os outros homens. Esta relação permite ao homem

se descobrir.

Sumário A pedagogia social contribui para que o sujeito possa aprender a negociar sua sub-

jetividade com a objetividade. Se fosse apenas produto da subjetividade, o sujeito entraria

em desespero. Se se restringisse à objetividade, não suportaria isso, e cairia na loucura. Um

sujeito saudável e maduro tem que saber articular essas duas dimensões. Ressalte-se que o

homem é sapiente e demente. Às vezes, necessita deixar-se conduzir um pouco pelo mundo

externo. Outras vezes, deve irromper contra ele. Sempre numa perspectiva de correspondên-
124

cia.

Aqui não podemos fazer um julgamento do que é bom e do que é mau, mas sim do

que é necessário para o desenvolvimento saudável do homem, na ligação entre o demens e o

sapiens. Essa dialética entre a consciência e a inconsciência é que impulsiona o sujeito a rom-

per com a paralisação e o conformismo, a encontrar sentidos para a vida, que correspondam

a seus anseios.

No cenário do século XXI, ganharam forças novos sujeitos e novas vozes, evidencia-

ram-se as contradições do ethos do capitalismo, cresceu a influência das tecnologias de in-

formação e se romperam as fronteiras entre o Estado e o mercado. Esta realidade se justifica

por uma epistemologia colonialista que reforça permanentemente a desigualdade social, a

desumanização e a exploração. A par com essa situação, a política de direitos contém uma

face ambígua, estende um braço protetor para o sujeito e outro para o mercado.

A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos


do padrão mundial do poder capitalista. Sustenta-se na imposição de
uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra
angular do referido padrão de poder e opera em cada um dos planos,
meios e dimensões, materiais e subjetivos, da existência social quotidia-
na e da escala societal. Origina-se e mundaniza-se a partir da América.
(QUIJANO, in SOUSA SANTOS, 2010, p. 73).

O colonialismo foi estruturado pela perspectiva da exploração e dominação. Dele

emerge uma educação para a subserviência das classes subalternas. A pedagogia social atua
Capa
no campo da consciência e da construção de sentidos, pressupõe a desconstrução das práticas

de injustiça, de exploração e da epistemologia eurocêntrica.


Ficha
Nosso tempo exige a formação de sujeitos engajados no processo de libertação pes-

soal e da comunidade, o que faz da educação social uma necessidade imperativa. Ela respon-
Sumário
de à exigência de uma consciência planetária, comprometida com o bem da humanidade e

da natureza.

A experiência histórica até aqui aponta para que há outro ca-


minho senão a socialização radical do poder para chegar a esse resul-
tado. Isso significa a devolução aos próprios indivíduos, de modo direto
e imediato, do controle das instâncias básicas da sua existência social:
125

trabalho, sexo, subjetividade e autoridade. (QUIJANO, in SOUSA SAN-


TOS, 2010, p. 113).

A pedagogia social é uma teoria que busca explicar as múltiplas formas de práticas

educacionais que têm por intencionalidade a tomada de consciência de um sentido ético da

vida. O grande dilema da atualidade é a convivência humana e com a natureza.

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127

A cultura organizacional e o processo


de diversidade e inclusão dentro das organizações

Julia Magela Camilotti

“As luzes que descobriram as liberdades inventaram também


as disciplinas” (Michel Foucault)

Em tempos de rápida evolução e transformação no mundo, a diversidade surge como

uma força poderosa que alimenta a inovação, promove a inclusão e impulsiona o progresso

social, lançando luz sobre o potencial transformador que reside no fato de abraçarmos e ce-

lebrarmos nossas diferenças (Carvalho, 2007).

A diversidade, entendida como construção histórica, social, cultural e política das


Capa
diferenças, realiza-se em meio às relações de poder e ao crescimento das desigualdades e da

crise econômica que se acentuam no contexto nacional e internacional (Gomes, 2012).


Ficha
O Brasil é um país rico em manifestações culturais, além de apresentar alta diversida-

de de culturas e hábitos (DaMatta, 1984). Ainda de acordo com o autor, o país possui grupos
Sumário
distintos em sua convivência, modo de pensar e se portar, além de suas diferentes crenças.

A influência disso é a miscigenação criada na época da escravidão e da exploração europeia,

momentos estes de grande tensão e conflitos no Brasil.

Por muito tempo no Brasil imperava o mito do triângulo racial, composto por três

matrizes étnicas: indígena, africana e europeia (DaMatta, 1984). Barros (1996) em seu tra-

balho, fortalece tal ideia de que os traços culturais, regionais, entre todas as características
128

do povo brasileiro, estão nas raízes da nossa história, geografia, formação étnica, entre outros

elementos.

Ao compreender a história do Brasil, DaMatta (1984) e Reis (2005), elucidam a rela-

ção dos senhores e seus escravos – no período colonial, em que até outro dia o país torturava

e sacrificava pessoas em seus trabalhos, como se pensar em um ambiente que possibilite a

diversidade e inclusão de grupos minoritários como sendo efetivos nesse processo de mão de

obra?

Barbosa (2006) acrescenta que o nosso sistema tão marcado por esse trabalho es-

cravo, onde as relações entre patrões e empregados eram definitivamente relacionadas por

laços pessoais de simpatia e amizade se confundindo e sobressaindo as leis, o que nos dias

atuais pode ser observado como um processo que ainda se constitui em muitas culturas or-

ganizacionais.

Sabendo que um ambiente diverso em que as pessoas se sintam incluídas podem

influenciar positivamente, pois, possibilita a criação de novos espaços e sentidos e, conse-

quentemente, possibilita atitudes que promovam ações transformadoras, além da inovação

e rentabilidade (Sekkel, 2005), (Sant’ Ana, 2005) (Silveira, 2006), surge então o questiona-

mento: quais seriam os possíveis entraves para que esse processo ocorra?

De acordo com os estudos de Hofstade são apontadas quatro áreas básicas de pro-

blemas representados através de dimensões das culturas. Para ele, dimensão é um aspecto de

uma cultura que pode ser medido em relação a outras culturas, podendo ser apresentado em

maior ou menor intensidade, fator esse que pode impactar na criação de um ambiente em

Capa que as diversidades são bem acolhidas:

“pode ser definido como a medida em que os membros menos


Ficha
poderosos de instituições e organizações dentro de um país esperam e
aceitam que o poder seja distribuído de forma desigual. ‘Instituições’
Sumário são os elementos básicos da sociedade como a família, a escola e a co-
munidade; ‘organizações’ são os lugares onde as pessoas trabalham”.
(Hofstade 1980)

Outro termo elucidado por Barbosa (2006) e que pode interferir nesse processo de

inclusão da diversidade em uma cultura organizacional é o “jeitinho brasileiro”. Esse termo

surge como o vetor através do qual a sociedade brasileira estabelece uma igualdade e uma
129

justiça social, ou seja, se expressa por uma hierarquia de necessidades que desconhece de-

sigualdades sociais e igualdades legais, podendo justificar a falta de diversidade e inclusão

dentro de uma organização, pois, excluem tais diferenças.

Para continuarmos essa linha de raciocínio, é fundamental que alguns termos sejam

compreendidos através de teorias, conforme apresentadas abaixo.

C ultura organizacional

Muitos são os estudos sobre o tema cultura organizacional, como consequência, di-

versas definições, como exemplo abaixo:

[...] uma cultura organizacional é uma rede de indivíduos, es-


poradicamente e fracamente conectados por suas posições mutantes em
relação a uma série de aspectos. O seu envolvimento, suas identidades
subculturas, e suas autodefinições individuais flutuam, dependendo de
quais aspectos são ativados em um determinado momento (Martin,
2002).

Alvesson (2002) define cultura organizacional como um “fenômeno mental de como

os indivíduos de um grupo específico pensa e valoriza tal situação”, enquanto Chatman e

Reilly (2016) defendem a concepção de que se trata de “normas que caracterizam um grupo

ou organização, que se amplamente compartilhado e mantido fortemente, atua como sistema

de controle social para modelar as atitudes e comportamentos dos membros”.


Capa
Schein (2009) traz o conceito de cultura como um fenômeno multidimensional e

multifacetado, ou seja, não pode ser reduzida a uma frente específica, mas sim toda uma
Ficha
engrenagem de aprendizado e esforços, em que deve ser levado em consideração que não

se trata de um processo automático. Podjed (2011) em sua abordagem reforça o conceito de


Sumário
(Schein, 2009) ao considerar cultura como um processo e não um estado.

D i versidade

Mota (2022) apresenta diversidade como sendo um conjunto de diferenças e seme-

lhanças, sejam elas visíveis ou invisíveis, que tornam as pessoas únicas conforme sua perso-
130

nalidade, etnia, gênero, raça, região, entre outros. Esty, Griffin e Schorr-Hirsh (1995) vão

além do autor acima citado, ao definir a diversidade como o reconhecimento, compreensão,

aceitação e valorização das diferenças entre as pessoas com relação à idade, classe, raça, et-

nia, gênero, deficiências etc.

A diversidade pode trazer perspectivas e ideias diferentes para a equipe, podendo

gerar maior criatividade e inovação, pois, quando pessoas de diferentes origens e experiên-

cias trabalham juntas, elas podem abordar problemas de maneiras únicas, o que pode levar

a soluções mais eficazes (Kochan, 2003). Entretanto, o autor clarifica que o contrário pode

atrapalhar toda uma gestão de equipe, afinal, quando não há espaço para o diferente, a orga-

nização tende a ter pouco espaço para inovar e desenvolver novas habilidades entre equipes.

A diversidade também pode levar a maior compreensão e empatia entre os membros

da equipe, pois, quando as pessoas trabalham com outras de diferentes origens e experiên-

cias, elas podem aprender sobre diferentes culturas e pontos de vista, o que pode levar a um

maior respeito e tolerância, gerando maior empatia e reduzindo o preconceito e a discrimi-

nação no local de trabalho, criando um ambiente mais inclusivo e acolhedor (Farns, 2002).

Ponomareva, Uman, Bodolica, Wennberg (2022) realizaram um estudo em que fo-

ram revisados 106 estudos publicados em 75 revistas no período de 1997 a 2021. Com base

na análise desses estudos, foram identificados três temas emergentes, entre eles a necessida-

de de uma definição mais clara da diversidade cultural, uma vez que a mesma pode ser ma-

nifestada de diferentes formas, como raça, etnia, nacionalidade, idioma e origem geográfica.

Em conclusão, o estudo acima oferece um panorama abrangente sobre a diversidade

Capa cultural, destacando a necessidade de definições claras e uma compreensão aprofundada dos

mecanismos teóricos, pois, essas informações podem contribuir para o avanço da pesquisa

Ficha nessa área e ajudar as organizações a melhor gerenciar a diversidade cultural em suas equi-

pes (Ponomareva et al, 2022).

Sumário

I n c lusão

Embora a diversidade seja um ponto essencial conforme explicitado pelos autores

acima, a inclusão é igualmente importante, pois, consiste em criar um ambiente em que cada

indivíduo se sinta respeitado, valorizado e ouvido (Carvalho, 2007). Ainda de acordo com a
131

autora, o processo de inclusão envolve a promoção de uma cultura que abraça as diferenças,

incentiva o diálogo aberto e busca ouvir de forma ativa as vozes diversas, podendo assim

aproveitar todo o potencial, força de trabalho e promover um senso de pertencimento que

estimula a colaboração e maior produtividade.

Sekkel (2003), Sant’ Ana (2005) e Silveira (2006) convergem ao salientarem que a

inclusão além de pressupor que alguém passe a habitar um local, também possibilita a criação

de novos espaços e sentidos e, consequentemente, possibilita atitudes que promovam ações

transformadoras, ou seja, a inclusão não se reduz as aos grupos tidos como minoritários,

mas se apresenta como um novo paradigma e olhar sobre todas as esferas de uma cultura de

maneira geral, especificamente aqui a organizacional, possibilitando assim um ambiente com

qualidade e respeito à diversidade.

Emílio (2004) aponta que se no primeiro momento a inclusão desses grupos apa-

renta beneficiar apenas os mesmos, em um segundo momento se o trabalho de inclusão for

realizado com seriedade e ética poderá propiciar a todas as pessoas participantes do mesmo

espaço o convívio com “as diferenças, da prática da tolerância, da perseverança e da busca

de saídas criativas”. (p.247)

Para que isso aconteça Ainscow (1997) acrescenta a necessidade de pensar na cons-

trução de um espaço comum a partir dos princípios da igualdade de oportunidades, de re-

conhecimento dos direitos e do respeito à diferença, sem discriminação e preconceito de

quaisquer naturezas, proporcionando uma melhoria de maneira geral.

É nesse contexto que o problema norteador deste trabalho foi em compreender, a

Capa partir da fala de pessoas colaboradores de uma organização, se a cultura organizacional pode

influenciar ou não o processo de diversidade e inclusão, entendendo o modelo de cultura

Ficha atual e desejado, além de compreender como as pessoas entendem o termo diversidade e

qual a importância dentro da organização.

Sumário Tal pesquisa, buscou trazer contribuições através de um material teórico baseado no

contexto cultural de uma organização a partir da fala das pessoas colaboradoras, possibilitan-

do a novas pessoas acadêmicas e ao mundo científico informações adicionais para o estudo

do tema cultura, diversidade e inclusão.

P rocedimen tos me todo l ógi c os


132

O método utilizado foi a pesquisa qualitativa interpretativa básica devido se tratar

de uma pesquisa exploratória para compreender uma possível relação entre cultura organi-

zacional, diversidade e inclusão.

Foram realizadas três entrevistas semiestruturadas, com pessoas colaboradoras da

área de Recursos Humanos de uma empresa do ramo do Agronegócio.

Posteriormente, os dados coletados foram submetidos à análise de conteúdo através

da Matriz de Amarração.

Por se tratar de uma entrevista com base qualitativa, os objetivos e procedimentos

de tal processo foram esclarecidos as pessoas participantes, acrescentando que mediante

qualquer tipo de desconforto, a pessoa poderia interromper sua participação sem que isto

acarretasse nenhum risco para a mesma. Os nomes de todas as pessoas participantes não

foram revelados, utilizando um nome ficticio. A divulgação de resultados terá apenas fins de

pesquisa científica.

R esultados e discussão

De acordo com a caracterização das pessoas participantes da entrevista, 66,6% eram

mulheres e 33,3% era masculino. A média das idades foi de 30 anos.

No item formação acadêmica 66,6% eram formadas em Administração de empresas

e 33,3 em Recursos Humanos. O tempo de atuação na empresa atual é 66,6% inferior a 1ano.

Foi utilizada a Matriz de Amarração, por oferecer uma visualização sistematizada do

Capa trabalho, possibilitando maior facilidade e compreensão das informações.

Foi realizada a separação em três constructos/categorias: cultura organizacional, di-

Ficha versidade e inclusão.

No primeiro constructo, cultura organizacional, pode-se observar na fala das três

Sumário pessoas entrevistas a ideia de que uma cultura ideal tem relação direta com segurança em

todos os aspectos, além de acrescentarem que o processo cultural interfere na relação de

diversidade e inclusão, pois ela está em fase de construção dentro da organização. Tal visão,

corrobora, com (Schein, 2009) ao trazer o conceito de cultura como um fenômeno multidi-

mensional e multifacetado, ou seja, que não pode ser reduzida a uma frente específica, mas

sim toda uma engrenagem de aprendizado e esforços, em que deve ser levado em considera-
133

ção que não se trata de um processo automático.

No segundo constructo – diversidade, pode se observar nas entrevistas definições

através de falas como “importante para que os problemas possam ser revolvidos por diferen-

tes perspectivas, que possamos ser quem realmente somos, se expor sem julgamentos (segu-

rança psicológica).”, o que vai de encontro com a ideia da diversidade trazer perspectivas e

ideias diferentes para a equipe, podendo gerar maior criatividade e inovação, pois, quando

pessoas de diferentes origens e experiências trabalham juntas, elas podem abordar proble-

mas de maneiras únicas, o que pode levar a soluções mais eficazes (Kochan, 2003).

Esty, Griffin e Schorr-Hirsh (1995), ao definirem a diversidade como o reconheci-

mento, compreensão, aceitação e valorização das diferenças entre as pessoas com relação à

idade, classe, raça, etnia, gênero, deficiências etc. relaciona com a fala da entrevista 2 sobre

“quando penso em Diversidade, eu entendo como reconhecer e valorizar as diferenças, é você

permitir que as pessoas vivam 100% a sua identidade sem medo de exclusão, preconceito ou

qualquer outra forma de invalidação da sua existência”.

No terceiro e último constructo – inclusão, é notória a importância dada para que

cada indivíduo se sinta respeitado, valorizado e ouvido (Carvalho, 2007), conforme trazido

pela autora, o processo de inclusão envolve a promoção de uma cultura que abraça as dife-

renças, incentiva o diálogo aberto e busca ouvir de forma ativa as vozes diversas, podendo

assim aproveitar todo o potencial, força de trabalho e promover um senso de pertencimento

que estimula a colaboração e maior produtividade, o que vai de encontro com as falas das

pessoas entrevistadas “a inclusão é dar voz, dar espaço e lugar a essas pessoas para que elas

Capa se sintam seguras para viverem sua integralidade.”; “oportunidade dar espaço para as mais

diversas pessoas falarem e se expressarem, é a oportunidade de gerar mais equanimidade e

Ficha mais representatividade em todos os lugares e em todos os âmbitos da sociedade.“

Sumário
C onsideraç ões finais

O objetivo deste trabalho foi compreender à seguinte questão de pesquisa: é possível

a cultura organizacional influenciar ou não o processo de diversidade e inclusão?

Para isso, foram realizadas três entrevistas nas pessoas participantes e como resulta-

dos apontados na discussão acima, foi possível categorizar as respostas em três constructos:
134

cultura organizacional, diversidade e inclusão.

O presente estudo, apresentou através do material coletado nas entrevistas que exis-

te certa relação na cultura organizacional, seus valores, comportamentos, regras ditas e não

ditas que viabilizam a abertura e influenciam o processo de diversidade e inclusão dentro

dela.

Pelas entrevistas, pôde se observar que a cultura organizacional das três pessoas

respondentes, de certa maneira alimenta esse processo de criação de um ambiente mais

inclusivo e diverso, em especial, ao apontarem que a organização busca trazer diversidade

em seus processos seletivos, desenvolvimento de escuta de todas as pessoas que compõe a

organização, além de ter uma área voltada para esses processos.

Com exposto anteriormente, a diversidade e inclusão dentro das organizações

não se reduz apenas aos grupos minoritários, e sim, como um novo paradigma, um novo

olhar sobre todas as esferas de uma organização. É necessário pensar na construção de um

espaço comum a partir dos princípios da isonomia e igualdade de oportunidades, de reconhe-

cimento dos direitos e no respeito à diferença, ou seja, sem discriminação e preconceito de

quaisquer naturezas.

Aqui, é importante salientar que para tal processo se faz necessário superar o precon-

ceito, este que de acordo com Crochík (1995) é uma generalização baseada em experiências

incompletas, ou seja, um pré-julgamento formado pela falta ou pouco conhecimento e a não

reflexão, fazendo com que o indivíduo tenha uma ação predisposta a certos grupos. Ainda de

acordo com o autor, o preconceito não é inato, e sim aprendido socialmente.

Capa A questão do processo de diversidade e inclusão dentro das organizações necessita

de maiores discussões, mas não apenas de discussões teóricas, e sim da prática, do cotidiano

Ficha das organizações, do que realmente tem dado certo bem como dos fracassos, pois a falta de

contato com a realidade dentro das organizações pode ser um dos entraves para a prática de

Sumário uma cultura que valorize ambientes mais diversos e inclusivos.

Adorno (1995) apresenta que é mais fácil anular grupos e minorias sociais, segre-

gando-os, do que questionar valores sociais já impostos, além de apontar que é preciso ter

atenção ao efeito trazido quando a competição é colocada em primeiro lugar, pois, perde se

o foco mais importante que é o de possibilitar as pessoas de se relacionarem.

Uma limitação do presente estudo, se refere ao número de pessoas respondentes


135

dentro da mesma organização, para maior fidedignidade dos dados e corroboração nos re-

sultados apresentados, além da possibilidade de investigar dois tipos de culturas: uma que

facilita o processo de diversidade e inclusão – como aqui apresentada, e, uma segunda que

dificulta esse processo, assim gerando elementos para entendimento das variáveis que impac-

tam, gerando possibilidade de transformações dentro da cultura organizacional.

O tempo para realização da pesquisa também propiciou uma lacuna que impactou

na possibilidade de uma investigação mais aprofundada, que poderia lançar luz sobre tal en-

tendimento e melhor clareza e riqueza dos dados, como exemplo, maior número de pessoas

entrevistas. Tal ponto, pode ser desenvolvido na continuação deste mesmo trabalho e de

futuras pesquisas que se interessem nesse tema.

Por fim, mesmo com o número limitado de pessoas respondentes, é possível inferir

conforme apontado por Alvesson (2002) de que a cultura organizacional vista como um

“fenômeno mental de como os indivíduos de um grupo específico pensa e valoriza tal situa-

ção”, mediante as respostas durante as entrevistas realizadas, é notória durantes suas falas, o

quanto dos seus pensamentos e valorização, o grupo deu para a cultura organizacional como

facilitadora e influenciadora do processo de diversidade e inclusão.

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Capa

Ficha

Sumário
138

Movimento feminista durante a ditadura militar:


centro da mulher brasileira (cmb) e sua
contribuição para o feminismo

Larissa Azevedo Souza

A pesquisa bibliográfica apresenta e analisa o movimento feminista Centro da Mu-

lher Brasileira (CMB) e sua relevância diante da história cultural no Brasil. O movimento que

nasceu e perdurou na ditadura militar brasileira, período que deixou os movimentos sociais

cada vez mais ocultos, a repressão e a perseguição desses movimentos ditos de esquerda

revolucionária, que possuíam ideologias e lutas pela democracia, pela liberdade, pela equi-

dade e por diretos com muita resistência e organização. Ainda que entre 1976 a 1985 tenha

sido considerada a década da mulher em todo o mundo pela Organização das Nações Unidas

(ONU). Esses movimentos e mulheres com ideologias feministas enfrentaram o machismo

não apenas dos militares no poder, mas também daqueles que eram seus companheiros de
Capa
luta. O movimento influenciou diretamente outros grupos e até mesmo jornais e publicações

sobre o movimento feminista. Criando um jornal, NÓS MULHERES, com sua primeira edição
Ficha
em Junho de 1976 e que trazia em seus editoriais, diversas pautas e reivindicações feministas

da segunda onda, ou mesmo simplesmente das necessidades básicas das mulheres em seu
Sumário
cotidiano, principalmente nas periferias brasileiras ou de mães solo que buscavam o básico

como um custo de vida a sua realidade.


139

Figura 01: 1º edição Revista Nós Mulheres – Junho/76 - Acervo: Fundação Carlos

Chagas .:FCC:.

Diante do contexto apresentado no período entre os anos 1964 e 1985, e consideran-

do a falta de direitos, sejam eles políticos ou civis, muitas mulheres foram duramente perse-

guidas e torturadas, sendo que dada as suas condições de MULHERES, tiveram suas torturas

“acentuadas” e com extrema crueldade. Segundo os diversos relatos na comissão da Verdade,


Capa
houve diversos casos de humilhação e crimes sexuais durante as torturas, contra as militantes

políticas. Com esse cenário de terror, unir-se em pequenos grupos “camuflados” em bares,
Ficha
bibliotecas, entre outros, era um risco durante a censura. Tendo em vista que mesmo dentro

de grupos revolucionários que lutavam pela democracia e pelo fim da ditadura, existia um
Sumário
machismo latente, as mulheres eram enviadas para tarefas consideradas “menos” importan-

tes ou com menos relevância. Dessa forma, essa análise busca responder de forma ampla o

questionamento de qual é o papel desse movimento na vida das mulheres e na construção da

história do Brasil durante a ditadura militar. Devemos levar em consideração os parâmetros

culturais da família tradicional brasileira, com demasiada desigualdade de gênero, machismo

e preconceito.
140

O campo da pesquisa na história cultural busca entender como a sociedade ain-

da hoje olha para as mulheres, ditas revolucionárias que lutaram não apenas por diretos e

equidade de gênero, mas que buscavam a liberdade do país e a democracia, já que apenas

por meio dela é possível debater as pautas feministas. A história cultural pode nos ajudar na

análise de todo contexto brasileiro da história das mulheres e como a construção social nos

ensina durante a nossa vida, entender o que de fato é ser mulher no Brasil, esse que possui

um feminismo com características próprias, que foram se desenvolvendo sobre uma perspec-

tiva da História do Brasil e suas particularidades. Identificando os debates e reflexões para

entender quais avanços o movimento teve nas conquistas feministas em nossa sociedade.

O M ovi men to fe minis ta no B rasi l

Desde a colonização portuguesa no Brasil, as mulheres são apenas posse de homens,

assim como ao longo da história em diversas civilizações, sejam eles pais, maridos, irmãos,

filhos, ou seja, não tinham direitos ou mesmo oportunidades e durante um longo período do

Brasil colônia a única função feminina era de ser filha, esposa ou mãe e ainda que algumas

mulheres trabalhassem, havia empregos determinados como femininos, com a remuneração

mais baixa e outras muitas vezes trabalham como costureiras ou em fábricas para sustentar

suas famílias.

Durante o período do Império, uma mulher tem seu nome em destaque, Nísia Flo-

resta fundou uma escola para meninas, desta forma a educadora possibilitou as meninas ao

Capa ambiente público, já que as mulheres estavam restritas ao privado. Podemos então identificar

que historicamente a educadora Dionísia Gonçalves Pinto (Nísia Floresta), iniciou o primeiro

Ficha “movimento feminista” brasileiro, trazendo algo que hoje consideramos básico na vida de

qualquer cidadã brasileira, a educação.

Sumário Em 1907 a greve das costureiras, e em 1917 com inspirações sindicalistas de imi-

grantes, iniciava-se a busca por melhores condições de trabalho para as mulheres, proibição

de trabalho noturno e melhores salários. No século XX volta e pauta o debate sobre a par-

ticipação da mulher na política brasileira. Em 1922 a Federação Brasileira pelo Progresso

Feminino foi fundada, com objetivo principal o voto feminino. Apenas em 1928 o primeiro

voto feminino é autorizado.


141

Bertha Lutz que na década de 1920 estava ligada as causas femininas e exerceu ine-

gável liderança (PINTO, 2003, p. 13). Foi à segunda mulher a entrar no serviço público brasi-

leiro. Após muitas campanhas e a criação da Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher,

que foi embrião da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF)1. Finalmente em

1932 o governo Getúlio Vargas concede o sufrágio feminino após muita luta das mulheres.

Ainda que o feminismo brasileiro seja distinto em muitas pautas e debates, uma

característica bastante comum com os outros países é de fato quem são as mulheres mais

ativas no movimento feminista, são normalmente mulheres consideradas da elite, ou mesmo

da classe média, que possuem acesso a estudos e livros, ou seja, acesso ao conhecimento,

às ideias. E principalmente porque tem a oportunidade de viajar para países europeus, que

iniciaram debates acerca do feminismo com bastante antecedência. Para além das viagens e

a vasta oportunidade de conhecer os movimentos sociais e culturais, a maior bagagem das

elites é a educação, o estudo histórico e filosófico que possibilita o senso critico. Ou mesmo o

tão conhecido dos filósofos gregos, o ócio criativo. Ainda que as mulheres mais pobres tives-

sem acesso ao trabalho, algumas aos sindicatos, pois o trabalho era extremamente necessário

para contribuir na renda familiar, essas mulheres tinham pouco ou quase nenhum acesso ao

conhecimento político, portanto, para essas mulheres os movimentos feministas ou mesmo a

situação da mulher na sociedade, não era de fato um assunto pertinente ou mesmo importan-

te, pois mediante as necessidades financeiras, a política é um assunto secundário (inicialmen-

te). Esses assuntos chegaram primeiro às mulheres que tinham acesso as universidades, que

traziam tal pensamento crítico. Já as mulheres de classes mais baixas, tinham a oportunidade

Capa de conhecer sobre o feminismo em sindicatos trabalhistas, aonde podiam se reunir e muitas

vezes questionar o papel da mulher no trabalho e em suas casas, já que essas sofriam a dupla

Ficha jornada, a falta de creches e muitas vezes o abuso em seus casamentos.

Como a questão de gênero é uma construção social, pois é a sociedade que nos apre-

Sumário senta como “devemos” ser, Simone de Beauvoir deixa bastante claro em seu livro o segundo

sexo, na frase “Não se nasce mulher, torna-se”, onde nos traz a condição de ser mulher ou

homem, como uma construção da identidade de gênero e essa é transmitida por nossos pais e

mães, e para além dessa identidade temos também as questões sociais, pois muitas das nossas

relações sociais são pautadas pelas nossas relações econômicas e o sistema capitalista, essa

divisão de classes apresentada por Marx em suas obras é também observada nas relações de
1 Bertha Lutz — Senado Notícias
142

gênero, na divisão do trabalho e na relação de poder entre homens e mulheres. Sendo o tra-

balho da produção reservado aos homens, pois geram valor e o da reprodução as mulheres,

este gera manutenção a vida.2 (MORAIS, 2022, p.10)

No livro “A Mística feminina” da autora Betty Friedan, que nos apresenta um contexto

histórico das décadas de 1950 e 1960, onde as mulheres tinham sua posição social definida,

uma posição social vendida massivamente pelas propagandas capitalistas estadunidenses,

sendo a mulher aquela que limpa a casa, cuida do marido e dos filhos, abordando questões

significativas com o abandono dos estudos por meninas e mulheres, para poderem casar e

serem donas de seus lares. As indústrias vendiam a vida perfeita, com os eletros domésticos

perfeitos para melhorar a vida da dona de casa, o verdadeiro sonho americano. Essa propa-

ganda de uma vida como dona de casa, chega ao Brasil, pois esse também seria o “papel” da

mulher na sociedade brasileira. Não apenas com a expansão do capitalismo americano, mas

com os paradigmas já pré-estabelecidos pelo cristianismo, e por outras religiões dogmáticas e

monoteístas que já apresentavam de forma clara a posição da mulher na família é a submis-

são, assim como a sociedade patriarcal também já tinha estabelecido tal posição.

A grande virada de chave para as mulheres na história foi à maciça entrada de mu-

lheres no mercado de trabalho, a contracepção oral (escolha da maternidade), e a entrada

na vida acadêmica segundo RAGO3 em seu artigo “As mulheres na historiografia brasileira”,

pois forçou a quebra de silêncio das historiadoras. Assim, com a quebra de paradigmas da

história, o olhar feminista tornou-se uma saída para muitas mulheres que buscavam construir

um novo discurso histórico sobre o papel da mulher na história social e na história cultural.

Capa Esse que buscamos incansavelmente e as muitas mulheres que estavam durante um período

de forte repressão no Brasil.

