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AFETOS, SEXUALIDADES E RESSIGNIFICAÇÕES NAS ÁFRICA(S) E NO(S)

BRASIL(IS)

Ineildes Calheiro 1

Resumo:

Considerando as complexidades nas formas de vida do continente africano, esse estudo tem por
finalidade refletir a respeito das diferentes formas de afetos e sexualidades ressignificadas em
alguns desses territórios, bem como suas tradições, relações entre os gêneros e suas
performances. A partir de pressupostos teórico-metodológicos, este trabalho pauta-se pela
revisão de literatura focando estudos de africanos/as que trazem perspectivas da modernidade
em meio a violências de gênero e as ideias de harmonia entre os sexos, sexualidades e afetos.
Nesse contexto, a poligamia, o casamento, o matriarcado e o papel de gênero são tomados como
fenômenos que convivem com a negação das sexualidades homoafetivas, e de como estas são
invisibilizadas. “Na África não tem destas coisas” dizem as vozes que proclamam a
heteronormatividade como única possibilidade da relação de afetos no continente africano. Nos
resultados, estudos assinalam as ressignificações da tradição no trato com sexualidades e afetos
em territórios africanos; No Brasil, a cultura dita afro-brasileira é embebida de ressignificações
violentas, exploração sexual e desvalorização das mulheres que apontam para o “matriarcado
da miséria” e a poligamia da desgraça, indicando modelos pautados na infelicidade do sujeito
como tônica. É possível definir o continente africano como desprovido de homossexualidades?
É possível estabelecer homogeneidades nas diferentes culturas e povos do continente africano?
Para este trabalho foi utilizada revisão bibliográfica específica.

Palavras-Chave: Afetos; sexualidades; África/Brasil; tradição/modernidade; ressignificações

1. Introdução
Esse estudo é parte de desenvolvimento da pesquisa que realizo sobre representações
africanas e pauta-se nas temáticas dos estudos de minha trajetória acadêmica relacionados a
gênero, feminismos, interseccionalidade focando os eixos sexualidades, raça e território,
abordando colonialidades, pós-colonialidade e descolonização do pensamento. Inclino-me a
pensar a categoria Queer no contexto da diversidade intragênero, a partir da categoria QOC –
Queer of colour/africanx, realizando crítica à teoria queer universal e trazendo à tona as
epistemologias queer des-ocidentalizadas, com os territórios não ocidentais e a descolonização
do pensamento.

1
Bolsista CAPES. Doutoranda em Difusão do Conhecimento/DMMDC. Mestra em crítica Cultural (UNEB). O
nome para citação conforme assino as produções acadêmicas é social. (O nome de registro é Ineildes C. Santos).
E-mail. ildafrica@yahoo.com.br.
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No Brasil, a cultura dita afro-brasileira é embebida de ressignificações violentas,
exploração sexual e desvalorização das mulheres. Do outro lado, autoras/es africanos/as trazem
perspectivas da modernidade em meio a violências de gênero e crítica as ideias de harmonia
entre os sexos, sexualidades e afetos. Desta maneira, através de revisão de literatura trago
alguns pontos para o diálogo, o debate e pensar esses tensionamentos. As vozes que proclamam
a heteronormatividade no continente africano, dizem: “Na África não tem destas coisas”. E, na
América Latina, não se denega a existência da categoria, mas abnega o reconhecimento e a
cidadania. Não somente se repudia, mas os/as transformam em abjeto. E dentre essa categoria
queer nota-se o queer mais queer, no caso especifico do Brasil, quando se leva em consideração
a política de raça e as relações raciais, as polarizações de cor e a questão de classe.
Diante desse problema, duas questões me movem, as quais começo a refletir nesta
análise. A saber: É possível definir o continente africano como desprovido de
homossexualidades ou sexualidades não-heterossexuais? É possível estabelecer
homogeneidades nas diferentes culturas e povos do continente africano? O objetivo é refletir a
respeito das diferentes formas de afetos e sexualidades ressignificadas em alguns desses
territórios, bem como suas tradições e relações entre os gêneros, além de suas performances.

2. Pontes para pensar a des-ocidentalização Queer: entre África (s) e Brasili (s)

No Ocidente
Queer é tudo isso: é estranho, raro, esquisito. Queer é, também, o sujeito da
sexualidade desviante - homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis,
drags. É o excêntrico que não deseja ser “integrado” e muito menos
“tolerado”. Queer é um jeito de pensar e de ser que não aspira o centro nem o
quer como referência [...] LOURO, 2008, p.7-8).

