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Relatório Pibic Ballroom Brasil - Revisado
Relatório Pibic Ballroom Brasil - Revisado
BRASÍLIA
DISTRITO FEDERAL – BRASIL
SETEMBRO/2020
RESUMO:
Esta é uma pesquisa etnográfica destinada a entender as relações de poder, tradução
e perpetuação da cultura Ballroom no Brasil. A pesquisa conta com uma investigação de suas
narrativas históricas e uma vivência intrincada na cena regional de Brasília, a qual,
primordialmente, acompanha a cena brasileira. A cultura artística e comunitária, criada nos
EUA por pessoas pretas e TLGB+, se transnacionalizou para diversos países, criando
próprias realidades em cada região. No Brasil, a cena - e todas suas representações - se
expressa de duas formas: kiki (regional) e mainstream (internacional). Essa dualidade projeta
na Ballroom Brasil uma forma de autonomia condicionada. Em outras palavras, a
autoafirmação da cena brasileira enquanto Ballroom existe em condições daquilo que é
mérito regional, e do que é mérito global. Pela compreensão de suas estruturas no Brasil, é
possível inferir a atual posição mútua de reinvenção interna da cena e inserção internacional
enquanto referência.
ABSTRACT:
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Por mais que a linguagem neutra seja utilizada no presente trabalho, utiliza-se a nomenclatura “corpa”
para se referir à corporeidade tanto de maneira física, quanto discursiva e performática. Esse termo é
empregado amplamente pelus membres da Ballroom Brasil, e condiz à subversão do masculino
universal tido como adequado ou natural.
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A sigla que corresponde à comunidade diversa em sexualidade e gênero utilizada no Brasil é a LGBT.
Ainda que mais conhecida nessa forma primária, com o reconhecimento de outras corpas com suas
respectivas demandas sociais, houveram diferenciações da sigla, tais como LGBT+, LGBTQI+,
LGBTQIA+. No presente trabalho utiliza-se a variação TLBG+, no intuito de reconhecer a diversidade
não expressa pela sigla e de apontar o protagonismo travesti e transgênero tanto na composição da
Ballroom, quanto na própria luta política pelos direitos civis, políticos e sociais dessa comunidade.
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2 A BALLROOM
A Ballroom é uma cultura artística e comunitária que nasceu em meados dos anos 70,
na periferia da cidade de Nova York, nos EUA, criada e protagonizada por corpas negras,
latinas e TLGB+. Apesar de poucos trabalhos terem sido publicados sobre a cultura,
especialmente nos espaços acadêmicos, o livro “Butch Queen Up In Pumps: Gender,
Perfomance and Ballroom Culture in Detroit”, do autor Marlon M. Bailey, ilumina diversos
conceitos centrais. O livro foi resultado de sua residência e vivência com a cena Ballroom
regional na cidade de Detroit, ou seja, ela foi não só pesquisada, mas também vivida e
trabalhada por ele.
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Marlon Bailey em sua obra se apropria de conceitos essenciais proporcionados pela teoria queer, tais
como performatividade, sociedade cis heteronormativa, binarismo naturalizado, para explicar a
realidade da Ballroom. Entretanto, ele afirma que não necessariamente us membres da comunidade se
afirmam como queers, ao invés disso o autor dá uma maior importância à categoria LGBT, identidades
primárias as quais as pessoas são compreendidas e referem a si mesmas (BAILEY, 2013). Ainda na
questão das contribuições teóricas provenientes du queer, a realidade estudada no Brasil se mostra
ainda mais condicional. No texto “Traduções e torções ou o que se quer dizer quando dizemos queer
no Brasil?”, a autora Larissa Pelúcio elucida que, por mais combativa à normatividade, a teoria queer
se insere no Brasil pela revisão epistemológica nas universidades, e não pela sua insurreição em algum
movimento social. É compreendido que ao pensar em contextos raciais, de gênero ou sexualidade,
deve-se sempre refletir nossas particularidades locais, visto que sempre houve uma construção
discursiva canônica que coloca as formações teóricas latino americanas como subalternas e periféricas
(PELÚCIO, 2014).