Ficha O Movimento feminista brasileiro é bastante peculiar, já que podemos dividi-lo em eta-

pas, segundo Céli Pinto, inicialmente o feminismo era “bem comportado”, que tinha o foco sufrá-

Sumário gio liderado por Bertha Lutz, que mantinha um caráter conservador e não questionava a opressão

feminina. Já a segunda tendência é o feminismo “mal comportado” que era mais heterogêneo

com mulheres intelectuais, anarquistas, líderes operárias, que falavam da opressão da mulher, da

dominação masculina e outros temas dados como tabu, como sexualidade e divórcio.

2 MORAIS, Letícia Viana de. Assim sobrevivemos: narrativas de militantes presas políticas no
Presídio Tiradentes (1969 – 1976). 2022. 112f. Dissertação (Mestrado em História Social) Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022.
3 Microsoft Word - As mulheres na historiografia brasileira.doc (mpbnet.com.br)
143

1.1 – O ano internac ional da m u l her

Em 1975 foi realizada a 1ª Conferência da Mulher na cidade do México, sob o lema

“Igualdade, Desenvolvimento e Paz” e com o tema central “A eliminação da discriminação

da mulher e o seu avanço social.” Durante a conferência participarão 133 delegações, des-

tas 113 eram lideradas por mulheres. Dentre as discussões, algumas pautas sobressaíram

como a igualdade de gênero e a eliminação da discriminação de gênero, além da partici-

pação e contribuição plena das mulheres para a paz mundial. Ficou estabelecido que o ano

seguinte fosse iniciado à década das mulheres, entre 1976 e 1985, para que os governos

e a comunidade internacional enfrentassem as desigualdades entre os sexos, em diversos

campos sociais, como a educação, política, ao trabalho, direitos civis e nas atividades do-

mésticas.

As mulheres começavam a escrever sobre as pautas feministas, a segunda onda do

feminismo possibilitou que em muitos países o debate sobre o feminismo fosse iniciado,

possibilitando e influenciando a ONU para decretar que em 1975 fosse o Ano da Mulher.

Com as diversas ditaduras militares implantadas na América Latina, como a que entrou em

vigor no Brasil em 1964, o conservadorismo, a censura e a violência implantada por gover-

nos ditatoriais impossibilitou que muitas mulheres pudessem se reunir e se organizar para

debates feministas. Portanto, o debate na Organização das Nações Unidas foi fundamental,

para que as mulheres pudessem iniciar um debate, ainda que fosse em âmbito doméstico,

ou mesmo em reuniões organizadas por grupos de mulheres, longe dos olhos da censura

militar.
Capa
A I conferência Mundial para as Mulheres de fato foi um grande passo para a dis-

cussão sobre as desigualdades de gênero, uma realidade internacional. Durante um longo


Ficha
período da história as mulheres tem sido submissas, sempre fazendo um papel secundário na

sociedade. Para muitos conservadores é necessário manter o status quo e permanecer uma
Sumário
sociedade desigual. Manter as mulheres submissas, cuidando apenas da casa, do marido e

dos filhos, esse é o lugar da mulher para muitos. Os ideais feministas e a luta por essa igual-

dade é de fato um desafio, ainda atualmente. Mas o Ano Internacional das Mulheres forta-

leceu as discussões e as organizações, possibilitando e influenciando o interesse de muitas

mulheres para a pauta feminista. 4

4 Conferências Mundiais da Mulher – ONU Mulheres Acessado em: 31/08/2023


144

2. CMB – CENTRO DA MULHER BRASILEIRA

Em 8 de setembro de 1975, no Rio de Janeiro era fundado o Centro da Mulher Brasi-

leira – CMB, esse movimento que traria efetivamente as pautas feminista para o Brasil, ainda

que houvesse movimentos femininos, poucos abordavam as pautas feministas difundidas

em outros países. O CMB foi à primeira organização feminista no país. Portanto, tinham di-

versos paradigmas a quebrar, para além do militarismo e autoritarismo no Brasil, o sistema

patriarcal é bastante latente desde a formação colonial, sendo a mulher o outro, assim como

abordado pela autora Simone de Beauvoir em seu livro “O Segundo Sexo”.

[...] o triunfo do patriarcado não foi nem um acaso nem o


resultado de uma revolução violenta. Desde a origem da humanida-
de, o privilégio biológico permitiu aos homens afirmarem-se sozinhos
como sujeitos soberanos. Eles nunca abdicaram o privilégio; aliena-
ram parcialmente sua existência na Natureza e na Mulher, mas recon-
quistaram-na a seguir. Condenada a desempenhar o papel do Outro, a
mulher estava também condenada a possuir apenas uma força precá-
ria: escrava ou ídolo, nunca é ela que escolhe seu destino (BEAUVOIR,
1949).

Após a ONU estabelecer em 1975 o ano da Mulher e como a pauta feminista já estava

fervilhando a segunda onda. Muitas autoras estavam publicando livros sobre a questão da

mulher, as mulheres estavam nas universidades e estavam nos meios de produção, desta for-

ma elas iniciaram estudos e questionamentos sobre qual a condição da mulher na vida social,
Capa
e quais são os papeis da mulher nessa nova sociedade que se formava.

O feminismo no Brasil começa a se fortalecer com um evento para comemorar o


Ficha
Ano Internacional, realizado no Rio de Janeiro sob o título “O papel e o comportamento da

mulher na realidade brasileira”, e com a criação do Centro de Desenvolvimento da Mulher


Sumário
Brasileira.5 Em depoimento Maria Luiza Heilborn apresenta que foi formada uma comissão

com dez pessoas, muitas pessoas não participaram por medo da repressão, ainda com um

documento assinado pela ONU, e que também em alguns debates foram incluídos homens,

já que havia uma necessidade de um público misto, pois era impensável não ser misto esse

debate naquele período, segundo Maria Luiza “Inventamos o nome pomposo de ‘Pesquisa so-

5 Estudos Feministas, Florianópolis, 12(2): 237-253, maio-agosto/2007 -


145

bre o Papel e o Comportamento da Mulher Brasileira’ para não usar o termo ‘feminista’, que

assustava as pessoas”. (GOLDBERG, 1987, p. 102)

Inicialmente o CMB era um grupo de mulheres que se sentiam mais fortalecidas

para um debate, e criaram “Grupos de reflexão”, desta forma acreditavam que teriam mais

liberdade para a conversa longe de uma organização. Mas, logo os debates e as reflexões

se institucionalizaram desta forma tornaram-se Centro da Mulher Brasileira. Pautadas pela

segunda onda do feminismo, colocaram o corpo feminino no centro do debate (MARQUES;

ZATTONI, 2014, p. 62).

“Nós que éramos mais ativistas não gostávamos muito desse


termo, porque a gente achava que o grupo de reflexão era para você
ficar só uma refletindo com a outra, e nós já queríamos ir para a briga,
queríamos ir para esses movimentos de faveladas, queríamos ir para o
sindicato...”. Moema Toscano6

Como em 1975 no Brasil, a ditadura militar ainda estava bastante fortalecida assim

como a censura e a repressão, os grupos e organizações viam como pauta de urgência a luta

pelo fim da ditadura, portanto, o foco era a discussão contra a ditadura, organização social

capitalista, a defesa da luta de classes e politizar mulheres e “conscientizar as camadas popu-

lares” (PEDRO, 2012, p. 247). Introduzir as mulheres de classes populares era essencial para

o debate, pois a temática central era a mulher no mundo do trabalho, para que o enfoque

fosse creches, igualdade salarial e a proteção a maternidade.

Muitas mulheres integrantes do CMB também participavam de outros movimentos


Capa
de esquerda, partidos ou outras organizações, muitas alinhadas com a perspectiva marxista-

-leninista (SOIHET, 2007, p. 243), por este motivo a luta de classes e a politização de mulhe-
Ficha
res trabalhadoras é bastante difundida e a ameaça de repressão era constante. Estar inserida

na vida politica partidária era fundamental para muitas mulheres, pois, nesses ambientes a
Sumário
figura masculina é muito presente, e a mudança era necessária dentro de partidos e outras

organizações, pois estes descriminavam a presença feminina, ainda que revolucionários. Nes-

ses partidos a liderança pertencia aos homens. O feminismo não fazia parte das pautas dos

grupos e partidos de esquerda brasileiros, o tema era considerado muito burguês, além de

6 ANPUH – XXIII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Londrina, 2005.


146

ser considerado um tema “importado” de outros países, principalmente dos países europeus.7

Assuntos como luta pela liberdade e fim das ditaduras, educação, saúde e trabalho da

mulher foram os iniciais para as reflexões, no inicio a temática feminista foi pouco abordada.

Portanto, havia duas tendências de pautas dentro da CMB, já que muitas mulheres queriam

abordar de forma mais ampla questões feministas como sexualidade, liberdade, aborto, pra-

zer, contracepção, entre outros temas muito relevantes, que estavam sendo debatidos ao

redor do mundo pelas mulheres. Mas a militância feminista da época sofria uma observação

atenta dos grupos de esquerda, já que a luta pela ditadura militar brasileira tinha como prio-

ridade a luta de classes e/ou a luta pela democracia (PINTO, 2003, p.58), desta maneira,

podemos dizer que o grupo tinha uma opressão por dois polos, pelo regime ditatorial de um

lado e pelos grupos de esquerda de outro, pois havia uma oposição da esquerda quanto ao

feminismo, o grupo desta forma não era unitário, já que a contradição esta dentro do próprio

centro.

Dentro da organização os debates sobre diferentes perspectivas femininas geravam

cismas de quais pautas de fato eram relevantes para a sociedade brasileira, diferenças que

foram percebidas principalmente por mulheres que haviam participado de movimentos femi-

nistas na Europa, que abordavam temas como violência doméstica, que ainda era um tema

ainda longe das pautas aqui no Brasil, dentro da CMB havia contradições externas e internas

sobre os diversos feminismos.

O Centro possuía diferentes tendências feministas, desde liberais, radicais, marxista-

-leninista. Algumas com natureza mais política que abordavam as condições coletivas, com

Capa exceção das radicais. As marxistas tinham como pensamento central a luta de classes, as

liberais debatiam as conquistas de direitos individuais, e as radicais colocavam sua condição

Ficha de mulher no centro do debate. Portanto esse cisma de pautas, como já mencionado acima,

dificultava o grupo a entrar em um consenso. Para Pinto (2003), outros fatores também con-

Sumário tribuíram para que a segunda onda feminista tivesse grande dificuldade de entendimento no

Brasil, uma democracia possibilitaria um melhor acolhimento do feminismo.

A participação politica partidária era de fato necessária mesmo longe do CMB, era

uma maneira de inserção na vida política e pública de muitas mulheres, relembrando que

na sociedade patriarcal, as mulheres devem estar restritas ao privado, portanto, essa vida

7 MARQUES, Ana Maria ; ZATTONI, Andreia Marcia. Feminismo e Resistência: 1975 – O Centro
da Mulher Brasileira e a revista Veja. Hist. R., Goiânia, v. 19, n. 2, 2014
147

politica era necessária para o debate político, e mais ainda para debater pautas feministas. A

aproximação de classes populares também foi intensificada pelo CMB, mulheres trabalhado-

ras deveriam trazer suas pautas, participar e também deviam ser introduzidas ao feminismo,

já que este precisa debater a camada mais numerosa, mais popular e a mais atingida pelo

sistema patriarcal e capitalista, assim como apresentado por Moema Toscano: “Vamos levar

as nossas verdades para as outras mulheres” (SOIHET; ESTEVES, 2007, p. 367).

Ainda que a maior parte dos debates não fosse especificamente feminista, pois em

sua maioria e como já analisado, traziam em sua agenda a luta pela democracia, fim da dita-

dura, liberdades democráticas e temas como saúde, educação e trabalho da mulher. Nenhum

especificamente feminista. (MARQUES; ZATTONI, 2014, p. 64).

Muitos debates feministas relevantes como sexualidade e relações de gênero, eram

abordados por uma pequena parte do grupo, que entendiam que essas eram pautas que já

estavam sendo debatidas em todo mundo, com a ajuda de grandes escritoras como Simone

de Beauvoir na França e Betty Friedan nos Estados Unidos, que abordavam assuntos rele-

vantes às mulheres como igualitarismo de gênero, que consequentemente no futuro concede

lugar a uma perspectiva de gênero. Essas diferenças entre as discussões sobre feminismo e a

mulher são bastante claras quando apresentamos uma perspectiva estrangeira e brasileira, e

pontualmente são diferenças apresentadas ao analisarmos a posição e consolidação do CMB.

Segundo Moema Toscano que fez parte do CMB ao longo de seus 25 anos de existên-

cia (1975 a 2000), ela enxergava a questão da mulher como um problema social que seria

resolvido paralelamente à resolução dos problemas gerais, pensando o trabalho das mulheres

Capa a partir da realidade socioeconômica da época e comprometendo-se com as mulheres que

mais sofriam com essa realidade: as trabalhadoras urbanas e rurais.8 Uma visão feminista so-

Ficha bre as mulheres e a questão das mulheres, não apenas no Brasil. Moema apresenta ao artigo

ANPUH, que teve um grande encorajamento de seus pais em trilhar novos caminhos, por-

Sumário tanto o casamento e a maternidade não seriam uma predestinação da mulher. Pensamento

e caminho completamente diferentes de muitas mulheres do período. Moema era uma das

integrantes que acreditavam que os debates feministas dentro do CMB eram fundamentais.

Em 1985 chega ao fim a Ditadura Militar, que deixou várias marcas econômicas,

culturais e sociais. Um período que despertou em alguns a vontade de lutar, impossibilitou

avanços em discussões extremamente necessárias para a construção de uma sociedade brasi-


8 ANPUH – XXIII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Londrina, 2005.
148

leira menos machista, menos patriarcal e menos desigual. Durante os 21 anos dos militares

no poder, as pautas femininas foram abafadas, mas as mulheres ainda estavam de pé para a

luta. Simone de Beauvoir diz “Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou

religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados” (BEAUVOIR, 1949)

O CMB sobreviveu aos longos anos da ditadura militar, ainda com suas diferenças

ideológicas acerca do feminismo, sobreviveu até os anos 2000, e essas mulheres estavam

reunidas no grupo que iniciou para necessárias reflexões, e que foi essencial para entender e

discutir a mulher na sociedade brasileira. Sem sombra de dúvidas a criação do CMB foi à por-

ta de entrada para o feminismo no Brasil, e a maneira como muitas mulheres começaram a

questionar a predestinação feminina, esse destino já traçado para as mulheres, que era estar

submetida à figura masculina, sem questionar.

As mulheres em diversos períodos históricos tiveram direitos questionados, e muitas

vezes nem ao menos tinham direitos, como durante os períodos da Idade Antiga, na Grécia e

em Roma, que nem cidadania essas mulheres tinham. As mulheres buscavam ser compreen-

didas como seres humanos9, cidadãs ativas, integrantes de uma sociedade ou mesmo de uma

luta social. Num período nebuloso, como a ditadura militar brasileira, essas guerreiras que-

riam ser ouvidas, ao menos por seus companheiros de luta.

Ainda que a luta pela democracia e a luta contra o machismo fosse tão latentes e

permanentes ao longo do percurso histórico, quando falamos e pensamos sobre o direito das

mulheres só o ato de unir-se é extremamente importante. Quando somos mulheres que bus-

camos direitos, até mesmo as nossas diferenças nos unem pelo desejo da igualdade.

Capa

C onsideraç ões F inais


Ficha
No território da pesquisa ainda há muito espaço para entender e analisar o feminis-

Sumário mo. Há ainda muito a ser feito no campo da história cultural sobre as mulheres e movimentos

sociais que buscavam e buscam igualdade. Portanto é de grande relevância buscar dentro

deste campo, as diversas autoras, análises e pontos de vista sobre um tema ainda tão atual.

O CMB surgiu como o grande início do movimento feminista no Brasil, nascendo de

um período bastante turbulento em nossa história, durante um tempo que debater e discutir

9 1947 com a Comissão Sobre a Condição da Mulher (ONU) e em 1948 com a Declaração de
Direitos Humanos.
149

quaisquer pautas dadas como subversivas era impensável. Mas, foi exatamente neste momen-

to em que muitas mulheres decidiram entender quais eram as correntes que lhes prendiam,

como sair da posição de outro, de objeto e de submissão. O debate no mundo inteiro possibi-

litou que grandes mulheres escrevessem e pensassem o feminismo. Esse movimento de fato

abriu as portas do feminismo brasileiro e iniciou uma busca por direitos e por equidade já

era necessária há muitos anos. Muitas mulheres não se contentavam mais em receber ordens,

serem apenas mães e esposas, ou apenas uma empregada com dupla jornada de trabalho,

era necessário estourar a bolha social e debater com todas as outras mulheres as necessi-

dades, que eram de fato inúmeras, pois não tem como estar satisfeita sendo aquilo que os

outros querem que você seja. Mais significativo ainda é enfrentar uma ditadura militar, em

um contexto histórico que já retrocedia direitos civis e torturava pessoas. O CMB tinha inú-

meras rupturas internas, e muitas diferenças ideológicas o que acabou atrasando discussões

necessárias. E para além das divergências a grande influência externa de outros grupos pela

democracia, pois naquele momento essa era a luta principal. Ademais era necessária para

além do cisma de pauta estabelecida, a luta pela democracia no país, para que de fato todos

os debates relevantes à sociedade pudessem ser debatidos livremente.

A pesquisa acerca do feminismo no Brasil tem de fato grande relevância histórica,

ainda hoje estamos em constante busca por direitos. Muitos dos debates iniciados a partir dos

anos 50 e 60, ainda estão em pauta, muitas discussões são questionadas e quando falamos do

feminismo no Brasil ainda há certo tabu. Vivemos ainda com a sombra da ditadura militar, e

com o medo de declarar-se feminista. Das pautas que eram relevantes no inicio do CMB, ain-

Capa da muitas estão em debate. A sociedade brasileira orgulha-se do patriarcado, e movimentos

machistas crescem de maneira espantosa nas redes sociais e canais de comunicação.

Ficha Muitas conquistas foram realizadas ao longo dos anos, mas ainda há muito pelo que

lutar e conquistar. A violência contra a mulher é crescente, e durante a pandemia do CO-

Sumário VID-19 tivemos números alarmantes, o feminicídio é uma realidade, a participação politica

dentro dos partidos é um espaço que esta sendo conquistado aos poucos, portanto, ainda é

um lugar masculino na sociedade.

Mas afinal, o que o CMB apresentou para a história das mulheres brasileiras, quais

os avanços feministas? Esses foram vários é inegável que os debates iniciados em 1975 foram

essenciais para muitas conquistas, hoje temos muitas pautas essenciais sendo debatidas em
150

diversos grupos, dentro da política, nas escolas, em nossas casas. Não delimitamos esses de-

bates, hoje temos uma diversidade de feminismos que devem ser escutados, “Mais de quatro

décadas depois, ocupamos o mesmo espaço, agora como mulheres, negras, trans, faveladas,

professoras, nordestinas, mães, enfim, mulheres em toda a sua diversidade.”10

Apresentar nosso lugar na história, lutar por nossos direitos, pela nossa posição como

agentes ativos. As demandas dos movimentos e lutas feministas desde seu inicio é tirar as

mulheres de seus status de submissão e de objeto. O feminismo é uma afronta a algumas

camadas sociais, ao patriarcado, ao sistema capitalista vigente, aos governos ditatoriais ou

mesmo “Teocráticos”11 pois em governos de repressão o questionamento não é permitido.

Desta forma a luta feminista é constante, principalmente em tempos de violência.

O estudo e pesquisa acerca de movimentos feministas é muito necessário, a história

pode nos contar com muita base bibliográfica e oral sobre as conquistas que ainda são tão

necessárias alcançarmos. E podemos concluir que para as feministas brasileiras o CMB foi

essencial, a criação de um movimento feminista que de fato trouxesse os assuntos mais temi-

dos e mais necessários paras as mulheres brasileiras, foi graças à criação da CMB que tantos

avanços foram conquistados e hoje falamos sobre.

R efer ê ncias
BEAUVOIR, S. O segundo sexo. São Paulo – SP. Editora Nova Fronteira, 2020.

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10 Feminismo: O novo sempre vem - Le Monde Diplomatique – Marielle Franco


11 Teocráticos com as aspas, pois no Brasil, por exemplo, o Estado é laico, mas a influência reli-
giosa é significativa na política, o pensamento religioso está muito presente nas decisões de Estado. Ex.:
Bancada evangélica e grupos conservadores.
151

Brasileira e a revista Veja. Hist. R., Goiânia, v. 19, n. 2, 2014

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Sumário polis - SC. Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, 2007.
152

Territórios da Afetividade Escolar

Leo Mateus Soares Busollo

Em um universo de tijolos e cimento, de cadernos rabiscados e risadas nos corredo-

res, reside uma essência que não se pode tocar, mas que se sente em cada canto da escola: a

afetividade. Como os rios silenciosos que fluem entre a Amazônia, a afetividade serpenteia

entre as raízes da aprendizagem, dando vida a cada folha do saber, a cada flor da curiosidade.

Este capítulo não é meramente um compilado de ideias, mas uma alegoria àquilo que, embo-

ra intangível, tece fios da experiência educacional: o vivenciar, o experimentar, o emocionar,

o conectar.

Ao bordar fios da Educação, Psicologia, História da Cultura e Filosofia, procuramos

não apenas entender, mas sentir a trajetória da afetividade. Assim como uma melodia que

ressoa em diferentes e inúmeros instrumentos, cada área do conhecimento traz sua própria

escala, sua própria cor e tonalidade, ao vasto mosaico da sociedade brasileira. Ao adentrar
Capa
os territórios da afetividade escolar, você não apenas verá conceitos, mas será convidado a

dançar na cadência das emoções que permeiam nosso ser e nossa busca pelo conhecimento,
Ficha
enxergando em si e em sua história, os fios da afetividade que lhe trouxeram até aqui.

No fervente espaço de uma sala de aula, onde o giz deixa vestígios de pensamentos e
Sumário
simbolismo nas lousas e o riso infantil ecoa como uma melodia eterna, há algo mais profun-

do, um pulsar invisível, um choro em pedido de socorro que clama por ser ouvido, que une

corações e mentes em uma dança silenciosa: a afetividade. Ela não é apenas um conjunto de

emoções, mas a seiva que alimenta da raiz às folhas da aprendizagem, que nutre cada ramo

do saber.

Visualize uma vasta tapeçaria, ricamente bordada com fios de algodão, em cores
153

vibrantes. Cada fio representa um sentimento, uma emoção, uma conexão. Estes fios, en-

trelaçados, formam imagens e padrões que contam histórias, refletem culturas e capturam

essências. Assim é a escola: uma tapeçaria viva de afetividade, onde cada criança, professor

e momento são fios entrelaçados em uma obra-prima, ou melhor, obra-viva em constante

evolução. Mas como toda tessitura, também contém tensões, rebentos, remendos e fiapos em

forma de emoções delicadas, e por vezes fortes, que se não dadas a devida atenção ameaçam

a permanencia de toda a tessitura, um risco de “desmanchamento”.

Ao navegarmos por este capítulo, permita-se transportar para territórios vastos e

diversificados. Dos salões empoeirados onde Paulo Freire sonhava com uma Pedagogia dos

Sonhos Possíveis, aos escritórios silenciosos onde Piaget e Vygotsky debatiam o ballet da

mente e emoção. Viajaremos explorando como a afetividade foi percebida pelos olhos da his-

tória e refletida nas lentes da filosofia. Cada parágrafo, uma jornada; cada página, um novo

território.

No entanto, esta não é uma mera viagem acadêmica. É uma peregrinação do sentir.

Porque, ao falar de afetividade, tocamos na essência do que significa ser humano. Somos

seres que sentem, amam, sofrem, sonham e se conectam. E é essa conexão que desejamos

explorar, entender e, acima de tudo, celebrar.

Ao desbravarmos os Territórios da Afetividade Escolar, seremos convidados a não

apenas pensar, mas sentir. A mergulhar nas águas profundas das emoções e emergir com

uma compreensão mais rica de como elas tencionam, influenciam e enriquecem a experiência

educacional.

Capa

1.1. T erritó rios da P edagogia


Ficha
Em um mundo onde o aprendizado é frequentemente percebido através do prisma

Sumário do conteúdo e da avaliação, um pensador audacioso, Paulo Freire, surgiu do coração pul-

sante do Brasil para redefinir a essência do ensino. Freire não apenas desafiou os métodos

pedagógicos convencionais, mas também lançou luz sobre o componente vital muitas vezes

negligenciado no processo educacional: a afetividade.

Para começar a entender a visão de Freire sobre a afetividade, precisamos primeiro

nos despir das noções tradicionais de ensino. Imagine uma escola não como um lugar onde
154

os alunos são simplesmente depositários passivos de informações, mas como um espaço de

diálogo, colaboração e, acima de tudo, humanidade. Paulo Freire concebeu o aprendizado

como um ato profundamente humano, uma troca que ocorre não apenas no nível intelectual,

mas também no emocional.

Em sua obra seminal, “Pedagogia do Oprimido”, Freire argumenta que a educação

não deve ser um processo de “bancarização”, onde os educadores simplesmente depositam

informações nos estudantes. Ao invés disso, ele vê a educação como um diálogo, um processo

colaborativo em que alunos e professores aprendem juntos. Esta perspectiva rompe com a

hierarquia tradicional da sala de aula e coloca a afetividade no centro do aprendizado. Não

é apenas sobre o que é ensinado, mas sobre como é ensinado e, mais profundamente, sobre

como os envolvidos se sentem durante esse processo (FREIRE, 2019).

A afetividade, sob a lente de Freire, não é um mero acessório, mas uma força vital

que impulsiona a aprendizagem. Ele acredita que a educação só pode ser transformado-

ra quando reconhece e valoriza a humanidade de cada indivíduo. Isso implica não apenas

entender os contextos culturais e sociais dos alunos, mas também suas emoções, desejos e

medos. Afinal, como ele frequentemente afirmava, a educação é, em sua essência, um ato de

amor(FREIRE, 2019).

Freire via a afetividade como uma ponte entre o educador e o educando. Essa pon-

te permite que ambos cruzem os abismos de mal-entendidos, preconceitos e hierarquias

para se encontrarem em um terreno comum de empatia e compreensão mútua. Através do

diálogo autêntico, a afetividade torna-se o catalisador para uma aprendizagem profunda e

Capa significativa.

O diálogo é o encontro amoroso dos homens, mediatizados pelo mundo, para pro-

Ficha nunciá-lo, e não se esgotaria, portanto, na relação eu-tu.” (FREIRE, 1991, p 91).

Ao refletirmos sobre a pedagogia de Paulo Freire, somos lembrados da importância

Sumário de considerar o coração tanto quanto a mente. Em um mundo que muitas vezes prioriza

resultados e eficiência, a mensagem de Freire é um lembrete oportuno de que a verdadeira

educação ocorre quando tocamos a alma da criança, quando reconhecemos e honramos sua

humanidade integral. Assim, enquanto avançamos em nossa jornada de exploração sobre os

territórios da afetividade escolar, que possamos carregar conosco a lição valiosa de Freire: a

de que a afetividade é, e sempre será, o coração pulsante da educação.


155

1.2. T erritó rios da M ente : V y go ts ky e P iaget

Ao nos aventurarmos pelos territórios da mente, encontramos dois gigantes da psi-

cologia que exploraram os labirintos complexos da interação entre emoção e cognição: Lev

Vygotsky e Jean Piaget. Ambos se dedicaram ao estudo do desenvolvimento infantil, mas

cada um, à sua maneira, lançou uma luz única sobre como as emoções interagem com a

aprendizagem.

Vygotsky: O potencial de desenvolvimento na Zona Proximal e a mediação afetiva

Vygotsky acreditava que o desenvolvimento cognitivo do indivíduo é profundamente

enraizado em seu contexto social e cultural. Ele introduziu o conceito de “zona de desenvol-

vimento proximal” (ZDP), referindo-se ao espaço entre o que uma criança pode fazer sozinha

e o que ela pode fazer com a ajuda de um adulto ou de um colega mais capaz. Este espaço,

permeado de interações, é onde a verdadeira aprendizagem ocorre (VYGOTSKY, 1991).

No entanto, o que é muitas vezes negligenciado é a profundidade com que Vygot-

sky entendia a afetividade como um componente essencial deste processo. A emoção, para

ele, não era separada da cognição, mas sim uma parte integrante dela. Em suas palavras, “a

aprendizagem é mais do que a aquisição de habilidades; é a aquisição de uma nova forma

de pensar”. E essa forma de pensar é moldada, em grande parte, por nossas emoções e pela

maneira como as expressamos e interpretamos no contexto social (VYGOTSKY, 1993).

Piaget: A equilibração e a interação entre afetividade e estruturas cognitivas

Capa
Enquanto Vygotsky enfatizava o social, Jean Piaget mergulhou nas profundezas do

indivíduo. Seu interesse estava nas estruturas cognitivas, como elas se formam e como se
Ficha
adaptam ao longo do tempo. Ele introduziu o conceito de equilibração, descrevendo como as

crianças buscam um equilíbrio entre assimilação (integrar novas informações às estruturas


Sumário
existentes) e acomodação (ajustar as estruturas existentes para acomodar novas informa-

ções) (PIAGET, 1978).

Mas, novamente, a afetividade não estava ausente. Piaget argumentava que as emo-

ções desempenham um papel crucial na motivação para a aprendizagem. A curiosidade, o

desafio, a frustração e a satisfação são todas emoções que impulsionam a criança a explorar,

adaptar e crescer. Para Piaget, emoção e razão são inseparáveis no processo de construção do
156

conhecimento (PIAGET, 1990).

Ao explorarmos estes Territórios da Mente, é evidente que a afetividade não é apenas

um complemento à cognição, mas um pilar central na estrutura da aprendizagem. Vygotsky e

Piaget, embora diferentes em suas abordagens, nos ensinam uma lição valiosa: que o “cora-

ção” e a mente estão intrinsecamente ligados, e que o território da aprendizagem é, em sua

essência, uma paisagem rica e entrelaçada de emoção e pensamento.

1.3. Territórios da Memória: A evolução da compreensão da afetividade

Adentrar os territórios da memória é embarcar em uma viagem temporal, onde as

paisagens da compreensão humana sobre a afetividade se desdobram em misturas variadas,

refletindo as mudanças culturais, sociais e científicas de cada era.

Antiguidade: Sentimentos nas Fundações das Civilizações

Na antiguidade, a emoção era frequentemente interpretada através de lentes místi-

cas e religiosas. As grandes civilizações da Mesopotâmia, Grécia, Egito e China, por exem-

plo, atribuíam emoções a deuses ou forças cósmicas. Platão, na Grécia antiga, conceituava a

emoção e a razão como duas entidades separadas, muitas vezes em conflito. Ele via a paixão

como potencialmente perigosa, se não estivesse sob o controle da razão (PLATÃO, 2017).

