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MISSÃO

FUGINDO DE
Lições do chamado de Jonas
DEUS
Heyssen Cordero Maraví

O
s estudiosos reconhecem cada Jonas tenha escrito o livro, o que traz maior cidade de Nínive e pregue contra ela”
vez mais as narrativas hebraicas curiosidade ao leitor, já que o uso de humor, (Jn 1:2). O verso 3 destaca a resposta do
como escritos altamente sofis- sátira, ironia, absurdos e hipérboles é algo ní- profeta: “Jonas se levantou, mas para fu-
ticados que refletem uma cons- tido no texto. Em outras palavras, Jonas foi gir da presença do Senhor.” Claramente
trução cuidadosa e bem pensada.1 Nessa irônico consigo mesmo. Portanto, trata-se se vê aqui um contraste marcado entre o
direção, Gerhard Hasel considera o livro de uma autobiografia de um anti-herói. que Deus quer e o que faz o profeta Jonas.
de Jonas como único entre os livros profé- A “profecia” de Jonas é certamente a ­Esses três primeiros versos do livro con-
ticos da Bíblia, escrito no estilo de narra- mais conhecida entre os cristãos, devido centram grande riqueza teológica, a qual
ção,2 embora alguns teólogos proponham à simplicidade de sua narrativa e pelo ca- será nosso objeto de estudo neste artigo.
uma mescla de estilos devido à presença da ráter extraordinário dos detalhes de sua
oração no capítulo 2.3 Como as narrativas história.5 No entanto, tudo é estranho no Iniciativa divina
bíblicas são complexas e obras-primas de livro: o chamado desafiador ao profeta, a O livro de Jonas começa dizendo: “A pa-
literatura, apesar de sua aparente simpli- reação de Jonas diante da missão, a con- lavra do Senhor veio a Jonas, filho de
cidade de expressão, Jonas não é exceção. versão dos marinheiros, o aparecimento Amitai” (v. 1). O nome Amitai vem da raiz
Assim, podem-se notar quatro detalhes li- de um grande peixe, a sobrevivência de hebraica emeth, que significa “verdade”,
terários na narrativa de Jonas: (1) palavras ­Jonas no ventre do peixe, o estranho ser- “fidelidade”. A pergunta básica é: Por que
repetitivas, (2) diálogos fluidos, (3) estru- mão, a estranha conversão e o estranho a palavra do Senhor veio a Jonas, o “filho da
tura tipo espelho ou quiasmo e (4) ironia.4 desfecho. Esse é o enredo “estranho” de verdade”? A questão sugere uma respos-
Jonas era natural de Gate-Hafer, cidade uma grande história. Dentro desse contex- ta lógica, mas é mais profunda do que se
que ficava no território da tribo de ­Zebulom, to, Jo Davidson salienta que a expressão lê. Deus é soberano e conhece o ser huma-
dentro das fronteiras do reino do norte. Ali “grande” aparece 38 vezes na narrativa,6 no. O fato de o nome “Jonas” ser pronun-
ele profetizou sobre um novo ciclo de ex- o que realça as ironias decorrentes do en- ciado pelo Senhor indica que Jonas tinha
pansão de Israel sob o reinado de Jeroboão volvimento de Deus na vida do profeta. um Deus pessoal – não como em outras
II (793-753 a.C.; ver 2Rs 14:23-27). Tradicional- A narrativa começa com o chamado ­culturas, com seus deuses distantes, de-
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mente, tem-se considerado que o próprio de Deus a Jonas: “Levante-se, vá à g


