Você está na página 1de 63

FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEPORÂNEA


DO BRASIL (CPDOC)

Proibida a publicação no todo ou em parte; permitida


a citação. A citação deve ser fiel à gravação, com
indicação de fonte conforme abaixo.

FIGUEIREDO, Eurico de Lima. Eurico de Lima


Figueiredo (depoimento, 2013). Rio de Janeiro,
CPDOC/Fundação Getulio Vargas (FGV), (2h
50min).

Esta entrevista foi realizada na vigência do convênio


entre CONSELHO NACIONAL DE
DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E
TECNOLÓGICO (CNPQ). É obrigatório o crédito às
instituições mencionadas.

Eurico de Lima Figueiredo


(depoimento, 2013)

Rio de Janeiro

2019
Ficha Técnica

Tipo de entrevista: História de vida


Entrevistador(es): Celso Castro;
Técnico de gravação: Bernardo de Paola Bortolotti Faria; Ninna Carneiro;
Local: Rio de Janeiro - RJ - Brasil;
Data: 15/10/2013 a 15/10/2013
Duração: 2h 50min
Arquivo digital - áudio: 3; Arquivo digital - vídeo: 3; MiniDV: 3;

Entrevista realizada no contexto do projeto “Cientistas sociais de países de Língua


Portuguesa: histórias de vida”, com financiamento do Programa de Cooperação em matéria
de Ciências Sociais para os países da comunidade de Língua Portuguesa (Programa Ciências
Sociais CPLP) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq).

Temas: Anos 1980; Atividade profissional; Autoritarismo; Bibliografias; Ciência política;


Ciências Sociais; Ditadura; Eduardo Mascarenhas; Ensino militar; Ensino superior; Escola
Superior de Guerra; Família; Fernando Henrique Cardoso; Forças Armadas; Formação
acadêmica; Golpe de 1964; Humberto de Alencar Castelo Branco; Instituto Universitário de
Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj); Intelectuais; Jean Paul Sartre; Jornalismo; Marxismo;
Militares; Militarismo; Miro Teixeira; Obras de referência; Pesquisa científica e
tecnológica; Pós - graduação; Produção intelectual; Redemocratização; Regime militar;
República Velha (1889-1930); Universidade Federal do Rio de Janeiro; Universidade
Federal Fluminense;
Sumário

Entrevista: 15.10.2013 O ambiente familiar; a separação dos pais; a morte do pai; a


influência do pai nos estudos estratégicos e compreensão das Forças Armadas; as boas
produções do pai fora traduções de autores estrangeiros; entrada no Colégio Militar;
questionamentos do pai; trabalho temporário como jornalista e redator; a escolha e mudança
para ser um Cientista Social; formação de cientista político pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ); clima pós-golpe de 1964; rotina das aulas ministradas no curso de
Ciência Politica; passagem pelo Instituto Universitário de Pesquisa do Estado do Rio de
Janeiro (IUPERJ); as boas experiências no IUPERJ; a influência de Jean-Paul Sartre e o
existencialismo; a interpretação do golpe segundo o existencialismo; a demora na
consciência do golpe; as lembranças do estopim do golpe; primeira hipótese estrutural do
golpe de Fernando Henrique Cardoso; a dissertação de mestrado; o mestrado no IUPERJ; a
contestação metodológica e teórica do IUPERJ; a orientação do professor Simon
Schwartzman no mestrado; a adaptação no centro de pesquisa; a pesquisa sobre o Presidente
Castelo Branco; o auge da ditadura militar e o temor de pesquisas sobre os militares; a
quebra do preconceito no desenvolvimento acadêmico; a busca do entendimento do
autoritarismo militar disfarçado; a etimologia no estudo do golpe; outras produções
internacionais sobre o militarismo; a lógica preconceituosa nos estudos científicos; a
dificuldade na pesquisa sobre o Presidente Castelo Branco; a ajuda de Hermínio Martins e o
interesse pelos tenentes; O estudo dos militares no IUPERJ; o atestado ideológico do
Departamento de Ordem Política e Social; as denuncias de comunista por Eremildo Vianna;
não recebimento de salários da Universidade Federal Fluminense (UFF); repercussão da
dissertação de mestrado; a diversidade de autores na base da dissertação; a escassez de
autores para o caso especifico brasileiro; o ainda preconceito referente à influência marxista;
contato com Alfred Stepan; a contemporaneidade do preconceito de suas teses sobre os
militares; a ida para Oxford; as dificuldades quando do nascimento dos filhos; a volta para o
Brasil; início de trabalho com a política; coordenação da campanha de Miro Teixeira em
1982; a amizade com Eduardo Mascarenhas e sua morte; o título de notório saber pela UFF;
os projetos na UFF; criação do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEST); a amizade com
René Dreifus; relação da sociedade e as Forças Armadas com o inicio dos estudos
estratégicos brasileiros; a discussão dos militares no período de pós-democratização; o
momento de redemocratização e a questão militar; a distância do meio militar e o
isolamento do meio acadêmico; a referência a primeira republica para entender o fim do
governo militar; a maior interação com os militares e as questões militares; participação na
Escola Superior de Guerra; o surgimento do NEST e o direcionamento para outras questões;
o primeiro ciclo de palestras do NEST; título de Colaborador Emérito do Exército; o sucesso
dos ciclos de palestras do NEST; fundação do Instituto de Estudos Estratégicos (IEST) e
todo o trabalho até os dias atuais; criação da Associação Brasileira de Estudos de Defesa
(ABED); os trabalhos do INEST e da ABED; a relação com os membros do INEST; as
resoluções durante o período de presidência da ABED; as possíveis fragilidades da ABED;
o processo de nomeação da ABED; os estudos estratégicos pelo mundo; a incompreensão do
meio acadêmico dos estudos estratégicos.
Entrevista: 15/10/2013

C.C. – Bom, Eurico, vamos começar conversando um pouco sobre alguns dados biográficos,
sua origem, sua família. O seu pai foi um militar, um escritor militar também, um historiador
militar, não é? A gente queria que você falasse um pouco dessa sua família de origem e do
ambiente familiar da sua infância.

E.F. – Bem, meu pai era militar. Chegou a general do Exército brasileiro. O meu tio também,
ele era general do Exército brasileiro. E a minha mãe era filha de um coronel do Exército. Então
a minha ambiência foi passada muito em um ambiente militar. Mas eu perdi meu pai aos quinze
anos e,. na verdade, eu tive muito pouco contato com ele porque ele separou da minha mãe
quando eu tinha cinco e eu fui revê-lo com mais frequência a partir dos onze. Interessante que
eu sou o último de dez filhos e os meus irmãos dizem que o filho mais ligado ao meu pai sou
eu. No entanto, a contradição é que fui o que menos teve oportunidade de conviver com ele.
Parece que minha mãe foi muito sábia: ao invés de cortar os meus laços com ele, fortaleceu
muito o meu imaginário, o meu simbológico, porque eu sempre o vi como ela me transmitia, e
ela me transmitia um homem com muito amor, um homem muito forte e um homem muito
bravo – não no sentido da braveza da irritação, mas na braveza dos atos que ele teve na vida
dele. Talvez grande parte dos meus interesses, que despertaram mais tarde sobre o que eu
chamo de estudos estratégicos, a compreensão das Forças Armadas na sua atuação profissional
e política, em grande parte se deve, talvez, à busca de um pai que eu sempre quis ter, e não
pude ter como eu queria, a esse dado afetivo em mim. Eu gostaria de frisar algumas coisas
sobre o meu pai, porque em grande parte ele está embrenhado na história política brasileira.
Vou dar apenas alguns dados. Primeiro, se você for consultar o Hélio Viana e ver o movimento
de 22, o meu pai se formou naquele ano e houve um pequeno grupo de jovens cadetes que
escreveram o seguinte: “Pegamos em armas contra o governo, forçados pelas armas”. E o
jovem cadete José de Lima Figueiredo assina em primeiro lugar. O meu pai se formou em
primeiro lugar e com isso ele foi logo dar aula na academia. Ele era engenheiro. A minha avó,
que era escocesa, e o meu avô, pai dele, português... Ela era muito pobre e ela orientou os filhos
no sentido de seguirem a carreira militar, mas com duas salvas: “Para garantir, você será militar
e também será engenheiro. E você outro: será militar, mas será médico”. [risos] Você já vê que
era uma avó incrível, não é? E o meu pai, então, começou a escrever a primeira parte... Ele