Idade Média: Da Submissão Divina à Reflexão Interna

No período medieval, com a ascensão do cristianismo na Europa, as emoções eram

vistas predominantemente através de uma lente moral. Pecado, virtude, tentação e redenção
Capa
eram termos centrais na discussão sobre afetividade. A introspecção tornou-se uma prática

essencial, buscando equilibrar as paixões terrenas com as aspirações espirituais (AGOSTI-


Ficha
NHO, 2013).

Renascimento e Iluminismo: O Ser Humano no Centro


Sumário
O Renascimento trouxe uma revitalização nas artes e ciências, colocando o ser hu-

mano como protagonista. As emoções começaram a ser vistas como expressões genuínas da

natureza humana. No Iluminismo, figuras como Jean-Jacques Rousseau argumentavam que

a emoção era central para a experiência humana, muitas vezes valorizando-a acima da razão

pura (ROUSSEAU, 2022).


157

Era Moderna e Contemporânea: A Cientifização da Afetividade

Os séculos XIX e XX testemunharam uma mudança dramática na compreensão da

afetividade. Com o advento da psicologia como ciência, as emoções começaram a ser es-

tudadas de maneira sistemática. Freud explorou os recantos obscuros da mente humana,

revelando o papel das emoções reprimidas provando sistematicamente a presença de forças

psíquicas que alteram a saúde biológica humana e que apresentam em sonhos como retratos

de angústias emocionais (FREUD, 2019).

Ao longo do século XX, as emoções também começaram a ser entendidas em termos

biológicos, com pesquisas examinando a neuroquímica das emoções e o papel do sistema lím-

bico no cérebro. Mostrando como a neurofisiologia de todo o corpo humano está diretamente

ligada a manifestações das emoções, da afetividade e da sociabilidade (LEDOUX, 1998).

1.4. T erritórios da E xistência : A emoção na filosofia existencialista


de J ean -P aul S artre

Caminhar pelos territórios da existência é enfrentar questões profundas sobre o ser, a

liberdade e a autenticidade. O século XX viu surgir uma nova corrente filosófica que colocou

o indivíduo e sua existência subjetiva no centro: o existencialismo. E nesse movimento, Jean-

-Paul Sartre destacou-se, explorando meticulosamente o papel das emoções na construção do

ser humano.

A Emoção como Modo de Existir

Capa Para Sartre, a emoção não é um mero acidente ou um subproduto de nossa biologia;

é, em vez disso, um modo fundamental de existir. Em sua obra “Esboço de uma teoria das

Ficha emoções”, Sartre argumenta que as emoções surgem como respostas a situações nas quais os

indivíduos se encontram desamparados ou impotentes. As emoções, portanto, são maneiras

Sumário de lidar com o mundo, transformando-o magicamente para se adaptar às nossas necessidades

ou desejos (SARTRE, 2006).

A Liberdade e a Angústia

Central para a filosofia de Sartre está a ideia da liberdade absoluta do indivíduo.

Esta liberdade, no entanto, é acompanhada por uma profunda angústia. Reconhecer nossa

liberdade significa reconhecer nossa responsabilidade pelo que somos e pelo que escolhemos
158

ser. As emoções, nesse contexto, muitas vezes surgem como uma tentativa de fugir dessa

liberdade esmagadora, uma maneira de nos perdermos em um mundo que parece menos

ameaçador (SARTRE, 2015).

A Autenticidade e o Outro

Outro conceito fundamental no pensamento sartreano é a relação com o Outro. Sar-

tre afirmava que nos tornamos plenamente conscientes de nós mesmos apenas quando somos

vistos pelo outro. “O inferno são os outros”, escreveu ele, destacando como a visão do outro

pode aprisionar e definir nosso ser. No entanto, as emoções também desempenham um papel

vital na formação de nossa relação com o outro. Através das emoções, nos conectamos, con-

frontamos e reconhecemos o outro, em um ciclo constante de afirmação e negação (SARTRE,

2022).

Ao explorarmos estes Territórios da Existência, somos levados a refletir sobre a pro-

funda interligação entre nossa existência e nossa afetividade. Sartre, com sua abordagem

penetrante, nos mostra que as emoções não são apenas reações passageiras, mas elementos

constitutivos de nosso ser no mundo. Em nossa busca por significado, autenticidade e cone-

xão, as emoções emergem como bússolas, apontando caminhos da existência humana.

2. T erritó rios da E spa c ialidade : C o m o O s E spaços E s c ol ares


M o ldam a A fe t i vidade

A passagem do tempo não se dá somente nos relógios ou nas sombras que se movem
Capa
com a posição do sol; ela se desenha e redescobre nos espaços que habitamos. Na paisagem

da escola, cada tijolo, cada corredor, cada sala, torna-se uma crônica viva da afetividade em
Ficha
formação, da aprendizagem que flui como rios de conhecimento, das interações que se entre-

laçam formando redes intrincadas de experiências e memórias.


Sumário
Dentro desse território da espacialidade, uma atmosfera única se manifesta, influen-

ciada tanto pela materialidade das paredes quanto pelos sentimentos e emoções que elas aco-

lhem. Os pensadores, em sua busca eterna por compreensão, contemplaram essas dinâmicas

espaciais, procurando entender como a estrutura física e a vivência emocional se cruzam e

dialogam.

Henri Lefebvre, com sua análise aguçada do espaço, nos desafia a entender que o
159

espaço não é apenas um mero contêiner. Ele vive, respira, e tem ritmos. E esses ritmos não

são só de cimento e tijolo; eles são compostos de risos, lágrimas, silêncios e vozes. São mol-

dados pelas interações, pelas pedagogias, pelas memórias e, principalmente, pela afetividade

(LEFEBVRE, 2020).

Se pensarmos na escola como um organismo, podemos perceber que cada espaço

tem uma função, uma contribuição à vida do todo. As salas de aula são o coração pulsante

onde o conhecimento é compartilhado e onde as emoções são mais frequentemente sentidas.

Os corredores são as artérias, levando os alunos de uma experiência a outra, enquanto o pá-

tio é o pulmão, um espaço para respirar e se reconectar (DUDEK, 2007).

Mas o espaço não é apenas uma construção física; ele é construído e reconfigurado

pelas emoções e experiências que abriga. Uma sala de aula pode ser apenas quatro paredes,

ou pode ser um santuário de descobertas, um lugar onde mentes curiosas se encontram para

explorar, questionar e crescer (LIPPMAN, 2015).

É fundamental, portanto, não apenas compreender o espaço em sua materialidade,

mas também em sua capacidade de influenciar e ser influenciado pela afetividade. Em cada

esquina da escola, em cada olhar lançado pela janela, em cada riso que ecoa nos corredores,

há uma interação silenciosa e profunda entre o espaço e a afetividade.

E, à medida que continuamos nossa exploração dos territórios da afetividade escolar,

é essencial que mantenhamos em mente a profundidade e a complexidade dessa relação,

pois é aqui que o cenário para todas as outras interações é definido, é aqui que o palco para

a jornada de aprendizado é construído.

Capa

Ficha 2.1. T erritó rios da F or m a : O pape l da arquite tura esco l ar e

design de sal a de aul a

Sumário
Nas profundezas da espacialidade escolar, nos deparamos com um aspecto que fre-

quentemente é tratado de forma secundária, mas que em sua essência carrega o poder de

moldar as experiências: a forma. A forma não se resume apenas a paredes e telhados; ela é a

sintaxe visual que tece a linguagem do espaço. Ela é a poesia silenciosa que fala aos sentidos,

que toca a alma, e que, muitas vezes, determina a maneira como nos sentimos em um deter-

minado espaço (JOYE, 2021).


160

Ao falar de arquitetura escolar, não podemos ignorar a sabedoria de Frank Lloyd

Wright, que acreditava que a arquitetura era “a mãe de todas as artes”. Ele compreendia que

um edifício não era apenas um abrigo, mas uma entidade viva que se comunicava com seus

habitantes. Esse diálogo silencioso, muitas vezes, tem o poder de inspirar ou reprimir, de

acolher ou alienar (WRIGHT, 1953).

E quando se trata de escolas, essa comunicação assume uma importância ainda

maior. Imagine uma sala de aula com janelas amplas que permitem a entrada de luz natural,

banhando o espaço com uma luminosidade suave que convida à introspecção e à criativida-

de. Contraste isso com uma sala fechada, escura, cujas paredes parecem se fechar sobre si

mesmas. O impacto na afetividade dos alunos, nas suas disposições para aprender, é tangível

(MAXWELL,1996).

Porém, não é só a luz ou a disposição do espaço que importa. É o design pensado

para facilitar a interação, para permitir que as crianças se movam, explorem e descubram.

Aqui, os ensinamentos de Maria Montessori brilham com clareza. Ela via a sala de aula como

um ambiente preparado, onde cada elemento, desde os móveis até os materiais, tinha um

propósito. E esse propósito estava intrinsecamente ligado à ideia de promover a autonomia,

a descoberta e, acima de tudo, o amor pela aprendizagem (MONTESSORI, 1991).

Em nosso mergulho nos territórios da forma, é vital compreender que cada escolha

arquitetônica, cada detalhe de design, não é apenas estético. Eles são declarações pedagógi-

cas, são manifestações físicas de uma filosofia, e têm o poder de influenciar profundamente

a maneira como a afetividade se manifesta e se desenvolve no espaço escolar (BARRETT,

Capa 2015).

Ficha
2.2. T erritórios da S o c iab il idade : R el açõ es entre pares , c om os

professores e o i mpa c to das h ierarquias


Sumário
Adentrando mais fundo nos corredores da espacialidade escolar, além da forma e da

matéria, encontramos o extraordinário e pulsante: as relações humanas que definem e são

definidas pelo espaço. Neste território da sociabilidade, cada riso compartilhado, cada olhar

de compreensão e cada conflito são como marcas indeléveis no tecido do ambiente escolar.

Durkheim, em sua reflexão sobre a sociedade e suas instituições, ressaltava a impor-


161

tância das relações e interações sociais para a coesão e integridade da estrutura social. E a

escola, como microcosmo da sociedade, não é diferente. Aqui, as dinâmicas de poder, os laços

afetivos entre pares e a relação com figuras autoritárias ganham vida e forma, influenciando

a maneira como os alunos se percebem e percebem os outros (DURKHEIM, 1978).

A relação entre alunos é uma dança complexa de descobertas e negociações. Na so-

ciabilidade juvenil, crianças e adolescentes aprendem sobre cooperação e competição, sobre

empatia e indiferença. Lev Vygotsky, com sua ênfase na aprendizagem social, nos ensinou

que a cognição é construída e moldada nas interações com os outros. Assim, uma escola que

promove interações positivas e saudáveis entre os alunos está também promovendo um am-

biente de aprendizado mais rico e eficaz (VYGOTSKY, 1991).

Da mesma forma, a relação entre alunos e professores é crucial para o desenvolvi-

mento da afetividade escolar. A teoria do apego, proposta por John Bowlby, sugere que as

primeiras relações afetivas de uma criança podem moldar suas futuras interações. No contex-

to escolar, um professor que estabelece um relacionamento de confiança e respeito com seus

alunos pode se tornar uma âncora emocional, um porto seguro em meio às tempestades da

pobreza, violência doméstica, bullying, etc (BOWLBY, 1990).

E, claro, não podemos ignorar o papel das hierarquias na espacialidade escolar. Em

muitas escolas, a estrutura hierárquica é rígida e claramente definida, com pouco espaço para

o protagonismo dos alunos. Porém, pesquisadores e pedagogos progressistas, como Paulo

Freire, têm argumentado a favor de uma abordagem mais horizontal, onde o poder é compar-

tilhado e onde os alunos têm voz ativa, em salas organizadas em círculos e não enfileirados

Capa como linhas de produção, em espaços em que o olhar de um alcança à todos (FREIRE, 1975).

Assim, ao projetar e implementar práticas educacionais, é essencial considerar não

Ficha apenas o que é ensinado, mas também como as pessoas se relacionam e interagem no espaço

escolar.

Sumário

3. T erritórios da E xpressão : D a C on cepção à P r á ti ca -


I n c orporando a A fe t iv idade no C urrí cu l o

Avançando mais adiante na paisagem complexa da afetividade escolar, encontramos

um território muitas vezes esquecido, mas fundamental: a expressão afetiva no currículo.


162

Não apenas como a afetividade é vivenciada, mas como é ensinada, reconhecida e integrada

em cada aspecto da jornada educacional. Aqui, a poesia da aprendizagem se entrelaça com a

prosa da prática pedagógica, criando uma tapeçaria rica e multifacetada.

Neste vasto território, a sabedoria de Paulo Freire serve mais uma vez como uma bús-

sola. Em sua visão de educação como prática da liberdade, Freire enfatizava a importância

de uma pedagogia dialógica, onde educador e educando são co-construtores do conhecimen-

to. Neste processo, a afetividade não é uma mera espectadora, mas uma participante ativa,

orientando e sendo orientada pela aprendizagem. A “Educação como Prática da Liberdade”

de Freire nos convida a ver o currículo não apenas como um conjunto de conteúdos a serem

transmitidos, mas como um espaço vivo de interação, questionamento e, acima de tudo, ex-

pressão (FREIRE, 1967).

A abordagem de Howard Gardner sobre as inteligências múltiplas também enriquece

nossa compreensão deste território. Se reconhecemos que a inteligência não é monolítica,

mas plural, então também devemos reconhecer que a afetividade tem múltiplas vias de ex-

pressão no currículo. Seja através da inteligência intrapessoal, onde o aluno reflete sobre

suas próprias emoções e motivações, ou através da inteligência interpessoal, onde as emo-

ções são compartilhadas; a afetividade se torna uma força motriz do processo de aprendiza-

gem (GARDNER, 1983).

Contudo, incorporar a afetividade no currículo não é apenas uma questão de re-

conhecimento, mas também de prática. Como transformar a teoria em realidade? Aqui, os

ensinamentos de Maria Montessori e sua visão de um “ambiente preparado” podem fornecer

Capa algumas pistas. Para Montessori, cada elemento do ambiente educacional - desde os mate-

riais até o design do espaço - deveria ser pensado para promover a autonomia, a curiosidade

Ficha e, crucialmente, a expressão afetiva, isso significa que a disposição de mesas e cadeiras e do

lugar de cada indivíduo importa para promover compartilhamento afetivo adequado e rele-

Sumário vante (MONTESSORI, 2002).

Este território da expressão nos desafia a repensar, reinventar e, mais importante,

reimaginar o que significa ensinar e aprender. Ao trazer a afetividade para o centro do cur-

rículo, não apenas reconhecemos sua importância, mas também abraçamos sua capacidade

transformadora, permitindo que ela ilumine cada aspecto da jornada educacional e prepare

crianças e educadores para lidar com as emoções da vida, com a dor, a solidão, o medo, a
163

inveja, a insegurança, a felicidade, o amor.

3.1. T erritó rios da S ensibil idade : P edagogia da E m oção -


E st raté gias para int egrar a afetiv idade no ensino

No vasto universo da educação, onde cada emoção é um aprendizado e cada ligação

afetiva um conjunto de competências, um brilho particular emerge das sombras: a intuição

afetiva, o sentimento que guia o aprendizado e ilumina os caminhos do conhecimento. Para

navegarmos por esses mares, devemos abraçar uma Pedagogia da Emoção, que transcende o

cognitivo e entrelaça a emoção no coração do processo educativo.

Rudolf Steiner, o fundador da Pedagogia Waldorf, percebeu este interjogo entre sen-

timento e aprendizado. Ele propôs um ensino que ressoasse com a alma da criança, reconhe-

cendo que cada etapa do desenvolvimento humano possui suas próprias necessidades afeti-

vas. Assim, ao invés de um currículo rígido e uniforme, Steiner imaginou um currículo fluido,

onde o conteúdo se adapta à maturidade emocional do aluno (STEINER, 2006).

A Pedagogia da Emoção não se limita a uma metodologia ou conjunto de práticas;

é uma postura, uma abordagem que vê a emoção não como um obstáculo, mas como um

aliado na jornada educacional. A emoção é o sopro que dá vida ao aprendizado, a chama que

acende a curiosidade e a paixão de descobrir.

Nelson Mandela afirmou que “a educação é a arma mais poderosa que você pode

usar para mudar o mundo”. No entanto, para que esta arma tenha seu potencial pleno, ela

Capa deve ser carregada com a pólvora da afetividade. Isso requer que os educadores se tornem

também emocionalmente inteligentes, sensíveis aos sentimentos e necessidades emocionais

Ficha dos alunos.

Neste território da sensibilidade, surgem estratégias concretas: a utilização de his-

Sumário tórias e narrativas que ressoem emocionalmente com os alunos, a promoção de atividades

que permitam a expressão e reflexão emocional, e a criação de um ambiente onde o erro

não é punido, mas visto como uma oportunidade de crescimento. Aqui, o educador torna-se

um jardineiro emocional, cuidando, nutrindo e “podando” as emoções, para que o jardim do

aprendizado floresça em toda a sua plenitude.

São as emoções que ligam o educador às crianças e aos familiares e apenas é possível
164

educar através de uma ligação afetiva bem desenvolvida. Para se desenvolver um vínculo

afetivo genuinamente capaz de servir de fio condutor das práticas pedagógicas, é necessário

que o educador se importe com o que famliares e crianças sentem, em como vivem, em o que

enfrentam, em o que lhes acontece dentro e fora do ambiente escolar, à que tipo de violên-

cias estão expostos e em intervir diante dessas emoções fornecendo experiências e saberes

que lhes permitam encarar essas realidades sociais com instrumentos teóricos já contruídos

durante as centenas de séculos da humanidade. Pois a literatura não limita-se ao exercício do

entretenimento e dos estudos, mas assume papel de repertório emocional para as gerações, e

é aí que mora o papel da literatura na pedagogia afetiva (FREIRE, 1975).

3.2. T erritó rios da A val iação : M ensurando o desenvo lvi m ento

em ocional dos al unos

Na vastidão do cosmo educacional, encontra-se um território ainda não totalmente

mapeado: o da avaliação emocional. Aqui, tentamos mensurar o imensurável, dando forma e

estrutura ao fluido mundo das emoções. No coração deste território, repousa uma pergunta

fundamental: como podemos avaliar o que sentimos e como isso impacta nossa capacidade

de aprender?

Lev Vygotsky nos fornece um ponto de partida. Ele reconheceu que a aprendizagem

é, em sua essência, uma atividade social e afetiva. A partir desta perspectiva, avaliar o de-

senvolvimento emocional torna-se tão crucial quanto avaliar o desenvolvimento cognitivo

Capa (VYGOSTKY, 1991).

Mas como dar forma a essa avaliação? Como criar métricas que capturem a complexi-

Ficha dade e nuance das emoções? Daniel Goleman, em seu trabalho sobre inteligência emocional,

propôs que habilidades como autoconhecimento, autogestão, empatia e habilidades sociais

Sumário podem ser avaliadas e desenvolvidas. Portanto, o primeiro passo no território da avaliação é

definir claramente o que se pretende mensurar (GOLEMAN, 1995).

Em seguida, emerge a questão das ferramentas e métodos. Aqui, a inspiração pode

ser encontrada em práticas como as “rodas de emoção”, onde os alunos são encorajados a

identificar e discutir suas emoções. Diários afetivos, onde os alunos registram e refletem

sobre suas experiências emocionais, também oferecem insights valiosos. Estas ferramentas,
165

embora qualitativas, fornecem uma janela para o mundo interior do aluno, permitindo aos

educadores adaptar sua abordagem de acordo com o que se notar necesssário (MCCLOUD,

2015).

Entretanto, é crucial lembrar que neste território, a jornada é tão importante quanto

o destino. A avaliação emocional não deve ser vista como um fim em si mesma, mas como

um meio para compreender e apoiar os alunos em sua trajetória educacional. Como Antoine

de Saint-Exupéry escreveu em “O Pequeno Príncipe”: “O essencial é invisível aos olhos”. E,

neste território, o desafio é tornar visível o invisível, dando voz e valor ao mundo emocional

dos alunos, para que eles possam brilhar com todo o seu potencial (SAINT-EXUPÉRY, 2022).

Educadores buscando avaliar o desenvolvimento emocional de alunos têm à disposi-

ção ferramentas como a Escala de Avaliação de Desenvolvimento Socioemocional de Crianças

(SEDS) e os Inventários de Comportamento de Achenbach, ambos focados em competências

sociais e dificuldades emocionais. Métodos como a Escala de Inteligência Emocional de Bar-

-On e a Escala de Ansiedade Infantil de Spence também são cruciais, analisando a consciência

emocional e sintomas de ansiedade, respectivamente.

Embora essas ferramentas ofereçam perspectivas valiosas, é fundamental que educa-

dores considerem construir suas próprias métricas, levando em conta os critérios e formas de

avaliação sugeridos por esses instrumentos estabelecidos, para capturar a complexidade das

experiências emocionais de seus alunos de maneira mais personalizada e contextual.

4. T erritórios do C o le tivo : A c o l hendo as A ngús tias de F a mí l ias ,


Capa
E ducadores e E st udan tes

Ficha No entrelaçar complexo da vida cotidiana brasileira, onde o convívio com a angústia,

o luto, a solidão e as adversidades muitas vezes surge como uma trama persistente, o am-

Sumário biente escolar se configura como um refúgio, uma terra fértil para acolher, entender e trans-

formar. Neste território, famílias, educadores e estudantes convergem, cada um carregando

suas vivências, esperanças e cicatrizes.

Anna Freud, filha de Sigmund Freud e proeminente psicanalista infantil, nos ensina

que as primeiras relações familiares - com pais, irmãos, avós e tios - moldam as experiên-

cias iniciais de uma criança e a formação de seu ego (FREUD, 2018). As marcas do medo,
166

da violência doméstica ou da pobreza, que infelizmente são realidades para muitas famílias

brasileiras, não são somente marcas individuais, mas coletivas. Elas ecoam nas salas de aula,

nos corredores, nos olhares e nas vozes dos estudantes .

Paulo Freire, lumiar da pedagogia crítica, argumentava que a educação jamais pode

ser neutra. Deve servir como ferramenta de libertação ou de opressão. Neste território de

empatia, a educação precisa se posicionar como agente transformador, que acolhe as vivên-

cias traumáticas e oferece estratégias de superação. O diálogo aberto, o reconhecimento das

adversidades e a construção coletiva de caminhos são essenciais (FREIRE, 1975).

Erik Erikson, em sua teoria do desenvolvimento psicossocial, nos apresenta estágios

que atravessam toda a vida humana. Ele nos lembra que crises, como a perda de um ente

querido, o enfrentamento da solidão ou o desafio da pobreza, não são obstáculos isolados,

mas etapas de um contínuo desenvolvimento. No território escolar, estas etapas podem ser

reconhecidas, compreendidas e integradas, não como barreiras, mas como pontos de partida

para o crescimento (ERIKSON, 1971).

A abordagem de Carl Rogers sobre empatia e escuta ativa se faz vital aqui. Educado-

res, neste cenário, não são apenas transmissores de conteúdo, mas tornam-se ouvintes aten-

tos, mediadores de diálogos e promotores de bem-estar. Eles têm o desafio de reconhecer as

dores que, por vezes, permanecem invisíveis, e de criar um ambiente onde cada estudante,

independentemente de sua trajetória, sinta-se valorizado e acolhido (ROGERS, 2009).

Neste território de empatia, a escola não é apenas um espaço de ensino, mas uma

comunidade de cuidado. Uma comunidade onde as feridas são reconhecidas, onde as mãos

Capa estendidas encontram outras mãos dispostas a segurar e onde, juntos, famílias, educadores e

estudantes, tecem uma tapeçaria do acolhimento, esperança e transformação.

Ficha

4.1. T erritó rios da S o brec arga : A V u lnerabi lidade E m o c ional


Sumário
dos E ducadores e o D esam paro dos P ais

Dentro do universo escolar, muitas vezes idealizado como um oásis de aprendizado

e crescimento, existe uma realidade frequentemente silenciada: a dor e a sobrecarga emo-

cional dos educadores. Esses profissionais, muitas vezes percebidos apenas em suas funções

didáticas, carregam consigo uma bagagem repleta de traumas, mágoas e desafios, que vão
167

desde dores de infância até adversidades da vida adulta (PALMER, 2012).

Donald Winnicott, psicanalista britânico, introduziu a ideia do “ambiente suficiente-

mente bom”, referindo-se ao ambiente necessário para o desenvolvimento emocional saudá-

vel de uma criança (WINNICOTT, 1999). No entanto, como pode um educador proporcionar

tal ambiente se ele próprio está imerso em turbulências internas, agravadas pela falta de

apoio governamental e ausência de estruturas de suporte emocional? A fragilidade emocio-

nal do educador, sublinhada pela falta de reconhecimento e valorização, reflete-se direta-

mente na qualidade de suas ações pedagógicas.

Freud, em suas reflexões sobre o inconsciente, nos lembra que muitas de nossas

reações e comportamentos são influenciados por traumas e conflitos não resolvidos (FREUD,

2019). Para o educador, as feridas não cicatrizadas podem, inadvertidamente, emergir em

sala de aula, afetando suas interações e decisões pedagógicas. E é um ciclo cruel, pois a pres-

são para ser um pilar constante de força e estabilidade, mesmo em meio ao caos interno, só

intensifica o desgaste emocional.

Junto a isso, temos as famílias, cuja interação com o universo escolar é frequente-

mente limitada a eventos esporádicos, como festas juninas ou apresentações de fim de ano. A

desconexão entre pais e escola é profunda. Muitos pais, enfrentando suas próprias batalhas

diárias - sejam elas financeiras, emocionais ou sociais, raramente veem a escola como um

refúgio ou como um espaço de diálogo e apoio. Paulo Freire, em sua pedagogia do oprimido,

destaca a importância da participação ativa e da construção coletiva de conhecimento (FREI-

RE, 1975). A escola, mais do que um espaço de ensino, deve ser um território de acolhimento,

Capa onde pais se sintam não apenas visitantes, mas parceiros essenciais na jornada educacional.

É imprescindível reconhecer e valorizar a humanidade dos educadores e dos pais,

Ficha entendendo suas vulnerabilidades e oferecendo espaço para diálogo, apoio e construção co-

letiva. Oferecer encontros menais de familiares em forma de grupos de diálogo apenas com

Sumário familiares, para ouvi-los e incluílos das ações escolares. Somente assim poderemos transfor-

mar o território escolar em um espaço genuinamente afetivo, onde todos se sintam vistos,

ouvidos e acolhidos.

5. T erritórios do A p li car : R el ato da A p li cação de u m P roj e to


de E ducação S ocioe m o c ional .
168

Embarquei, como neuropsicoterapeuta e pedagogo, em uma jornada transformado-

ra em Toledo, Paraná, onde minha iniciativa pioneira buscou tecer o emocional delicado de

crianças, famílias e educadores através de um programa de educação socioemocional. A mo-

tivação por trás desse projeto surgiu da compreensão crítica de que o bem-estar emocional

é o alicerce do desenvolvimento cognitivo e social. Minha abordagem foi uma tentativa de

iluminar e fortalecer as mentes de educadoras, preparando-as para os desafios multifaceta-

dos da escola.

No coração deste programa, situavam-se sessões conduzidas em ambientes reconfi-

gurados de aprendizagem com 4 turmas de crianças, duas turmas do 4º ano do Ensino Funda-

mental e duas turmas do 5º ano, cada turma com seu horário semanal específico e individual.

Assim que eu entrava em sala para iniciar o projeto eu substituía o modelo obsoleto de fileiras

rígidas por círculos inclusivos, um símbolo potente de unidade e visibilidade compartilhada,

onde cada estudante não apenas aprendia, mas também se sentia visto e ouvido. Neste espa-

ço seguro, os contos do livro “A Mais Bela de Todas: A História da Rainha Má” serviram como

espelhos emocionais, refletindo as lutas internas muitas vezes silenciadas, permitindo que os

estudantes navegassem pelas águas às vezes turbulentas de suas próprias emoções.

Cada história narrada se desdobrava em diálogos íntimos, onde os estudantes se

viam não apenas como espectadores, mas como participantes ativos, identificando-se com as

nuances do sofrimento, abandono e resiliência. Foi uma jornada de descoberta coletiva, onde

o ato de compartilhar criou um mosaico de empatia, compreensão e, finalmente, cura.

Uma etapa vital deste processo terapêutico envolvia as crianças articulando suas

Capa emoções, um exercício de vulnerabilidade e coragem. Ao desenhar ou escrever, elas não

apenas reconheciam suas emoções mas também as legitimavam, construindo assim um vo-

Ficha cabulário interno para entender e expressar seus sentimentos, um passo fundamental para o

amadurecimento emocional.

Sumário Expandindo os horizontes do projeto, reconheci a necessidade de envolver os guar-

diões dessas crianças - os pais. Eles foram convidados a participar de grupos de discussão,

ecoando a dinâmica estabelecida com seus filhos. Aqui, em círculos de confiança, guiava-os

através de labirintos parentais complexos, utilizando a ciência como nossa bússola, garan-

tindo que cada perspectiva fosse fundamentada em princípios psicológicos, pedagógicos e

filosóficos sólidos.
169

Esta abordagem holística também se estendeu ao coração educacional - os professo-

res. Era essencial imergi-los em uma experiência similar, desencadeando uma introspecção

profunda que muitas vezes resgatava emoções cristalizadas desde a infância e que influencia-

vam suas interações em sala de aula. Nesses encontros, a vulnerabilidade se transformava em

força, culminando na criação de materiais didáticos que serviam como pontes entre os educa-

dores e os alunos, facilitando um aprendizado mais empático e emocionalmente consciente.

O impacto reverberante deste projeto não passou despercebido, atraindo o interesse

e o endosso da Secretaria Municipal de Educação de Toledo. Confrontado com o convite para

ampliar esta iniciativa, vi uma oportunidade não apenas para semear estas práticas em terras

mais amplas, mas também para enfrentar os terrenos mais áridos de escolas em contextos de

vulnerabilidade intensa.

Aqui, o projeto foi desafiado a se adaptar e responder, não apenas como um suporte

emocional, mas como um catalisador para mudança social. Acompanhando essa expansão,

assegurei que cada adaptação fosse sensível e receptiva às nuances dessa comunidade, bus-

cando não apenas educar, mas também capacitar.

Essa jornada, desde suas raízes até sua adoção institucional, reafirmou minha cren-

ça na educação como uma ferramenta não apenas para o crescimento mental, mas também

emocional. Ao reconhecer e validar a educação socioemocional, estamos reconhecendo a hu-

manidade em cada estudante, criando uma sociedade mais consciente, empática e, em última

instância, unida em sua diversidade emocional.