­ rande sinteressados no ser humano e vivendo em

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dimensões desconhecidas. Em vez disso, o termo expressa movimento. Afinal, não dá exortou pessoalmente o rei do Egito e, no
Senhor (no texto hebraico aparece o termo para pregar em Nínive sentado no confor- caso de Jonas, o profeta pregou uma men-
YHWH, o nome de Deus usado no contex- to de Gate-Hafer. Jonas precisava sair de sua sagem de juízo em Nínive. Portanto, a razão
to da aliança) chama o profeta pelo nome, comodidade para empreender uma cami- pela qual Deus chama a “levantar-se, ir e pre-
e não só menciona o nome, mas destaca a nhada, uma viagem e, assim como o chama- gar” é para que se cumpra a missão. Não ha-
família de Jonas. Ele é “filho de Amitai”, o do a levantar-se, essa jornada também era veria “missão” se não houvesse maldade, ou
que seria equivalente ao sobrenome hoje. urgente. A missão, portanto, não é um em- seja, a missão existe porque existe o peca-
O primeiro verso de Jonas evidencia preendimento que se faz sentado ou estático. do (Gn 3). No chamado de Jonas encontra-
claramente o caráter missionário de Deus. Pregue. Com esse verbo no imperativo mos a teologia da missão: tendo em conta
É Ele quem toma a iniciativa. Não é o pro- Deus está dizendo ao profeta o que ele deve que a missão existe porque existe o evange-
feta quem procura um chamado, mas é fazer em Nínive, a grande cidade corrupta. lho, e a existência do evangelho ocorre por
o próprio Deus quem chama o profeta. Jonas tem que pregar, proclamar o evange- causa da entrada do pecado.9 Em todos es-
E esse chamado não é aleatório, mas es- lho e chamar a atenção das pessoas, afinal, ses exemplos, vemos que Deus não quer que
pecífico: “Jonas, filho de Amitai”, o que nos elas estão distraídas ou cegas devido às suas “ninguém pereça, mas que todos cheguem
lembra mais uma vez que Deus nos conhe- maldades. O interessante é que, se o cha- ao arrependimento” (2Pe 3:9).
ce bem, desde sempre (Sl 139:13; ver Jer 1:5). mado é imperativo, a ação de Jonas também
Assim como identificou Samuel (1Sm 3:1- deve ser. Jonas deve pregar com sentido de Resposta do profeta
10), Davi (1Sm 16:1-13), a viúva de Sarepta urgência, pois a cidade não tem muito tem- Em Jonas 1:3, encontramos Jonas res-
(1Rs 17:8-16) e muitas outras personalida- po: só “40 dias e 40 noites”. Isso nos leva a pondendo ao chamado divino, não com
des bíblicas, Deus conhecia o filho de Ami- refletir que, junto com o chamado e a mis- palavras, mas com uma atitude. Dian-
tai e sabia quem ele era, onde vivia e quais são, existe um tempo decrescente de gra- te do chamado “levanta-te, vá e prega!”,
capacidades possuía. Deus sabia que Jonas ça (Gn 6; Ap 14:6-18), ainda que muitos não Jonas “se levantou” (v. 3). O verbo para
tinha condições de cumprir a missão. o reconheçam. A pregação tem um tempo, descrever a ação de Jonas é o mesmo usa-
e esse tempo só Deus conhece. do por Deus ao chamá-lo. Aparentemente,
Caráter da missão Portanto, ao longo das Escrituras, não o profeta obedeceu. No entanto, o verso
Podemos observar em Jonas 1:2 uma existe chamado sem missão, nem missão complementa: “mas para fugir da presen-
sucessão de três verbos imperativos, os sem chamado.7 Vemos esse paradigma em ça do Senhor, para Társis” (v. 3). ­Jonas se
quais denotam o caráter da missão: Noé (Gn 6), Abraão (Gn 12), Moisés (Êx 3), en- levanta “para fugir”! A raiz verbal da pa-
Levante-se. Esse não é um chamado leve tre muitos outros casos. Assim, a missão em lavra tem que ver com “escapar” (Gn 31:27,
nem passivo, mas uma ordem forte, dada Jonas é a combinação de três verbos impe- Êx 36:33, Jn 4:2), em um sentido de “correr
com senso de urgência. É um chamado a “le- rativos: Levante-se + vá + prega = Missão.8 por sua vida” ou “querer ser livre”. O que
vantar-se”, assim como Deus Se levanta em Jonas está fazendo não é simples. Ele está
defesa de Seu povo (Dn 12:1). Nínive está em Motivo do chamado fugindo por sua vida, pois sabe que o cha-
apuros, nela há muita maldade e esse peca- A razão de Deus chamar Jonas está na mado que lhe foi dado é urgente, impe-
do subiu até a presença de Deus, o qual não segunda parte do verso 2: “Porque a sua rativo e sério. O livro não registra um
pode suportar o mal. É por isso que Ele re- ­ aldade subiu até a Minha presença.” O cha-
m diálogo tal como ocorreu com Moisés em
corre ao ser humano como Seu agente de mado de Jonas responde a uma realidade, a Êxodo 3 ou com Gideão em J­ uízes 6. A úni-