1
escreveu dezoito livros. Os primeiros livros que ele escreveu foram sobre a profissão dele, ou
seja, transmissão, comunicação, pontes, etc. Aos 28 anos ele conheceu um general famoso, o
general Rondon. Se filiou ao Rondon e foi fazer a marcha pelo Brasil com o general Rondon.
Vem 1930 e aconteceu um episódio interessantíssimo que é narrado na biografia dele. Qual
foi? Ele apoiava 30, mas ao mesmo tempo estava servindo com Rondon. Rondon foi preso e
meu pai disse para o Rondon: “Olha, o senhor vai preso e eu vou também”. E Rondon disse:
“Não, você não porque você é a favor deles”. Ele falou: “Não, eu sou a favor do meu chefe. Eu
lhe sigo”. E foi preso. Talvez isso tenha criado uma certa inimizade dele com os tenentes. Então
ele escreveu aí... Ele teve duas trilhas interessantes: a primeira foi a geográfica, foi escrever
sobre o Brasil, os limites de fronteiras do Brasil; e sobre a sua antropologia, seu contato com
os índios. Interessante observar que o livro dele, Índios do Brasil, recebeu várias versões e é
até hoje muito cultivado pelos antropólogos, porque foi o primeiro contato de frente que nós
tivemos com a etnografia. Depois ele se interessou pela própria carreira, já como capitão,
major, e procurou escrever sobre os militares, as suas organizações e seus líderes: Soldados do
Brasil, Casernas e Escolas, etc. Como major, 30 e poucos anos, ele chegou para o então
ministro da guerra, que é o meu padrinho, Eurico Gaspar Dutra, e falou: “Olha, militar precisa
ver guerra e eu preciso ganhar a vida”. Isto está escrito. Ele diz que mandou uma carta para a
minha mãe. “Eu quero ir para o Japão”. E o Dutra mandou ele para o Japão. Lá no Japão
aconteceu o conflito Sino-Japonês. Ele falou: “Não, eu quero o [inaudível] da guerra, eu quero
ver o conflito Sino-Japonês. Militar tem que ver guerra”. Ele foi e aconteceu um episódio... Eu
não sei se estou falando mais do meu pai do que de mim, mas é uma história muito interessante.
Ele falou que ia para o front, e o que aconteceu? Em uma determinada situação, as tropas
chinesas estavam avançando contra as japonesas. O militar só podia ter um revólver, que era o
dele, que ele trouxe do Brasil. Era um Smith & Wesson que ele manteve até o final da vida,
dado pelo ministro da guerra, o meu padrinho, Eurico Gaspar Dutra. Eles avançaram, houve
ordem para recuar e ele falou: “Eu não recuo coisa nenhuma. Eu quero ficar aqui”. “Então o
senhor assina”. Ele assinou e lutou ao lado dos japoneses e disparou os seus seis tiros. Saiu
correndo. Caiu. Veio um chinês, ia matá-lo. Veio um japonês e matou o chinês. Ele pegou a
espada do chinês e continuou lutando ao lado dos japoneses. Ganhou a medalha de terceiro
DAN do Exército japonês que eu mantenho em minha casa. Voltou ao Brasil e escreveu três
livros. Eu não sei como ele fazia isso, guerreava e escrevia, porque ele escreveu três livros que
dão um total de cerca de duas mil páginas: Japão por dentro, China ida e volta, No Japão foi

2
assim. Com isso ele se tornou um expert em Japão. Quando veio a Segunda Guerra Mundial,
os americanos sabendo disso: “Olha, você vem para cá”. Ele foi para lá. Voltou e conheceu
uma mulher por quem ele se apaixonou. A minha madrinha, dona Santinha, que tinha um poder
enorme no Exército brasileiro, porque era casada com um chefão, dizia o seguinte: “O que
Deus une, os homens não desunem e nem o Exército brasileiro permite”. [risos] Só que ele era
amigo do chefão, e o chefão falou: “Você tem uma carreira incrível, você vai a general com 43
anos”. Era excepcional ser general com 40 e poucos anos. Hoje com essa idade é major,
tenente-coronel. Mas ele tinha uma carreira incrível e se for general... “Bom, você vai a general
e eu te dou uma colher de chá para você ser diretor da Noroeste do Brasil”- que era uma estrada
[de ferro] importantíssima que ligava o centro-oeste brasileiro com o Cone Sul, principalmente
de Paraguai a Bolívia. Ele foi se transformando em um líder político. Ele dizia que um militar,
para ser político, era como um cidadão comum. Ele se elegeu deputado federal, ora veja você,
com apoio de quem? Primeiro da comunidade japonesa e segundo do sindicado dos
ferroviários. Ele foi deputado e como deputado ele logo se destacou e foi presidente da
Comissão de Segurança Nacional. Como presidente da Comissão de Segurança Nacional ele
foi o responsável pela lei 2004 que criou a Petrobras. Então, se você for pela Petrobras tem um
busto do general de Lima Figueiredo lá. Só que aí ele me viu e tal. Ele viu as besteiras que ele
tinha feito, eu acho, e se aproximou muito de mim. Ele me deu alguns livros muito
interessantes, porque houve uma [identidade] muito grande entre um garoto de onze anos e um
pai de 50 e poucos, de meio século de idade. Eu adorava ele, sabe?

C.C. – Você ia visitá-lo?

E.F. – Eu ia visitá-lo fim de semana com o incentivo da minha mãe, que dizia para eu ter
cuidado com a sirigaita. A sirigaita era a mulher dele. [risos] Evidentemente que eu seguia a
minha mãe porque eu era um bom filho. Eu tinha os devidos cuidados protocolares e
diplomáticos com a mulher dele, que eu não gostava, mas tratava bem. E aí ele teve um infarto
no dia do aniversário dele e aquilo me marcou muito.

C.C. – 54 anos, não é?

E.F. – É, 54 anos. Eu acho que muito mais tarde isso se repercutiria nas minhas preocupações
cognitivas. Então, agora, eu me permito falar um pouco de mim. Quer dizer, eu não me
interessei pelas Forças Armadas até o mestrado. E não me interessei pelos mesmos motivos

3
que não interessavam aos cientistas sociais brasileiros. Ou seja, houve o golpe de 64, eu tinha
ido para a universidade... Eu tive dificuldade de saber o que eu queria fazer. Eu saí do Colégio
Militar e pensei que queria ser filósofo. Só que eu li o Marx, mal, e li que bastava de querer
interpretar a História era preciso fazer História. Então, o problema da Filosofia estava dado,
não tem mais nada a fazer na Faculdade de Filosofia. [risos] Acontece que eu tinha lido Sartre
e o Freud também. Eu tinha uns garotos inteligentes do meu lado, por exemplo, um professor
titular e emérito que você conhece, o Otávio Velho, o professor titular Gilberto Velho, e eu já
discutia essas coisas com eles desde cedo.

C.C. – E você entrou no Colégio Militar com que idade? Na quinta série, que era antigamente?

E.F. – Eu entrei depois que ele morreu. Porque eu entrei como gratuito órfão. Eu senti alguma
coisa porque eu falei para a minha que eu queria ir para o Colégio Militar. Eu não tinha motivo
nenhum para ir porque eu estava muito bem onde eu estava.

C.C. – Não era nenhuma orientação do seu pai?

E.F. – Não, ele nunca falou isso. Aliás, ele dizia que... Para você ter ideia do tipo de conversa
que eu tinha com ele: ele queria discutir comigo o papel das Forças Armadas brasileiras no
mundo moderno, contemporâneo: qual era a função social? Ele falava essas coisas para mim.
De algum modo essas coisas foram para o meu inconsciente, essas preocupações dele. Bom,
então eu fui fazer o Colégio Militar quando ele morreu. Acabei o científico. Naquela época
você entrava mais tarde no colégio, você entrava com sete ou oito anos. Não tinha creche,
entendeu? Você entrava no jardim de infância. E no jardim de infância se prolongava um pouco
mais. Então eu entrei com sete ou oito anos, no primário. Então eu acabei o curso...

C.C. – Você morava aonde?

E.F. – Eu morava em Copacabana já. Eu sempre morei em Copacabana. A não ser no período
que eu estudei na Inglaterra e no período que eu dei aula nos Estados Unidos, mas eu sempre
morei em Copacabana, embora tenha nascido no Rio Grande do Sul. Porque houve um
periodozinho que o papai, entre voltar do Japão e ir para os Estados Unidos, ele deu uma
paradinha aqui e me fez. [risos]

C.C. – Em que cidade do Rio Grande do Sul?