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Outra atividade é a ball, que representa a terceira estrutura e também o ponto auge de
congregação da comunidade em questão. É um evento ritualizado de competição e celebração
entre as corpas dissidentes e suas performances e, em geral, realizado pelas casas, o que
revela a relação mutuamente constitutiva entre as duas estruturas. (BAILEY, 2013). Dentro
da Ballroom, existe uma diversidade de performances cênicas além do voguing, algumas
mais tradicionais que outras, havendo assim, tanto performances dançadas, quanto
performances comportamentais. Sob o julgamento de jurades convidades pelus
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Outros dois conceitos definidos por Marlon Bailey, também centrais nas
investigações desta pesquisa, são os conceitos de cena mainstream e de cena kiki. O autor
expõe como a evolução da Ballroom a transformou de tal forma que houve uma
hierarquização entre a qualidade das performances. As competições foram se tornando cada
vez mais competitivas e sérias, e nesse contexto nasce a cena kiki. “Kiki” é uma palavra que
significa se divertir, rir, e assim nomeia uma cena Ballroom criada para incluir pessoas mais
jovens na comunidade, que encontrariam redes de afeto e espaços de treinamento para
avançar para a então cena mainstream. Essa separação de cenas e esse espaço de acolhimento
também surgem da necessidade histórica de combater o crescimento do contágio por HIV,
que atingia principalmente a população mais jovem, TLGB+ e marginalizada (BAILEY,
2013). Entretanto, os resultados da presente pesquisa mostram que, as concepções de cena
kiki agora giram muito mais em torno de um espaço regional que serviria para a formação da
comunidade no geral, como será tratado mais à frente.
Apoiado por teóricos como Capone, Ianni e Venuti (SANTOS, 2017, p. 62-71), o
autor explica que o processo de transnacionalização é a transferência do foco no indivíduo
para o foco na própria prática cultural, criando uma rede internacional; e que o processo de
transculturação seria quando duas culturas estão ativas na constituição da mesma realidade,
em que essa nova está posicionada em um lugar “entre” elas, de maneira associativa
(SANTOS, 2017). Durante seu trabalho, é evidenciada a percepção geral do autor de que a
presença da Ballroom no Brasil é decorrente de um processo de transnacionalização, devido
às formas de controle dos grupos originários da cultura e de seu caráter inédito no Brasil, e
não de um trabalho mútuo de transculturação. Ele ainda demonstra, por contribuição de
Lawrence Venuti, que ambos os processos são possíveis devido a uma ferramenta chamada
“tradução cultural”. A tradução du estrangeire pressupõe em si a inclusão de elementos
culturais próprios para criar a inteligibilidade do texto, assim proporcionando um processo
de “domesticação”, ou adaptação, daquilo que é traduzido (SANTOS, 2017). Neste trabalho
busco identificar as formas de adaptação da Ballroom existentes, provenientes da tradução
cultural, e principalmente sob que espaços e relações elas podem se instituir.
Por fim, é necessário justificar o uso da linguagem neutra como esforço necessário
para a desenvolvimento desta pesquisa. A língua portuguesa, de forma cultural, é reflexo de
uma construção binarista e patriarcal, com a divisão em dois gêneros e o uso do masculino
para referenciar o universal. Entretanto, assim como gênero é um constructo binário
subvertido por identidades dissidentes, inclusive não-binárias, a língua também é uma
construção cultural em constante reestruturação (LAU, 2017). Utilizou-se o Guia para
“Linguagem Neutra” (PT-BR), por Ophelia Cassiano, para subversão da ordem binária do
discurso. Devido a diversidade de corpas na Ballroom, o uso da linguagem neutra se faz mais
necessário, de um modo ético, para que esse trabalho possa ressoar a voz dessas pessoas.
3 APRENDER PELA VIVÊNCIA
influências no Brasil; a hierarquia existente nos contextos dessa cultura, traduzida ao Brasil,
expressa pela designação de títulos, cujes detentories se apossam de notável prestígio e
credibilidade em determinada cena.
O trabalho tem como base metodológica a ideia de Gilberto Velho, presente no texto
“Observando o Familiar”, de criar possibilidades de se debruçar sobre um objeto de estudo
por mais que este seja familiar, ou seja, próximo às subjetividades du pesquisadore. Uma das
principais ideias do autor mencionado é a de que, pelo fato das categorias sociais serem
hierarquizadas, é imprescindível para a pesquisa a superação dos estereótipos sociais
atribuídos aos grupos em estudo; e com isso demonstra a contrariedade de que o objeto de
estudo “pode ser familiar, mas não necessariamente conhecido” (VELHO, 1980, p. 126).
Logo, a posição social e as percepções du pesquisadore precisam ser relativizadas, de forma
que as relações entre as subjetividades não invalidem o rigor científico, mas façam parte
constitutiva da compreensão da realidade, sempre interpretativa. O estudo do familiar, que
no caso desta pesquisa se trata da análise estrutural do próprio ambiente da Ballroom, “trata-
se, afinal de contas, de uma tentativa de identificar mecanismos conscientes e inconscientes
que sustentam - e dão continuidade a - determinadas relações e situações” (VELHO, 1980,
p. 128).