Nas Áfricas
[...] Queer African Reader pretendem resgatar as vozes de intelectuais e
militantes queer do continente africano. Trata-se, assim, de “documentar não
só a resistência nas vidas e nas lutas diárias das comunidades queer da África”
e de “valorizar a complexidade da maneira com que a libertação queer é
enquadrada na África e pelos africanos” (REA et al, 2018, p.16).

Com base em Yuderkys Minõso “os estudos Queer chegaram para a América latina por
meio de grupos restritos e hegemônicos em termos de raça e classe” (REA; AMANCIO, 2018,
p. 32). No Brasil, atribuímos a teoria queer á Guacira Louro (2001; 2008) com os estudos sobre

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corpos estranhos e a teoria queer pós-identitária, adequando-o ao campo da educação. Contudo,
relacionadas com as referências hegemônicas, ocidentais e fundada no queer butleano. A
história mostra a trajetória do queer no país, em termos de epistemologia, com a ampliada
categoria identitária GLS/ LGBT, LGBTQIA+ (Lésbicas, gays, bissexuais, transexuais,
travestis, queer, intersex, assexuada/os) que já se denominou de “sopa de letrinhas”, mas pouco
se enfatiza os significados da “sopa” como alimentação política e objetivos diferenciados, bem
como a utilização dessa sopa para apontar os limites dos corpos e os limites identitários. Sendo
importante apresentar a sopa como coletivo e arma contra hegemônica em territórios não-
ocidentais e em pensamentos des-ocidentalizados.
Em pensamentos treinados pelos paradigmas ocidentais as acrescidas letras – deram-se
a fim de acrescer a seletiva e a disputa individuais, enfraquecendo a luta, em lugar do
fortalecimento (REGINA FACCHINI, 2005), focando quem deve participar do feminismo
“legítimo”, “original” e o/a “outrx”, que tem que ficar de fora. As três letras “GLS” que se
tornaram crescente e carregam significados, como suas intersecções de marcadores sociais e
representações de valor. E ainda que troquem de ordem, é internacional. Contudo, gera o
conflito intragênero – a ganância capitalística que passa pelo corpo.
Observando estudos “clássicos” queer e os/as seguidores/as batleanx da temática das
sexualidades dissidentes ocidentais, nota-se que se prende a representação nos ideais de
performance, e a teoria queer ocidental tem como um dos principais pontos – a visibilidade,
diferindo entre tantas questões de queer africanx e latinx-americanx. A temática Queer-LGBT
é recente na perspectiva da diversidade queer (s), bem como são escassas tais pesquisas, as
quais se centram em queer-ocidental/universal. Esse problema é velho e colonial, apresentado
nos anos 80 na América latina como ignorância ocidental/ branca. “A cultura branca dominante
está nos matando devagar com sua ignorância” (ANZALDÚA, 2005, p. 713).
Autoras africanas (REA; AMANCIO, 2018) no texto “Descolonizar a sexualidade:
teoria queer of colour e trânsitos para o Sul”, focando a descolonização realizam uma
genealogia queer descaracterizando a sua origem ocidental e flagram o termo/conceito no
debate dos anos 1980 pela chicana lésbica mestiça Glória Anzaldúa, em sua obra célebre
“Bordelandds”, publicada originalmente em 1987 e mais precisamente no capítulo “La
conciencia de la mestiza”. (capítulo traduzido em 2005, na Revista estudos feministas).
Conformes as supracitadas, apesar da origem do termo ter sido atribuído a Teresa de
Lauretis, e reconhecendo sua grande contribuição para as categorias queer não-brancas
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refletindo sobre classe, raça, etnia, geração e território, o termo foi introduzido pela primeira
vez na academia Norte-americana por Anzaldúa, com a origem na América Latina (REA;