4
E.F. – Cachoeira do Sul. É a cidade do João Neves da Fontoura e de um colega seu, Samuel
Alves Soares – ele é de lá também. Bom, então eu resolvi que Filosofia não era e resolvi fazer
Psicologia. Aí a minha mãe falou: “O negócio é o seguinte, nós somos de classe média, nós
somos pobres. Você não pode ficar assim, você tem que trabalhar”. Falei: “Mas mãe, eu não
sei o que eu sei fazer”. “Uai, você gosta muito de escrever, tenta o jornalismo”. [risos] Aí eu,
com a cara e a coragem, fui para o Jornal do Brasil e me apresentei ao Alberto Dines: “Mas
que pretensão a sua! Por que você acha que tem que começar a trabalhar no Jornal do Brasil?”
“Eu não sei, eu leio muito vocês”. “Você lê o quê?” “Eu leio Amoroso Lima, eu leio Jacques
Ortiz”. “Ah, você lê esse troço todo?” “Leio”. “Então senta ali e me escreve um troço”. “Sobre
o quê?” “Não sei, tira da sua cabeça”. Aí escrevi um troço e ele: “Vai trabalhar no departamento
de pesquisa, conforme for eu coloco-te ponho redator”. Eu tive uma passagem pelo O Cruzeiro
também, fui redator, depois fui para o Correio da Manhã, tive uma experiência maravilhosa,
trabalhei com o Otto Maria Carpeaux, trabalhei com Márcio Moreira Alves. Eu conheci a nata,
eu era o garotinho deles. Eles iam tomar cerveja e me levavam. Eu aprendi muito, aprendi
muito em termos da vida, não só da profissão, mas da vida. Bom, aí eu quis fazer Psicologia.
Fiz Psicologia. Eu queria ser psicanalista. Trabalhei o primeiro ano e vi que aquele não era o
meu papo. Resolvi ser economista. Fui colega do Moreira Franco na PUC. Temos relações até
hoje. E aí é que eu entrei em Ciências Sociais, por causa dos meus amigos, que eram o
Guilherme, o Gilberto, que era o Machado, Machado da Silva, Luiz Antônio Machado da Silva.
Voltando um pouquinho mais, os meus amigos a partir dos quinze anos eram dois: era o
Machado e o Guilherme.

C.C. – Guilherme é o Otávio Velho?

E.F. – É.

C.C. – A família chama de Guilherme.

E.F. – É. Eu o conheci em casa, então o chamo de Guilherme. Então, todos nós três fomos ser
cientistas sociais, nascemos mais ou menos no mesmo ano. O Machado no mesmo ano, dia e
mês que eu. E um foi ser antropólogo, o outro foi ser sociólogo e eu cientista político. E todos
os três são fluminense. [riso]

C.C. – E você conheceu o general Alves Velho.

5
E.F. – Muito, era muito meu amigo. Quando o meu pai morreu, ele foi espetacular comigo. Eu
já o conhecia antes porque nós éramos vizinhos, sabe? Ele morava ali no 960, se não me
engano, e eu morava um pouquinho depois, no 834. Então, antes de ir para o Colégio Militar
eu já os conhecia.

C.C. – Também tinha um perfil intelectual, não é?

E.F. – Muito. E ele gostava muito de mim. Talvez ele notasse a minha carência de pai e tal. E
ele queria falar mal dos filhos e falava mal dos filhos para mim, eu dizia: “Conversa com o
Guilherme, conversa com o Gilberto”. [risos] Você sabe que o pai, às vezes, é limitado, não é?

C.C. – Gilberto diz sempre que não foi para o Colégio Militar porque no ano que ele ia entrar
não teve concurso por algum motivo, o ministro não abriu vaga, e ele foi para o CAp, não é?

E.F. – Foi pro Colégio de Aplicação.

C.C. – Colégio de Aplicação. E o Otávio, Guilherme como você chamava, fez o Colégio Militar
a vida inteira.

E.F. – Todo.

C.C. – Você também fez todo, até o final, não é?

E.F. – Não, eu fiz a partir da quarta série, foi quando o papai morreu. Aí eu acabei [o curso]
com ele. Mas acontece o seguinte, eu não era tão bom aluno quanto ele.

C.C. – Ah, meu pai foi seu instrutor.

E.F. – Seu pai é uma figuraça, seu pai foi comandante da minha companhia.

C.C. – Companhia de infantaria.

E.F. – É. Posso te contar uma coisa? Ele namorou, claro que antes da sua mãe, ele namorou a
minha prima. Então eu era “peixe” dele [risos]: “1038, vai comandar hoje”. “Por que tenente?”.
“Porque eu resolvi, ué”. [risos] Ele gostava de mim e eu gostava muito dele, sabe?

C.C. – “Peixe” de capitão é bom, não é?

6
E.F. – Era muito bom! Às vezes eu chegava atrasado e ele relevava e tal. Colocava a mão no
ombro. Ele gostava de mim e eu gostava muito dele. Ele me marcou muito como oficial. Ele
era muito bem-humorado e a garotada gostava muito dele, gostava muito bem. Aí eu fui fazer
Economia e vi que não era também... Eu tive uma aula com um professor excepcional na PUC,
fazendo Economia. Era o professor José Nilo Tavares.

C.C. – Você fez Economia na PUC e depois mudou para a UFRJ, Ciências Sociais?

E.F. – É.

C.C. – E Psicologia fez na...?

E.F. – Na UFRJ também, foi o primeiro ano do Instituto de Psicologia. Eu fiz concurso, passei.
Passei em tudo. Tinha uma boa base, não é? Mas aí eu resolvi fazer Ciências Sociais em função
desse professor que me deu uma aula de Ciência Política e eu, ali, eu vi a questão do poder,
sabe? A questão do poder me apaixonou, a questão do choque entre governantes e governados,
a questão do confronto de vontades entre os que têm e os que não têm. Aquela abordagem dele
do poder me despertou para uma série de coisas e a partir dali eu resolvi que iria fazer Ciência
Política. Me formei em 68 e no último ano tinha acontecido o quê? Em três de dezembro de 68
aconteceu o AI-5. A minha turma era uma turma ilustre. Eu me formei em 68. A minha turma
era o Gilberto Velho, a Yvonne Maggie Velho, que era casada com ele, era o Jether Pereira
Ramalho, e o José Jeremias. Acontecia o que de 68 para 69? Estava vindo o sistema de crédito
e precisava de professor. Então se criou, também, a categoria, que não existia, de auxiliar de
ensino. E o que era auxiliar de ensino? Eram aqueles professores que tinham se destacado e
indicados. Então as maiores médias da minha turma foram aproveitados. Foram dois em
Sociologia, José Jeremias e o Jether; dois em Antropologia, o Gilberto Velho e a Yvonne
Maggie Velho; e eu em Ciência Política. Eu era o primeiro aluno da turma em Ciência Política.
Comecei a dar aula, ora veja você, em 1969. E aí foi muito interessante, sabe? Quer dizer,
interessante agora, na época foi péssimo. [risos]

C.C. – Fala um pouco mais sobre o curso... Em Ciências Sociais você se formou em 68 e você
ingressou em...?

E.F. – 65.

7
C.C. – Já após o golpe. Qual foi o clima nessa época pós-golpe, mas antes do AI-5 ainda?

E.F. – Olha, eu acho que nós não tínhamos nos apercebido muito o que tinha acontecido em
64, sabe? Nós fomos percebendo ao pouco a gravidade, a profundidade da intervenção militar.
Eu acho que grande dos militares e grande parte dos civis achavam que era uma operação
cirúrgica e que logo nós retornaríamos, como no padrão anterior, a um certo clima de liberdade
liberal e tal. Mas não foi assim não, foi um recrudescer, foi um aumento cada vez maior do
sentimento de opressão. Era muito difícil. Então eu vou contar qual foi... No tempo da
universidade, eu e esse grupo que estou falando, nós resolvemos que a nossa principal tarefa
era estudar. Nós tínhamos professores notáveis, sabe? Eu me aproximei particularmente de um.
Inclusive depois dessa dissertação de mestrado, que seria um livro, ele faria questão de fazer o
prefaciozinho, que era o Evaristo de Moraes Filho. E ele falou para mim: “Olha, os tempos vão
ficar cada vez piores. Vai ser pior para vocês do que foi para a minha geração. E remar contra
a maré é muito duro. Vocês só têm uma alternativa: estudar muito, talvez vocês tenham alguma
chance”. E aquilo me marcou muito, sabe? Então quando eu me formei eu não tinha noção
direito... Veio o AI-5. Eu me lembro que a nossa turma estava festejando a nossa formatura.
Foi no dia três de dezembro de 68 e a nossa formatura foi um pouco depois, foi dia quinze ou
dezesseis. E havia um clima, assim, você sentindo que a história está se fazendo e você pode
fazer alguma coisa com essa história. Havia um comprometimento, um commitment, de que
nós podíamos fazer alguma coisa. Bom, veio março. Eu comecei a dar aula. E aí o que
acontecia? Poxa, tanto eu quanto o Gilberto, Yvonne, esse pessoal todo, nós tínhamos sido
alunos até pouco tempo atrás e passamos a ser professores dos nossos, inclusive, ex-colegas. E
aconteceu, então, um fato que eu narro em meu memorial – esse fato me marcou muito – qual
foi esse fato? Eu começo a dar aula, naquela época eu usava terno, todos os professores usavam
terno, eu usava terno, eu chego na turma... – as Ciências Sociais passara a ser muito procurada.
Eram três turmas de 60. Eu dava aula para 180 alunos no primeiro semestre na Ciência Política
– e eu entrei e eu tinha um hábito, eu não sei de qual professor que eu peguei, mas eu notei
que o professor que não fizesse chamada, os alunos não respeitavam. Então, embora fossem 60
alunos, fossem 180 alunos que eu tinha que fazer a chamada, religiosamente eu fazia a
chamada. Na segunda aula entra um cara fardado de DOPS. Quer dizer, não usava farda mais,
a cara de boçalidade, o tipo de roupa, a barriga proeminente, entendeu? Tudo indicava que era
do DOPS. A gente via eles trafegando por ali. Ele abre a porta e eu: “Bom, o que o senhor