Em outras atividades mais imersivas, foi possível dirigir as investigações com maior
engajamento. Dentre elas, pode ser citada a participação como observador nos workshops e
rodas de debate do evento BH Vogue Fever 2019, em Belo Horizonte, onde houve
possibilidade de entrevistar pessoas tanto pioneiras do início da Ballroom nova iorquina,
quanto pioneiras das cenas brasileira e chilena. O evento trazia pessoas de várias
regionalidades da Ballroom, pois além proporcionar as oficinas e conversas, aconteceria uma
grande ball, onde essus pioneires, dos EUA e Brasil, estariam presentes como jurades. Além
dessa ball mainstream, a Xtravaball, realizada pela casa nova iorquina House of Xtravaganza
no Rio de Janeiro, também foi estudada. Lá, foi possível presenciar a nomeação de uma
integrante da cena ao título de Legendary, o qual será explicado posteriormente. Também
houve participação semanal na chamada Vivência Ballroom, projeto na ocupação Mercado
Sul Vive, um coincidente espaço de comunidade e resistência. O projeto, paralisado em
detrimento da pandemia, proporcionou oficinas e conversas sobre Ballroom e suas
modalidades cênicas, e através delas concebeu um ambiente de autoexpressão, acolhimento
e empoderamento, assim uma vivência Ballroom.
dinâmica virtual, foi possível observar articulações recorrentes, como balls online em
diferentes plataformas; também foram acompanhados diferentes debates e campanhas
proporcionadas durante o período de crise.
4 DIÁLOGOS E REGIONALIDADES
Não existem, mundo afora, casas mainstream criadas e lideradas por pessoas de
outros contextos Ballroom, ao invés disso, a manifestação da mainstream se dá pela criação
de chapters, ou capítulos, em outros países das houses estadunidenses já estabelecidas na
cena. No espaço mainstream construído pelas grandes casas há uma grande circulação de
dinheiro com superproduções de entretenimento e patrocínios, balls de grande porte com
premiações valorizadas, e um entendimento tão criterioso sobre a inserção de novas casas na
mainstream que nem cenas mais consolidadas, como a de Paris, puderam se nivelar.
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Por consequência, a maior diferença entre as cenas no Brasil decorre de como a cena
kiki consegue incorporar as regionalidades brasileiras, enquanto a mainstream não tanto.
Dentro das categorias de performance estudadas e interpretadas em balls estão expressões
cênicas brasileiras não tradicionalmente Ballroom, mas inseridas e competidas no contexto
kiki, como exemplo da categoria Samba no Pé e da "Batekoo", forma rebolada de se dançar
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o funk. Com um olhar comparativo ainda mais cauteloso, é possível observar diferenças em
performances tradicionais, como na categoria Sex Siren, ou na própria forma do voguing. Em
decorrência da mescla dessa cultura com o contexto TLGB+ nacional, a incorporação dessas
brasilidades é evidenciada no próprio sistema de gênero da Ballroom Brasil, como se vê no
exemplo da inclusão de travestis, identidades femininas de gênero essencialmente brasileiras,
no entendimento de Femme Queen, termo designado às mulheres trans. A maneira que as
regionalidades se entrelaçam na constituição da Ballroom no país são várias, e muitas vezes,
complexas e implícitas. Entretanto a presença delas nesse espaço sustenta a afirmação de que
a tradução cultural encontra mais possibilidades na cena kiki do que na cena mainstream.
Na cena kiki, por sua vez, há também a presença do título de pioneire, designado para
pessoas que tiveram seus esforços de iniciar a prática da Ballroom em novas cidades,
reconhecidos por outres pioneires. O título incentiva a expansão da Ballroom pelo território
brasileiro, assim como também se perpetua por ela. Diferentemente de legendary, o
pioneirismo - enquanto título e prática - se mostra mais expressivo no Brasil, com mais
membres, conjunto à consolidação de uma Ballroom nacional diversificada e interligada. Por
definições gerais investigadas por essa pesquisa, há uma divisão de pioneires em duas
gerações de integrantes, a primeira composta majoritariamente por pessoas do Centro-
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Sudeste, e a segunda já incluindo pessoas dos estados do Norte, Nordeste, e Sul do país.
Percebe-se, pela maior parte da primeira geração, uma relação entre o pioneirismo Ballroom
e o estudo acadêmico em dança, ou contatos diretos com a cena de outros países, ou só a
habilidade sob a língua inglesa; em outras palavras, há uma associação inicial entre capital
cultural e pioneirismo. Capital cultural, nesse caso, não pressupõe condições econômicas e
sociais de privilégio, mas revela possibilidades de acesso, assimilação e tradução cultural.
BIBLIOGRAFIA
PELÚCIO, Larissa. Traduções e torções ou o que se quer dizer quando dizemos queer
no Brasil? Revista Periódicus, v. 1, n. 1, p. 68-91, 2014.