Capa
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Capa

Ficha

Sumário
172

Pesquisando a história dos outros,


percebi a importância da minha

Lilian Soares da Silva

Eu sou uma mulher negra que se descobriu na academia e com as experiências da

vida com o Mestrado em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas. Eu sou filha

única de uma mãe solo, mesmo casada, em que com um ano de idade precisou sair de casa

e lutar por si e por mim. Eu sou uma estudante multidisciplinar, que percorreu caminhos de

formação na educação, turismo e na histórica, um em complementação ao outro, sempre

pesquisando a temática negra, ora na concepção dos pontos turísticos em São Paulo, que não

tem a representação negra em sua arquitetura e narrativas, seguida por uma imersão em uma

comunidade remanescente de quilombo no estado da Bahia (Região metropolitana de Sal-

vador) por quase 2 anos vivenciando o cotidiano da casa, da roça, da feira e as perspectivas

de uma vida urbana e rural interseccionadas. Em fase de conclusão a pesquisa do Doutorado


Capa
sobre as minhas origens e trajetória familiar no Rio Grande do Sul, evidenciando o processo

histórico da negritude partindo do território de meu avô Joao e minha avó Therezinha para
Ficha
compor a tese, desde a investigação bibliográfica, documental e o trabalho de campo virtual/

presencial com a minha mãe para conhecer, viver e experimentar a localidade com os olhos
Sumário
de hoje, articulando com o passado das raízes e gerações que ali habitaram. A formação aca-

dêmica foi fruto de uma tradição familiar que os estudos vinham em primeiro lugar, com a ar-

ticulação com o trabalho, iniciado aos 13 anos de idade, meio período entre o contraturno es-

colar. Em seguida, o serviço como recreadora de buffet infantil, telemarketing, vendedora de

porta em porta, recepcionista, auxiliar técnica de educação (inspetora escolar) e professora

de Educação Infantil há 13 anos. Tenho o sonho de conhecer o continente africano, vivenciar


173

novas culturas, ouvir as narrativas e as histórias das pessoas, escrever e sentir que a vida é

para deixar um legado por onde você passa, e que possa transmitir toda a alegria e a empatia

de entender que estamos e somos as nossas melhores versões a cada dia, contribuindo com a

formação de si e do outro no dia a dia, em cada momento com as oportunidades que surgem

pelo caminho, seguindo a trajetória mesmo que desconhecida, mas que conduziram a muitas

bençãos e glórias para todo o sempre.

Começo este texto de reflexão da pesquisa acadêmica, da vida e das trajetórias e seus

caminhos que não são delineados como um calendário com tempo marcado para iniciar e de-

limitado para encerrar. O trabalho desenvolvido no doutorado em Educação, Arte e História

da Cultura também não o foi pensando que já ingresso em meio a pandemia mundial no ano

de 2020.

O nosso mundo e contato exterior (só que não) eram pelas telas do computador, no-

tebook ou celular, logo, o vestibular para a Universidade Presbiteriana Mackenzie surge em

meio a anúncios do Youtube, dos Pop-Up, do Google Ads e tantos outros recursos da inteli-

gência artificial e dos algoritmos da internet. Processo quase semelhante ao processo seletivo

do Mestrado em História da África, da Diáspora e dos Povos indígenas, que tenho o conhe-

cimento pela rede social do Facebook, ou algo semelhante ao final de 2016, nunca cogitei a

possibilidade de sair de São Paulo, mas, a minha ancestralidade abriu os caminhos para os

meus pés tocarem na Bahia e por lá ficarem.

O trabalho de campo que seria de uma semana tornou-se uma residência temporá-

Capa ria com laços afetivos e de amizade que permanecem, de 2017 até hoje, como as relações

de afeto, de empatia e de reciprocidade criadas no Doutorado com os coparticipantes da

Ficha pesquisa. Se por um lado, no Mestrado eu estava à procura de números e de quantitativo

para a pesquisa na Comunidade Remanescente de Cordoaria/Sucupira, em contrapartida, no

Sumário Doutorado, a minha intenção e pensamentos eram de que todas e todos que participassem

da pesquisa seriam os indivíduos enviados pela ancestralidade, não estava preocupada com

o quantitativo, mas com as narrativas compartilhas, as experiencias vivenciadas e as histórias

do território. Uma cidade que tinha memórias das férias, da infância na casa e no quintal, da

adolescência sentada no muro e passeando na Avenida Bento Gonçalves e, de outra que só

ficara registrada por um sumiço de meu avô João em pleno dia de seu aniversário.
174

Agora lembrando do acontecido é engraçado, mas no momento vivido foi um baque

para todos, de perto e de longe. Mas, essa história ainda reverbera na pesquisa, isso porque,

ninguém nunca questionou ou perguntou a ele, o porquê de ter retornado a sua cidade natal,

com qual intenção? O que estaria buscando? O que estava à procura? Será que encontrou as

respostas que ele esperava? Ou também, em dado momento ficou frustrado como fiquei ao

não encontrar nenhum parente em sua cidade, por não evoluir e avançar na árvore genea-

lógica para além dos dados e documentações que já obterá no trabalho de campo única e

exclusivamente virtual, por intermédio de pesquisas online, e-mails, telefonemas, conversas

e mensagens nas redes sociais.

Quando possível e viável, estive presencialmente na cidade de Canguçu – Família

Soares – e Pelotas – Família Souza, ambas a genealogia materna que nascidos no estado do

Rio Grande do Sul e, hoje aquilombados em Pelotas, Rio Grande, Porto Alegre, Florianópolis

e São Paulo. A primeira família é de meu avô João dos Santos Soares, o meu mais velho e que

origina a pesquisa acadêmica, como ponto de partida a sua história na cidade canguçuense,

se estivesse vivo este ano de 2023 completaria 101 anos de idade, mas, permaneceu conosco

até seus 84 anos. Assim como, a minha avó Therezinha Souza Soares, que atravessou o véu1

com 81 anos de idade, mas, antes disso, consegui fazer uma festa reunindo toda a família em

seus 80 anos em 2010, em sua cidade natal Pelotas.

Em suma, a trajetória acadêmica da graduação, especializações e mestrado possibili-

taram pesquisar, estudar, ler e ouvir as histórias dos outros, as narrativas negras do Turismo

na cidade de São Paulo, as vivencias e experiencias da Comunidade Remanescente de Qui-

Capa lombo na Bahia e, agora o doutorado é a oportunidade de pesquisar sobre a minha própria

história, de conhecer e compreender as minhas origens e raízes, de apresentar o passado e o

Ficha presente narrado do território negro gaúcho do estado do Rio Grande do Sul.

O passado não como estão atrelados ao livro didático somente ao contexto da escra-

Sumário vização, mas do passado de resistência, de lutas e sobrevivência com os deslocamentos para

melhores condições de vida a si e as seus. Histórias que se repetem de meu avô à minha mãe,

que saíram de casa e de sua cidade natal para trabalhar e nunca mais retornaram as suas

origens territoriais.

Isto posto, a articulação do presente texto tem o enfoque nas seguintes temáticas:

1 O conceito de atravessar o véu é evidenciado pela Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos
Dias para representar a passagem do familiar da vida terrena para a vida eterna.
175

Capa

Ficha

Sumário
Analisando-se o mapa mental da construção teremos um fluxo contínuo e uma via

de mão dupla, se ler de cima para baixo terá um contexto do coletivo, caso contrário, se ler

de cima para baixo, o enfoque para o indivíduo. Logo representa que, a história da pesquisa

não é exclusiva da pesquisadora que a escreve neste momento, mas de toda a ancestralida-

de que carrego comigo, que me impulsiona e me motiva a seguir em frente. Das mulheres e
176

dos homens que nasceram antes de mim e, da descendência que terei para a perpetuação e

continuidade da história. Dos conhecimentos apreendidos, vividos e experenciados desde a

infância, adolescência à vida adulta. Das festas de final de ano que esperávamos ansiosamen-

te a meia noite, quando era o momento de cumprimentar a todos, fazer o brinde e degustar

da ceia que já estava posta a mesa, no caso do ano novo todos ficavam do lado de fora da

casa, em frente a gruta de Nossa Senhora Aparecida para entrar com o pé direito em casa no

primeiro dia do ano e, a festividade continuava seja em casa quando criança ou na adoles-

cência com os bailes nos clubes sociais, como o Fica Ahí para Ir Dizendo2. Este era um ritual

sagrado da Família Souza Soares e, que hoje, só eu e minha mãe preservamos em nosso lar,

por isso, “a casa onde se desenvolve uma criança é povoada de coisas preciosas que não tem

preço” (BOSI, 2003, p. 27).

A casa na Rua Felipe José Mechereff é a lembrança da formação humana, do ser

único e do coletivo familiar, do território negro e gaúcho, da formação étnicorracial negra,

indígena e portuguesa, da formação acadêmica do Mestrado e do Doutorado, da Família

Soares e da Família Souza, da Família e da Academia, que me constituíram como pessoa,

pesquisadora e mulher negra a ocupar essa posição em toda a geração de meus ancestrais, de

minha tataravó - Josefa (escravizada) - , trisavó - Beralda (escravizada) e Silvina (lavadeira

e costureira) - , bisavó - Ursulina (doméstica) e Noemia (cozinheira), avó Therezinha (alisava

o cabelo das mulheres com pente quente3, mãe de seis filhos e dona de casa) e minha mãe

2 O clube social Fica Ahí para Ir Dizendo é um dos clubes negros tradicionais na cidade de
Pelotas, em que as atrações iniciavam por volta de uma hora da manhã e, acabavam ao amanhecer
com bandas de sambas, grupos da cidade e entre outras atrações. Lembro-me de dançar a noite toda
Capa e, claro a diversão era o ponto alto da festa, primeiro o sagrado e o tradicional com a ceia familiar e,
em seguida, o profano (mas nem tanto, assim) com o baile. Inclusive, no trabalho de campo estive no
clube para relembrar estes tempos áureos na memória, já que não tenho registros fotográficos ou outros
documentos dessa época, situação muito comum da população negra no passado, em que uma fotogra-
Ficha fia exigia um custo muito alto com a revelação ou os equipamentos fotográficos, logo, eram ocasiões
especiais, como casamento, em um único registro muitas vezes, dos noivos em frente ao bolo e uma
garrafa grande de espumante e, um bolo retangular gigante coberto com merengue branco e decorados
com bicos diferentes para a sua modelagem. Todos (ou quase todos) os registros fotográficos familiares
Sumário
mais antigos são deste momento em família, exceto um que retrata o carnaval, uma com a coroação
da rainha – minha tia avó Maria do Carmo e, a outra o tio avô Guaraci com seus colegas trajados de
mulher, algo cultural e típico dos carnavais na cidade de Pelotas.
3 O pente quente é um objeto de recordação e lembrança que o guardo comigo, do mesmo jeito
que a minha avó o mantinha, enrolado em um tecido de chita colorido e amarrado com uma fita, finali-
zando com um nó. Seu hábito era tudo que tinha era laçado com um para finalizar, assim como, os seus
fuxicos que tinham mais linhas emaranhadas de fios, do que tecido. Isso representa que, “o objeto ou é
biográfico, ou é signo de status, e, como tal, entraria para a esfera de uma “intimidade”, entre aspas,
ostensiva e publicável, que já fez parte da História das Ideologias e das Mentalidades. [...] E existem,
além desses, aqueles objetos perdidos e desparceirados que a ordenação racional do espaço tanto despre-
za (BOSI, 2003, p. 28). Em minha família estes objetos relembro, o armário de cozinha vermelho que
177

(Afroempreendedora na década de 80, quando não se existia o termo ela já desenvolvia em

seus três empregos para nos manter e a sua família).

Contudo são essas mulheres que me propiciaram estar e continuar com a formação

acadêmica, a ancestralidade que abriu o caminho e o programa com a bolsa de estudos, uma

única vaga e ela foi destina a mim, por todo o percurso acadêmico, a trajetória de pesquisa e

relevância do trabalho para a instituição de ensino, o que antes era um sonho de adolescência

cursar a graduação de Direito, quando passava da Escola Estadual de Primeiro e Segundo

Grau (E.E.P.S.G) Caetano de Campos para a unidade do Serviço Social do Comércio (SESC)

Consolação, saindo da Praça Franklim Roosevelt para a Rua Dr. Vila Nova, dizia: - Eu vou es-

tudar nessa universidade. Agora, os pensamentos e vibrações mudaram alcancei um dos pa-

tamares mais altos da formação acadêmica, pendente somente o Pós Doc (em breve), então,

quem sabe um dia circularei pelo Campus com o cordão, o crachá e o guarda-chuva vermelho

como funcionária da Universidade Presbiteriana Mackenzie, compartilhando a experiencia

de pesquisa em diferentes instituições de ensino, da formação interdisciplinar e da vivência

pelos estados do território brasileiro.

Dedico a elas, o poema escrito e publicado na revista SistherHood, na Universidade

Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), em homenagem a Marcha das Mulheres Negras e

intitulada “A Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver:

realizações, impactos e perspectivas”. Quando submetido, eu cursava (e ainda tentando fi-

nalizar, após pandemia, estágio e burocracias acadêmicas) a Pós-graduação em Educação de

Jovens e Adultos no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP),

Capa logo, nem imaginava que seria aluna do programa de pós-graduação, mas foi publicado exa-

tamente em maio de 2017 -, período em que estava completando dois meses de residência

Ficha no estado da Bahia.

combinava com a geladeira na mesma tonalidade, do sofá forte de gramado, das poltronas marrons que
Sumário
serviram muitas vezes de cama quando pequena, da bacia de alumínio que era uma brincadeira a parte
tomar banho, do quintal com o pé de limão, a parreira e a areia que eram meu passatempo de criança
a tarde toda – não precisava lagartear no sol como na adolescência, porque o brincar sem pretensão
aumentava substancialmente a melanina e a vitamina D no corpo em pleno verão. Não posso esquecer
da gruta de Nossa Senhora Aparecida na lateral da porta de entrada, em que todas as noites meu avó
acendia para iluminar a casa – eu acho – porque nunca nos perguntamos o porque deste ritual, visto
que não tinha por hábito frequentar a igreja aos domingos ou outras festividades religiosas, mas sempre
recebia no final do ano a santinha da rua com o seu manto azul e branco guardada em uma capela de
vidro e sua base de madeira que tinha uma gaveta ou uma abertura na parte superior para a colocação
dos donativos a igreja comunitária do bairro mantida por seu Antônio (hoje, com 91 anos de idade) e
dona Cândida (in memoriam – falecida este ano).
178

POESIA PRA QUEM?

A poesia é um texto para quem,


para quem se dispuser a ler e para quem se interessar a ler.
A poesia é…
A poesia é uma memória, um relato, uma experiência.
uma memória de algo bom ou doloroso,
um relato de alguém,
uma experiência de uma situação.
A poesia é…
A poesia é uma contação de algo que ninguém escreveu ou
apenas leu.
A poesia pode...
pode dizer, pode contar, pode narrar.
A poesia irá apresentar…
Apresentar as mulheres negras que nos fizeram nascer,
as mulheres negras que nos fizeram escolher,
as mulheres negras que nos deram o direito de dizer.
Elas foram as precursoras dos movimentos sociais negros e,
nos impuseram prosseguir.
Prosseguir como uma meta a se dirigir.
Dirigir para evoluir.
Evoluir para se seguir.
Essas mulheres são exemplos e modelos,
modelos de vivências e aparências,
Capa exemplos de vida e de superação.
Essas mulheres não podem e não devem ser esquecidas,
elas devem ser reverenciadas e lembradas.
Ficha
Essas mulheres devem ser uma constante em nossas vidas,
constante em cada instante,
Sumário
constante em cada ação,
constante em cada palavra,
constante em cada ato ou situação.
Essas mulheres podem ser cada uma de nós,
cada uma de vocês,
basta entender e compreender,
que quem faz essa mulher é VOCÊ. (SILVA, 2017, p. 53).
179

Todas essas mulheres que não conheci, mas que estou em busca das minhas ori-

gens e raízes me possibilitaram estar aqui e agora, elas abriram os caminhos da terra e dos

céus para mim, elas estão me orientando em cada passo, elas me guiam e encaminham cada

pessoa que cruza em meu caminho (e me afasta de outras) e, principalmente estão me pro-

tegendo hoje e sempre.

A histó ria dos “ ou t ros ”: per cursos a cadê mi cos

Parece que há sempre uma NARRATIVA COLETIVA privilegia-


da no interior de um mito ou de uma ideologia. E essa narrativa expli-
cadora e legitimadora serve ao poder que a transmite e difunde. [...]
Há, portanto, uma memória coletiva produzida no interior de uma
classe, mas com o poder de difusão, que se alimenta de imagens, senti-
mentos, ideias e valores que dão identidade àquela classe. (BOSI, 2003,
p. 17/18).

A autora apresenta em sua perspectiva na obra – A substância social na memória –

sobre os processos de formação do ser humano, por intermédio de uma narrativa coletiva e
ideológica, com “imagens, sentimentos, ideias e valores que dão identidade àquela classe”

(ibidem). Assim sendo, essa “memória social também tem seus desvios, seus preconceitos,
sua inautenticidade”. Isso porque, as histórias são fatos e situações narradas por diferentes

coparticipantes com vivências, experiências e contextos diversos, logo, a preponderância do

Capa “esquecimento, omissões, os trechos desfiados de narrativa são exemplos significativos de

como se deu a incidência do fato histórico no quotidiano das pessoas. Dos traços que deixou

Ficha na sensibilidade popular daquela época” (ibidem).

Quando estamos analisando especificamente a população negra e escravizada que,

Sumário a época seria classificada como “àquela classe” se extrair exatamente o termo referendado

pela autoria, evidenciaríamos as epistemologias históricas do darwinismo, da evolução das

raças, do democracia do mito racial, do embranquecimento populacional, da miscigenação

e do intercruzamento de conceitos, denominações e classificações que perpetuaram-se ao

longo dos séculos estereotipando os corpos negros, a força de trabalho e a inferiorização do

ser humano, que não tinha um tratamento digno em sua singularidade, mas compreendia-se
180

como mercadoria e objeto de estudos. Esta terminologia é séria e difundida em diferentes

trabalhos acadêmicos tratando os participantes da pesquisa como objetos de estudos e não

como interlocutores, narradores e atores sociais do trabalho acadêmico. Sem elas e eles não

possibilitariam as pesquisas nas áreas das Ciências Humanas, na Etnografia, na Antropologia

Social, na História Cultural e entre outras vertentes na Academia.

A conscientização da pesquisa é um dos pressupostos éticos que devem ser mantidos,

desde a valorização de uma conjunção de saberes, como via de mão dupla, elas e eles coadu-

nam com a pesquisa e a, pesquisa interrelaciona com o cotidiano. A vida é afetada por um ser

estranho ao ninho e ao habitat – pesquisador – e o meio ambiente se transforma, seja para

ao acolhimento ou para o distanciamento, a depender da abordagem, a postura e a condução

do trabalho de campo.

Mais do que um documento unilinear, a narrativa mostra a


complexidade do acontecimento. É a via privilegiada para chegar até o
ponto de articulação da História com a vida quotidiana. Colhe pontos
de vista diversos, às vezes opostos, é uma recomposição constante de
dados. Não esqueçamos que a memória parte do presente, de um pre-
sente ávido pelo passado, cuja percepção “é a apropriação veemente do
que nós não sabemos que não nos pertence mais” (P. Nora, op. Cit, p.
32. In: BOSI, 2003, p.19/20).

O tempo presente é a referência do hoje, que não poderá se confundir com o “pre-

sente ávido pelo passado”, como o próprio nome já o diz e evidência, passou. Ele não voltará
Capa
a ser como antes e, o antes não poderá ser reproduzido no hoje, por mais que se tentem, a

apropriação e o olhar de hoje não conseguirão captar todas as singularidades dos tempos
Ficha
remotos. Todas as circunstâncias se tornaram outras, não somente a localidade geográfica, a

população e às pessoas com suas condições/regras sociais e políticas.


Sumário

F amí l ia e academia : eu no c ent ro da pesquisa

O movimento de recuperação da memória nas ciências huma-


nos será moda acadêmica ou tem origem mais profunda como a neces-
sidade de enraizamento? Do vínculo com o passado se extrai a força
181

para a formação da identidade. (BOSI, 2003, p. 16).

A memória é algo que se perpassa de geração em geração, senão, pelo menos deveria

ocorrer o compartilhamento das histórias, lembranças e momentos vividos ou recuperados

no fundo do consciente dos indivíduos e na “necessidade do enraizamento” como supramen-

cionado na citação. Isso significa que, este enraizamento nada mais é do que as memórias fa-
miliares construírem suas raízes em nossas lembranças, formando o tronco linear e resistente

do ser humano, com suas ramificações em galhos para todos os lados, assim como o Baobá

no continente africano ou a figueira na Rua Senador Mendonça, que resiste ao tempo, a

transformação e carregando consigo diferentes narrativas que por ali passaram, assim como,

a minha família.

As populações negras em diferentes contextos e perspectivas históricas no processo

de desenvolvimento humano e capitalista é afasta consubstancialmente dos centros urbanos,

processo este que já advêm do sistema escravagista, em que era permitido a sua locomoção

e movimentação com a autorização dos seus proprietários e senhores, caso contrário, fica-

ram restritos as grandes propriedades e seus trabalhos forçados nas mais diferentes funções.

Com a minha família não foi diferente, viviam no centro da cidade de Pelotas em um grande

terreno em que residiam três ou quatro gerações, das bisavós até meus tios, mas que por

uma política pública promoveram um empreendimento habitacional na Cohab Tablada, hoje

conhecida como Três Vendas, em que casas populares foram vendidas com o pagamento a

perder de vista. A perder mesmo, pode o imóvel que foi adquirido em meados dos anos 50,

foi quitado eu estava na fase de pré-adolescência ou próximo disso, vale lembrar que eu nasci
Capa
em 1984, logo é só fazer as contas.

Este movimento de expulsão negra é oriundo desde a formação da cidade e, hoje está
Ficha
latente com o Passo dos Negros e o Parque Una (mas, este tema é uma outra narrativa a ser

construída, em um futuro breve, quem sabe?). Processo iniciado com a nova denominação
Sumário
das ruas, o que hoje, acontece com bairros inteiros, Cohab Tablada – Três Vendas, Passos dos

Negros – São Gonçalo, Arco Iris – Areal e, assim sucessivamente.

Neste contexto de mudanças, deslocamentos e expulsões forçadas da população ne-

gra no território pelotense intitulo e apresento o relato poético “A família negra do Centro”:

A nossa história começa em um passado presente, em um tem-


182

po em que as famílias viviam e moravam todas juntas.

A nossa história começa com a Família Souza Soares, de ori-


gem ancestral indígena e portuguesa, que pouco sabemos de seu pas-
sado.

A nossa história continua com momentos de narrativas de


infância e de trabalho. Trabalho suado, digno e cheio de significado.
Hoje, um presente que tenta encontrar suas raízes, suas histórias e suas
memórias que fixaram lembrança das mais velhas e dos mais velhos de
nossa família.

Sou uma jovem poetiza, historiadora de formação no mestra-


do e agora no doutorado pesquisando as minhas ancestralidades ne-
gras. Ancestralidade como tantos caminhos que me levaram até onde
estou, família nascida e criada em Canguçu e Pelotas, migrou para
São Paulo e outros permaneceram. Eu migrei para a Bahia, onde toda
essa trajetória começou, o que seria mais um curso de pós-graduação,
transformou os caminhos e narrativas de vida.

Chego na cidade de Cachoeira, no Recôncavo da Bahia, com


a intenção e o objetivo firme de cursar o Mestrado em História da
África, da Diáspora e dos Povos Indígenas na Universidade Federal do
Capa Recôncavo da Bahia (UFRB). Nesse caminho, conheço a Comunidade
Remanescente de Quilombo de Sucupira, que se tornaria a minha nova

Ficha família do coração e de afeto, isso porque muitos laços não são criados
pelo sangue que corre em não nossas veias, mas no processo de idas e
vindas, de caminhos e descaminhos que a vida nos ocasiona. Alguns
Sumário
são bons, outros nem tanto, mas de algum modo se tira uma lição,
como diz a música.

Cachoeira é o ponto de partida, o marco zero nessa caminha-


da, passando por Santo Amaro da Purificação, São Francisco do Con-
de, Camaçari, Abrantes e Salvador. Foi na capital soteropolitana, que
183

parte da pesquisa se concretizou, sejam com os documentos históricos


do Arquivo Público, sejam com os livros e referências nas bibliotecas
das universidades ou públicas. Cada uma delas com a sua importân-
cia, em um percurso onde a narrativa oral foi a chave para os outros
documentos.

Diferentemente, no Doutorado em Educação, Arte e História


da Cultura, o processo inicial seria partir de narrativas orais familia-
res para mapear o território negro no estado do Rio Grande do Sul.
Essa era uma das minhas hipóteses, mas que com o desenvolvimento
das disciplinas, nas formações continuadas, cursos, palestras e outros
processos muito transformou-se, em partes. Uma delas é não realizar
entrevistas com o cunho acadêmico para a aprovação na plataforma
Brasil, mas gravar e registrar essas memórias para os meus e minhas
descendentes, iniciar um acervo documental, audiovisual e escrito para
que as novas gerações possam compreender toda a trajetória familiar.

Em Pelotas, nossos territórios se restringem ao Centro (Rua Dr.


Cassiano e Rua Senador Mendonça), a Cohab Tablada (Rua Felipe José
Mechereff) e a Arco-íris (Avenida Guilherme Minssen).

Minha família, não foi de tantos deslocamentos, pelo que co-


nheço ninguém se mudou com tanta frequência nas gerações passadas,

Capa onde a casa era o ponto de referência, de manutenção da família e das


narrativas que se construíam com o entorno. Por isso, a casa própria,
era a fixação no local, representava a permanência e o pertencimento
Ficha
identitário. Pertencimento este que, por longos séculos foram negados
a população negra, desde a possibilidade de ter uma casa, para chamar
Sumário de sua, de constituir uma família por laços de afeto e de amor, não
forçado ou imposto pelo poder vigente, de contar a sua narrativa para
os seus.

O poema representa a percepção e a importância da minha história de vida e

familiar como tema de pesquisa acadêmica, não meramente um objeto ou sujeito, mas o pro-

tagonista do contexto, a autora da narrativa e a responsável por compartilhar experiências,


184

vivências e processos que não são individuais e exclusivos da pesquisadora que vos escreve,

mas de uma geração de mulheres e homens negros que foram apagados da história, muitas

vezes, até de seu contexto familiar, o que se dirá na historiografia brasileira.

P er ceb i a i mportân cia da m inh a h ist ória

Em outro contexto cabe salientar que, o letramento do mundo, da pesquisa e da vi-

vência acadêmica não foi só de rosas e um mar de flores, mas de espinhos, que foram um a

um (e ainda estão sendo tirados) extraídos delicadamente, com alguns arranhões, outros ma-

chucados e cravados no dedo, no coração, na alma e nas lagrimas derramadas para conquis-

tar o tão sonhado diploma, não como um troféu a ser emoldurado e pendurado na parede

da sala de estar, mas um reconhecimento que levarei onde quer que esteja, que abrirá portas

pelo caminho na formação acadêmica e profissional, que me fará galgar territórios e países

não imaginados, com carimbos e mais carimbos em meu passaporte (hoje, vazio, mas em

breve, muitas experiencias pelo mundo afora e nos diferentes continentes). Então, concluo

este capítulo com a seguinte reflexão poética escrita por mim:

Saber ler e escrever não representa a formação integral do in-


divíduo, do coletivo ou da sociedade, é fundante ter o letramento do
mundo. Letramento do mundo é capacitar-se não apenas em uma área
de conhecimento, mas em todas elas. Letramento do mundo é saber ser
e estar em todos os espaços e lugares. Letramento do mundo é saber va-

Capa lorizar a Si, aos Seus e aos Outros. Letramento de mundo é compreen-
der que podemos e somos merecedores de ocuparmos todos os bancos
escolares e universitários do Brasil e do exterior. Letramento de mundo
Ficha
é reconhecer a ancestralidade, aos antepassados e a sua própria histó-
ria, que o (re)constituiu e o (re)constituirá sempre como um Indivíduo.
Sumário
Para finalizar essa produção acadêmica, o fundante é compreender que o letramento

de mundo nos é dado em diferentes perspectivas, impactado pelo contexto em que vivemos,

nas relações que estabelecemos, nas pessoas que são colocadas em nosso caminho (as chamo,

de anjos de Deus), nos lugares que frequentamos (ou somos permitidas adentrar), nas for-

mações acadêmicas que cursamos ao longo da fase escolar e universitária, nos percursos que
185

são diversos, como labirintos e que só é possível enxergar o primeiro passo, porque os demais

serão guiados pela ancestralidade.

C onsideraç ões finais

Encerro essa reflexão da pesquisa acadêmica não com uma conclusão e fechamento da

pesquisa (que ainda, não é o ponto final), mas um ponto e vírgula ou três pontinhos, ou quem

sabe um paragrafo e travessão. O passado que não tem resposta. As hipóteses que não são en-

contradas. As perguntas e respostas que ficarão no tempo. LS, 16 10 2023 às 22h39. Muitas

perguntas foram levadas nas bagagens ao trabalho de campo, quando digo no plural é que real-

mente as foram (cinco ou mais) com muitas memórias, histórias, dúvidas e questionamentos

que não foram respondidos a contento. A contento de quem? Do que? E para quem? Obtive as

respostas que estavam ao meu alcance naquele momento. Foram respondidas as perguntas que

deveriam ter respostas. Ocultaram-se as histórias que precisam por um tempo serem dissolvi-

das nas lembranças e trazidas à tona em um futuro breve ou distante. Permanecem esquecidas

e distanciadas(os) os familiares que não foram encontrados, por algum motivo ou outro. Dife-

rentes tentativas foram realizadas, desde a pesquisa no campo até as rádios públicas da cidade

(literalmente, do programa na rádio AM – transmitida para os distritos e áreas rurais, até ao

programa da rádio FM, que circula na sede e centro urbano). A pesquisa não se encerra com

o artigo, a tese ou este ano é uma descoberta para a vida. Isso me faz lembrar a conversa no

Centro do Family Search em São Paulo, quando um dos membros conta que está pesquisando a

Capa sua arvore genealógica há vinte anos, então, eu ainda sou um bebê e uma criança só estou pes-

quisando efetivamente há dois ou três anos. Muitos fios negros foram revelados nessa trajetória

Ficha pelo território gaúcho do Rio Grande do Sul, mas outras pontas ainda não entrelaçaram para

finalizar este fuxico, quem sabe até o final teremos uma colcha ao final.

Sumário

R efer ê ncias
BOSI, Ecléa. A substância social da memória. In: O tempo vivo da memória: ensaios
de Psicologia Social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. Disponível em: https://bit.ly/3sx9VnW

SILVA, Lilian Soares da. Poesia pra quem? Caderno Sisterhood. Vol. 2, n. 1 (maio,
2017) Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB, Grupo de Estudos e Pesquisas
em Gênero, Raça e Saúde – NEGRAS, 2017.
186

Territórios da Comunicação Social e a Obrigatoriedade


da Missão Educativa

Lúcia Helena Polleti Bettini

Os Territórios da Comunicação Social sempre foram objeto de interesse das vivências

sociais e de todos que pertencem às estruturas do poder, seja qual for a sua manifestação, as

quais destacamos o poder político e o poder econômico tanto em sua dimensão ética como

em sua superexaltação e transtornos que dela decorrem. Nesse contexto, observa-se facil-

mente o quanto a Comunicação Social tem importância longeva não só para a manutenção

da vida em sociedade, mas, também para a transmissão das informações que propiciam a

manutenção das estruturas de dominação.