AMÂNCIO, 2018, p. 14). Nessa vertente pensa-se na des-universalização LGBT-Queer
refletindo sobre “queer ainda mais queer” (queer não-ocidental, latinx, andino, quer-negrx,
quer-africanx), não necessariamente invisibilizados no interior da categoria queer global, mais
ignorados, marginalizados.
Utilizado como pauta de lei em defesa da heterossexualidade tóxica, através do combate
à violência de gênero com exclusividade á categoria “mulheres heterossexuais”, e, obviamente,
fazem jus, as lésbicas de armário. As “feministas radicais e transfeministas divergem sobre
conceito de gênero e identidade de gênero, questão que chegou ao Congresso na lei do
feminicídio” (ARRAES, 2015, p.16). A mesma expressa que a bancada evangélica domina o
parlamento no cenário atual, e como ganhos, a lei 13.104/15 é outorgada, mas a violência de
gênero (que engloba o conjunto) é substituída pela bancada para o termo “sexo feminino”,
exclusivamente direcionado a uma única categoria de mulheres – as mulheres cis
(biologicamente nascida), e essa modificação do termo excluem as demais categorias
identitárias dos direitos, como as transgênero, intersex, travesti.
O movimento feminista hegemônico é surpreendido na América Latina contra o
desenvolvimento e em conjuração com o neoliberalismo, mercantilização e capitalismo e,
contraditoriamente contra a luta e história feminista, isso, pela ânsia ao poder (SONIA
ALVAREZ, 2014). “[...] uma mudança decisiva em direção ao interesse por outros lugares de
poder e produção de conhecimento” (HARCOURT, 2005, p. 34 apud ALVAREZ, 2014, p. 59).
A autora se reporta a AGG – Agenda Global de Gênero, encabeçada pela ONU – Organização
das Nações Unidas, comandada pelas feministas hegemônicas (euro-americanas), inserindo
Ongs, ativismos e movimentos, porém, criando hierarquizações nos feminismos, em que a AGG
elabora intervenções culturais e políticas.
Esses problemas, tanto em relação ao poder almejado pelas hegemônicas, quanto ao
conservadorismo e bancada evangélica, também atinge territórios africanos que se organizam
juridicamente com leis de proibições identitárias, fortalecendo a estrutura familiar pautadas nos
ideias de tradição versus intoxicações ocidentais (GATHONI BLESSOL, 2018; KEGURO
MACHIA, 2018) não reconhecendo as sexualidades no contexto da complexidade em África(s).
E sobre o então poder a que me refiro, instituições internacionais apoiam economicamente
territórios africanos para manter o domínio e a colonialidade pela via do gênero e do queer.
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Lá e cá a bancada conservadora e religiosa fundamentalista se fortalece e o feminismo
hegemônico (legítimo) e o conservadorismo se articulam, armam-se, excluem e negam direitos.
Alda Facio, na Revista “Outras Vozes” (de Maputo), expressa: “[...] não é simplesmente a
incorporação das mulheres no poder que garante a eliminação de todas as discriminações que
sofrem as diferentes mulheres, por serem mulheres (FACIO, 2006).
Não somente as categorias “mulheres-cis” têm enfrentado tensionamentos em Áfricas,
no que tange a violência de gênero e a múltipla opressão territorial, mas, as categorias
LGBT/queer, quando Líderes religiosos, políticos e grupos conservadores portam-se contra as
identidades sexuais. Como, p.ex., no Quênia, leis tradicionais opressivas são defendidas por
entenderem que homossexualidades impede o enfraquecimento da instituição família. As leis
visam definir a “heterossexualidade nacional” (MACHARIA, 2018, p.14).
As noções de movimentos relacionados à LGBT-queer com a teoria QOC/africanx, vê
tais categorias sexuais para além de liberdade sexual e de desejo, mas como formas de combate
a colonização. QOC aparece na complexidade, pluralismo, diversidade e embebidos de lutas.