8
quer?”. “Eu vim contar os seus alunos”. Eu não sei, Celso, de onde eu tirei coragem na época
e falei: “Bom, quem conta aluno aqui sou eu. Eu sou o professor e o senhor, por favor, se
retire”. Ele falou: “Não, eu tenho ordens para contar”. “Mas o senhor não vai contar e nem vai
ficar aqui. O senhor vai se retirar porque eu vou continuar fazendo a minha chamada e dando
as minhas aulas”. Ele falou: “Não, mas eu tenho ordens de fazer”. “Muito bem, você tem ordem
de fazer?”. Eu dava aula de Ciência Política, sabia que no limite a política é confronto físico,
eu falei: “Se o senhor entrar eu vou me confrontar fisicamente com o senhor e eu sei que esses
rapazes aqui vão me apoiar, porque isso é interferência na minha liberdade acadêmica”. [risos]
Só que os garotos levantaram. Poxa, tinha 40 garotos, garotão. Inclusive um deles era o Marco
Antônio Medeiros que depois ia ser líder e tal. Garotão de praia, parece um pit bull desses aí...
[risos] O diretor me chama, era o interventor Eduardo Prado de Mendonça, filósofo: “O senhor
começou mal, hein?”. Eu: “Desculpe, mas entrar não entra”. “O senhor não sabe que o senhor
está em estágio probatório?”. “Eu sei que estou no estágio probatório, mas não quero começar
a minha carreira assim. Não vou admitir que eles entrem na minha sala”. “E o que eu faço com
o senhor?”. “Não sei, o senhor que é o diretor o senhor faz o que quiser, mas entrar na minha
sala, eu estou dizendo que não entram, eu vou no esforço físico”. Bom, extraindo dos inteiros,
ele não voltou. Eu acabei, inclusive, me relacionando bem com esse diretor, porque eu marquei
a minha posição e ele marcou a dele. E isso me fez ganhar um nome muito bom com a garotada:
“esse garoto é bom”. E eu era garoto dando aula. Logo depois eu comecei a namorar firme, em
69 e 70, e eu resolvi que precisava de completar meus custos, meus gastos, pensar em casar.
Aí, rapaz, eu fiz concurso para UFF e fiz exame para o IUPERJ em 70, 71. No Iuperj, a minha
banca foi o Bolívar, o Simon Schwartzman e o Edmundo Campos Coelho. Tinha sete vagas.

C.C. – O Iuperj estava começando, não é?

E.F. – Estava começando E modéstia parte eu fui o primeiro. Eu me lembro qual foi a pergunta
que decidiu, porque o professor Simon Schwartzman olhou para mim assim e tal: “Qual a
diferença entre populismo e fascismo? Parece que tem algumas semelhanças”. E eu estava
preparado para isso porque eu tinha lido uns artigos de... “Você decidiu. Vai entrar”. E eu
passei a ter relação, inclusive, com ele, com o Simon Schwartzman. Foi ele que foi meu
orientador no mestrado. E é interessante observar, porque o que aconteceu? Você me perguntou
sobre a ambiência no meu tempo de graduação. Politicamente era opressão, mas
intelectualmente era muito fértil, por quê? Porque os meus professores tinham uma formação

9
europeia, basicamente francesa, mas também um pouco de alemã. Eu não tinha uma formação
anglo-saxônica, marcadamente norte-americana. Por outro lado, a minha geração estava muito
marcada pelas questões do golpe e pelos confrontos de ideias onde você tinha duas escolas:
você tinha uma que a esquerda não lia, mas sabia, que era a Escola Superior de Guerra; e outra
era o Iseb. Desde garotos nós íamos ao Iseb, dezoitos anos. Iseb do mestre Guerreiro Ramos,
do Nelson Werneck Sodré, do Hélio Jaguaribe, do Cândido Mendes, Roberto Campos. Ali era
uma usina de ideias, não é? E aquilo me influenciou muito também. Mas o Iuperj foi um corte
e foi decisivo, porque ampliou para sempre as fronteiras dos meus interesses, porque eu
comecei a ver a perspectiva anglo-saxônica, marcadamente norte-americana – um pouquinho
da inglesa, mas marcadamente a norte-americana. Inclusive, em algumas aulas eu brincava...
Teve um professor que dava aula em inglês, quer dizer, ele era brasileiro, mas dava aula em
inglês, ele vinha do MIT. E era uma tortura, porque se eu não tivesse Colégio Militar era
estava...

C.C. – Quem era?

E.F. – Era o Amaury [de Souza]. Ele dava aula de modelos matemáticos do MIT. Era um
negócio horroroso. E se eu me safei, foi por causa do Colégio Militar. Ele dava derivada, um
negócio tenebroso. Me safei, eu e minha turma. A Maria Antonieta [Leopoldi], por exemplo,
era da minha turma. E nós estudávamos. Tinha eu e tinha um padre, o Santo Conterato, que
sabia um pouquinho também, porque padre sabe de matemática, sabe? Ele era ex-padre, aliás.
Então nós conseguimos. Mas o esforço apenas me serviu para entender que não era aquilo que
eu achava que eu seguir. Serviu como exemplo negativo: “Bom você vai por ali? Então eu vou
por aqui”. Serviu nesse sentido.

C.C. – Você fazia quantos cursos, você lembra alguma?

E.F. – Lembro, foram doze cursos. O mestrado, na época, era para ser feito em quatro anos.
Era, a rigor, um doutorado.

C.C. – Agora, Eurico, só antes de perder o passo... Nessa época em que você está como
estudante de graduação, você tinha alguma atuação, alguma atividade política, ou não?

E.F. – Não.

10
C.C. – Porque a [discussão] era intensa já.

E.F. – Era intensa. Eu compreendi o seguinte... Deixa eu lhe falar a concepção de 64 de alguns
colegas. Eu senti 64 como se fosse uma cacetada na cabeça que eu não entendi direito. A minha
principal leitura naquela época era Sartre, era o existencialismo. Quer dizer, era um marxismo
sartreano baseado, portanto, na liberdade do indivíduo. Era o grande filósofo da época, não é?
Eu estava lendo muito Freud também. Então eu não sabia direito o que tinha acontecido. E eu
me lembro que o Guilherme não, o Guilherme sabia, o Guilherme pensou em pegar em armas.

C.C. – O Guilherme estava ligado ao partido, não é?

E.F. – Estava. E o Machado mais ou menos. O Machado estava mais comigo e tal. O Gilberto
ficou meio, também, não sabia direito o que fazia.

C.C. – “Cacetada na cabeça” é o quê? Foi uma surpresa?

E.F. – Foi uma surpresa. Nós não sabíamos o que estava acontecendo. Tanto isso era verdade
que no Iuperj, em 1970, o Amorim Souza publicou uma revisão da bibliografia sobre 64 em
que ele mostrou essa surpresa, tanto do ponto de vista dos que criticavam o golpe de 64 como
os que apoiavam o golpe, que era uma lógica dicotômica, entendeu? Ou foi um golpe de Estado,
ou foi um golpe pela democracia ou foi uma quartelada. A esquerda achava tinha sido uma
quartelada e que logo ia retomar o controle do processo de tomada de decisão política. E não
foi nada disso, não é?

C.C. – Esse é o padrão moderador, não é?