Pesquisar os territórios da Comunicação Social se apresenta uma constante em minha

trajetória acadêmica e do pós-graduação stricto sensu desde os anos 2000 e traz a identidade

de um Estado que experimentou com a Constituição de 1988 a redemocratização também


Capa
no plano jurídico-político, ou seja o “Poder em público” nos dizeres de Bobbio, com o afasta-

mento do período autoritário que a antecedeu de 1964 a 1985. Trata-se de referencial maior
Ficha
da cidadania e dignidade humanas com inspiração na Declaração Universal dos Direitos Hu-

manos e os Tratados Internacionais que trouxeram a positivação de seus preceitos e incluiu


Sumário
valores e direitos humanos fundamentais e a busca de sua efetividade ratificada em diversos

lócus da Constituição, o que inclui tanto o Estado com deveres expressos, a Sociedade e cada

cidadão na experiência democrática que é chamado na atualidade a reconhecer e cumprir

deveres e assumir responsabilidades para alcançar a proteção de direitos.

O Direito do Estado na subárea do Direito Constitucional com ênfase nos Direitos

humanos dá o embasamento e corte metodológico à pesquisa e produtos que derivam da


187

mesma, especialmente com a apresentação das discussões sobre os limites constitucionais

às liberdades de manifestação do pensamento externadas com a utilização dos veículos de

comunicação massiva, com destaque à Rádio, TV e Internet.

Importante considerar que desde os anos 1988, de maneira expressa, as liberdades

de manifestação do pensamento quando externadas, seja pela expressão, pela criação, pela

informação, em regra não encontram limitações nem devem ser alvo de censura de natureza

política e ideológica, mas devem observância à Constituição, seja por meio da liberdade de

informação jornalística que recebe tratamento diferenciado e preferencial por ser sustentácu-

lo do regime democrático, na programação de Rádio e TV, bem como na expressão comercial

e, na atualidade, pela entrega de conteúdos nos meios eletrônicos que repetem em qualquer

tempo e hora os conteúdos derivados dos outros meios entre outros que passam a utilizar

como suporte a Internet.

Não se pretende esgotar no presente capítulo todas as discussões oriundas do Terri-

tório da Comunicação Social, mas apresentar como limitação maior a observância à Consti-

tuição no que diz respeito às missões do Estado brasileiro que destacamos a justiça social, a

solidariedade e a redução das desigualdades, com o afastamento de todas as formas de dis-

criminação que exclua e o dever de todos os que estão na entrega de conteúdos com o olhar

para a Educação que mandamento expresso nos princípios da radiodifusão que também se

estende à Internet, e conforme tese de doutoramento defendida na Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, PUC – SP, em 2009, aqueles que se utilizam dos meios de comunicação

massiva devem a informação correta, verdadeira e que tenha especialmente a função educa-

Capa tiva. Trata-se de um território de atuação Educacional de forma cogente.

Ficha
1 - O T erritó rio da C o m unic ação S o c ial encon t ra m o ldura

C onst i tucional nas D em o c rac ias


Sumário
A redemocratização do Estado brasileiro vem especialmente para afirmar uma ordem

social justa e fundada em sistema normativo fundamental que informa a Supremacia Cons-

titucional. Ou seja, a Constituição Federal de 1988 estrutura e limita o poder dos que estão

nos atos de governo, enaltece e dá voz à vontade popular e não a de indivíduos ou grupos de

pessoas e que depende, essencialmente, da proteção da liberdade, da igualdade e dignidade


188

humanas. (DALLARI, 2002)

A inspiração na Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948, veio tardia, mas

deriva de compromissos assumidos que posteriormente foram ratificados por diversos tra-

tados internacionais de Direitos Humanos. A Constituição de 1988 que acaba de alcançar

trinta e cinco anos, sem dúvidas, depende do Território da Comunicação Social para que sua

maturidade e efetividade de suas normas se realizem, em especial o controle dos atos da

Administração Pública, em todos os níveis da federação e das esferas de poder, bem como

na descentralização administrativa1. Ademais da premissa básica de toda comunicação social

derivar da ausência de interferência Estatal em qualquer forma de manifestação do pensa-

mento, como a expressão, a criação, a informação, o dever de observar a Constituição se

impõe a todos, com o afastamento de toda forma de censura ou licença de natureza política

ou ideológica.

Nesse sentido, como reforço ao regime democrático, apresenta-se a liberdade de in-

formação jornalística como direito preferencial aos demais direitos fundamentais, pois é sus-

tentáculo da democracia e viabiliza que todos, por meio de noticias e críticas, possam viver

em sociedade, sempre na busca do alcance da finalidade social ou do bem comum2.

Na democracia a informação é o direito prevalecente do cida-


dão, pois a mesma lhe traduz a condição de verificação do atuar da
representação, ou seja, é ela quem possibilita o exercício do papel de
guardião da gestão da coisa pública, uma vez que o sigilo ou a limi-
tação da informação é instrumento típico das autocracias. (BETTINI,

Capa 2012)

Portanto, assume-se a corrente de pensamento do finalismo social que vem ratificada


Ficha
de maneira expressa no texto constitucional pelos objetivos fundamentais da República Fede-

rativa do Brasil em seu Artigo 3º e implicam em realização de diversas políticas públicas que
Sumário
1 A primeira referência da descentralização de poder político e territorial se deram com o advento
da República e a Constituição de 1891 que afirmou o federalismo e autonomia de cada ente da feder-
ação, com personalidade jurídica de direito público, com competências administrativas ou gerenciais,
legislativa e para instituir e arrecadar impostos. A segunda referência da descentralização será admin-
istrativa, com a criação, por lei, de pessoas jurídicas de direito público, destaque-se as autarquias e as
fundações públicas, e, autorização por lei de pessoas jurídicas de direito privado, as estatais, ou toda
sociedade civil empresarial que o Estado tenha o controle das ações, com referência no Decreto Lei nº
200/1967. Recente, houve a edição de Lei das Estatais, Lei 13.303/2016.
2 Adota-se no presente estudo o conceito de finalidade social proposto pelo Papa João XXXIII, na
Encíclica “Pacem in Terris”, qual seja, a busca pelo bem comum: “o conjunto de todas as condições sociais
que permitam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana”.
189

sejam capazes de realizar a justiça social, a redução das desigualdades e o afastamento das

discriminações que tanto excluem:


Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Fede-
rativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desi-
gualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Imprime-se regime jurídico distinto e decorrente dos princípios da Administração

Pública às informações públicas, qual seja, o dever da informação pública que deriva tanto

do princípio da publicidade, como encontra nos direitos fundamentais guarida pelo acesso

à informação ser assegurado a todos, em direito subjetivo público fundamental que só pode

ser restringido em casos que sejam indispensáveis à segurança do Estado e à segurança da

sociedade, conforme expresso no Artigos 37, caput e §1º cc Art. 5º, inc. XXXIII da Constitui-

ção. (BETTINI, 2020)

Importante reafirmar que, mesmo na condição de direito preferencial nas democra-

cias, a liberdade de informação jornalística encontra a obrigatoriedade de respeitar limites

constitucionais expressos no Artigo 220, §1º, todos se encontram no elenco dos direitos e

garantias fundamentais, com destaque aos incisos IV, V, X, XIII e XIV do Artigo 5º, todos da

Constituição. Destaque-se a vedação ao anonimato e consequente responsabilidade por to-

Capa dos os atos que realizamos por meio da manifestação do pensamento, o direito de resposta

proporcional ao agravo além da indenização por dano material e dano moral, ao lado do

Ficha direito de retificação de informações incorretas ou inverídicas, a proteção aos direitos da

personalidade, o livre exercício de trabalho, ofício e profissão, bem como o acesso à informa-

Sumário ção resguardado pelo sigilo das fintes que indispensável em diversas situações para passar a

informação.

As discussões atuais foram ampliadas com o advento da internet, pois toda infor-

mação jornalística e demais informações constantes dos veículos de comunicação massiva,

Rádio e TV, a partir de 2002, com a Emenda Constitucional nº 36, traz para o elenco também

os meios eletrônicos no Art. 222, § 3º:


190

§ 3º Os meios de comunicação social eletrônica, independente-


mente da tecnologia utilizada para a prestação do serviço, deverão ob-
servar os princípios enunciados no art. 221, na forma de lei específica,
que também garantirá a prioridade de profissionais brasileiros na exe-
cução de produções nacionais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº
36, de 2002) (grifo nosso)

Houve uma alteração importante no sistema de normas constitucionais que não pre-

via em 1988 os avanços científicos e tecnológicos que modificariam as relações sociais no

mundo, e que, tardiamente, no Brasil passarão a ser discutidas, em 2014 com o Marco Civil

da Internet, em 2018 na Lei Geral de Proteção de Dados3. A Constituição aponta de maneira


expressa a observância dos princípios da radiodifusão a toda programação de Rádio e TV e

com a referida Emenda Constitucional, também aos meios de comunicação social eletrônica

na prestação de serviço comunicacional.

Existem deveres expressos a todos os que utilizam dos veículos de comunicação mas-

siva e responsabilidades que derivam dos estudos do Território da Comunicação Social, em

especial, dos princípios da radiodifusão, no artigo 221 da Constituição:


Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio
e televisão atenderão aos seguintes princípios:
I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e
informativas;
II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à pro-
dução independente que objetive sua divulgação;
Capa III - regionalização da produção cultural, artística e jornalísti-
ca, conforme percentuais estabelecidos em lei;

Ficha IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.


(grifo nosso)

Sumário
2 – R ádio , TV e I n ternet e o im perati vo do A rtigo 221 da

C onst i tuição – os princ ípios da radiodifusão : o c um primen to de

sua missão E ducati va

A pesquisa e análise do Território da Comunicação Social no presente capítulo

3 São respectivamente as leis: Lei 12.965/2014 e Lei 13.709/2018.


191

apresenta as questões problema afirmadas e estudadas em meu doutoramento que, a partir

do estudo do capítulo da Comunicação Social na Constituição e as convergências com diver-

sos outros lócus constitucionais, se identifica o Direito de Comunicação que envolve a infor-

mação, o entretenimento e a regulação dos veículos de comunicação. A tese tem, portanto,

por finalidade maior, elucidar os parâmetros constitucionais de atuação dos responsáveis

pela programação e produção de Rádio e Televisão, o que se estende também aos meios ele-

trônicos a partir de 2002, pela Emenda Constitucional nº 36, que têm a obrigatoriedade de

respeitar tais parâmetros constitucionais, os princípios da radiodifusão e assumir as conse-

quências pela ausência do seu cumprimento.(BETTINI, 2009).

Afirma-se na tese o reconhecimento dos veículos de comunicação, Rádio e Televisão,

como agentes educacionais, problema central da tese, o que se realiza pelo imperativo do art.

221 da Constituição, ou seja, a obrigatoriedade dos princípios da radiodifusão, independen-

temente de legislação infraconstitucional pois, de tal forma, concretizam-se a cidadania e a

dignidade humanas, inerentes ao regime democrático.(BETTINI, 2009)

A Constituição não deixou dúvidas acerca do regramento da Comunicação Social,

pois território indispensável para a manutenção da vida em sociedade, seja ela nos aspectos

individuais ou coletivos. Portanto, todas as vezes que temos a utilização por concessioná-

rias Rádio e Televisão os parâmetros são muito cuidadosos e detalhados pelos princípios da

radiodifusão, vez que temos particulares em nome do Estado em uma delegação negocial,

prestando serviço público, não exclusivo do Estado, mas com inúmeras obrigações e deveres

de ordem constitucional, a norma fundamental do Estado brasileiro.

Capa Vale enunciar as normas constitucionais sobre a titularidade da União e da utilização

das ondas sonoras de sons e de imagens e sua delegação por meio de concessão ou permissão

Ficha de serviço público:


Art. 21. Compete à União:
XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, conces-
Sumário
são ou permissão:
a) os serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens;  (Re-
dação dada pela Emenda Constitucional nº 8, de 15/08/95:)
.....
Art. 223. Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar con-
cessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora
192

e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos


sistemas privado, público e estatal.
§ 1º O Congresso Nacional apreciará o ato no prazo do art.
64, § 2º e § 4º, a contar do recebimento da mensagem.
§ 2º A não renovação da concessão ou permissão dependerá
de aprovação de, no mínimo, dois quintos do Congresso Nacional, em
votação nominal.
§ 3º O ato de outorga ou renovação somente produzirá efeitos
legais após deliberação do Congresso Nacional, na forma dos parágrafos
anteriores.
§ 4º O cancelamento da concessão ou permissão, antes de ven-
cido o prazo, depende de decisão judicial.
§ 5º O prazo da concessão ou permissão será de dez anos para
as emissoras de rádio e de quinze para as de televisão.
Importante lembrar que as discussões do início dos anos 2000 não envolviam tais

referenciais constitucionais na utilização dos meios eletrônicos que apesar de concomitante

com o período, se cuidava de afastar a baixaria na programação de Rádio e Televisão por

movimentos organizados, por exemplo, da Ética e cidadania com a finalidade de afastar

programação do mundo cão4, especialmente pela manutenção da diminuição de pessoas em


razão de suas características particulares, com destaque às mulheres, pessoas com deficiên-

cia, pessoas LGBT, idosos, entre outros, destaque-se, na contramão da Constituição e dos

objetivos do Estado brasileiro que precisa afastar as injustiças, reduzir as desigualdades e as

discriminações que tanto excluem.

Capa A afirmação e reconhecimento da necessária vinculação dos dispositivos da Comuni-

cação Social com a Educação na Constituição de 1988, com destaque ao artigo 221, que traça

Ficha os princípios estruturantes da produção e programação de rádio e televisão, ao artigo 205

que identifica os três objetivos essenciais do processo educativo (BETTINI, 2009):

Sumário
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da
família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade,
visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exer-
cício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (Grifo nosso)

4 Em 2005, criou-se campanha para afastar a baixaria na programação de TV, e a data foi 05 de
outubro, com
193

Tal vinculação deriva de condição dos veículos de comunicação massiva desempe-

nharem atividade típica estatal em substituição e, por meio de orientação expressa de princí-

pios constitucionais inerentes à programação da radiodifusão, dentre eles a preferência por

finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas e o respeito aos valores éticos e

sociais da pessoa e da família5. Este é o problema central da tese e surge da grande parcela

diária de presença e convivência dos veículos de comunicação massiva na vida dos cidadãos,

em qualquer lugar que estejam, hoje com a predominância da Internet em conjugação com a

Rádio e a TV. (BETTINI, 2009)

Ademais dos meios eletrônicos desde 2002 também terem as mesmas responsabili-

dades e deveres estabelecidos nos princípios da radiodifusão, vez que prestam serviços co-

municacionais, entretenimento, informação, entre outros, as discussões sobre o respeito ao

imperativo ético, constitucionalizado também pelo artigo 221 e consequente olhar para a

pessoa humana como valor maior de nosso Estado, se iniciaram muito tardiamente e os pro-

blemas são maiores que os anteriores, pois nos defrontamos desde o descumprimento a limi-

tes expressos à informação jornalística, qual seja, a vedação do anonimato nas manifestações

do pensamento o que traz, inúmeras vezes, a irresponsabilidade por conteúdo dos que se

utilizam de tal suporte. Somente em 2011 com a Lei do Acesso à Informação, em 2014 com

o Marco Civil da Internet e, muito recente, com as discussões sobre a proteção de dados e

legislação de 20186, LGPD e sua difícil implementação, é que se atentou para a multiplicidade

de fraudes, crimes, fake news7 e a consequente dificuldade por responsabilizar os autores de

todos estes ilícitos nas diversas esferas de responsabilidade.

Capa Reconhece-se a grande importância dos avanços científicos e tecnológicos que antes

eram somente tratados pela ficção, mas hoje são realidade concreta de ordem mundial que

Ficha veio para o plano da implementação de forma acelerada em virtude dos efeitos da pandemia

do Covid-19 e tornou-se meio inafastável da vida atual, uma vez que além de permitir o con-

Sumário tato entre as pessoas, mesmo no isolamento, pode viabilizar missão constitucional e principal

nas democracias, a informação, a educação e transparência, que se repetem no plano inter-

5 Conforme artigo 221, incisos I a IV da Constituição Federal


6 As leis citadas são, na ordem indicada acima: Lei 12.527/2011, Lei 12.965/2014 e Lei
13.709/2018.
7 Vale a referência para o termo “pós-verdade”, mais pesquisado em 2016 no dicionário de
Oxford que aponta para o afastamento dos fatos objetivos quando narrados que são substituídos por
crenças pessoais e ideológicas, apresentando uma versão que seja favorável no contexto político destaca-
damente.
194

nacional, também com origem e inspiração na Declaração Universal dos Direitos Humanos,

com destaque aos artigos 17 e 19 que afirmam como direitos humanos a informação e a ex-

pressão, bem como a não discriminação, ambos ancorados nos considerandos pela educação.

A tese de doutoramento encontra alcance também para os meios eletrônicos, uma

vez que somente por meio da tecnologia o acesso a mais pessoas ocorrerá e a missão educa-

tiva da informação e o respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família, ancorados

também pelos objetivos do desenvolvimento sustentável -ODS, Agenda 2030, poderão ser

catalisados e viabilizarão a justiça social, a redução das desigualdades, a inclusão e a solida-

riedade.

Toda regulamentação deve, em razão de todo o embasamento constitucional e do

plano internacional, reforçado pela tese e missão educacional de toda manifestação do pen-

samento que se utiliza dos meios de comunicação massiva, Rádio, TV e Internet, ter a ên-

fase dos Direitos Humanos como intrínseco à sua utilização, como forma de promover a

democracia e os valores por ela sustentados, a liberdade, a igualdade e dignidade humana,

na busca da realização dos compromissos existentes e ratificados pelo desenvolvimento sus-

tentável .

R efer ê ncias
BETTINI, Lúcia Helena Polleti. Rádio e Televisão como Agentes Educacionais: o
imperativo do Art. 221 da Constituição e a ética da responsabilidade social. Tese de Doutorado
– Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2009.

Capa BETTINI, Lúcia Helena Polleti. Princípio da Publicidade na Administração Pública:


direito fundamental às informações públicas e a dignidade da pessoa humana. In: KIAN,
Fátima Aparecida. Covid 19 Aspectos Multidisciplinares – Direito. São Paulo: Alexa Cultural,
2020.
Ficha
BETTINI, Lúcia Helena Polleti. Violência e Veículos de Comunicação: discussões
acerca da manutenção da dignidade da pessoa humana. In: Direitos Humanos: promoção
Sumário e proteção. Daniela Bucci, José Blanes Sala, José Ribeiro Campos, (coords.) – São Paulo:
Saraiva, 2012.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:


https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

BRASIL. Lei no. 12.527/2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII
do art. 5º , no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal; altera
a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei nº 11.111, de 5 de maio de 2005,
e dispositivos da Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências. Disponível
195

em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm.

BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias,


direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Disponível em: https://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm

BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de Agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados


(LGPD) (Redação dada pela Lei nº 13.853, de 2019). Disponível em: https://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Editora
Saraiva, 2002.

Capa

Ficha

Sumário
196

Narrativa em par:
uma análise de histórias e percursos

Miriam Marcolino dos Santos

O contato com as aulas de Arte no ano de 2020 no Programa de Mestrado em Educa-

ção, Artes e História da Cultura foi impactante. Lembro-me que esse era um campo do qual

me sentia muito distante, despreparada e potencialmente frustrada.

O presente capítulo versa sobre duas memórias recorrentes que entrelaçam arte/

memória e experiência: na primeira situação eu estava em sala de aula, na 4ª série do antigo

ensino primário, e a professora entregou para cada aluno um desenho mimeografado para

pintar. Provavelmente, era época de Páscoa, pois o desenho continha a imagem de um ovo

de Páscoa, bem grande. Dona Nair, a professora na ocasião, sentou-se em sua cadeira e ficou

aguardando todos pintarem, já bastante desacelerada das atividades em sala de aula, visto

que era final de turno e logo bateria o sinal para todos irem embora.
Capa
Quando eu já havia começado a pintar meu desenho, olhei para os lados para ver

como os colegas estavam fazendo os seus. A partir deste momento em que me virei, começou
Ficha
o meu desespero! Achei, não sei por qual parâmetro, que todos os desenhos estavam me-

lhores do que o meu, ainda que seus pintores já os tivessem finalizado. Então, me levantei
Sumário
da carteira e disse para os colegas que estavam mais próximos a mim: - Vocês pensam que o

meu desenho vai ficar assim?, apontando para a minha folha. Repeti essa frase algumas vezes

e me sentei. Coloquei todas as cores de lápis juntas e sobrepostas, dentro da circunferência

do ovo de Páscoa, rabisquei formando um feixe. A folha quase rasgou! O ovo ficou da cor

“Flicts”, uma cor que até então eu não conhecia, mas que hoje já sei nomear. A conheci atra-

vés do escritor Ziraldo e do seu livro de nome Flicts. O desenho ficou horrível, pelo menos na
197

minha imediata avaliação! E tinha certeza que seria também na avaliação de todos. Enfim,

a aula terminou e nunca mais tive notícia da obra, porém, não esqueci o episódio e sempre

lembro dele quando o assunto é desenho, arte ou pintura.

A segunda experiência aconteceu no curso de preparação de professores, (antigo

magistério) no ano de 1.986. Havia uma disciplina que se pautava na construção de um

caderno com desenhos de datas comemorativas, porém a professora jamais orientou como

deveríamos construir nossos desenhos. O meu caderno não foi concluído, pois sempre justifi-

cava para ela que ainda faria algo para melhorá-lo, inclusive, afirmei essa promessa até o dia

da entrega do caderno, quando encerrou a disciplina. Pela proposta da professora, posso ver

hoje sua fundamentação pautada em modelos e o uso da arte apenas como recurso decorati-

vo, da mesma forma que o desenho para colorir no fim de um dia de aula. Tristes percepções!

O valor das minhas experiências, ou a falta delas, tem sido renegado por aquelas

novas trazidas a partir das vivências reais.

As categorias Erfahrung (experiência) e Erlebnis (vivência) são fundamentais na

abordagem da Modernidade, realizada por Walter Benjamin (AQUINO, 2014), centrada na

análise dos modos de perceber e sentir o mundo, que se alteram a partir de transformações

sociais profundas - urbanização, mercantilização, difusão da técnica, “tecnologizaçao” cres-

cente da palavra. Benjamin analisou, em diversas obras, o fenômeno do declínio da Erfah-

rung (experiência) num crescendo que pondera os efeitos psicossociais do surgimento da

escrita, da imprensa, da indústria cultural, da vivência anônima e desenraizada nas grandes

cidades. O resultado desse longo processo de instauração da Modernidade foi a entronização

Capa de uma percepção fragmentada, descontínua e irrefletida - Erlebnis (vivência).

A partir dessas duas experiências problematizo o ensino da arte com base na con-

Ficha cepção de Robert Wiliam Ott (2005, p.123) no texto “Ensinando crítica nos museus”, que

ajuda a refletir sobre tal importância, na medida em que conceitua o modo em que isso deve

Sumário acontecer:

O ensino de arte necessita de um processo sistemático de apren-


der a ver, observar, pensar criticamente ou investigar a respeito de arte
em museus”. Diante dessa definição, posso afirmar que não foi essa a
formação que tive em artes até então. E, por vezes, me arrisco dizer
que, nem meus professores do primário e do magistério a tiveram.
198

No contato com a disciplina de “Teoria e Críticas das Artes”, com o Professor Doutor

Marcos Rizolli, no curso já citado, pude me reencontrar com minha parte criativa e me lancei

aos desafios provocados em suas aulas. As propostas claras e precisas, dadas após as aulas

expositivo-dialogadas bem planejadas, me revelaram como uma pessoa necessitada de arte e

visivelmente impactada com as expressões artísticas, agora então oportunizadas.

Realizei obras que me orgulham muito e como uma perfeita iniciante deslumbrada,

divulguei meus trabalhos por toda parte, sem restrição. Até os colegas do meu trabalho fica-

ram reféns das minhas exibições, além da família, é claro! Mas, todos me acolheram carido-

samente, com paciência e atenção.

O desafio lançado, em 2021, na disciplina de “Leitura de Imagens na Formação Inter-

disciplinar de Professores” também pertencente ao mesmo programa, representa uma grande

oportunidade de dar continuidade à formação artística tão necessária no ofício do pedagogo,

que é no caso, hoje, a minha formação.

Entre outras proposições, aprofundo aqui a proposta de trabalhar com pares de ima-

gens: a fotografia como possibilidade de construção de um pensamento visual e de uma narra-

tiva textual. Os pares fotográficos criados por todos os participantes da disciplina foram apre-

sentados e lidos por todos e ampliados pela fundamentação teórica (ROLDÁN, 2016, p. 70).

Capa

Ficha

Sumário

Fig. 1. Autor desconhecido – Miriam Marcolino dos Santos na Escola Estadual Professo-

ra Raquel Assis Barreiros (1982), localizada no bairro da Vila Nova Cachoeirinha – SP


199

Fig. 2 - Élcio Siqueira - Escola Estadual Dona Suzana de Campos (1971) – Localizada

no bairro de Perus – SP - Par fotográfico de duas fotografias - composto por Miriam

Marcolino dos Santos (à esquerda).

NARRATIVA EM PAR: u m a aná lise de h ist órias e per cursos

As imagens selecionadas acima foram selecionadas em fontes diferentes. A imagem

acima foi resgatada de uma coleção de fotos de família, arquivadas na minha residência e que

por muito tempo foram guardadas pelos meus pais.

Capa A imagem de baixo consta arquivada no Centro de Memória dos Queixadas1 de Perus

(CMQ), um local de grande acervo acerca da história de luta dos trabalhadores da antiga Fá-

Ficha brica de Cimento Portland de Perus, tema da minha pesquisa de mestrado “Os significados da

resistência: O Movimento dos Queixadas e a Educação Integral no bairro de Perus”, no Programa

Sumário de Educação, Arte e História da Cultura, na Universidade Mackenzie, de São Paulo.

De acordo com Roldán (2016), um par fotográfico são duas fotografias que consti-

tuem uma nova unidade visual. As duas fotos escolhidas reforçam a perspectiva de um am-

biente escolar, com elementos próprios desse universo, tais como o mapa-múndi, um caderno

e um lápis (na imagem do Sr. Élcio) e na outra imagem, um livro, considerados símbolos

escolares, e a bandeira do Brasil, somada às mãos juntas e sobrepostas, além da postura ereta
1 Site do Centro de Memória dos Queixadas – Acessado em 06/06/2021 - https://cmqueixadas.com.br/
200

que completam um cenário controlador. Nesta perspectiva, faz-se mister trazer Lopes, (1997,

p. 11), que afirma:

​Os cenários ou quadros de interação onde os sistemas sociais


são quotidianamente produzidos e reproduzidos devem ser analisados
multidimensionalmente, de acordo com a sua historicidade (dimensão
temporal ou concepção do espaço como tempo comprimido) e recusan-
do tanto as visões de fetichização do espaço físico, como a reificação
da espacialidade ou do espaço socialmente produzidos, reconhecendo
a ambos uma margem de determinação específica das práticas sociais
que constantemente as actualizam, em graus maiores ou menores de
congruência ou fragmentação.

O cenário construído para o registro da lembrança escolar tinha uma característi-

ca padronizada (muito parecida em ambas as imagens), carregada de intencionalidade. Há

uma construção idealizada de escola e também de aluno. Presume-se que na construção

da imagem, haja uma perspectiva de supervisão, com orientação de postura de seriedade

e compromisso, dada aos alunos, que esboçam doçura, disciplina e conformidade. A partir

dessa análise é possível encontrar uma confluência nas palavras do educador Miguel Arroyo,

(2014, p.48):

A imagem de bondade e inocência de que a infância era me-


táfora representava uma aspiração e inspiração para os ideais da pe-
dagogia e do magistério e até para os ideais da civilização. Confundir
Capa esses ideais de inocência e de bondade com as crianças, os adolescentes
e jovens reais foi nosso engano. Quando chegam nas escolas ou peram-

Ficha bulam pelas ruas e se revelam nada inocentes, nosso imaginário se


quebra e com ele se quebram as ideias da pedagogia, da docência e até
da civilização.
Sumário

Os registros fotográficos, ora narrados, não nos permitem verificar a similaridade dos

espaços sociais dos quais as crianças das imagens são advindas. As fotografias lhes conferem

uma unidade visual que não revelam suas verdadeiras histórias, que nesse caso, encontram-

-se invisibilizadas. No entanto, de acordo com ROLDÁN, (2016, p.70): “Duas fotos juntas
201

reforçam uma a outra para contar uma história ou para se tornar uma metáfora visual.”2

É possível que as imagens unidas tenham criado uma narrativa de crianças, aquelas

matriculadas em escolas públicas, nas décadas de 1970 e 80, que se apresentam em duas

histórias, separadamente, em duas épocas diferentes, porém contadas de maneira uniforme.

Ambas as crianças fotografadas nasceram em bairros pobres e periféricos. Élcio era

filho do Sr. Roque Siqueira, trabalhador sem especialização, que foi operário a serviço da

Fábrica de Cimento Portland de Perus. Seu tio Mané era “Queixada”3, nome dado aos tra-

balhadores que participaram da greve de 7 anos ocorrida no bairro de Perus, entre 1962 e

1969. Seu pai era “Queixada” da geração mais recente. Sua mãe era a Sra. Maria de Lourdes

Siqueira, cozinheira em duas Santas Casas de: Taubaté e depois de São Paulo. Meus pais são

o Sr. Wilson Moisés Marcolino, motorista de transporte, aposentado e a Sr. Maria Joana Moi-

sés Marcolino, auxiliar de enfermagem, aposentada. Percebe-se assim uma equivalência na

história de cada ator social.