evangelismo e de transformação. Podemos um ­circunstancial de causa: a maldade diante ca coisa que o livro apresenta é um profe-
notar aqui um Deus preocupado e até “de- de Deus. O termo maldade aqui significa “mi- ta levantando-se para escapar para Társis,
sesperado” pela maldade de Nínive. Ele faz séria”, “pecado”, “perversão”, “crime” e apare- um porto fenício que ficava em uma di-
um chamado veemente ao instrumento hu- ce em outros textos do AT (Et 9:2, Jr 1:6, Lm 1:2, reção totalmente oposta à de Nínive.
mano e espera que esse convite seja corres- Os 7:2, Jl 4:13). Essa mal­dade subiu diante do Mais do que fugir da missão, Jonas que-
pondido à altura. “rosto” ou da “presença” de Deus, o que nos ria fugir de Deus. Algum tempo depois,
Vá. Também denota “viajar”, “caminhar”, leva a outras passagens de situação seme- Jeremias escreveu sobre a impossibilidade
ou seja, “ir de um lugar ao outro” em qual- lhante, tais como a maldade da Terra no tem- de se esconder de Deus (Jr 23:24).
quer forma de transporte (2Rs 7:14). Além po de Noé (Gn 6:5, 11) e o clamor de Israel no Escapar de quem? Escapar de quem
disso, podemos notar na LXX que o verbo Egito no tempo de Moisés (Êx 3:7-9). Em to- o chamou. O texto revela que o profeta
“vá!” (Πορεύθητι) é o mesmo usado no NT dos os casos, Deus não agiu com as próprias dá as costas não apenas ao chamado de
no contexto de ir pregar ou cumprir a missão mãos, mas chamou mensageiros para pre- Deus, mas ao próprio Deus. Afinal, como já
(Mt 8:9; Lc 7:8, At 9:11; 28:26). Claramente, o gar: Noé pregou durante 120 anos, Moisés mencionamos, a missão não nasce no ser
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humano, mas no coração de Deus; Ele é Conclusão Como vimos, o livro de Jonas é notavel-
o responsável pela missão. Assim como a A atitude do profeta é contrastada com a mente evangelístico e missionário. É Deus
maldade sobe até a “presença do Senhor”, dos demais personagens do livro. De todos quem propicia o plano de ação e usa J­onas
assim também Jonas foge – ele escapa da os seres e coisas mencionados – a tempes- como Seu mensageiro. Como podería-
“presença do Senhor”. Justamente, essa tade, o sorteio, os marinheiros, o peixe, os mos negar o caráter missionário do livro de
frase “diante da presença do Senhor” se ninivitas, a planta, a lagarta e o vento leste –, Jonas com todos esses elementos? Não se
repete três vezes: a primeira quando as o profeta é o único a se recursar a obedecer pode dizer que a mensagem de Jonas não
maldades de Nínive subiram diante da a Deus. Enquanto Jonas é insensível e nada tem “evangelho” porque anuncia destruição,
“presença do Senhor” (v. 2c) e as restan- misericordioso, Deus mostra Seu grande já que o verdadeiro evangelho está imerso
tes enfatizando a fuga “da presença do amor e graça pelos perdidos. Em pelo me- em uma mensagem de juízo. Foi a bonda-
­Senhor” (v. 3a, c). O que Deus faria ao pro- nos dois momentos, Jonas menciona a mise- de do Senhor que convidou Jonas a cumprir
feta pela fuga declarada? Possivelmen- ricórdia divina (Jn 2:8; 4:2). O termo hebraico a missão, bem como a salvar os ninivitas do
te Jonas pensasse que Deus o mataria ou traduzido como “misericordioso” é hesed, juízo divino. Infelizmente, o profeta de Israel
que enviaria outro profeta em seu lugar. o mais frequente substantivo para “amor” não aceitou a noção de que a graça divina é
no AT (aparece mais de 250 vezes),11 termo aplicada a todos aqueles que aceitam firmar
Consequência da fuga que está intimamente associado ao concer- um concerto de salvação com Deus, não im-
O verso 3 destaca a presença do ver- to de amor divino por Israel. Embora Jonas porta a nacionalidade. E você tem cumprido
bo descer em duas oportunidades: quan- reconheça a misericórdia de Deus pelos pe- sua missão?
do “desceu a Jope” e quando desceu para o cadores, ele não a aceita.
Referências
navio. A palavra “descer” significa “fazer um Deus escolhe Nínive como um campo
movimento linear de uma elevação mais alta missionário, sendo que ela era uma cidade 1
Jo Ann Davidson, Jonah: The Inside Story
(Hagerstown, MD: Review and Herald Publisher,
para uma mais baixa”.10 Em um sentido mais grande, do mesmo tamanho ou maior que
2003), p. 21.
profundo da palavra, sempre que alguém sua maldade. A conversão dos marinhei- 2
Gerhard F. Hasel, Jonah: Messenger of the Eleventh
desce de um lugar alto para baixo, tem impli- ros e ninivitas é uma chamada de atenção Hour (Montain View, CA: Pacific Press Publishing
cações espirituais que vão além de caminhar a Israel que, não sendo um povo tão mau Association, 1973), p. 7.