E.F. – É. Quer dizer, achavam que iam voltar e tal. Então, para você ter uma ideia, eu me
lembro que, no dia 31 de março, eu tinha voltado de São Paulo, eu tinha uma namoradinha lá...
Minha namoradinha não, foi meu primeiro grande amor. Aliás, só tive dois. Não é tanto. [risos]
E eu estava muito... Estava voltando de ônibus do dia 31 para dia primeiro e parou ali na Praça
Mauá e ali eu vi a movimentação dos fuzileiros armados, entraram no ônibus. Eu não sabia o
que estava acontecendo. Eu acho que vim lendo Sartre à noite. Sei lá, estava na abstração d’ O
ser e o nada, L'Être et le Néant, estava em outra. [risos] Aí eu vim para casa, cheguei em casa
e minha mãe falou: “Você fica em casa”. Eu falei: “Mamãe, desculpe, preciso sair, preciso ver
meus amigos”. “Não, você fica porque o negócio está perigoso”. “Não, eu vou sair”. Aí eu

11
tinha um colega e nós fomos andando para a cidade, porque não tinha ônibus. Nós fomos
andando de Copacabana até a cidade e fomos vendo coisas incríveis; tiros, não sei o quê,
queimaram a UNE, tiros na Cinelândia. Não tinha celular, o telefone funcionava mal para burro,
quando tinha. E celular, nem pensar. Eu queria ver o Guilherme. Eu era muito ligado a ele,
muito. Sou ligado até hoje, não é? Nós somos grandes amigos até hoje. E aí o Guilherme estava
no Largo São Francisco junto com o Moacir Palmeira, junto com o pessoal, e eu falei para mim
mesmo: “Eu vou tentar entrar lá porque se eles morrerem eu quero morrer ao lado dos meus
amigos”. Pensamento de menino de 24 anos, não é? “Eu não acredito no que eles estão falando,
mas eu acredito neles. Então morro com os meus amigos.” Tentei entrar, não consegui.
Voltamos e aí vimos uma série de brigas. Para você ter uma ideia do que é um rapaz de 24
anos. Nós saímos correndo do Largo São Francisco e só fomos parar em Copacabana. Correndo
e vendo só: pá, pá... Foi uma coisa incrível! O que eu vi naquele dia eu teria que escrever para
poder...

C.C. – Eu me lembro do Gilberto comentando a surpresa dele ao chegar em Copacabana e ver


que tinha gente comemorando.

E.F. – Tinha muita gente comemorando.

C.C. – Ou seja, tinha o clima dos estudantes e ao mesmo tempo gente comemorando.

E.F. – Não se esqueça que há Marchas da Família pela Liberdade, não é? As senhoras de classe
média acenavam com o lenço branco. Nós não sabíamos, eu não sabia o que estava
acontecendo. Na verdade, eu fui saber o que estava acontecendo, Celso... Eu entrei para o Iuperj
e em 1970 me veio às mãos a primeira luz que foi O Modelo Político Brasileiro de Fernando
Henrique Cardoso, foi a conferência que ele fez em Yale. Ele me deu uma compreensão
estrutural, a primeira hipótese estrutural do que tinha acontecido no Brasil. Ele tenta entender
64 a partir dos interesses estruturais e o jogo... Interesses estruturais são os interesses de classe,
que ele via. E aquilo me marcou muito. Eu estava um curso no Iuperj... Eu fiz dois cursos com
o professor Wanderley Guilherme e um deles foi sobre teoria política brasileira e eu me
interessei em fazer um trabalho sobre o movimento de 64, mais ainda sobre o Castelo Branco,
os 1000 dias de Castelo Branco. Esse trabalho, eu acho, foi o mais decisivo da minha vida,
porque definiu o meu caminho: “Olha, eu quero entender a questão da relação entre Forças
Armadas e sociedade, Forças Armadas e o Estado; e quero entender de que modo o cara diz

12
que é liberal, mas na verdade é autoritário – como se define isso no discurso dele?”. Surgiu,
então, essa dissertação aí.

C.C. – A origem, então, foi esse trabalho de curso do Wanderley. No Iuperj você entrou em
que ano?

E.F. – Eu entrei duas vezes, eu entrei em 70 que eu só fiz um cursinho só, só para dizer que eu
entrei. E comecei mesmo em 71. Por quê? Porque eu estava dando aula na UFRJ, eu estava
dando aula na UFF e eu fazia o mestrado ainda. E o mestrado eram três cursos por semestre.

C.C. – Mas você trancou ou não?

E.F. – Não, eu entrei... Porque tinha direito a fazer um curso só. Então eu fiz um curso só e
comecei, na verdade, em 71, 72.

C.C. – E defendeu em?

E.F. – 74. Um pouco antes de eu ir para a Inglaterra.

C.C. – Bom, sobre a dissertação, você falou, eram quatro anos e a expectativa seria próxima ao
que é hoje a de um doutorado.

E.F. – Porque eram doze cursos, eram doze trabalhos de final de curso. Era uma carga de leitura
que os professores estimavam em torno de 400 páginas por semana. Não era menos do que
isso, não. Eu não sei como eu dei conta disso tudo. Eu tirei A em tudo, menos em duas
disciplinas com o professor Wanderley. É interessante narrar, talvez, como foi com o professor
Wanderley, que é um homem brilhante. A primeira turma foi em 71 e ele tinha vindo dos
Estados Unidos em 70. Ele apresentou o curso de Teoria Política e estava faltando o Marx. Eu
levantei o dedo. Ele olhou para mim e continuou dando aula. Só que eu era chato e continuei
com o dedo levantado. Aí lá pelas tantas eu desisti, mas os meus colegas, inclusive dois do
Museu, o Afrânio e o Sérgio Leite Lopes, que ficaram meus amigos: “Professor, o cara está
querendo falar alguma coisa. O senhor tem que o deixar falar”. Aí ele olhou para mim e me
deu uma bala. [risos] No final da aula os caras insistiram: “Mas professor, o senhor não deu a
palavra ao nosso colega aqui. Isso é um absurdo, o senhor tem que o deixar falar”. “Eu já sei o
que você vai falar. Você vai falar que não tem o Marx, não é verdade?”. Eu falo: “Ainda bem
que o senhor sabe, porque o senhor sabe qual é a sua lacuna. Como o senhor vai falar em Teoria

13
Política se não fala sobre Marx?”. “Dita a sua besteira, vamos acabar a aula”. [risos] Bom, o
seguinte, eu me casei em 71.

C.C. – Com a Janete, não é?

E.F. – É, com a Janete. Poxa, eu tinha só sete dias para casar porque eu tinha que apresentar
trabalho, tinha aula na UFRJ, tinha aula no coisa e eu queria casar. Naquela época não era igual
a agora não, era diferente. Eu tinha que casar. [risos] Eu precisava casar urgentemente. E
cheguei para ele, eu tinha um trabalho para apresentar sobre a teoria das elites, e falei: “Escuta
professor, eu vou casar e o senhor marcou para o dia do meu casamento a entrega do trabalho.
Eu estou pedindo para o senhor me dar dez dias. Eu passo sete dias de casamento, lua de mel,
e em três dias eu faço o trabalho”. “O problema é teu, cara, ou você me apresenta no dia ou
você tira zero. Você tem alguma coisa?”. Eu falei: “Claro, eu sou um cara que cumpre as
minhas obrigações, eu fiz aqui o um trabalho”. “Então é melhor o senhor entregar agora isso
que você tem, porque se você não entregar eu dou zero”.

C.C. – Isso foi quem, o Wanderley?

E.F. – É. Eu dei o trabalho. Foi o único C+ que eu tive. Eu tive tudo A e na outra cadeira de
Teoria Política Brasileira eu tive B+. O resto todo foi A. Só que depois eu fiquei colega dele
na UFF e até o protegi. Ele ficou com uma boa relação comigo. Mas eu não esqueci isso. Ele é
assim mesmo, ele é uma pessoa irascível.

C.C. – Agora, no Iuperj, nessa época, não se estudava Marx?

E.F. – Não, não.

C.C. – A bibliografia era americana basicamente?

E.F. – A bibliografia era basicamente americana. Era como se Marx não tivesse existido. Quer
dizer, eu acredito que...

C.C. – Mas isso não era mal visto na esquerda acadêmica como o Iuperj sendo de direita,
americano?

E.F. – Era visto sim. Por exemplo, esse o professor que eu te falei, José Nilo Tavares, ele se
opunha muito a eles e escrevia. O Florestan Fernandes também. Eu me lembro de um seminário

14
que houve em São Paulo, que foi com o Florestan Fernandes, o Nelson Werneck Sodré e o José
Nilo. José Nilo era o mais jovem, de longe o mais jovem. Eles falaram muito mal do Iuperj. Eu
vi o Iuperj como uma possibilidade de expandir meus horizontes intelectuais, teóricos,
metodológicos, entende? Eu dava aos meus alunos tanta teoria das elites, como a teoria
sistêmica funcional, as diversas teorias sistêmicas, mas dava o Marx também. Eu lia para burro,
sabe? O período que eu mais li na minha vida foi entre 70 e 74, porque eu tinha aula na UFRJ,
aula na UFF e aula no Iuperj. Tinha casado, poxa, precisava comprar um apartamento. Então
eu ainda tinha tempo para traduzir e fazer revisão técnica. Eu não sei como. Eu não dormia...
E ficava bem, me sentia muito bem. Eu me lembro, vendo o Eurico daquela época, eu tirava de
letra. Aí foi o negócio de Oxford. Como foi Oxford?