Hoje, Élcio Siqueira, enquanto historiador, aborda em suas pesquisas experiências

vivenciadas no bairro de Perus desde que nasceu. É graduado em História pela Universidade

de São Paulo (USP), mestre em Economia pela UNESP de Araraquara, onde desenvolveu

a dissertação “Companhia Brasileira de Cimento Portland Perus: Contribuição para uma história

da indústria pioneira do ramo no Brasil (1926-1987)” em 2001. É especializado em História

Econômica (UNESP/Campus de Araraquara, 2001) e Doutor em História Social (UNICAMP,

2009). Em sua publicação encontrada no Centro de Memória dos Queixadas, Élcio inclui em

seus relatos as histórias e memórias de seus pais, que eram trabalhadores que foram forçados

Capa a vir da roça, do Interior, para São Paulo. Conta, ainda, que em Perus, o casal se instalara

com o apoio de parentes. Ele entrara na Fábrica de Cimento em 1966 na qualidade de um

Ficha dos “novos” (os ingressados após a greve de 1962) para substituir os grevistas, impedidos de

voltar ao trabalho. Ele conta que seu pai fazia três turnos de trabalho, o que quer dizer que –

Sumário a cada dez dias – tinha que mudar do turno da noite (22:00 às 06:00) para o turno seguinte

(06:00 às 14:00) e, dez dias adiante, para o das 14:00 às 22:00. A consequência direta diz,

era que seu pai sempre estava em casa de manhã ou à tarde (ainda que dormindo), enquanto

2 Texto original em Espanhol: Dos fotografias juntas se refuerzan mutuamente para contar una
historia o para convertirse en uma Metafora Visual.
3 Significado do termo “Queixadas” - Porco do mato de mesmo nome que se uniam para, juntos,
enfrentarem o perigo iminente. https://movimentofabricaperus.files.wordpress.com/2013/12/livro-que-
ixadas.pdf - Acessado em 06/06/2021.
202

sua mãe saía de casa às 05:00 da manhã para só estar de volta, considerando o tempo em

condução, às 19 horas. Quando o pai estava no turno de 06:00 às 14:00, cabia a ele, Élcio,

levar-lhe uma marmita protegida com pano na hora do almoço (11h00), ocasião em que se

sempre deixava dominar pelo fascínio que o poderio da fábrica exercia nele. Isso acabou

quando ingressou na escola, aos sete anos, por conta do horário das aulas.

Quanto a mim, filha caçula de três irmãs, tinha como cuidadoras muitas mulhe-

res: minha irmã mais velha, com quatro anos a mais que eu, minha avó paterna, que morava

no mesmo quintal que minha família e a minha irmã do meio com 9 anos a mais que eu.

Ambas as irmãs mais velhas, apesar das tenras idades, começaram a trabalhar bem cedo e

a se responsabilizar pela casa e por mim, a irmã mais nova. Meus pais trabalhavam muito,

e por isso eu nem sempre conseguia estar com eles. Hoje com 51 anos dedico-me ao estudo

do Movimento dos “Queixadas” em sua relação com a área da Educação no bairro de Perus,

uma peculiaridade encontrada nos interesses de pesquisa também do Sr. Élcio. Esse fato me

impulsionou a tratar o par. Porém, além dessa motivação, as imagens escolares capturadas

nas fotografias também se configuraram grande propósito de análise, vista a possibilidade de

análise dos símbolos contidos nas imagens.

C onsideraç ões finais

Considerando que minha pesquisa sobre a Relação do Movimento dos Trabalhadores

da Fábrica de Cimento de Perus com a área da Educação naquele bairro está fortemente liga-

Capa da às escolas da região, é extremamente provocador pesquisar sobre os símbolos escolares,

surgidos nas imagens dos pares fotográficos.

Ficha Os símbolos escolares culturalmente apresentam-se nos espaços escolares urbanos,

sejam nas décadas de 1970 ou 80, períodos em que as imagens foram produzidas, ou mesmo

Sumário nos dias de hoje, em outros formatos. Será interessante verificar como estão configurados e

inseridos dentro da minha pesquisa, verificando seus usos e suas novas representações.

Nesse trabalho necessário se faz registrar a importância do afeto na proposição das

artes, algo que interfere na criação artística ou na interpretação de uma imagem. Assim, não

é possível gerar de forma superficial uma arte desvinculada de uma história de vida (expe-
203

riência) ou mesmo propor uma criação que apenas reproduza conceitos arcaicos, ditados fora

do contexto.

Numa proposição de arte, ou registro de uma ideia, ou mesmo a perspectiva de uma

invenção, precisa se contar com a interação de elementos que não são os do viés da imposi-

ção. Quando é gerada uma oportunidade artística importa que essa seja inteira, sem consi-

derar o sujeito neutro e ter a sua vivência respeitada, a ponto de evitar que o próprio autor

“morra” dentro de sua própria arte ou no uso de sua imagem. Se faz necessário, portanto,

cultivar o senso crítico do sujeito para que o mesmo não seja explorado ou minimizado na

sua humanidade.

Quanto às reflexões sobre a importância de uma boa formação na área das artes, em

todos os níveis escolares, reitero a necessidade deste diálogo diuturnamente dentro das escolas

e mesmo dentro dos museus, locais que muitas vezes se caracterizam como lugares de acesso

privilegiado, e distante de muitas pessoas. Outro debate que se faz muito necessário é a ques-

tão do respeito às formas de expressão dos alunos. Para além das expressões artísticas as artes

também podem revelar questões afetivas, muitas vezes invisibilizadas no núcleo escolar.

Outro ponto importante é o alcance das formações artísticas para além das técnicas,

considerando que somos sujeitos integrais e temos diversas dimensões envolvidas no momento

da construção da arte. Por fim, reforço a importância da formação crítica na apreciação da arte,

pois muitas narrativas visuais podem conter elementos que forjam o entendimento da realidade.

R efer ê ncias
Capa
AQUINO, J. O conceito de experiência no pensamento benjaminiano. Cadernos
Walter Benjamin. v. 13, p. 46-56, 2014.
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204

Explorando Novos Territórios Feministas: A


maternidade em questão

Mirtes de Moraes

O contato inicial com o referencial teórico sobre as questões relacionadas ao tema

da maternidade se deu há mais de dez anos quando foi desenvolvido no doutorado, nele, foi

centrada uma pesquisa com a proposta de mapear um conjunto de práticas discursivas res-

ponsáveis pela construção de uma concepção ideal de mulher que se alcançaria através do

exercício da maternidade. Pretendia-se verificar como a maternidade passou a ser apregoada

por diversas instituições e a circular imoderadamente no social.

A pesquisa focalizou o período do final do século XIX até as primeiras décadas do

século XX, momento em que se assistiu a uma grande preocupação médica com a mortalida-

de infantil, que aguardava uma política pública eficiente, capaz de reduzi-la a um patamar
Capa
aceitável por uma sociedade que se pretendia civilizada.

Um dos motivos para a alta taxa da mortalidade infantil se relacionava principalmen-


Ficha
te aos problemas digestivos, os médicos, então, passaram a estabelecer uma relação direta

entre o serviço das amas de leite e o alto índice da mortalidade de recém-nascidos. Dessa
Sumário
forma, construía-se um nexo causal entre a baixa qualidade do leite fornecido pelas amas o

alto índice de óbitos infantis ocasionados por disenterias e enterites.

Ao mesmo tempo em que o olhar médico projetava desconfianças variadas sobre o tra-

balho das amas, ia-se fortalecendo um discurso de exaltação da mulher enquanto mãe, a quem

se destinava a importante missão de cuidar das crianças. Entre esses cuidados, a amamentação

do recém-nascido pela própria mãe passou a ser identificada como uma prática essencial.
205

Assim, foi-se valorizando positivamente a maternidade através da construção de

enunciados que iam sendo tecidos continuamente a partir de uma mescla de considerações

científicas, morais, filosóficas, religiosas, legais, pedagógicas e até mesmo artísticas.

Dessa forma, a “condição feminina” ganhou investimentos de dispositivos de poder

e foi sendo modelada por uma trama discursiva que reservava ao feminino o papel prepon-

derante de ser mãe, com todas as implicações políticas e sociais que esse fato pôde acarretar

para as mulheres.

Vale ressaltar que o enfoque teórico metodológico ganhou tamanha importância para

o desenvolvimento do tema do doutorado, assim como também os estudos posteriores a ele,

por meio da teoria buscou-se entender as extensões mais sutis do poder, suas dimensões me-

nos explícitas cuja operação se dá através da constituição de corpos, gestos e subjetividades.

Não se deve conceber o indivíduo como uma espécie de núcleo


elementar, átomo primitivo, matéria múltipla e muda na qual viria
aplicar-se, contra a qual viria bater o poder, que submeteria os indiví-
duos ou os quebrantaria. Na realidade, o que faz que um corpo, gestos,
discursos, desejos sejam identificados e constituídos como indivíduos,
é precisamente isso um dos efeitos primeiros do poder. Quer dizer, o
indivíduo não é um vis-à-vis do poder; é, acho eu, um de seus efeitos
primeiros. O indivíduo é um efeito do poder e é, ao mesmo tempo, na
mesma medida em que é um efeito seu, seu intermediário: o poder
transita pelo indivíduo que ele constituiu. (FOUCAULT, 2002. p. 35)

Capa Neste sentido, Corpos, gestos e subjetividades começaram a fazer parte do núcleo

de inquietações dos meus estudos a partir do doutorado, e, para o desenvolvimento desse

Ficha trinômio, estabeleceu-se uma articulação aprofundada ao pensamento de Michel Foucault,

buscando por meio do embasamento teórico metodológico do pensador, perceber como estão

Sumário conectados os jogos de poder na constituição de um sujeito social, no caso, como os discursos

esquadrinham um modelo de mulher enquanto mãe.

Esse trabalho busca refletir sobre os impactos dos movimentos feministas na expe-

riência da maternidade e a inflexão dos mesmos nos estudos socioculturais, para tanto, a me-

todologia aplicada para a execução da pesquisa será realizada uma revisão nas referências bi-

bliográficas sobre o cruzamento dos temas: maternidade, feminismo e estudos socioculturais.


206

U ma a perspe c ti va fe m inis ta sobre a m aternidade

Ter ou não filhos, ser ou não ser mãe, ou então, como ser uma boa mãe, são questões

pensadas por várias mulheres, podendo ser traduzidas como uma permanência na história.

No que se refere a perspectiva feminista sobre a maternidade, pode-se observar como

ponto de partida, a contribuição da filósofa e escritora francesa, Simone de Beauvoir, que

publicou em 1949, a obra “O Segundo Sexo”, nela, a célebre frase, “não se nasce mulher,

mas torna-se mulher”, pode ser articulada a um olhar crítico sobre o determinismo biológico

feminino: gestação, parto, amamentação. Ao apresentar essas relações, a autora questiona

sobre os papeis reservado às mulheres, assim como o lugar em que a maternidade ocupava

no social, dessa forma, a questão da maternidade começava então a ser compreendida como

uma construção social, que designava um lugar próprio para as mulheres, confinando-as por

sua vez ao espaço privado nas relações familiares. (BEAUVOIR, 1981)

Com base nesta evidência, a crítica feminista que se fortaleceu nos anos posteriores,

considerava a experiência da maternidade como um elemento-chave para explicar à domina-

ção masculina. Essa discussão pode ser observada com mais força entre as décadas de 1960

e 70, quando o movimento feminista se concentrou na reivindicação de alguns direitos como

autonomia econômica e à integridade do corpo feminino.

Na produção acadêmica, percebe-se o encontro de algumas das mais importantes

teorias: estudos culturais e gênero. Nelas, se busca questionar os paradigmas tradicionais por

meio de novas abordagens metodológicas e documentais, possibilitando novas interpretações

e outros sentidos, ampliando noções tradicionais do conhecimento.


Capa
O estudo da historiadora francesa, Michelle Perrot, “Os excluídos da história”, ana-

lisa três grupos sociais, classificados como periféricos pelas antigas fontes e metodologia, a
Ficha
estudiosa vai observar outros sujeitos na história que sofrem um processo de marginalização

pela historiografia. A autores busca pensar os operários, mulheres e prisioneiros, na França


Sumário
do século XIX. No que se refere as mulheres, a historiadora dedicou um olhar voltado para

aquelas que teriam sido silenciadas pela história, dentre elas, destacam-se operárias, prosti-

tutas, lavadeiras e donas de casa, sem escolaridade, que, para ganhar um sustento para si e

sua família, faziam pequenos bicos, trabalhavam como camelôs. Dessa forma, a obra ilumina

não apenas a maneira como o poder se desdobra de modo pragmático e simbólico, mas tam-

bém a resistência e rebeldia de grupos marginalizados ao sistema. O livro foi organizado pela
207

historiadora Maria Stella Martins Bresciani e pode ser pensado como uma referência para

pensar o processo de exclusão que as mulheres tiveram na história. (PERROT, 2021)

Essa questão da invisibilidade dos grupos marginalizados pode ser atrelado aos es-

tudos feministas. No que se refere ao tema maternidade, é possível observar no campo das

ciências sociais uma quantidade significativa de trabalhos que reforçam o questionamento à

maternidade. Entre os trabalhos pode-se destacar o da Betty Friedan em “Mística Feminina”,

publicado em 1963, O livro foi resultado de anos de pesquisa da autora, que entrevistou

mulheres que seguiam os preceitos dos anos 1940 e 1950, nos quais as atividades femininas

ficaram restritas à atuação como donas-de-casa, sua obra buscou mostrar que o trabalho fora

do lar seria uma “libertação” feminina.(FRIEDAN, 1971)

A filósofa Elisabeth Badinter, desenvolveu no seu livro “O mito do amor materno”

uma reflexão sobre como o sentido da maternidade não pode ser enquadrado como natural

e condicionante à natureza feminina, analisando historicamente a maternidade, a autora

busca refletir sobre as associações estabelecidas entre “amor” e “maternidade” tidos como

indivisíveis. (BADINTER, 1985)

No trabalho da antropóloga Margaret Mead, se questiona a corrente de pensamento

que culpava a mãe por tudo. A antropóloga defende por meio dos estudos que era melhor

para as crianças terem várias pessoas cuidando delas do que apenas a mãe. (MEAD, 2020)

Inserido nesse contexto, pode-se articular que uma das palavras de ordem do mo-

vimento feminista dos anos 70 foi o lema “o privado é político”. Essa chamada feminista

sublinha que a subordinação feminina não é mantida apenas no âmbito das instituições e na

Capa esfera pública, mas também na constituição nuclear familiar.

O tema do trabalho, aparece como sentido de libertação nessa discussão sobre ma-

Ficha ternidade. Articulando essa temática com o contexto histórico pode-se observar a entrada da

pílula para uso contraceptivo. Com isso, pela primeira vez na história, as mulheres passaram

Sumário a deter o controle sobre a natalidade. Contribuindo para o fortalecimento dessa forma de

pensamento.

A luta pela livre escolha da maternidade buscava romper com a equação que asso-

ciava de forma direta a equação mulher, igual a maternidade. Essa luta pode ser considerada

fundamental para libertar as mulheres do lugar em que ocupavam na vida privada. Segundo

Norberto Bobbio, a grande novidade desta luta é que ela introduzia, do ponto de vista dos
208

direitos humanos, a noção de direitos específicos. (BOBBIO,1992).

Estas questões colocadas pelo movimento feminista, chamado de “segunda onda”1,

culminou no desdobramento de se pensar o lugar da mulher no espaço social e político.

E era em nome desta identidade, Mulher, que firmou nesse momento, vários grupos

compostos somente por mulheres, discutiam questões relacionadas ao corpo feminino e suas

formas de violência e opressões. (PEDRO, 2005)

Por outro lado, o movimento feminista sofreu um questionamento por parte de mu-

lheres negras, mestiças, pobres e trabalhadoras. Muitas, não se identificavam com o discurso

feminista que se proclamava, não consideravam que as reivindicações desse grupo “Mulher”,

as incluíam, o trabalho, visto como “libertação”, para essas mulheres, o trabalho tinha um

outro sentido, pois há muito trabalhavam dentro e fora do lar.

“Mulher” se tornou sinônimo de “mãe” e “dona de casa”, ter-


mos que carregavam a marca fatal da inferioridade. Mas, entre as
mulheres negras escravas, esse vocabulário não se fazia presente [...]
enquanto as mães negras eram forçadas a deixar os bebês deitados no
chão perto da área em que trabalhavam, outras se recusavam a dei-
xá-los sozinhos e tentavam trabalhar normalmente com eles presos às
costas.(DAVIS,2016, pp. 21 e 25)

Com esse fragmento extraído do livro “Mulheres, Raça e Classe”, de Ângela Davis é

possível perceber que a pauta de reivindicações de algumas mulheres, não era necessaria-

mente a pauta de outras. Dessa forma, pode-se concluir que as sociedades possuem as mais
Capa
diversas formas de opressão, e o fato de ser uma mulher não a torna igual a todas as demais.

Esse questionamento fez com que a categoria “Mulher” passasse a ser substituída por “Mulhe-
Ficha
res”, no intuito de respeitar o pressuposto das múltiplas diferenças que se observavam dentro

da diferença.
Sumário
No final dos anos 80, Joan Scott, historiadora feminista americana informa a neces-

sidade de existir uma categoria de análise centrada nos estudos de gênero:

Gênero se refere à construção de atitudes, expectativas e com-

1 Alguns pensadores colocam essa noção de “ondas” como sinônimo do aparecimento de momen-
tos de maior fortalecimento do movimento feminista, tendo a “primeira onda” teria se desenvolvido no
final do século XIX e centrado na reivindicação dos direitos políticos – como o de votar e ser eleita –, nos
direitos sociais e econômicos – como o de trabalho remunerado, estudo, propriedade, herança.
209

portamentos tendo por base o que a sociedade atribui como apropriado


para o sexo feminino e masculino. Aprendemos a ser homens e mulhe-
res pela ação da família, da escola, do grupo de amigos, das institui-
ções religiosas, do espaço de trabalho, dos meios de comunicação. Diz
respeito também, ao modo como lidamos, ao longo da história e de
forma diversa entre as diferentes culturas, com o poder nas relações in-
terpessoais, hierarquizando e valorizando o masculino em detrimento
do feminino. (SCOTT, 2017, p.12)

Deste modo, Scott sinaliza que as relações de gênero são construções definidas por

produções discursivas construídas pela estrutura sociocultural de onde recebem significados

por meio das relações de poder. Essa estrutura de pensamento recebeu importantes contribui-

ções fornecidas pela arqueologia dos discursos de Foucault. (FOUCAULT, 2002)

Tendo entre suas preocupações evitar as oposições binárias fixas e naturalizadas, os

estudos de gênero procuram mostrar que as referências culturais são sexualmente produzi-

das, por símbolos e discursos, pela linguagem, jogos de significação, cruzamentos de concei-

tos e relações de poder, conceitos normativos, relações de parentesco, econômicas e políticas,

inscritas nas referências cotidianas nas estruturas mentais e nos corpos (a maneira de fazer

uso do corpo e perceber o corpo do outro).

Acompanhando a trajetória do movimento feminista com a perspectiva de gênero é

possível abordar a maternidade em suas múltiplas facetas, por um lado, é possível observá-la

dentro de perspectiva do cotidiano em que se busca resgatar a experiência da maternidade

como parte da identidade e da subjetividade feminina. (SCAVONE, 2001)


Capa
A maternidade passa então a ser vista como um símbolo construído histórico, cultu-

ral e politicamente, resultado das relações de poder e dominação. Esta abordagem contribuiu
Ficha
para a compreensão da maternidade no contexto cada vez mais complexo das sociedades

contemporâneas. (MORAES, 2021)


Sumário

A ( des ) con t rução da m aternidade na c on t em poraneidade .

Embora as correntes feministas apontem para uma problematização sobre a roman-

tização da maternidade é possível perceber a entrada de um discurso disseminado pelas re-

vistas femininas dos anos 80 e 90 em que a palavra “culpa” assume a grande protagonista do
210

cotidiano das mulheres e o trabalho que ora fora vista como um discurso libertador passa a

ser propagado numa esfera individualista, egoísta.

Reforçando esse discurso, pode-se encontrar algumas produções fílmicas que centra-

lizam a figura da babá como algo danoso, na década de 90 é possível perceber esse sentido

em dois longas-metragens, em 1992, a mão que balança o berço, a narrativa no gênero sus-

pense, conta a história de um casal que busca por uma babá para cuidar dos seus filhos, aca-

bam encontrando uma babá que superam os pré-requisitos do casal, porém ela se torna uma

figura possessiva e nociva, no ano seguinte é lançado uma babá quase perfeita, do gênero

comédia dramática retrata a história de um pai que é impedido pela ex-esposa de passar mais

tempo com os filhos, para driblar, o pai se veste como uma senhora idosa e tenta conseguir

o cargo de babá no seu antigo lar. Pode-se perceber uma crítica a essa mãe que trabalha fora

associando-a a uma pessoa fria e egoísta, por não ter dedicação exclusiva aos filhos.

Vale observar que uma das características da geração de crianças que nasceram após

a década de 80 se situa pelo estabelecimento de estar ocupada, tanto no que se refere aos

esportes, como em línguas estrangeiras e até atividades voluntárias. Nesse sentido, o papel

de dedicação integral das mães esteve muito vinculado ao ir e vir das crianças para a escola,

assim como às aulas de inglês, natação, balé e também outras atividades como grupos de

escoteiro

A nova definição da boa maternidade era, na imaginação po-


pular, o “estar de plantão”. Entretanto, agora os deveres da materni-
dade tinham atingido proporções épicas. Se você quisesse ser uma mãe
Capa virtuosa não bastava ficar em casa ou trabalhar só meio expediente
para poder apanhar os filhos na escola. Era preciso ajudar no dever de

Ficha casa, cozinhar para a quermesse, e oferecer-se como voluntária para


atividades escolares. Era preciso estar presente em quantidade e quali-
dade de tempo. Para encaminhar o filho no sentido de um futuro pro-
Sumário
dutivo, a mãe tinha que ser também um exemplo um comportamento
produtivo, mantendo-se constantemente ocupada. (WARNER, 2005,
p.147)

Num mundo extremamente competitivo a mãe será cobrada pelo sucesso ou fracasso

do seu filho. Nesse sentido, essa dinâmica social vai gerir uma mãe controladora que preza
211

pelo espaço individual, com consequências de uma progressiva individualização das relações

na sociedade, que se fizeram sentir de maneira mais aguda nas camadas urbanas da popula-

ção, sobretudo, ligadas aos valores da classe média.

Pode-se perceber uma articulação desses valores da sociedade capitalista que se des-

dobra nas ideias neoliberais, marcado pelas relações de concorrência entre mercados priva-

dos. Um dos efeitos desse processo é transformar a sociedade ativa, competitiva, regida pela

ótica do trabalho. Desse modo, tanto a criança com o adolescente devem ser preparados

para entrar nesse mercado competitivo. Pode-se articular a esse contexto, o pensamento do

filósofo coreano Byung-Chul Han desenvolve o conceito de sociedade do desempenho, o

pensador defende que na sociedade atual existe um esquema positivo de poder, presente no

inconsciente social, por meio desse poder há uma cobrança social de sucesso que é reforçada

pelos discursos de positividade, em que as pessoas se apresentam felizes e bem-sucedidas.

Desse modo, o discurso neoliberal promove um novo sujeito social: ativo e provido de ego.

(HAN, 2017)

Esse contexto cultural, também conhecido como geração “Yuppie”, derivação de

“Young Urban Professional” termo cunhado no início dos anos 80 para se referir a jovens

profissionais urbanos que possuem entre 20 e 40 anos de idade, geralmente têm formação

universitária e seguem as tendências de consumo.

Desse modo, pode-se perceber dois processos que se completam na sociedade con-

temporânea, o primeiro é a de nuclearização da família orientado pela ideologia individua-

lista e a experiência de maternidade passa a ser administrada também pelo exercício da pa-

Capa ternidade. Um novo modelo de família se institui ancorado em valores como o afeto, atenção

à subjetividade e a um relacionamento mais igualitário e livre entre pais e filhos. E, como

Ficha forma complementar, especialistas nas áreas de psicologia começam a trabalhar juntamente

com os casais e filhos na construção e divulgação de um paradigma alternativo reativo aos

Sumário antigos valores e crenças relativos a maternidade e a maternagem.

A penetração dessa forma de discurso era favorecida pelas formas de comunicação,

veiculando através de jornais, revistas e televisão, conselhos e orientações. Em muitas abor-

dagens se conferia um grande valor aos aspectos subjetivos das relações e ao desenvolvimen-

to da individualidade, estabelecendo que já não era mais possível pensar o papel materno

como o único e disponível para as mulheres


212

O registro do progresso científico proporcionado pela Medicina e pela tecnologia

nas últimas décadas, aliado às transformações do papel da mulher na sociedade, tem trazido

novas e importantes questões para a família e também na configuração subjetiva da materni-

dade. Na contemporaneidade, a mulher pode tornar-se mãe sem depender da presença con-

creta de um companheiro, defendida pelas novas tecnologias reprodutivas e pelos avanços

das técnicas de fertilização assistida. Aliadas a esses avanços, também é possível perceber

técnicas de cuidados aos recém-nascidos que reduzem drasticamente a mortalidade de crian-

ças. Esse cenário contribuiu para uma na organização familiar gerindo novos sentimentos

relacionados à maternidade e maternagem.

A sociedade contemporânea se abre para uma diversidade de possibilidades para se

pensar família, maternidade e maternagem. Por um lado, é possível encontrar diferentes

formas de maternar, conhecidas como redes de apoio: escolas com tempo integral, creches

públicas, babás, escolinhas especializadas, vizinhas que dão uma olhadinha e avós solícitos.

E, por outro lado, é possível perceber nas redes sociais uma forte forma de representar a ma-

ternidade tanto como maternidade romantizada.

Maternidade romantizada e real, mesmo se estabelecendo como contraponto, essas

duas versões contraditórias marcam traços da cultura contemporânea, de um lado se fortale-

ce uma abordagem mais conservadora e de outro, é possível perceber também uma aborda-

gem mais ampla e complexa.

Percebe-se na contemporaneidade um duplo movimento, por um lado pode-se obser-

var a tentativa de recuperar as estruturas estabelecidas de uma “identidade feminina” que se

Capa situa por meio um ideal de maternidade, e por outro, busca-se um lugar de defesa em que os

limites de gênero não sejam determinantes. Assim, percebe-se uma forma de maternidade

Ficha pensada à luz dessa forma concepção mais plural.

Pode-se conectar com essa perspectiva, o pensamento da filósofa Judith

Sumário Butler sobre o que ela define como “teoria performática”

Em outras palavras, atos, gestos e desejo produzem o efeito


de um núcleo ou substância interna, mas o produzem na superfície do
corpo, por meio do jogo de ausências significantes, que sugerem, mas
nunca revelam, o princípio organizador da identidade como causa. Es-
ses atos, gestos e atuações, entendidos em termos gerais, são performa-
213

tivos, no sentido de que a essência ou identidade que por outro lado


pretendem expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas por
signos corpóreos e outros meios discursivos. O fato de o corpo gênero
ser marcado pelo performativo sugere que ele não tem status ontológico
separado. (BUTLER, 2021, p. 194).

Este modelo performativo da filósofa pode ser articulado a forma plural de materni-
dade que se esboça na sociedade contemporânea, manifestado por uma variedade de tipos de

mães: donas-de-casa, mães chefes-de-família, mães “produção independente”, casais “igua-

litários”

Essa forma complexa e diversa da representação da maternidade contemporânea

pode ser articulada com o incremento das redes sociais

Quero sugerir que, assim como nos anos 90, os estudos sobre
sociologia política e da comunicação descobriram a importância da
vídeo-política, devemos prestar agora mais atenção a outros modos de
informar-se, comunicar-se e participar socialmente que se situam nos
novos cenários digitais da leitura. Assim como as políticas culturais
não podem ser tão somente gutenberguianas, deslocadas em relação
aos lugares e meios onde a maioria se informa e se entretêm, não é
possível centrar o debate sobre a democratização social somente na
comunicação escrita. Nem tampouco na manipulação televisiva. Uma
mirada voltada para os novos modos de ler e de comunicar revela que
não se lê tão pouco, nem menos que no passado. Vendem-se revistas em
Capa menor quantidade, mas centenas de milhares as consultam diariamen-
te na internet. Diminuem as livrarias – há que se preocupar e elaborar

Ficha políticas mais eficazes para lhes dar sustentabilidade, sobretudo às es-
pecializadas – mas aumentaram os cibercafés e os meios portáteis de
mensagens escritas e audiovisuais. (CANCLINI, 2015, 68)
Sumário

Assim, como observa Canclini deve-se prestar atenção a outros modos de informação

e comunicação. Atrelado a esse pensamento de Canclini pode-se observar uma rede de con-

vergência sobre questões que envolvem a maternidade e a maternagem. Na circulação dos

desabafos virtuais, encontra-se o fortalecimento de conceitos para a (des)construção de uma

maternidade ideal.
214

No cenário contemporâneo observam-se várias pessoas “plugadas” em seus celulares,

esses aparelhos tornaram-se companheiros inseparáveis das pessoas, isso pode ser notado

nas ruas, em pontos de ônibus, dentro dos transportes públicos e também nos lugares fecha-

dos como shoppings, restaurantes e até mesmo, em museus. Nessa convivência, novas formas

de sociabilidade e de cultura foram se estabelecendo delineando novos desenhos entre a

comunicação e o indivíduo.

Ao mesmo tempo em que a tecnologia passa a imprimir um comportamento indivi-

dual, ela também pode produzir um caráter coletivo, ou seja, é possível perceber um cresci-

mento nas redes sociais de grupos que buscam canalizar e difundir informações. Fazer uma

doação, confirmar presença em algum protesto, são alguns tipos de ações em que o acesso ao

uso de tecnologias digitais passa a fazer parte do cotidiano coletivo atual.

Deste modo, as novas tecnologias podem ser pensadas como um novo e complexo

universo de fenômenos comunicativos, sociais e discursivos. E, com essas novas formas de

comunicação, nascem novos sujeitos.

R efer ê ncias

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Capa

Ficha

Sumário
216

Sobre imagens e o imaginário

Paula Serafim Daré

“...sempre haverá mais coisas num cofre fechado do que num


cofre aberto. A verificação faz as imagens morrerem. Imaginar será
sempre maior que viver”. Bachelard

O estudo da história passada é sempre realizado a partir do tempo do pesquisador,

pois seu olhar se faz sob a interpretação de seus valores e avaliações. É importante lembrar

que isto não implica em anacronismo, que é ler uma imagem a partir de conhecimentos e va-

lores que não havia na época, mas por entender que o estudo do passado nos leva, em última

instância, a um entendimento do presente, de quem somos hoje e como chegamos ao tempo

presente. Entre o tempo do fato ocorrido e seu estudo pode haver lacunas demasiado ex-

tensas, e a construção de uma imagem panorâmica deste passado se dá como na montagem


Capa
de um quebra-cabeças no qual peças faltantes são muitas vezes inferidas pelo pesquisador e

imaginadas numa combinação de referências documentais de alguém que olha este material
Ficha
com cores e tonalidades de seu próprio tempo. Neste capítulo, abordaremos a ligação entre

a materialidade de uma imagem e seu efeito sobre a criação de imagens mentais, imateriais,
Sumário
em um movimento dialético capaz de construir a realidade em um fluxo contínuo entre o

indivíduo e a sociedade. O imaginário não é a realidade, mas pode criá-la, a partir do olhar

que interpretamos o real, podemos escolher ações que transformam a realidade. O modo

como interpretamos o mundo é particular a cada indivíduo, nossa interpretação dos fatos

e situações é uma maneira de tornar familiar o que nos é estrangeiro. Podemos dizer que

formar uma representação interna é um modo de acomodarmos a realidade à nossa própria


217

maneira. Esta interpretação, no entanto, influencia a realidade, pois determina a ação na

pólis, na sociedade.