1. Tradição e modernidade na perspectiva das sexualidades Queer(s)

Na América Latina, em comunidades de etnia andinas, negra e étnicas flagra-se


categorias queers e sexualidades, tais quais, ainda que vista como consequência da colonização,
para Rita Segato já foi, anteriormente, dissociadas de tradição e modernidade (SEGATO,
2012,), portanto, não é o devir: o devir adinx-queer, nem o devir queer-negrx, no entanto,
conforme analiso, são como processos de subjetividades interseccionadas nos corpos, inerente
ás relações, ás vivências, ao humano. Nesse sentido, tradição e modernidade, tudo indica,
fundir-se e as sexualidades não se constituem como biológicas, mas como corpos, sujeitos,
pessoas. E como percebe-se na discussão de Segato, o que parece ser consequência da
colonização nas vivências andinas não são as sexualidades LGBT-queer, mas, a violência de
gênero, as masculinidades tóxicas e as perdas de valores culturais. E sobre as mulheres, tem se
reduzido os papéis de comando, apesar de que ainda há autonomia, valores das mulheres
andinas, segundo frisa a autora. As intervenções da ONU neste território e a tais povos, ocorre
em prol de se evitar mais perdas e ampliação da violência de gênero.
Autoras da temática sexualidades e queer negro/africanxs (QOC) - Queer Of Colour,
têm outro olhar, veem dominação ocidental por trás destes projetos de intervenção, e “mesmo
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com as melhores intenções, as intervenções estrangeiras frequentemente não compreendem as
dinâmicas e as políticas locais e podem causar muito mais prejuízos do que promover o bem”
(SIBONGILE NDASHE, 2018, p. 79). Territórios africanos inserem as categorias queer-
africanx/negro (QOC) em tensões pautadas no debate da tradição/modernidade, colonialidades
e as representações corporais/sexuais identitárias, tais quais, QOC são deslocadas de subversão
de gênero e se insere nos campos de luta nacionais ( REA, 2017; REA; AMANCIO, 2018).
Há um grupo de autoras africanas de estudos de gênero no continente que prezam pela
tradição, e outro que nesse ponto difere, como os estudos que tentam explicar a modernidade e
mostram a violência de gênero, não tão somente na colonização/pós-colonização, mas em plena
tradição em constante mudança/ressignificando-se (CALHEIRO; OLIVEIRA, 2018b),
descontruindo as ideias de tradição voltada para harmonia entre os sexos. Nesse grupo da
modernidade, a poligamia, o casamento, o papel das mulheres, a prática sexual na
obrigatoriedade do casamento, a ablação (aonde ocorre) são vistos como violência de gênero.
Na coletânea de artigos “Traduzindo a África Queer” (CATERINA REA, et al 2018)
problematiza-se queer (QOC) voltado para as especificidades africanas, inserindo a ideia da
resistência à colonização, inserção na luta pela libertação colonial e que são formas de vida
moderna, mas, todavia, sendo anterior a colonização - “a cultura viva” que defende Paulin
Hountondji (2008). Tradição e modernidade na filosofia e história africana cultural, e ao mesmo
tempo remete à ressignificação. Houtodhi (2008; 2009 apud LANGA, 2018, p. 67) retoma o
debate do pluralismo como duplo pressuposto: virtude e perigo ao mesmo tempo, no entanto,
o autor defende o pluralismo como algo valioso, frutífero para pensar o progresso e defende
que, com o pluralismo há vida e não morte da cultura africana. Nesse sentido, a ideia da
modernidade é contestar essencialismos, fixidez e imutabilidades culturais, é ponderar em
construções, ressignificações e no “novo”, inserindo a tradição no campo da memória – a
memória ancestral.
Nessa conjuntura as/os autoras/es das sexualidades /QOC rebatem as assertivas de
África única/universal, homogênea2, bem como rebatem as assertivas de Áfricas sem
homossexualidade, ou identidade desviada exclusiva da imposição ocidental, pós-colonização,