C.C. – Vamos falar um pouquinho da sua dissertação antes.

E.F. – Ah, tá.

C.C. – Acabou sendo o Simon o seu orientador?

E.F. – Sim.

C.C. – Mas isso teve um motivo particular?

E.F. – Bom, primeiro o Simon foi um dos professores mais inteligentes e argutos que eu tive a
oportunidade de conhecer no Iuperj. Embora nós não concordássemos em nada um com ou
outro, [risos] nós nos dávamos bem. Eu sempre detestei o preconceito, eu sempre detestei o
estereótipo, eu sempre detestei o carimbo: “esse cara é marxista, não serve”; “Esse cara aqui é
isso, não serve”. Eu detesto isso. Então nós nos dávamos bem, porque eu falava as minhas
besteiras e ele falava as propriedades dele. Um dia eu cheguei para ele: “Escuta, você pode ser
meu orientador?”. “O que você quer fazer, Eurico?”. “Eu quero fazer uma análise estrutural do
discurso de Castelo Branco”. “Você está maluco? Eu não sei nada sobre isso”. Eu falei: “Você
não sabe nada sobre isso, mas você é inteligentíssimo. Se eu estiver errado formalmente você
vai saber”. Aí ele me olhou: “Então está bom. Você vai me dar muito trabalho?” [risos] “Eu
prometo que não dou”. E realmente não dei. Eu entreguei para ele 100% quase pronto. Ele
falou: “Você é um filé mignon. O que eu tenho aqui de carne de pescoço não é mole não”.
[risos] Aí ele fez umas rabiscadas e tal. Ele não interferiu e ao mesmo tempo ele fazia perguntas
muito pontuais. Quer dizer, o que ele me ensinou? Quando você quer ajudar um cara, seja do

15
ponto de vista pessoal, seja do ponto de vista teórico, você não pode querer interferir – quando
você ajuda pessoalmente, uma pessoa, um indivíduo – você não pode querer interferir nas
premissas do cara. Se você quiser ajudar, você tem que ajudar dentro da premissa dele. E a
mesma coisa teoricamente: não adianta eu quero te mudar e nem você querer me mudar, mas
se nós entendermos as premissas maiores da nossa abordagem, a gente vai se entender bem.
Porque eu posso criticar suas premissas maiores e, portanto, as suas conclusões mais
necessárias e últimas, e não tem problema. Agora, se eu negar você: “Você traz problema com
essa sirigaita”. Vou dar o exemplo do meu pai. “Então você é um safado, é isso e é aquilo”. Eu
não vou ajudar o cara. Agora, se eu entender quais foram os termos que ele gostou daquela
mulher, porque ele gostou e tal, eu talvez possa ajudá-lo se ele quiser ser ajudado e se ele não
gostar daquela mulher ou o contrário, se ele gostar da mulher. Eu posso ajudar. Teoricamente
é a mesma coisa. Eu posso ajudar lendo as suas coisas... Por exemplo você, você tem um
trabalho magnífico que eu discordo de uma série de coisas. Se um dia nós tivermos
oportunidade de conversar sobre isso, eu acho que eu posso ajudar, não que eu queira mudar
você, de forma nenhuma, mas pontualmente dizendo: “Você aqui pensou por aqui, talvez
pudesse ter pensado ali”. E a mesma coisa em relação a mim. Nisso ele me ajudou. Isso foi o
Simon que me ajudou. A visão dele, naquela época, era de um empirismo matemático extremo.
E todos eles do Iuperj tinham vindo da esquerda. Todos! E quando eles foram para os Estados
Unidos eles negaram isso; uns mais, outros menos, mas todos negaram. Donde a dificuldade
deles também entenderem o ajuste – que eu chamo de ajuste. O ajuste, eles estão fazendo até
hoje eu acho. O Iuperj até hoje não se ajustou. O que é o ajuste? O ajuste é você ser capaz de
pensar com sua cabeça. Não ser nem americano, nem inglês, nem francês, mas ser brasileiro.
A minha geração não teve exatamente pai, teve irmão. Então nós brigamos muito. A geração
dessa menina aqui1 se beneficia porque tem pai. Então no meu Instituto [de Estudos
Estratégicos], que eu tive a oportunidade liderar a criação dele, etc, o pai sou eu. Irmão não
briga? Briga, claro que irmão briga, mas tem o pai: “Não pode fazer isso. Se fizer isso vou
colocar de castigo. Você está errado por causa disso, disso e disso”.

C.C. – Eram todos muito jovens...

1
Se referindo à Juliana Souza, assistente de pesquisa presente na entrevista.

16
E.F. – Éramos muito jovens e brigávamos demais. Perdíamos muito tempo com brigas, mas
eram brigas horríveis por causa disso que eu estou lhe falando: a gente não queria entender o
próximo, passávamos a serem todos autistas. A gente conversava sobre tudo, menos sobre
Ciências Sociais, sabia disso? Falava sobre cinema, literatura, romance, teatro, filosofia,
psicanálise, futebol: tudo! Menos sobre Ciências Sociais, porque quando a gente falava a gente
brigava. As reuniões do departamento eram as mais chatas do mundo, eram só reuniões
administrativas. Não tinha nunca um filé mignon, não tinha nunca uma bela discussão que eu
pudesse aprender com você e você pudesse, eventualmente, saber alguma coisa de mim, do que
eu estava pensando, etc. Era um ambiente muito pouco produtivo, sabe? Eu passei a minha
vida toda... Fui chefe de departamento, passei em várias universidades, eu nunca... A não ser
agora no meu Instituto, modéstia à parte, que eu vejo discussões intelectuais, mas eu forço.

C.C. – Agora sobre o tema, Eurico, falar sobre 64. Você está escrevendo a tese, provavelmente
você decidiu isso do meio para o final?

E.F. – Não, quando eu cheguei em Oxford... Eu fui para Oxford, não é? Eu não conseguiria ir
para Oxford pelo CNPq.

C.C. – Mas Oxford já foi depois do mestrado.

E.F. – Depois do mestrado.

C.C. – Não, estou perguntando a escolha do tema no Iuperj, ainda no mestrado.

E.F. – Sobre Castelo Branco?

C.C. – É. O discurso do Castelo Branco.

E.F. – Eu não tinha entendido qual era ainda a grande questão.

C.C. – Mas era um tema, vamos dizer...

E.F. – Era um tema desafiante. Era um tema fora do ponto. Os meus colegas não estavam
interessados nisso. Os meus colegas estavam interessados em partido político, igreja e religião,
movimentos sociais e urbanos no seu viés político, militar nem pensar.

17
C.C. – Mas isso tinha a ver com o clima... Quer dizer, nesse período aqui estava ainda no auge
da Ditadura, não é?

E.F. – Estava no auge da Ditadura. Estava no período Médici. Pouquíssimos estavam se


interessando por isso naquela época, pouquíssimos.

C.C. – Mas havia algum temor de que esse fosse um tema sensível?

E.F. – Havia duas coisas: primeiro o temor; e o segundo, o pior, que não era o temor, era o
preconceito. Quer dizer, nós não podemos... Se você estuda isso é porque você tem alguma
relação afetiva com isso ou então por você, de algum modo, está comprometido com essa
situação. O militares são essencialmente ruins. Ora, isso não encontrava ressonância dentro de
mim, eu gostava do meu pai.

C.C. – A tua biografia, nesse caso, ajudava você, mas reforçava essa visão.

E.F. – Só que eu era visto como um cara de esquerda. A minha visão não era marxista, mas era,
vamos dizer, marxistizante. Eu não era um marxista, mas era um marxólogo. Na verdade, eu
era o que eu sou hoje na plenitude, eu sou republicano e democrata, democrata e republicano.
Quer dizer, eu sempre fui muito crítico do Comunismo. Eu me lembro, já na faculdade, que eu
li um livro do Erich Fromm, que era um autor da época, importante. Ele escreveu um livro
chamado A Psicanálise da Sociedade Contemporânea. Mas um outro livro que me influenciou
muito foi sobre...

C.C. – O general2 traduziu todo o Erich Fromm.

E.F. – É. E eu ganhei todos. Ele me dava. Ganhei tudo.

C.C. – Fromm tentava juntar a psicanálise com marxismo, não é?

E.F. – É. Isso. Era um sujeito brilhante, não é?