ladeira abaixo: pode assinalar fracasso espi- como os ninivitas, não se arrepende e não 3
Juan Calvino, Comentario sobre Jonás (San José, Costa
Rica: Sola Scriptura, 2007), p. 17.
ritual, e isso ocorre simplesmente por não obedece à Palavra de Deus. Os marinhei-
4
Davidson, Jonah: The Inside Story, p 23-29.
se fazer a vontade de Deus. Alguns exem- ros e ninivitas, sim! Na verdade, quem pre-
5
Carroll Gillis, El Antiguo Testamento: Un Comentario
plos nos mostram essa premissa: Abrão e cisava de conversão era o próprio profeta, Sobre Su Historia y Literatura (El Paso, TX: Casa
sua esposa desceram ao Egito em busca o mensageiro da graça. Bautista De Publicaciones, 1991), 5:169.
de alimentos (Gn 12:10), Moisés, do monte Jonas representa a atitude do povo 6
Davidson, Jonah: The Inside Story, p. 45
­Sinai, desceu ao cenário do bezerro de ouro de Israel, chamado desde o início a cum- 7
Jirí Moskala, “Misión en el Antiguo Testamento”,
(Êx 32:15), S
­ ansão desceu para o território fi- prir a missão. Infelizmente, a nação não em Mensaje, Misión y Unidad de la Iglesia ed. Ángel
Manuel Rodríguez (Buenos Aires: Asociación Casa
listeu (Jo 14:1), Saul desceu a Gilgal (1Sm 15:12) compreendeu isso, assim como o profe- Editora Sudamericana, 2015), p. 63.
e Davi foi para o deserto de Parã (1Sm 25:1). ta Jonas. Talvez motivado por seu zelo na- 8
Segundo Steven Thopson e Borge Schantz,
No caso de Jonas, o sentido dessa palavra cionalista ou pela pouca experiência como aparecem sete vezes na Bíblia este tipo de chamado
(“levantar-se, andar e pregar”): A Moisés, Balaão,
o acompanhou muito bem. O profeta desceu evangelista em um lugar desconhecido, Elias, Jeremias, moradores de Samaria e Jerusalém,
quatro vezes no mesmo período do livro (1:1– Jonas demonstrou desgosto pela misericór- e duas vezes ao profeta Jonas. Ver Steven Thopson
e Borge Schantz, Misioneros Bíblicos (Buenos Aires:
2:10). Nenhuma outra pessoa na Bíblia he- dia divina em favor dos gentios. Enquanto
Asociación Casa Editora Sudamericana, 2015), p. 32.
braica experimentou uma “descida” em três Moisés intercedeu pelo povo e em segui- 9
George W. Peters, A Biblical Theology of Missions
etapas (1:3a, 1:3b e 2:6) como resultado de re- da adorou a Deus, Jonas pregou ao povo e (Chicago, IL: Mody Press, 1984), p. 15.
jeitar o chamado de Deus para cumprir a mis- depois praguejou por causa do livramen- 10 
J. Swanson, “‫ ” ַד רָי‬en Diccionario de Idiomas Bíblicos:
são. Na quarta vez, a Bíblia faz um trocadilho, to. Ao citar Êxodo 34:6, 7 (ver Jn 4:2), o pro- Hebreo (Bellingham, WA: Lexham Press, 2014).

afirmando que Jonas desceu para um “sono feta repreende a Deus por ter poupado os 11 
John D. Barry (ed.), The Lexham Bible Dictionary
(Bellingham: Lexham Press, 2016).
profundo” (vayeiradam). Parece que “des- ninivitas da destruição. Jonas vê a compai-
cer” era o único verbo que constava no diá- xão de Deus como algo negativo. Com este HEYSSEN CORDERO
rio de bordo de Jonas. É o verbo contraposto comportamento, Jonas admitiu que a fuga MARAVÍ
Foto: Gentileza do autor

ao “ide” de Deus. Isso é o que acontece quan- deliberada para Társis ocorreu justamente líder de Ministério Pessoal,
Escola Sabatina e Evangelismo
do alguém recusa o chamado divino para a porque ele não queria que os ninivitas fos- da União Peruana do Sul
missão: ele desce. sem salvos do julgamento.

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