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Motivo pelo qual que opto por utilizar o termo “Áfricas” destacando o “s”, como indicativo de plural, de vasto,
e territórios no plural, ao invés de “território africano” no singular.
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e também investem contra as afirmações de tradição sem homossexualidades e criticam o
conceito da categoria queer ocidental.
Matriarcado e poligamia aparecem como duas grandes categorias de análise de gênero
em territórios africanos e para pensar a ressignificação no Brasil. Na tradição o primeiro
conceito é tradicionalmente voltado para o comando e valorização de mulheres e a poligamia
são formas de relações múltiplas. No Brasil, a ressignificação das culturas africanas na diáspora
lhes conformou em categorias tóxicas e violentas: “matriarcado da miséria”, como interpretou
Sueli Carneiro (2017) ao relacionar a desigualdade racial e o racismo experienciado pelas
mulheres negras. E: “poligamia da violência”, da infelicidade, da desgraça, como me convém
pensar.
Nomeado de “QOC” - queer of colour, o termo tem sido discutido entre as/os
pesquisadoras/es da temática nestes territórios como um termo ainda não apropriado para
caracterizar as representações sexuais no continente, pelo fato de que, não está diretamente
associado a liberdade sexual e/ou tendo objetivos de visibilidades, mas muito para além, são
categorias que tem como alvo a libertação da nação/nações da colonização. No entanto, como
percebo QOC pode não ser performatividade como o queer ocidental o é, conforme nos
apresenta a teoria na perspectiva ocidental, Judith Butler e seus /suas seguidores/as.
Ao explanar que raça, classe e etnicidade nos estudos africanos são inseridos como
questões secundárias, e ao empregar sua crítica, Paul Zeleza (2005) dá pistas para
compreendermos a não-adesão do feminismo africano à teoria da interseccionalidade, usada
como ferramenta de descolonização e desigualdade racial pelo feminismo negro. Crítica
também de Claudio Furtado (2012), e justificativa se dá, possivelmente, pelo fato de a economia
africana ser diversificada e não estar centrada no capitalismo. Desta forma, gênero, raça e classe
em territórios africanos aparece em termos de complexidade, uma vez que o continente se
apresenta desigual nestas categorias, quer seja devido a colonização, quer seja anterior a ela.
Como visto nos estudos africanos específicos da temática, a epistemologia QOC
reconhece a interseccionalidade como teoria e método que visa desconstruir, descolonizar
pensamentos, combater desigualdades, racismos, sexismo, homofobismo, de forma conjunta, e
se articulam com esse paradigma científico. Na concepção de Oyěwùmí (2017), raça e negro é
categoria criada pelo ocidente, e assim, a autora justifica a recusa a utilizar tal termo. Crítica do
ocidentalismo (Ibidem, 2004), advoga pelo reconhecimento de epistemologias africanas e traz

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grandes contribuições para o campo de gênero e feminismos africanos, colocando em pauta o
debate da tradição e a pós-colonização.
Faz-se pertinente refletir essas questões com o Brasil, em que raça e classe são
categorias políticas, articuladoras e tensionadoras. Em territórios africanos as categorias
negro/raça/cor perde força para o viés da etnia, ou seja, é descaracterizada de polarização racial
e, assim, não soa politicamente com a mesma força da América Latina e de forma especial o
Brasil, no qual aparece dividido: os dois brasis – o Brasil pobre e o Brasil rico, o Brasil negro
e o Brasil branco (LÉLIA GONZALEZ, 1979), divisão que solapa toda a diversidade
étnico/racial. O racismo se multiplica em variedades e tem a polarização racial como
determinante da desigualdade social que é hierarquizada pela tonalidade da cor da pele, ciando
uma escala de valorização (INEILDES CALHEIRO; EDUARDO OLIVEIRA, 2018a).
No Brasil, a bicha preta (NILTON LUZ, 2013) e a lésbica negra exemplifica o queer
não universal, ou seja, que há queers e queers, denotando-se um termo dissociado do queer
ocidental e inglês, e em nosso território destoa dos objetivos, porque, minimamente atinge a
academia, é até engraçado, mas teria outro impacto se fosse em nossa língua: “cuir”, como
apontou autora brasileira.
A palavra queer em língua inglesa incomoda lá, mas na América Latina soa até
esteticamente apreciável. É bem diferente de “CU”, não é? Como incomoda o grupo “CUS” (da
UFBA), muito mais do que teoria queer, queer no currículo, queer na educação. Essa crítica foi
realizada por Larissa Pelúcio. Para esta autora “em português ‘queer’ nada quer dizer ao senso
comum [...] não fere o ouvido de ninguém, ao contrário, soa suave (cuir), quase um afago, nunca
uma ofensa” (PELÚCIO, 2014, p.4 apud REA; AMANCIO, 2018, p. 7). Chamar a atenção da
ciência com o “corpo” epistemológico sobre as diversas sexualidades, usando as mesmas armas
do Ocidente na América latina não tem os mesmos efeitos e resultados. Faz-se importante notar
que há “cuir ainda mais cuir” e ao ocorrer algumas conquistas, de que cuir estamos falando?
“Como mestiza, eu não tenho país [...] como uma lésbica não tenho raça, meu próprio
povo me rejeita [...]” (ANZALDÚA, 2005, p.707). A frase da mestiça chicana, mostra que na
América latina e em territórios africanos há os corpos mais desvalorizados para a ciência
(étnicos/negros) e o território mais inferiorizados, e nos conduz a pensar queer diante do queer
ocidental e branco. As polarizações raciais são produtos da mestiçagem que fomentou o
genocídio negro e projetos de exclusão racial estruturante (MUNANGA, 2006). E as etnias
também são vistas como a negação da negritude (FURTADO, 2012).
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Nesse sentido, se não há privilégio para pessoas queers de nenhuma raça/cor, etnia, mas,
é válido pensar em algumas vantagens se compararmos territórios/nações, raças/cor, etnias e
classe. Será que, no Brasil, cuir branco e de classe média enfrenta os mesmos obstáculos pelos
quais se deparam cuirs negrxs e excluídos do sistema? Em África(s), busca-se por autonomias
dos corpos e por isso se nega as homossexualidades e sexualidades não heterossexuais? Apesar
disso, os estudos a respeito das homossexualidades e diversas formas de afeto em continente
africano vem crescendo, como comprova levantamentos (HLANGA, 2018; REA; AMÂNCIO,
2018). Também é crescente a LGBT-Queer-fobia em países africanos, igualmente presente na
África do Sul (SIBONGILE NDASHE, 2018, p.78-9), embora que as leis de progresso para a
categoria LGBTI existe neste território. Entretanto, “[...] como em toda parte, as lésbicas são
sujeitas ao que esta autora chama de ‘estupro curativo’, o estupro de mulheres percebidas como
lésbicas por parte de homens [...]”. (BERNADETTE MUTHIEN, 2018, p. 91-2).
A “homofobia na África tem aspas” (MIGUEL, 2016). A homossexualidade em Áfricas,
comumente é negada e os estudos são invisibilizados. Tal negação, obviamente, acompanha a
negação a LGBTQ-queer-fobia. Curiosamente, autores/as africanxs dos estudos LGBT/QOC
comungam com essa assertiva. Tudo indica ser questão de resgate a tradição, como um fixo, o
estável, o imutável, e /ou negação da percepção da homossexualidade/queer na conjuntura do
pluralismo cultural africano. No entanto, as sexualidades plurais estão fortemente presente nos
mitos dos Orixás e performatizados em suas respectivas danças.