C.C. – Depois veio o Budismo um pouco, não é?

2
Referia-se a Octávio Alves Velho.

18
E.F. – Foi, foi. Era um cara brilhante. A Psicanálise da Sociedade Contemporânea é um
livraço. Mas ele escreveu um livro sobre Cuba que ele fala que o Regime Soviético era um
administrativismo estatal e que não tinha nada a ver com Marx. E eu acabei achando isso
mesmo, acabei concordando com ele. Só que eu não podia falar. Por outro lado o papai teve
problema com os comunistas que ele me falou, ele quase não foi reeleito por causa dos
comunistas. Os comunistas se aproximaram dele, porque ele tinha denunciado o acordo militar
Brasil-Estados Unidos, porque ele era um nacionalista da Petrobras, etc. O papai não gostava
dos americanos nem dos tenentes, ele não gostava desses dois. Depois eu vi as cartas dele e tal.
E eu também, eu não gosto dos tenentes (os estudo, aliás, elegi estudá-los) pelo mesmo motivo
que eu não gosto do Castelo Branco. Quanto mais eu estudava o Castelo Branco mais eu via
como ele era um homem sofrido por um lado e por outro lado, hipócrita. Quer dizer, ele era
autoritário no íntimo dele mesmo e a expressão dele era de que era um liberal. Então ele parecia
sofrer, mas na verdade não sofria, porque ele era um autoritário mesmo. Senão não poderia ter
feito o que ele fez. Como também o Golbery. Para usar uma expressão, as moças aqui vão me
perdoar, mas uma expressão do Sartre: era uma espécie de prostituta respeitosa, sabe? Ou seja,
eu faço, mas faz de conta que eu não fiz. Eu não gostava desses caras.

C.C. – No caso do Castelo...

E.F. – E o Castelo me apaixonou exatamente por isso, porque já estava em 1970, ele já tinha
cumprido o mandato dele em 67. Ele tinha morrido logo depois. E nós estávamos passando por
um período de recrudescimento da dominação militar, era o período Médici. E o que eu queria
entender? Eu queria entender que mesmo aqueles que já estávamos chamando de liberal, era
também autoritário que nem aqueles que estavam no poder, como o Médici. Ou seja, eles eram
vinhos da mesma pipa. Era isso que eu queria mostrar.

C.C. – No Castelo você mostra que tem duas linhas, duas fontes de legitimidade, como você
escreve, e que ele oscila entre esse papel moderador e o papel diretor, para usar a terminologia
da sua tese.

E.F. – E que no fundo ele era diretor. No fundo mesmo, quando você examina mesmo a
arquitetura do inconsciente político dele que esse tipo análise permite, você chega a essa
conclusão. Isso aí foi muito importante na época, sabe? Por quê? Porque se entendeu que a
intervenção militar, em última análise, tinha uma essência e essa essência era eminentemente

19
autoritária. Liberal coisa nenhuma! Isso foi muito importante. Eu sei porque, bem mais tarde,
por volta dos anos 80, eu tive a oportunidade de me aproximar de lideranças tão importantes
como o doutor Ulisses e o doutor Tancredo. E você sabe que aqui no Rio eu fui coordenador
da campanha do Miro Teixeira em 82, não é? E eu tive a oportunidade de conversar com todos
esses homens importantes da política brasileira e eles falaram: “Você estava certo mesmo. Nós
estávamos errados. Nós achávamos que podia ter alguma possibilidade de transação com os
militares. Não dava. Tínhamos que ser mesmo para resistência democrática e para...”. Só que
eles exageraram, porque eles não tinham entendido a grande questão que eu só fui entender em
Oxford. Por que eu fui estudar os tenentes, em Oxford?

[FIM DE ARQUIVO I]

C.C. – Eurico, você mencionou... Quando eu perguntei a respeito de estudar esse tema na época
que você escolheu, início da década de 70, você mencionou temor e preconceito. Eu queria
explorar um pouco essas duas dimensões. Temor: eu não sei se isso gerava uma certa cautela...
Por exemplo, na tese você fala em “movimento de 64”, você não fala em golpe nessa época.
Quer dizer, nessa época eu não se era ainda perigoso usar esse tipo de terminologia ou não.

E.F. – Era. Eu me sentia em uma corda bamba, não é? O que estava por trás desse temor? Nós
vivíamos uma Ditadura. Nesse período nós estamos no período Médici.

C.C. – Já é uma Ditadura escancarada.

E.F. – Escancarada. Os anos de chumbo. Cada dia que você passava, você via um colega seu,
ou tinha notícia de um colega, de um aluno que tinha, na expressão da época, “caído” – tinha
sido preso, espancado, sumido. Eram tempos muito difíceis. Então eu me lembro dos colegas:
“Você está interessado nisso? É perigoso”. Mas acontece que eu tinha curiosidade intelectual
de explicar o que tinha acontecido, como tinha estruturado, etc. Eu te falei que foi fundamental
esse trabalho do Fernando Henrique. Ele não está tão citado, mas ele está presente. E havia
carência da bibliografia sobre o assunto. Não tinha anda.

C.C. – O Stepan tinha escrito Os Militares na Política.

E.F. – Depois tinha a June Hahner que tinha escrito em 67, 68 sobre as gerações de militares
no início da República. E tinha algumas coisas ali, aqui, acolá, mas por brasileiros mesmo

20
muito pouco. Eu acho que eu sou da primeira geração que se interessou pela questão das
relações entre Força Armada e sociedade, Força Armada e a política, etc. O temor era dado
pelo medo de ser preso. Eu vou contar uma coisinha interessante. Só no Brasil poderia
acontecer isso.

C.C. – Medo de ser preso pelo que escrevesse?

E.F. – Pelo que escrevesse e pelo que eu dizia. Embora eu fosse rigorosamente a favor da
democracia e da República, a lógica era muito burra. E qual era a lógica? Ou você está a favor
ou você está contra. Não tem papo. Ou você está com a gente, ou está contra a gente. Não tem
mediação. Eu me lembro que o Gilberto falava: “Esses caras são muito burros, não é Eurico?
Eles deviam nos valorizar porque nós queremos ver as coisas de modo mais complexo e eles
não entendem que nós estamos dando aos nossos alunos complexidade. E a complexidade tira
o estereótipo, a complexidade tira o preconceito. E esses caras ao invés de nos homenagear,
eles querem nos prender. São burros demais”. Havia isso, entendeu? Por outro lado havia o
preconceito. O que era o preconceito? O preconceito era: esses caras são essencialmente ruins
e se são essencialmente ruins eles não podem ser tratados cientificamente. Quer dizer, era uma
lógica muito pequena. Quer dizer, existe o câncer, então você não vai estudar o câncer.

C.C. – Era a mesma lógica do inimigo e do amigo.

E.F. – Era a mesma lógica do inimigo e do amigo. E o que era inteligível na época, por quê?
Porque era um clima de polarização. De certo modo o próprio general Velho aos poucos foi
vendo, já no final do governo Castelo Branco, que não tinha condições de continuar naquelas
situações. Ele saiu, ele se despediu exército. Ele foi fazer a vida dele como tradutor e como
profissional, ele foi diretor de relações públicas...

C.C. – Houve o episódio da censura a Deus e o Diabo na Terra do Sol. Queriam que ele
censurasse [risos] e ele pediu para ir embora.

E.F. – Foi. E ele pediu para ir embora. Ele foi subsecretário de segurança do Rio de Janeiro,
você sabe?

C.C. – Bom, você optou por um trabalho no qual a fonte era bibliográfica, os discursos do
Castelo.

21
E.F. – É. Eu tinha que fazer algo. Eu sabia que não podia fazer algo com os arquivos.

C.C. – Nem entrevistas com militares.

E.F. – Não tinha condições. Eu podia ser preso. E, na época, isso me levava... Eu não tinha
conhecido ainda o Stepan, que depois ia ficar meu amigo; eu não tinha conhecido o Skidmore,
que depois ia ficar meu amigo. Eu invejava como esses caras conheciam. Eu falei: “Só porque
eles são americanos”.

C.C. – Você acha que isso foi decisivo? Porque o Stepan esteve na Academia Militar, esteve
em vários lugares em 68.

E.F. – Eu não só acho como eles me disseram. Ele falou: “Eurico, eu fiz coisas que vocês não
podiam fazer. Vocês não tinham condições de fazer”. Para mim sempre teve uma relação muito
clara entre democracia e ciência no Brasil, porque eu fui vitimado pela inexistência dessa
relação que hoje é tão fértil e tão importante. E uma das coisas era exatamente o tema que eu
queria pesquisar e que não consegui. Tanto é que, embora o êxito da dissertação fosse muito
grande, em termos dos meus colegas e tal, eu acredito que fui aceito em Oxford por causa dela.
Eu fui o primeiro cientista político a estudar lá, no St. Antony’s College. E eu acredito que foi
por causa disso e porque eu tive a sorte de ter um português lá, que hoje é emeritus fellow, o
Hermínio Martins, que leu, se interessou por mim e falou: “Você vem para cá”.