Segundo Pesavento (2003), o imaginário é a capacidade de fazer representações

mentais. O que entendemos por realidade é sempre uma representação filtrada pela nossa

percepção do real, que fica em uma zona fronteiriça que flerta com a nossa capacidade de

criação e com nossas defesas e pode criar ficções. Para dar um exemplo que torna mais cla-

ro o que estou dizendo, podemos pensar em alguém que diz que o mundo está sempre nos

pregando peças e do qual sempre temos que nos defender. Esta forma de entender o mundo

se projeta e se mescla a este real percebido e convoca o combatente interno. É um modo de

olhar o e interpretar o mundo – uma ficção.

Imagens do real impactam e criam novas imagens. Elas podem nos deslocar no

tempo, criando a possibilidade de estarmos simultaneamente em lugares diferentes imageti-

camente.

A imagem é um cristal de tempo, onde o Outrora se encontra


com o Agora em um relâmpago para formar uma constelação
(BENJAMIN, 2006 p.505).

A palavra imagem deriva do latim imago, é uma representação de algo, a imagem

anímica diz respeito às representações interiores, que tem um caráter imaterial e a imagem

arquetípica é àquela que dá forma a um conteúdo arquetípico (SHARP, 1991). Os arquétipos,

segundo Jung (1954/2003), são padrões estruturais, encontrados em todas as culturas. Este

Capa padrão arquetípico não tem acesso à consciência, mas se manifesta por meio de imagens,

que se apresentam na roupagem da cultura. Um arquétipo quando não está ativado por uma

Ficha demanda da consciência, não possui forma pré-estabelecida, mas configura-se apenas como

uma possibilidade.

Sumário Cada época fará a leitura de uma imagem de modo diverso, sempre haverá novos

olhares e perspectivas sobre um mesmo fenômeno estudado (PAIVA, 2015). Quem conta uma

história, a conta a partir de seu lugar, no ditado popular, um ponto de vista é a vista de um

ponto, ao qual muitos outros podem ser acrescentados. A história narrada por meio de ima-

gens tem como matéria prima a subjetividade de quem a produziu, mas esta subjetividade

tem algo de coletivo, pois contém os valores de uma época. Há um intercâmbio entre o que
218

é pessoal, individual e o que é fruto do coletivo.

O historiador de arte Abraham (Aby) Warburg discorreu sobre este fenômeno, ten-

tando construir um corpo de conhecimento por meio de imagens que mapeavam aspectos

psicológicos da cultura (WARBURG, 2010). Em sua biblioteca, Warburg, colocou uma placa

na qual estava escrito Mnemósyne, referindo-se à deusa grega da memória, seu objetivo era

mostrar que certas formas sobrevivem ao longo do tempo criando um patrimônio coletivo. As

imagens carregariam uma memória coletiva que é reatualizada em diferentes contextos his-

tóricos, é a memória que mantém vivo o passado tornando-o sobrevivente (TAVARES, 2012).

Segundo Warburg, antigas imagens que refletem movimento e que haviam desaparecido na

Idade Média, voltam a ser representadas no Renascimento, é como se tivessem se preserva-

do ao longo do tempo no campo do imaginário humano. Constituem-se de gestos que são

universais, que ele chamou de Pathosformel ou “fórmulas da emoção” (SERVA, 2020 p. 39).

O conceito de Nachleben, também desenvolvido por Warburg, diz respeito à emergência de

características do passado, no presente. Seu desejo era chegar no significado da sobrevivên-

cia destes elementos na cultura (SERVA, 2020). A presença de um passado sobrevivente nas

culturas se aproxima da noção de arquétipo de Jung (1954/2003), que são potenciais para

formação de imagens herdadas pelo humano, sendo que estas imagens se atualizam em no-

vas formas de representação.

Para Jung (2003), o inconsciente possui duas camadas, uma mais superficial, que ele

denomina inconsciente pessoal e uma mais profunda e inata que ele denomina inconsciente

coletivo, que seria constituído de um substrato que é comum a todos os seres humanos. O

Capa conteúdo do inconsciente pessoal seriam os complexos, formados a partir da vivência do in-

divíduo, e os conteúdos do inconsciente coletivo dizem respeito a imagens universais e são

Ficha chamados de arquétipos. Estes conteúdos universais podem assumir formas e imagens diver-

sas de acordo com a cultura.

Sumário
Por seu lado, Jung introduzia a idéia de estruturas arcaicas
que presidiam a capacidade humana constitutiva de imagens, a que ele
deu o nome de arquétipos. Formas dinâmicas, instauradoras do imagi-
nário coletivo, os arquétipos funcionavam como permanências mentais
socializadas e re- atualizadas ao longo do tempo. Ou seja, surgia todo
um pensamento centrado no universo simbólico, sem que, porém, fosse
ainda apropriado pelos historiadores (PESAVENTO, 2003 p. 23 e 24)
219

Teóricos como Didi-Huberman e Agamben refutam a ideia da aproximação entre

Warburg e Jung. Acreditam ser reducionista aproximar a ideia da imagem sobrevivente ao

conceito de arquétipo. Foi Fritz Saxl – colaborador de Warburg -, o primeiro a fazer esta cor-

relação e, mais tarde, Gombrich (1992), em sua biografia sobre Warburg. Para estes autores,

Jung e Warburg se debruçaram sobre o estudo e o impacto da imagem, além do interesse pelo

estudo das tradições (TAVARES, 2012).

A ci ên cia e o i maginário

A ciência procura definir fenômenos, mas como criar uma metodologia que estude o

imaginário sem reduzi-lo? Se uma imagem que possui materialidade, como uma obra de arte,

cria ou nos remete a outra figura imaginal dentro de nós, podemos dizer que uma imagem

pode nos levar a lugares que estão ausentes em sua representação. A imagem é, portanto,

mais do que mostra, não se reduz ao que é visto, mas ao que pode ser pensado e deduzido

(TAVARES, 2012).

As ciências chamadas duras sempre partem de dados objetivos em suas análises dos

fenômenos, mas deixar de considerar a subjetividade na construção da história é negar algo

que define e caracteriza o humano que é a atribuição de significados. Esta atribuição de sig-

nificados, pode dar às situações, pessoas ou objetos algo que os transcende, que avança para

além de sua materialidade e utilidade, ganhando um tecido simbólico que é invisível, mas

nem por isso menos marcante em sua repercussão (PITTA, 2017).

Capa Dois estudiosos de destacaram no estudo do imaginário, Gaston Bachelard e Gilbert

Durand, eles são autores que atribuem legitimidade ao exercício imaginativo do humano.

Ficha
As imagens devem, de fato, ser estudadas por outras imagens...
No lugar de sintetizar uma vasta cultura erudita tirada de leituras (so-
Sumário bre as mitologias religiosas, os casos patológicos etc.) Bachelard quer
experimentar por ele mesmo, senão sobre ele mesmo, as imagens, seja
dentro dos devaneios espontâneos, seja na leitura atenta, para reencon-
trar fenomenologicamente os processos da imaginação criadora (PIT-
TA, 2017 p. 42)

Gaston Bachelard (1884-1962) tem sua obra dividida em dois momentos, nomeados
220

por ele, em diurno e noturno. Na primeira fase da sua obra, ele escreve sobre epistemologia e

ciência – momento diurno – e a partir de 1938 passa a escrever sobre a imaginação por meio

de investigação e pesquisa filosófica, utilizando como método os quatro elementos: água, ar,

fogo e terra - momento noturno. Bachelard encontrou na obra de Jung um lugar de interlocu-

ção. Em seu livro Tipos Psicológicos (1921/ 1991), Jung afirma que psique é imagem e que a

psique cria realidade todos os dias por meio da imaginação. Para Bachelard (1994), a imagi-

nação precede a percepção, o que nos faz perceber a realidade desta ou daquela maneira. De

acordo com o entendimento destes dois pensadores – Bachelard e Jung - há um grande salto

no entendimento da epistemologia da psique, uma vez que ele eleva a imaginação à categoria

de realidade, para não dizer que a suplanta.

Para Gilbert Durand (1921 – 2012), o imaginário é um recurso do homem frente a

angústia existencial. Opera de modo a organizar a experiencia do real, para este autor, que

também tem seus fundamentos na fonte junguiana, os mitos são as fontes simbólicas do ima-

ginário (CARVALHO, 2019). Segundo Durand, o homem é um produtor de imagens, por meio

das quais pensa e cria, “Conhecer as imagens que estruturam o homem é conhecer as ima-

gens que estruturam todas as suas obras, mesmo as obras científicas...” (PITTA, 2017 p.90).

A nosso modo, cada um de nós, é um artista da realidade experienciada, uma vez que

podemos pintar imaginativamente a realidade, que no momento que pode ser representada,

cria corpo dentro de nós.

A i magem da ob ra de art e
Capa
O que diferencia um bom desenho ou pintura de uma obra de arte? Além da avalia-

Ficha ção daqueles que são expertises das artes, a permanência no tempo, o fato da obra atravessar

temporalidades e se manter dialogando com as pessoas de diferentes tempos históricos, inde-

Sumário pendente da época em que foram realizadas, talvez outorgue a ela este valor.

O artista por meio do seu talento, cria diferentes fontes de linguagem que expressam

sua leitura sobre o mundo. A fonte criativa parte do percurso do artista no que diz respeito

ao seu caminho pessoal e àquilo que foi internalizado pela cultura. Segundo Buoro (2002 p.

54), “Entender esse diálogo plástico é participar do mundo da criação...”.

A memória da cultura veiculada por meio das obras de arte são fundamentais. Assim
221

como temos porta-retratos de família em nossas casas, as obras de arte podem funcionar

como porta-retratos da cultura de uma época. Escolhemos por meio das obras qual história

será contada. A cada nova visita que se faz ao passado novos “porta-retratos” podem ser esco-

lhidos e assim nossa consciência coletiva sobre a cultura se amplia. Poderíamos compreender

a arte como coagulações do imaginário da cultura?

Imagens de obras de arte pictóricas, particularmente as figurativas, nos conduzem

ao passado nos transportando a outros lugares e nos fornecendo dados, costumes e valores.

É importante ter crítica sobre as imagens analisadas como fonte documental, observar por

meio de métodos comparativos se a imagem foi idealizada ou se há indícios de paradoxos na

imagem. Mas ainda que pareça idealizada é, ainda assim, uma informação sobre a sociedade

e os desejos de uma época (BURKE, 2016). A análise das obras deve ir para além do óbvio, é

necessário observar pistas e entrelinhas, lacunas e omissões interessam ao pesquisador (PAI-

VA, 2015).

Muitos pintores poderiam ser descritos como historiadores so-


ciais pelo fato que suas imagens registram formas de comportamento
social, cotidianas ou eventos festivos: limpar a casa; sentar para uma
refeição; participar de procissões religiosas; visitar mercados e feiras;
caçar, patinar, descansar à beira mar; ir ao teatro, ao hipódromo, ao
concerto ou à ópera; participar de eleições, comparecer a bailes e jogos
de críquete (BURKE, 2016 p. 156).

Uma imagem carrega consigo uma historicidade, portanto, uma obra de arte deve
Capa
sempre ser examinada com cuidado, pois nem sempre a representação de uma época é fiel

à realidade, podendo conter idealizações. Quando olhamos uma obra de arte é sempre im-
Ficha
portante fazermos uma série de questionamentos: “Quando? Onde? Quem? Para quem? Para

quê? Por quê? Como?”. Lembrando que aquilo que está ausente também pode gerar signifi-
Sumário
cados (PAIVA, 2015 p. 18).

Obras realizadas sob encomenda, por exemplo, podem ter uma série de intenções

não expressas que vinculam a história que se pretende contar aos fatos (PAIVA, 2015).

Mas mesmo obras que são realizadas com uma intenção, não devem ser descartadas como

documento histórico, pois podem carregar elementos que fogem do controle da consciên-

cia coletiva de sua época, são elementos que se impõe à revelia da escolha consciente. Ao
222

analisarmos uma imagem ou uma obra de arte é necessário que se olhe para uma série de

relações que a transcendem. O Papa Gregório I, quando permitiu o uso de imagens para

difusão e ensinamento do cristianismo por meio de pinturas aos ágrafos, talvez não ti-

vesse ideia de que seu alcance iria muito além daqueles que não sabiam ler (GOMBRICH,

1972).

Para Benjamin (2006), as imagens são uma espécie de coagulação na linha do

tempo, uma espécie de fóssil que materializa de onde viemos e aonde chegamos. A ima-

gem se constitui como uma erupção vulcânica no tempo que com suas lavas quentes,

coagula e perpetua o momento. A imagem traria consigo as reminiscências de outras

imagens. Benjamin (2006), chama de aura, uma espécie de atributo e poder da imagem

de agir sobre o observador, retribuindo o olhar, conferindo a este encontro um caráter de

alteridade.

Segundo Isabelle Anchieta (2021), as imagens carregam consigo tantas outras, for-

mando uma polimagem, uma espécie de história da imagem, uma sociogênese. Neste sen-

tido, tal como nas expectativas de Warburg (2010), as imagens podem se consolidar como

documento histórico e fonte de uma construção científica realizada por meio do estudo de

série de imagens. As imagens vão agregando sentidos ao longo de sua existência, e carre-

gam consigo uma potência que podem refletir as transformações sociais de determinado

período (WARBURG, 2010). Podemos observar a potência das imagens na pesquisa de dou-

torado de Leão Serva (2017), seu trabalho discorre sobre o impacto das imagens de guerra.

Supunha-se que a não exposição ao campo de batalha e o manejo de mísseis à distância

Capa poupariam os combatentes virtuais, mas não é isso que tem se verificado, estes profissionais

sofrem impactos semelhantes aos combatentes in loco, os editores de fotografias de guerra

Ficha também sofriam os mesmos níveis de estresse pós-traumático que os fotógrafos no front.

Isto indica que a imagem carrega consigo uma carga de energia capaz de impactar de modo

Sumário traumático. As imagens, possuem um impacto sobre o imaginário, se comunicam e criam

uma relação com o espectador, independente da vontade ou desejo da consciência. O que

nos leva a crer que a imagem possui uma permeabilidade na psique que o texto escrito,

por ser mediado pela razão, não possui. O alcance das imagens são motores sociais, pois

funcionam de modo implícito.


223

Q uando o sonho é o pa l co da for m ação de im agens

Na década de 30, a jornalista judia Charlotte Beradt, percebeu uma intensidade emo-

cional no conteúdo dos seus sonhos e investigou se isto estaria acontecendo com pessoas à

sua volta. Na época ela coletou 300 sonhos, no período de 1933 a 1939, ano em que conse-

guiu fugir da Alemanha. Ela escreveu em 1943 um artigo e em 1966 um livro chamado Os

sonhos do terceiro Reich. As imagens oníricas por ela coletadas pareciam trazer o movimento

ainda não explicito do que aconteceria no período do nazismo. É como se as imagens dos

sonhos pudessem criar uma linguagem metafórica para aquilo que ainda não encontra uma

forma no discurso (BERADT, 2017; DUNKER et al.,2021).

No período mais recente, da pandemia da Covid-19, uma pesquisa realizada entre

várias universidades na qual foram coletados 900 sonhos, os mesmos traziam imagens do

processo adaptativo que todos estávamos passando, o isolamento físico, o temor da contami-

nação e o medo da morte (DUNKER et al.,2021). Estudos como estes mostram que os sonhos

funcionam preparando e organizando o indivíduo para o enfrentamento adaptativo. Sempre

que enfrentamos uma situação nova, velhos padrões podem não atender às novas demandas

e isto implica em um aumento do trabalho psíquico para darmos conta das transformações,

uma espécie de costura simbólica no tecido social. Estudos como estes mostram o quanto

os sonhos são importantes para além das questões pessoais do sonhador, são também um

termostato e um fator de manutenção de equilíbrio frente a grandes transformações sociais

(DUNKER et al.,2021).

Imagens formam territórios que dentro de cada um nós encontram um campo por
Capa
meio do qual batalhas possam ser encenadas e saídas possam ser vislumbradas neste inter-

câmbio entre a psique individual e o imaginário coletivo.


Ficha

Sumário As i magens no mundo c on t em por â neo

A imagens que possuem materialidade, relacionam-se com as imateriais produzi-

das pela psique e neste movimento conjunto criam realidade. O arquiteto Juhani Pallasmaa

(2013), nos lembra que nos dias atuais as imagens são produzidas para todos os fins, da

educação à diversão e buscam exercer certo controle, principalmente quando entram em

questões ideológicas e políticas e atuam como uma espécie de colonização do pensamento. O


224

autor nos lembra que antes do desenvolvimento da escrita, as imagens e gestos eram a forma

de comunicação e que, atualmente, mesmo nos países mais desenvolvidos houve um declí-

nio das habilidades de linguagem. Seria um retrocesso em meio a tanto avanço tecnológico?

Com a leitura na internet, por meio de textos rápidos, talvez seja cada vez mais difícil de nos

embrenharmos em um livro de 300 páginas, há uma urgência que nos leva a textos curtos e

fragmentários e para Pallasmaa (2013), nem sempre conectados entre si, criando uma expe-

riência de descontinuidade. A observação das redes sociais em seu contínuo fluxo de imagens

também promove esta vivência de descontinuidade.

Vivemos em uma era de muitas imagens, mas que de algum modo, exatamente pelo

volume é algo que nos soterra e é minimizado o encontro dialético que alimenta o imaginá-

rio. As imagens são consumidas sem serem digeridas, criam um mundo com muita informa-

ção e pouco conhecimento e, consequentemente, pouca sabedoria. É comum procurarmos

um filme nos streamings e não vermos nenhum, o excesso confunde e exaure.

Um estudo recente conduzido nos Estado Unidos demonstrou


que mais de 50% das crianças daquele país com menos de 15 anos
nunca haviam assistido a um único programa de televisão do início ao
fim5. Será que isso marca o fim das narrativas completas e da ética
da causalidade? Qual a mensagem ética das narrativas interrompidas
e descontínuas? Como professor de arquitetura, tenho testemunhado
o impacto negativo das informações facilmente disponíveis – porém
fragmentadas – em artigos de alunos, que tendem a apresentar diversos
fatos, mas, com frequência, carecem da compreensão da essência do as-
Capa
sunto. A informação está substituindo o conhecimento (PALLASMAA,
2013 p.15).
Ficha
O conhecimento atribui sentidos e significados, e em um mundo onde informações

Sumário não conseguem ser transformadas em conhecimento, nos leva a uma banalização das expe-

riencias. A atenção que não “pousa”, se mantém sempre em vôo, subtrai a profundidade do

mergulho e, consequentemente, compromete a infiltração de um rizoma imaginativo, bem

como nossa capacidade de pensar criticamente sobre um assunto, o que aumenta nossa vul-

nerabilidade em ter o pensamento colonizado, sem exercer um filtro sobre as imagens, “O

enfraquecimento da imaginação também sugere o enfraquecimento consequente de nossos


225

sentimentos de empatia e ética” (PALLASMAA, 2013 p. 16).

Pallasmaa (2013 p. 20 e 21), nos fala de “Imagens de controle e emancipação”, as

imagens de controle seriam àquelas que visam manipulação e enquadre do pensamento, de

uso político e de consumo, são as imagens colonizadoras, para o autor, estas imagens “con-

finam e enfraquecem a liberdade”; as imagens de emancipação são àquelas ligadas à poesia,

literatura e artes em geral. São imagens que abrem, convidam, incomodam, estimulam e

alimentam o imaginário individual e, consequentemente, o coletivo.

No mundo contemporâneo, houve uma espécie de inversão e a ficção parece vir de

fora, vivemos o imaginário nos jogos, no metaverso. Compramos o imaginário, ele virou

consumo.

Assistimos a vida alheia nas redes sociais e não vivemos a nossa própria vida. A

psique individual e coletiva necessita da retroalimentação em um movimento de sístole e

diástole, introversão e extroversão, mergulho e vôo. Nunca foi tão importante sermos seleti-

vos, estabelecermos uma curadoria de imagens, para que o imaginário possa ser instigado a

explorar o mundo dentro de cada um de nós.

R efer ê ncias
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Canibais. São Paulo: Edusp, 2021.

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Ficha Conferências. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Kindle.

Sumário
227

Mulheres brasileiras com deficiência física na educação:


trajetórias e experiências

Raquel de Assis Russo

O presente trabalho dedicou-se a investigar quais são os obstáculos comuns enfren-

tados por mulheres brasileiras com deficiência física no âmbito educacional e compreender a

partir das experiencias de uma mulher nessas condições, seu percurso trilhado para alcançar

o patamar academicista e expor a necessidade de estudos acadêmicos e iniciativas, provi-

dencias, que possibilitem caminhos para a desconstrução das diversas barreiras enfrentadas

por essa população. Pretende-se aqui investigar o que a história nos diz sobre as questões de

gênero e a deficiência física, e como isso interfere na vida dessas mulheres, além de analisar

as barreiras atitudinais enfrentadas por mulheres com deficiência física na área da educação.

Para a fundamentação teórica analisaremos os documentos da Plataforma de Ação da IV

Conferência Mundial Sobre a Mulher, a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiên-
Capa
cia e seu Protocolo Facultativo, ratificado pelo Brasil (2008) e a Lei Brasileira de Inclusão da

Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) (2015), assim como os teóricos
Ficha
Paul Thompson e Gabriele Rosenthal que falam sobre as lentes da história de si, que guiará

na construção da escrita sobre a vivência educacional da pesquisadora, além das publicações


Sumário
do autores: Elcie Masini, Lúcia Helena Polleti Bettini, Rosana Schwartz, Sandra Pesavento.

Preliminarmente pudemos observar que as questões relacionadas a deficiência física na his-

tória são carregadas de estigmas e preconceitos e quando há a intersecção com gênero isso é

potencializado.

A partir das experiencias da pesquisadora pretende-se desvelar os múltiplos desafios

que começam ainda na infância, ciente da necessidade de afastamento do objeto de estudo e


228

aproximações na hora da análise.

Destacamos aqui que muitos fatores que vão desde questões como amparo familiar,

fundamental para o desenvolvimento de filhos com deficiência física, as crenças desses pais,

recursos dos mais variados, e o grau da deficiência, irão refletir no futuro da educação dessas

mulheres.

Não somente no Brasil como em diversas partes do mundo, a história da deficiência

foi assinalada inicialmente por eliminação e exclusão, que “deixaram marcas e rótulos asso-

ciados as pessoas com deficiência, muitas vezes tidas como incapazes e/ou doentes crônicas”

(GARCIA, 2011). Com o passar do tempo, a mudança do Modelo Médico para o Modelo So-

cial da Deficiência, e as lutas feministas, levaram essas questões à evidência, desencadeando

debates que resultaram na criação de leis para proteger e amparar essas minorias. Nesse

sentido, a instituição do Ano Internacional da Pessoa com Deficiência (1981), a Convenção

sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, ratificado pelo Bra-

sil (2008) e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com

Deficiência) (2015), trouxeram direitos civis, políticos, sociais e econômicos a esse grupo

populacional. Destacamos aqui que entre o grupo de deficientes, as mulheres são tidas como

“especialmente vulneráveis”, assunto enfatizado no parágrafo único do artigo 5º do EPD,

que afirma entre outras coisas que,” […] são considerados especialmente vulneráveis [...] a

mulher [...], com deficiência, que deve ser protegida de toda forma de negligência, discrimi-

nação, exploração, violência, tortura, crueldade, opressão e tratamento desumano ou degra-

dante”. Estudos feministas sobre deficiência, falam a respeito da interseccionalidade entre

Capa gênero e deficiência, quando isso acontece mulheres deficientes sentem o efeito do duplo

estigma potencializando sua exclusão, situação que fica mais complexa quando ela se inclui

Ficha em outras categorias como classe, raça/ etnia. Fatos que ainda hoje trazem reflexos negativos

na vida e na educação dessas mulheres.

Sumário Historicamente, acontecimentos desencadeados por movimentos como a ascensão

do feminismo em 1968 e a Guerra do Vietnã, trouxeram nova dinâmica social e a criação de

novos grupos, levando em consideração novos interesse, ao que Pesavento (2014) chama de

“quebra de paradigmas da história”, que levaram a vários desdobramentos, entre eles um

olhar sobre minorias como as mulheres e os deficientes, assunto dessa dissertação. Sob o

tema “Mulheres Brasileiras com Deficiência Física na Educação: Trajetórias e Experiências.”,


229

a partir da História Cultural, estudada por Pesavento, 2014, que a define como um modo

“[...] de pensar a cultura como um conjunto de significados partilhados e construídos pelos

homens para explicar o mundo”. (p.15)

Pretende-se desenvolver a partir de levantamento a respeito do que existe sobre o

tema, reflexões sobre Políticas públicas e por meio do relato da pesquisadora, pela técnica da

História de Si ou Ego História entrelaçar e responder os objetivos do estudo,

Identificar quais são os obstáculos enfrentados por mulheres com deficiência física

na sua formação educacional.

Pesquisar quais são os obstáculos comuns enfrentados por mulheres brasileiras com

deficiência no âmbito educacional, e compreender quais fatores levam a tal.

Inteirar-se sobre os acordos ratificados pelo Brasil a respeito da Convenção sobre os

Direitos da Pessoa com Deficiência da Organização das Nações Unidas e a Plataforma de Ação

da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher e como estão sendo cumpridas.

Para proceder as investigações que respondam as inquietações trazidas nessa disser-

tação analisaremos os documentos da Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre

a Mulher e a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e seu Protocolo Facul-

tativo, ratificado pelo Brasil (2008) e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência

(Estatuto da Pessoa com Deficiência) (2015), assim como os teóricos P. Thomson e Gabriele

Rosenthal que falam da história de si além das publicações dos autores: Elcie Masini, Lúcia

Helena Polleti Bettini, Rosana Schwartz e Sandra Pesavento.

Capa
A (I n ) V isibi lidade da P essoa C o m D efi c iê nc ia

Ficha A história da deficiência na humanidade foi marcada por exclusão, preconceito e

eliminação por diversos motivos, a depender do tempo e época histórica. Tema das ciências

Sumário sociais, o processo de exclusão e inclusão das pessoas com deficiência na sociedade tem sido

discutido e pesquisado ao longo da história.

No século XVII e XVIII, a visão cientifica da questão da deficiência se ampliou bas-

tante, em especial nas áreas médica e educacional, delineando diferentes atitudes sociais que

pensavam no encaminhamento da pessoa com deficiência para conventos e hospícios, ou o

ensino especial feito de forma segregada. Segundo Aranha, 2003, ‘A compreensão sobre a
230

deficiência, em geral, bem como a compreensão sobre as pessoas com deficiência, em parti-

cular, tem se modificado no decorrer da História’ (p.10). Para o autor, isso é um processo em

continua modificação, relacionado aos valores e paradigmas dentro da sociedade.

Quando se fala da pessoa com deficiência física na escola e sua inclusão, a de se ob-

servar uma série de aspectos necessários para que a sua integração e desenvolvimento escolar

sejam bem-sucedidos. A busca de melhoria na sua comunicação, mobilidade segura, acesso

ao conhecimento escolar e interação dentro desse ambiente, necessitam do uso da Tecnolo-

gia Assistiva direcionada à vida escolar. Segundo Bersch, 2007, fazer Tecnologia Assistiva na

escolar,

[...] com criatividade, uma alternativa para que o aluno rea-


lize o que deseja ou precisa. É encontrar uma estratégia para que ele
possa fazer de outro jeito. É valorizar o seu jeito de fazer e aumentar
suas capacidades de ação e interação a partir de suas habilidades. É
conhecer e criar novas alternativas para a comunicação, escrita, mo-
bilidade, leitura, brincadeiras, artes, utilização de materiais escolares
e pedagógicos, exploração e produção de temas através do computa-
dor, etc. É envolver o aluno ativamente, desfiando-se a experimentar
e conhecer, permitindo que construa individual e coletivamente novos
conhecimentos. É retirar do aluno o papel de espectador e atribuir-lhe
a função de ator. (BERSCH, 2007, p.31)

Os recursos humanos e materiais pensados para a inclusão e integração de educan-

Capa dos com deficiência física, possibilitam sua autonomia, ampliação da comunicação, e segu-

rança dentro da escola, promovendo melhor qualidade de vida.

Ficha

A s M ulh eres e M eninas na E s co la


Sumário
Uma das transformações mais importantes no último século, na sociedade pelo mun-

do a fora foi a mudança na relação entre gêneros, onde as mulheres passaram a figurar e

atuar na política, artes, ciências, trabalho e escola. Mas isso nem sempre foi assim, da luta

de muitas mulheres dependeu essas conquistas. Movimentos feministas iniciado na Europa

no século XVIII, foram fruto de uma série de inquietações das mulheres. Chegado ao Brasil
231

no século XIX, o movimento de mulheres pela conquista dos seus direitos foi uma construção

cultural, social e histórica.

Considerada a primeira mulher feminista do Brasil, Nísia Floresta Brasileira Augus-

ta, pseudônimo de Dionísia Gonçalves Pinto, nascida em 12 de outubro de 1810, enfrentou o

obscurantismo de sua época, onde as mulheres eram educadas para os afazeres do lar, cuidar

do esposo, dos filhos e da casa, sem direitos só deveres. Isso denúncia como as meninas e as

mulheres eram tratadas naquela época, e como as relações entre homens e mulheres eram

conduzidas, Nísia jogava luz a assuntos sensíveis. Na crença de que através da educação as

meninas e mulheres alcançariam maior igualdade e redução de preconceitos de gênero, essa

feminista prosseguia. Nessa época a formação intelectual não era considerada importante,

principalmente a educação para as meninas e mulheres. Em seu livro, Floresta, 2019, desa-

bafa dizendo que,

sempre que brilha um novo dia, e que nos bate à porta o jornal,
apoderamo-nos com solicitude dessa folha e avidamente percorremos a
cessão das Câmaras do dia antecedente em procura do assunto que te-
mos escrito no coração e no espírito – a educação da mulher brasileira
–, e dobramos a folha desconsolados e aguardamos o dia seguinte, que
se escoa na mesma expectativa, no mesmo desengano! Tem- se tratado
de muitas coisas menos disso; disso que merece incontestavelmente a
mais circunspecta atenção dos homens pensadores. Um dia raiará mais
propício para nós, em que os escolhidos da nação Brasileira se dignem
de achar a educação da mulher um objeto importante para dele ocupa-
Capa rem-se, com a circunspecção que merece. Entretanto lancemos os olhos
para o que se acha atualmente feito pelo governo em favor do ensino
Ficha primário das nossas meninas. (FLORESTA,2019, p.65).

Além de algumas publicações, entre seus feitos também está a fundação em fevereiro
Sumário
de 1838, no Rio de Janeiro, do colégio para moças e meninas. Sua proposta ousada revo-

lucionou a educação feminina. Sua trajetória foi permeada de atitudes firmes e corajosas,

enfrentando e vencendo preconceitos.

Podemos citar aqui outras feministas brasileiras Josephina Álvares de Azevedo, nas-

cida em 5 de maio de 1851, que era jornalista, escritora que fundou em 1888 em São Paulo,

o periódico A Família, direcionado para à educação das mulheres.