Considerações
Estudos mostram as ressignificações da tradição no trato com sexualidades e afetos em
territórios africanos, e no Brasil a cultura dita afro-brasileira é embebida de ressignificações
violentas, exploração sexual e desvalorização das mulheres que apontam para o “matriarcado
da miséria” e a poligamia da desgraça, indicando modelos pautados na infelicidade do sujeito
como tônica. A cosmologia africana performatiza-se nos corpos QOC revelando a tradição na
linguagem das sexualidades, como analisa Thusabe.
Diversas categorias queers, tais quais se apresentam, em sua origem destituem-se de
categorias dissidentes, subversão e podem estar relacionadas à ancestralidade – não em sentido
de fim de tradição e nem começo de modernidade, mas, como fusão, indicando que sempre
estava lá (ali), nos corpos humanos e ressurge como o novo, todavia, por ressurgir em meio as
mudanças, e em dado momento da história, e isso é importante, se constitui como ato subversivo
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tornando-se urgentes as teorizações, produções locais, pensamentos e compreensões queer,
estas que adentram ao campo da arte – representação, encenação. A arte de ser, e ao campo de
poder - o poder de despoderizar.
As sexualidades queers-LGBTafricanas, sob a sigla QOC - queer of colour aparecem
nos debates desprovidos da característica de subversão como o principal vetor, bem como o
prazer, a liberdade sexual e a luta pela visibilidade não adentram aos objetivos queers destes
territórios, mas como mecanismo de combate a colonialidade, seja interna, seja externa, e pela
libertação, de fato. Autorxs africanxs, inserem QOC no debate e relaciona à pluralidade, mas
que, as leis e a jurisprudência em vários territórios africanos voltados para as pessoas
homossexuais/queers são grandes problemas, e todavia, as visões e intervenções ocidentais são,
talvez, os maiores entraves. Entendendo QOC em África(s) como complexidade e nos Brasil
(is) como múltipla opressão. Lá e cá, corpos negros, sexualidades e categorias identitárias
LGBTQI se articulam ampliando formas (modernas) de confronto, resistência. A arte
corporificada, ampliando a ideia do corpo como poder e também como direito – o corpo
jurídico. A meu ver se constituindo como um projeto, em unidade, como uma estrutura
autônoma.

Agradecimentos: a CAPES pela bolsa de doutoramento.

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