232

Em 1852 Joana Paula Manso de Noronha, uma argentina radicada no Rio de Janeiro,

lança o Jornal das Senhoras, em seu primeiro exemplar no edital, Noronha, expressa firme-

mente o intuito de que as mulheres busquem melhorias sociais e emancipação moral. Esse

pioneiro jornal, contava com a colaboração de outras mulheres anônimas em suas edições,

colaborando na trajetória de conscientização e conquista de direitos para as mulheres. Tam-

bém podemos citar a escritora e editora Júlia de Albuquerque Sandy Aguiar, do periódico O

Belo Sexo, que foi publicado no Rio de Janeiro, em 1862, onde se declara em seu primeiro

número que acredita na capacidade intelectual das mulheres. A inovação desse periódico é

que suas colaboradoras eram incentivadas a assinar seus trabalhos. E nos anos seguintes o

aumento do número de jornais e revistas feitos por feministas ajudaram a fortificar o movi-

mento feminista. Nos anos seguinte, até os dias atuais, muitas foram e são as mulheres que

se dedicaram e dedicam ao progresso da educação das mulheres e meninas mundo a fora.

Eventos como a Conferência de Direitos Humanos, em 1994, a Conferência de Po-

pulação e Desenvolvimento, proporcionaram muitos diálogos positivos. A IV Conferência

Mundial da Mulher e pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Convenção In-

teramericana trouxeram a pauta temas como prevenção, punição e erradicação da violência

contra a mulher, levando a uma nova visão da sexualidade e valorização da mulher, reduzin-

do um pouco mais a desigualdade entre os gêneros. Apesar de muitos avanços alcançados,

não podemos deixar de registrar que, estudos feministas sobre deficiência, falam a respeito

da interseccionalidade entre gênero e deficiência, quando isso acontece mulheres deficientes

sentem o efeito do duplo estigma potencializando sua exclusão, situação que fica mais com-

Capa plexa quando ela se inclui em outras categorias como classe, raça/ etnia. Fatos que ainda hoje

trazem reflexos negativos na vida e na educação dessas mulheres.

Ficha

B arreiras at it udinais
Sumário
O que são? Desmembrando o termo barreiras e atitudinal, separadamente, vemos

que segundo o dicionário online Oxford Languages and Google :

O termo barreiras é:

Substantivo feminino; qualquer coisa que impeça a passagem


de algo; obstáculo. Espécie de trincheira ou parapeito de paus alinha-
233

dos bem próximos entre si; estacada. Nos acessos de cidade ou de po-
voação, posto fiscal que controla o trânsito ou cobra taxas de entrada
de gêneros, mercadorias etc. Em vias públicas ou no acesso de proprie-
dades, qualquer obstáculo que visa impedir a passagem de pessoas ou
veículos. Porção de terra que cai à margem de estrada ou caminho, e
que pode impedir o trânsito. Escarpa sem vegetação à beira de um rio.
Grande obstáculo; dificuldade, empecilho.

E atitudinal:

Adjetivo; relacionado com atitude, com o modo de se compor-


tar, de agir ou de reagir a determinada ação ou situação; comporta-
mental: alteração atitudinal diante dos obstáculos. Refere-se ao que se
deve saber fazer em relação a algo, alguém ou si próprio, opondo-se
ao que é conceitual, ao que está restrito ao âmbito do conhecimento:
conteúdo atitudinal.

Trazendo os termos unidos novamente, e segundo as explicações acima, as barreiras

atitudinais, assim unidas, levam a compreensão de que são atitudes que limitam de alguma

maneira. Isso aplicado ao relacionamento com pessoas com deficiente, essas barreiras são

compreendidas como posturas afetivas e sociais, que se traduzem em discriminação e pre-

conceito para com as pessoas com deficiência. Essas barreiras estigmatizam e rotulam, fragili-

zando pessoas nessas condições, afetando sua autoestima, sua identidade de pessoa humana.

Esse tipo de barreira é limitante em termos do desenvolvimento social, minando a confiança


Capa em si mesmo, levando a pessoa a percepção errônea de menor valor, dando a sensação de

diferente, frágil e incapaz de viver plenamente a vida dentro das suas limitações.
Ficha Sobre barreiras, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, Nº 13.146,

de 6 de julho de 2015, (Estatuto da Pessoa com Deficiência), no artigo 3º inciso IV, discorre
Sumário sobre várias delas, e nesse mesmo inciso, na letra “e” sobre as barreiras atitudinais,
Art. 3º Para fins de aplicação desta Lei, consideram-se:
IV – barreiras: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou com-
portamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem
como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos à acessibilidade,
à liberdade de movimento e de expressão, à comunicação, ao acesso à
informação, à compreensão, à circulação com segurança, entre outros,
234

classificadas em:
a) barreiras urbanísticas: as existentes nas vias e nos espaços
públicos e privados abertos ao público ou de uso coletivo;
b) barreiras arquitetônicas: as existentes nos edifícios públicos
e privados;
c) barreiras nos transportes: as existentes nos sistemas e meios
de transportes;
d) barreiras nas comunicações e na informação: qualquer en-
trave, obstáculo, atitude ou comportamento que dificulte ou impossi-
bilite a expressão ou o recebimento de mensagens e de informações por
intermédio de sistemas
de comunicação e de tecnologia da informação;
e) barreiras atitudinais: atitudes ou comportamentos que im-
peçam ou prejudiquem a participação social da pessoa com deficiência
em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas;
f) barreiras tecnológicas: as que dificultam ou impedem o aces-
so da pessoa com deficiência às tecnologias;

Diante da lista de barreiras acima e das que se arrolam a seguir, confesso que pude

lembrar de cada uma delas, nas diversas fases da minha vida, muitas delas na área educa-

cional. Partindo desse pressuposto o relato por meio da História de Si, permitirá a exposição

dessa vivência por parte de uma mulher com deficiência física no âmbito educacional. O que

trará enriquecimento a esse trabalho, partindo de um relato experienciado.

Segundo Lima e Silva, (2016, p.5,6,7) as barreiras atitudinais no âmbito educacional


Capa destorcem a visão sobre o educando com deficiência, levando a atitudes e crenças que preju-

dicam na sua formação.


Ficha Estando entre elas: o desconhecimento do potencial do aluno com deficiência, ou

seja, a ignorância de quem realmente ele é e de suas capacidades; o medo de receber alunos
Sumário ou profissionais com deficiência e não saber como lidar com eles ou o receio de fazer ou falar

alguma coisa errada; a recusa por parte de alunos, familiares ou funcionários dá escola de

interagir com a pessoa com deficiência, rejeitar; fazer uma sub avaliação do aluno com defi-

ciência, acreditando ser ele incapaz, percepção de menos-valia; a crença na inferioridade de

que o deficiente não acompanhará os demais colegas, acreditando distorcidamente que todos

tem o mesmo ritmo de aprendizagem, se esquecendo que cada pessoa tem o seu ritmo pró-
235

prio mesmo todos recebendo o mesmo conteúdo e passando pelas mesmas avaliações; o sen-

timento de piedade com relação ao aluno com deficiência, superprotegendo-o e estimulando

que os colegas de classe ajam da mesma maneira; a consideração do deficiente como sendo

extraordinário, especial, excepcional, elogiando-o de forma exagerada é uma maneira de

colocá-lo numa posição de adoração do herói; atribuir ao deficiente o rotulo de persistência

e coragem frente aos colegas exaltando-o como modelo para os demais; percepção generali-

zada de incapacidade intelectual, e que o aluno atrapalhará o desenvolvimento dos demais;

pensar que a deficiência de um aluno tem efeito de propagação (ou expansão), ou seja que

um aluno deficiente visual também é deficiente intelectual; comparar e generalizar de manei-

ra positiva ou negativa, estereotipando a pessoa com deficiência; acreditar que o aluno com

deficiência deve receber algum tipo de compensação ou vantagem; negar ou desconsiderar a

deficiência de um aluno com problemas de aprendizagem; destacar a pessoa com deficiência

pela sua deficiência, substantivando-a, abalando sua autoestima e identidade; comparar o

aluno com deficiência com outros, desconsiderando seus ganhos ou progressos; acreditar que

o aluno com deficiência só poderá aprender em escola especial com profissionais preparados,

segregando-o; deteriorar a identidade do aluno com deficiência por adjetivação, como “len-

to”, “agressivo”, “preguiçoso”...; Afirmar, particularizando o aluno, de que ele está evoluído a

sua maneira e que só aprenderá com outros na mesma condição; crença de baixa expectativa,

de que o aluno não aprenderá e que deve ser submetido a atividades escolares sem desafios,

não permitindo que o aluno aflore suas inteligências, competências e habilidades múltiplas;

Supor que dois alunos com a mesma deficiência irão aprender da mesma forma, no mesmo

Capa ritmo, chegando a compara-los, fazendo generalização; Nivelar os alunos com deficiência e

agrupa-los, de modo a padronizar, com atividade mais simples, que requerem baixa habilida-

Ficha de, julgando que para eles, basta estar integrados na escola, não incluídos; o assistencialismo

e superproteção é mais uma das barreiras citadas pelos autores, onde, o medo e insegurança

Sumário do professor, impedem que o aluno faça algumas atividades, por receio de frustrá-lo ou que

se machuque.

Das barreiras atitudinais citadas acima, muitas foram as enfrentado pela pesquisa-

dora em vários momentos durante o seu percurso escolar, algumas foram vistas e sentida,

outras não, mas no geral, funcionam como o nome mesmo diz: barreiras.

As barreiras atitudinais, assim como as diversas barreiras enfrentadas por pessoas


236

com deficiência física ou qualquer outra limitação, impedem o desenvolvimento desses, como

as no âmbito educacional, limitando não só o ir e vir à escola, mas sua atuação como cidadão

pensante, com opinião e direitos. As barreiras atitudinais contribuem para uma sociedade

mais excludente. É necessário conhecer, identificar e quebrá-las para assim formar uma so-

ciedade mais inclusiva.

C onsideraç ões P reli m inares

Segundo os acontecimentos históricos sobre a deficiência, pudemos perceber que

essa população devido a uma série de fatores, que iam desde o olhar místico a rejeição do

diferente foram levados a eliminação e “apagamento”. Com o passar do tempo e a evolução

da humanidade essas pessoas, assim como outras minorias alcançaram direitos de igualdade,

mas que na prática nem sempre funcionam. Pois barreiras não só arquitetônicas como atitudi-

nais ainda persistem, fazendo com que por exemplo, o percurso trilhado para alcançar certos

níveis de educação sejam muito penosos. E quando se trata da intersecção deficiência e mu-

lher isso se torna quase inatingível, questão que deve ser pensada e refletida dentro das leis

e das conquistas já alcançadas, para que isso possa ser atingido de maneira mais igualitária e

justa. (observações preliminares)

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Ficha

Sobre a autora:
Sumário
239

Crianças com Deficiência Física: Um Estudo sobre a


Representação Lúdica Suprida por Bonecos Artesanais

Selma de Assis Russo

Estima-se que no mundo haja 240 milhões de crianças com algum tipo de deficiência

(UNICEF, 2021), pessoas detentoras de direitos de viver e desfrutar na sociedade de maneira

igualitária. Mas que mundo temos para essas crianças, o que as espera, o que podemos lhes

oferecer? Como desenvolver todo o potencial desses pequenos, dentro de suas limitações?

A construção do hoje para eles, envolve inúmeras questões que perpassam em muito as da

acessibilidade aos espaços e a inclusão nos moldes praticados na contemporaneidade. Con-

siderando que a infância é o tempo mais importante e precioso na vida de uma pessoa e que

nessa fase os princípios e valores aprendidos são perpetuados por toda vida, Santos (2020),

afirma que há a necessidade de se pensar sobre os espaços e oportunidades que estão sendo

dados às crianças, que são sujeitos de direitos e carecem de respeito dentro do seu processo
Capa
de aprendizagem.

Diante dos múltiplos processos de aprendizagem a que uma criança está exposta,
Ficha
aqui faremos um recorte, para abordar um deles de extrema importância na vida de qualquer

criança, o brincar, que precisa ser encarado como vital, não só para as com deficiência física,
Sumário
mas para todas. Sobre isso, Winnicott (1975), declara que,

É com base no brincar, que se constrói a totalidade da exis-


tência experiencial do homem. Não somos mais introvertidos ou extro-
vertidos. Experimentamos a vida na área dos fenômenos transicionais,
240

no excitante entrelaçamento da subjetividade e observação objetiva, e


numa área intermediária entre a realidade interna do indivíduo e a
realidade compartilhada do mundo externo aos indivíduos. (WINNI-
COTT, 1975, p.93)

Considerando a relevância do brincar, como experiência viva, repleta de potencial

com alcance profundo na vida dos brincantes, estreitaremos um pouco mais esse universo. Os
brinquedos que representam figuras humanas estão carregadas de estereótipos, observáveis

a olho nu, que falam sem falar, mas que refletem em si, a cultura e sociedade que os produz.

Testemunhamos diariamente o desfile nas vitrines de lojas, shoppings, catálogos, TV, internet,

a promoção de bonecos com corpos perfeitos, longos e finos, bem desenhados, cabelos lisos e

olhos claros. Mas será que todas às crianças se sentem representadas? E como isso afeta sua

autoestima? Assis e Avanci (2004) afirmam que,

[...] os padrões culturais definidos de aceitação social fornecem


um modelo, segundo o qual as aspirações e os ideais são estruturados e
através do qual a pessoa gradua o olhar sobre si mesma. O triunfo e o
malogro são definidos em relação a esse padrão, e as comparações so-
ciais aparecem como uma base importante de auto-avaliação. (ASSIS
E AVANCI, 2004, p.27)

Crianças negras, gordas, baixas, calvas, com síndromes e deficientes, detentoras de

direitos (Declaração dos Direitos da Criança, 1959, Constituição da República Federativa do

Brasil, 1988, Convenção sobre os Direitos da Criança, 1990, Estatuto da Criança e do Adoles-
Capa
cente, 1990, Marco Legal da Primeira Infância 2016), inclusive o de brincar como as demais,

vivem na invisibilidade sem representações lúdicas.


Ficha
Sobre a dimensão do brinquedo boneca(o), no mundo infantil, Piaget (2010), sus-

tenta que,
Sumário
[...] à boneca serve [...] de ocasião para à criança reviver sim-
bolicamente a sua própria existência, de uma parte para melhor as-
similar os seus diversos aspectos e, de outra parte, para liquidar os
conflitos cotidianos e realizar o conjunto de desejos que ficaram por
saciar. Assim, podemos estar certos de que todos os eventos, alegres ou
aborrecidos, que ocorrem na vida da criança repercutir-se-ão nas suas
241

bonecas. (PIAGET, 2010, p.141)

A respeito das bonecas industrializadas, vendidas no comércio, Santos (1997, p.

119), afirma que “A criança também se projeta nos bonecos comprados, mas estes possuem

limitações, [...]”, que levam os pequenos por vezes, a acrescentar ou retirar dos seus bonecos

características que gostariam que possuíssem, “adaptando-os”,

Rabiscar o rosto dos bonecos, cortar os cabelos, trocar suas ca-


beças, talvez seja uma tentativa de transformá-los em objeto de identi-
ficação. Muitas vezes, esses bonecos são estereótipos nos quais as crian-
ças tentam se “encaixar”, mesmo não atendendo às suas necessidades
mais internas. Já os bonecos confeccionados, são elaborados plastica-
mente, conforme os desejos de seu criador. (SANTOS, 1997, p. 119)

Dessa forma, buscamos aqui abordar questões sobre brinquedo (bonecos) e exclu-

são/inclusão nos espaços de convivência das crianças na contemporaneidade, no sentido da

precariedade na oferta de bonecos com deficiência física e singulares, sejam eles de plástico,

vinil ou pano, que contemplem crianças nessas condições, que possam representá-las. Tam-

bém abordaremos a produção artesanal de bonecos (as) de tecido, que consigam em parte

suprir essa lacuna de maneira mais imediata, expondo as etapas de criação e produção das

peças. Para o desenvolvimento e embasamento desse, recorreremos a artigos acadêmicos que

discorram sobre brinquedos, sua relevância para às crianças, à criança com deficiência física

e teóricos como Winnicott e Piaget e Benjamin, que falam sobre à criança e o brinquedo e
Capa Ostrower, Salles e Silveira que discorre sobre processos de criação.

Ficha
D esenvolvi men to

Sumário A metodologia da pesquisa utilizada para o desenvolvimento desse trabalho é de

natureza teórica e bibliográfica e segue algumas etapas:

Levantamento do estado da arte: artigos, dissertações, teses de autores que escreve-

ram sobre temas como: a criança e o brinquedo, criança com deficiência e o brincar, dentre

outros relacionados, assim como sobre processo de criação. Após a leitura e fichamento dos

textos, iniciou-se a escrita dos capítulos, que se encontra em andamento. Para responder a
242

problemática apontada, intenciona-se realizar uma pesquisa de campo tendo a instituição

AACD, como possibilidade de manter um diálogo com quatro profissionais da área da saúde

que atuem ali junto às crianças deficientes físicas. O instrumento utilizado será um questioná-

rio semiestruturado, a fim de obter deles a percepção sobre o sentimento de identificação da

criança com o brinquedo/boneco (as) produzidos no mercado que apresentam modelos de

corpos estereotipados em relação a beleza clássica imposta pela sociedade, com cabelos lisos,

olhos claros, corpo magro e saudável e os bonecos artesanais com deficiência física acompa-

nhados de acessórios como órteses, próteses e materiais especiais.

Nessa etapa do trabalho, além da produção escrita, já referenciada, retomamos a

confecção dos bonecos. Produziremos 12 bonecos com necessidades especiais, os quais serão

doados a uma instituição que atenda crianças com deficiência física. Após um tempo com o

brinquedo, os profissionais da saúde poderão, por meio do questionário semiestruturado, res-

ponder sobre a reação de crianças com deficiência física e quais foram os impactos sentidos

nos espaços de convivência das mesmas após o ato do brincar com os novos bonecos.

A retomada na confecção dos bonecos com deficiência física permeia pesquisa e refle-

xão sobre essas questões que imprimem reforço a estereótipos e a exclusão de crianças nessas

condições. As bases da experiência já alcançada na produção dos bonecos anteriormente são

fundamentais, mas se trata de uma nova criação.

S ob re o T e ma

Capa O interesse nesse tema surgiu há alguns anos, devido a uma experiência vivida pela

autora. Minha filha é uma pessoa com deficiência física e devido a necessidade de acompa-

Ficha nhamento médico e terapêutico, tivemos por anos a Associação de Assistência a Criança De-

ficiente (AACD), como local de frequência constante. Em uma dessas idas, enquanto aguar-

Sumário dava minha filha que estava em uma sessão de arteterapia, busquei uma revista para ler – era

comum deixarem-nas nos espaços de espera. Folheando essa revista, encontrei uma pequena

matéria que falava sobre a necessidade de crianças negras terem bonecas negras para brincar,

pois isso as ajudaria no fortalecimento da autoestima e construção de identidade entre outros

benefícios. Nesse momento me passou na mente uma preocupação muito grande, e as nossas

crianças deficientes físicas, precisariam desses recursos também? Nesse momento tive a cer-
243

teza que sim. Elas assim como outras minorias também passavam por marginalização social.

Como trabalhar questões de fortalecimento, autoestima, e pertencimento, cruciais na vida

desses pequenos que teriam que conviver com preconceitos, portas fechadas, descredito nas

suas capacidades? Então surgiu a ideia de fazer bonecos artesanais, representando crianças

com deficiência física, que pudessem atuar como mediadores em terapias, onde crianças ou

não, tivessem a oportunidade de estarem diante de um lúdico parecido com elas, oportuni-

zando assim caminhos para se robustecerem emocionalmente. O intuito de seguir nessa di-

reção foi se fortalecendo, sendo elaborado por alguns dias, e de experiencias anteriores com

artesanato e criação, nasceram os novos bonecos. Uma sucessão de desenhados de moldes

em papel foi necessário, até chegar a um satisfatório. Os moldes criados foram traçados em

feltro e recortados, as costuras eram feitas a mão e o preenchimento das peças com algodão.

As feições eram desenhadas com expressões alegres, pois assim eram às crianças vistas circu-

lando por aquela instituição. As muletas, andadores e bengalas, foram feitos de palitos finos

de madeira, cortados e colados para essas representações. Para a confecção das cadeiras de

rodas, um pequeno carrinho de bonecas, de plástico, foi recortado e ajustado. Esses materiais

foram oferecidos a psicólogos, arteterapeutas, médicos e pedagogos da AACD.

Passados alguns anos, a necessidade de escrever sobre esse assunto e seus desdobra-

mentos levou a esse artigo. Pois evidenciamos poucos trabalhos acadêmicos que discorressem

em parte sobre o tema, não em sua totalidade, também a visível debilidade na produção

industrial de bonecos com deficiência física e singulares persistente e precária reforçaram a

intenção. Nesse sentido, acreditamos que a ampliação do conhecimento sobre a necessidade

Capa de brincar das crianças, a inclusão e exclusão dos diferentes/iguais nas diversas esferas so-

ciais e seus direitos, possam suscitar debates e discussões sobre o assunto, despertando uma

Ficha maior vigilância no cumprimento das leis, indicando providências que permitam amenizar

essa desigualdade. Ressaltando também que a produção artesanal de bonecos especiais,

Sumário possa ser um recurso para suprir a lacuna existente no mercado de maneira mais rápida para

essas crianças.

Um pou co sob re a C riança e o B rinc ar na H ist ória

A concepção de infância foi historicamente construída, passando da ignorância com-


244

pleta da singularidade dos pequenos, ao sujeito de direitos dos nossos tempos. Baseado em

estudos da arte medieval, isso por volta do século XII, Aires (1978), relata que as crianças não

tinham espaço nesse momento histórico, sendo vistos e tratadas como adultos em miniatura,

introduzidos na mais tenra idade em atividades, brincadeiras e jogos próprios dos adultos,

deixando sua infância e juventude para trás. Ainda segundo o autor, baseado no mesmo cri-

tério, isso só começou a mudar a partir do século XVII.

Hoje, brincar é um direito garantido por lei. A Declaração dos Direitos da Criança

(1959), no Princípio 7º, afirma que, “A criança terá́ ampla oportunidade para brincar e di-

vertir-se, visando os propósitos mesmos da sua educação; [...]”, conclamando a sociedade

e autoridades públicas para que o façam cumprir. Esse e outros direitos das crianças fo-

ram consolidados pela Convenção dos Direitos da Criança (1989), cujo Brasil é signatário.

No Brasil, a Constituição Brasileira (1989), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),

(1990), e o Marco Legal da Primeira Infância (2016), afiançam esses direitos, trazendo aos

pequenos, a liberdade de serem o que são, seres brincantes. Para Benjamin (2002, p.85),

[...] Não há dúvida que brincar significa sempre libertação. Rodeadas por um mundo de gi-

gantes, as crianças criam para si, brincando, o pequeno mundo próprio; [...]. Brincar é parte

essencial para o desenvolvimento pleno das crianças. Sobre esse assunto, Winnicott (1975,

p.79), sugere categoricamente que “[...] o brincar facilita o crescimento e, portanto, a saúde;

o brincar conduz aos relacionamentos grupais; o brincar pode ser uma forma de comunicação

[...]”. Dentro dessa esfera, os brinquedos são tidos como ferramentas que dão voz e vazão as

emoções das crianças e também se comunicam com elas sobre aspectos sociais, por exemplo.

Capa Caldas-Coulthard e Van Leeuwen (2021), dizem que os brinquedos contemporâneos,

[...] são miniaturas representacionais que contribuem para


Ficha
formação de identidades sociais. São ainda repositórios de sistemas de
valores e ideologias já que transmitem mensagens para crianças sobre
Sumário o mundo social em que vivem. […] representam atores/as sociais e
objetos da vida cotidiana construídos sob uma perspectiva cultural es-
pecífica. (CALDAS-COULTHARD E VAN LEEUWEN, 2021, p. 280)

À vista disso, a brincadeira com bonecas (os) permite à criança criar representação

mental sobre como seu corpo é valorizado e visto na sociedade. A esse respeito, Silva (2020),

afirma que a
245

[…] brincadeira com bonecas(os) embalada pela ludicidade


dela inerente, mesmo que de forma inconsciente, pode oportunizar mo-
mentos de autoconceito e análise de quem somos e de quem gostaría-
mos de ser. Brincar com bonecas(os), nos permite ter uma representa-
ção mental daquilo que os outros pensam sobre o nosso corpo, ou seja,
abre-se a oportunidade para a formação da imagem corporal da pessoa
que, consequentemente, será expressa em percepções e atitudes sobre o
seu corpo. (SILVA ,2020, p. 259)

Nesse sentido, há a necessidade de buscar com ânimo, a ressignificação de bonecos

(as) que quebrem estereótipos, que imprimam novo sentido e valor positivo aqueles que mes-

mo sem querer e merecer os carregam, pois os estereótipos foram produzidos pela sociedade

e resistem com o passar do tempo, mas também sabemos que podem ser mudados.

Crianças tidas como minoria, precisam ser fortalecidas, precisam construir histórias

de superação, de sucesso, ter espaço, precisam se ver e ser vistas não debaixo da borracha

social que as quer invisibilizar, apagar, ao menos deixar traços pouco nítidos de quem são e

do seu valor como ser humano, se esquecendo que participam de iguais direitos como todos.

P rocesso de C riação

Retomamos a produção dos bonecos, a partir da criação de novos moldes. Ressalta-

mos aqui que, no decorrer de todo processo entre criação e produção dos bonecos, por conta

de praticidade ou por não encontrar mais um determinado material a venda, outros ajustes
Capa
foram feitos. Falando de criação, Ostrower, 2023, nos contempla com a seguinte arguição,

Ficha Criar é, basicamente, formar. É poder dar uma forma a algo
novo. Em qualquer que seja o campo de atividade, trata-se, nesse
“novo”, de novas coerências que se estabelecem para a mente humana,
Sumário
fenômenos relacionados de modo novo e compreendidos em termos no-
vos. O ato criador abrange, portanto, a capacidade de compreender; e
esta, por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar. (OS-
TROWER, 2023, p. 9)

Com os desenhos dos moldes prontos, os bonecos foram traçados sobre tecido, no
246

início apenas sobre feltro, depois de testes, também passamos a se fazer uso de um tecido

mais macio, chamado plumante. As costuras das peças que eram exclusivamente a mão, pas-

saram a ser parte à máquina. O enchimento dos bonecos é feito em algodão sintético antialér-

gico, que dá maciez e ao mesmo tempo firmeza. Quanto ao desenho das feições dos bonecos,

seguem o mesmo padrão dos anteriores, alegres, pois essa é a referência observada no rosto

das crianças que encontrávamos nos diversos setores de reabilitação da AACD.

As próteses e acessórios para os bonecos foram testados em vários materiais, como

pequenos tubos de plástico, palitos de madeira roliços e planos, antes de se chegar ao resul-

tado desejado para compor as muletas e andadores. Dessa forma, continuamos a usar palitos

roliços de madeira para compor a estrutura do andador, muletas axial e canadense, cada

peça recebe ajustes conforme modelo e fim, retalhos de feltro e cola serão usados em todas

e massa epóxi para compor um apoio de antebraço e mãos, próprios da muleta canadense. O

uso de goteira ortopédica, muito comum para algumas crianças com paralisia cerebral, será

representado por recortes de pernas de bonecas plásticas.

Breve sequência da confecção das bonecas e moletas, Figura 1.

Capa

Ficha

Sumário
Figura 1 - Fonte: Revista Projetos Escolares de Educação Infantil, nº 15

As miniaturas de cadeiras de rodas, feitas anteriormente a partir de um pequeno car-

rinho de bonecas industrializado de plástico, que eram recortados com estilete, precisaram

ser repensadas, pois não foi mais encontrado esse material. A nova versão dessa peça, será

desenvolvida a partir de pequenas caixas recicláveis recortadas. Para finalizar, será forrada
247

com feltro e EVA.

Breve sequência da confecção da cadeira de rodas, Figura 2.

Figura 2 - Fonte: Revista Projetos Escolares de Educação Infantil, nº 10,

Cadeira de rodas pronta, boneca cadeirante e boneco moletante, Figura 3.

Capa

Ficha
Figura 3 - Fonte: Revista Projetos Escolares de Educação Infantil, nº 10 e nº 15

Sumário As roupas como calças, shorts e vestidos e alguns acessórios (fitas para o cabelo das

boneca e bandana), serão produzidos em tecido de algodão e sintético, estampados. As ca-

misetas serão em malha de algodão, com cores mais neutras. Também, haverá bonecos com

amputação de membros, representando situações ocorridas por acidente, condição genética

ou doença. Pois essas crianças também precisavam que não lhes seja negado esse lugar no

mundo, esse espelhamento. Imagem na Figura 3, a direita.


248

Bonecos com ataduras nas mãos e braços e/ou nos pés serão produzidos para sinali-

zar cirurgia naqueles membros, também muito comum na vida dessas crianças.

No presente momento continuamos compondo o levantamento bibliográfico para a

fundamentação dessa dissertação e também a confecção dos bonecos com deficiência física.

C onsideraç ões

Brincar é inerente às crianças, vital, não só para as deficientes físicas, mas para to-

das, porém, fazendo um recorte dentro desse maravilhoso mundo lúdico, observamos que

bonecos vendidos comercialmente estão carregados de estereótipos que se alinham com a

sociedade que os produz, excluindo figuras humanas que não se pareçam com elas. Den-

tre estas, crianças com deficiência física, que não se encontram espelhadas nessa produção,

privadas de representação para seu exercício de faz de conta tão importante no trabalho de

diversas questões, como socialização, autoestima e identidade entre outras. Dessa forma,

essa dissertação contribui de maneira relevante não só na produção de texto acadêmico, mas

também abordando a possibilidade da produção artesanal de bonecos especiais para suprir

esse público de maneira mais rápida. Tendo como primordial o intuito de despertar a socieda-

de, fabricantes e autoridades sobre a necessidade da ressignificação de bonecos que quebrem

estereótipos, que imprimam novo sentido e valor positivo aqueles que mesmo sem querer e

merecer, na tenra idade, carregam fardo tão cruel. Crianças tidas como minoria, precisam ser

fortalecidas, precisam construir histórias de superação, de sucesso, ter espaço, necessitam

Capa se ver e ser vistas não debaixo da borracha social que as quer invisibilizar, desconsiderando

seu valor como ser humano, se esquecendo que participam de iguais direitos como todos.

Ficha Sabemos que a brincadeira com bonecos (as), não é o único contexto que beneficia esses

pequenos, mas traz alegria, contentamento, pertencimento, coragem, contribuições únicas.

Sumário Também ressaltamos aqui, que uma maior investigação e produção científica sobre o brincar

para crianças com deficiência física os trará mais perto, serão menos estranhos e excluídos.

R efer ê ncia
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