C.C. – Para fazer o doutorado?

E.F. – É. Eu chegando lá... Mas eu apresentei um outro projeto, sabe?

C.C. – Que era sobre?

E.F. – Era sobre a UDN. Ou seja, eu queria seguir pelo lado da desfaçatez do liberalismo no
Brasil. Quer dizer, o cara diz que é liberal e é autoritário. A UDN diz que é liberal e dá golpe.
O Roberto Campos diz que é liberal e, poxa, está ao lado dos autoritários. O Carlos Lacerda
fala em nome da liberdade e é derrubador de presidente. Como é esse negócio? Eu queria
entender isso. Então eu mandei um projeto sobre isso. Cheguei lá o Hermínio... São interessante
os ingleses, sabe? São muito duros. Ele é português, mas na verdade é inglês. Ele estudou lá
desde os oito anos, casou com uma inglesa e tal. Ele é inglês. Ele olhou e falou: “Eurico, o
negócio é o seguinte, não entendi porque você mudou o seu tema. Você devia continuar

22
estudando os militares. Me fale um pouco sobre você”. Aí eu falei do meu pai, falei do Colégio
Militar, falei de não sei o quê. “Rapaz, você devia continuar nisso daí. Você tem empatia pelo
tema. E não só o seu país, como a América do Sul e os países subdesenvolvidos, têm carência
de” – ele usou o termo –, “nativos que estudem isso. É fundamental que vocês, com a
sensibilidade de vocês, estudem isso. Então eu vou fazer com você o seguinte: você passa um
mês lendo aqui. Toma um vinhozinho, passeia pelo campo e me vem com outro tema. Se você
quiser continuar, vai ser com esse. Mas se você me trouxer outro com mais militares eu acho
que seria melhor para você”. Aí eu comecei a pensar que uma vez, eu estava em uma aula no
Magdalen College... Não sei se você já foi em Oxford.

C.C. – Magdalen, sim. Eu fiquei como membro do St. Antony’s College por pouco tempo.

E.F. – Então você sabe do que eu estou falando. Estava andando ali e eu gostava de andar no
frio, minha mulher dizia que eu era maluco. Eu saía à noite e ia passear por Oxford. Um frio
de 10º abaixo de zero e eu passeando. Eu não sei, eu achava que eu estava com a cabeça quente
e precisava esfriar a cabeça. [risos] Aí um dia eu falei: “Pô, mas a questão... O Castelo, o que
era? O Castelo era um tenente. O negócio começa com os tenentes. Eu, para entender 64, tenho
que recuar a 22”. E eu, então, tive a ideia de estudar os tenentes, porque os tenentes 22 anos
depois tinham se transformado em generais e autoritários.

C.C. – O Costa e Silva fez um pronunciamento logo depois do golpe em que ele fez essa ligação
direta, deles sendo originários do tenentismo.

E.F. – Eu não conhecia isso. Eu só fui saber disso que você está falando, depois. Mas, nesse
momento que eu fiz essa reflexão, eu fiz uma outra, que esta me orientou até hoje. O Instituto
de Estudos Estratégicos surgiu dessa reflexão, qual é? Você dá uma arma para um homem e
esse homem não usa essa arma contra você, por quê? Que fenômeno sociológico, político,
ideológico, histórico está embutido nessa obediência? Ou seja, como é que existe uma elite
política que é capaz de gerar essa lealdade e essa obediência face às instituições civis no quadro
da República e da democracia, ou no quadro da Monarquia constitucional e da democracia?
São dois regimes: Monarquia e República. O substrato, a essência, o súcubo da questão está lá:
nessa capacidade que as elites têm. E isso implica em algo... E aí caiu em minhas mãos... Já
tinha caído em minhas mãos aqui no Brasil, mas lá eu li mais atentamente, o Huntington. Eu
falei: “Pô, esse cara é um gênio”. Ele tinha escrito com 30...

23
C.C. – No mestrado você já cita o Huntington, The Soldier and the State, não é?

E.F. – Já cito, mas não tinha lido com essa visão que estou te dando. O que esse cara está
querendo dizer? O que ele estava querendo dizer, para mim, ficou claro. Primeiro, eu tenho que
ter uma teoria para explicar esse troço. Dois, essa teoria vai me servir para explicar o meu caso,
os Estados Unidos. Terceiro, explicando os militares internamente, eu vou explicar os militares
no quadro geral das relações internacionais. Quarto, finalmente, eu sabendo isso tudo, eu
reforço o problema que ele tem medo, o Huntington tem medo miserável do golpe militar nos
Estados Unidos. E aí eu fui ver que os filmes norte-americanos têm medo até hoje. Se você
observar... Por exemplo, eu gosto muito do Jack Bauer porque é o imaginário norte americano,
por excelência, dos anos 2000. Meu Deus, e que imaginário!

C.C. – 24 horas.

E.F. – 24 horas. De oito temporadas, três têm golpe militar. Caramba, três?

C.C. – O soldado profissional dos Estados Unidos não é o herói. O herói é sempre o conscrito,
ou reservista que foi para a guerra, não é?

E.F. – Claro, claro. Então eu vi como eles conseguiram isto. E passei a entender também, que
é impossível se construir um grande país sem esta cooperação, e mais ainda com esse sentido
civil e militar. Ou seja, a cabeça é nossa. Mas eu não sei fazer coisas que eles sabem: eu não
sei desembarcar, eu nem sei fazer uma operação de resgate. Eu sei até poder conversar com
eles sobre os princípios disso, mas eu não sei fazer, nem tenho treinamento para isso. Só eles
têm treinamento. Então isso me orientou em todos os meus trabalhos. Esse você vê aqui...

C.C. – Os Militares na Revolução de 30.

E.F. – É. Tem aqui essa introdução em que eu faço... Eu acho que eu consigo resumir toda a
história nesses dois parágrafos aqui. Eu sou cientista político, não é? O cientista político vai
com as proposições, não é?

C.C. – Agora, Eurico, eu queria ainda fazer mais algumas perguntas e conversar um pouco
mais sobre esse momento da dissertação no Iuperj. Porque nesse período, fazendo a tese, apesar
da origem de ser filho de militar, ter estudado em colégio de militar, fazendo lá a pesquisa,
você não tinha nenhum contato com a instituição militar?

24
E.F. – Impossível. [riso] Eu podia ser preso. Eu tinha um medo. Inclusive, existia um negócio
na época, chamado atestado ideológico. E esse atestado ideológico foi o seguinte...

C.C. – Você precisava para uma série de...

E.F. – Não precisou para a UFRJ, mas quando eu fui para a UFF, eu fiz o exame de seleção
para auxiliar de ensino e tinha os documentos tal, tal, tal e o atestado ideológico, que era o
atestado do Dops.

C.C. – Era o Dops que fornecia.

E.F. – É. E eu me lembro como se fosse hoje. Eu fui ao Dops inocente. Eu não estava ligado a
Partido Comunista, nunca fui ligado a Partido Comunista. Claro que eu tinha amigos que eram
lidados ao Partido Comunista, todo mundo tinha amigo que era do Partido Comunista, mas eu
não era do Partido Comunista. Eu fui lá [risos] e o cara: “Eurico de Lima Figueiredo!” [risos]
“Sou eu”. “Vem cá”. “Vai receber agora?”. “Entra aqui”. [risos] Passei dez horas depondo e
demorei dois anos para ter o atestado. Passei dois anos sem receber na UFF e foi a melhor coisa
da minha vida, sabe por quê? Porque me deu dinheiro para comprar o apartamento. [risos] Eu
recebi tudo atrasado. Eu coloquei todo o dinheirinho, poupança forçada, na entrada no
apartamento e mais quinze anos de Caixa para poder comprar o apartamento. [risos] Classe
média é isso, quinze anos de Caixa e poupança forçada.

C.C. – E o que te perguntavam tanto? Esse foi em que ano, Eurico, você lembra?

E.F. – Lembro, isso foi em 1971. Eu estava escrevendo.

Juliana Souza – Depois você entra como auxiliar de ensino?

E.F. – É. Eu entrei como colaborador primeiro e depois eu entrei como...

C.C. – Mas o que eles te perguntavam tanto nessas horas?

E.F. – Bom, eu vim saber exatamente o que era... Por que você sabe que eu sou anistiado
político, não é? Eu não tinha ideia do que estava acontecendo. O que acontecia basicamente
era o seguinte: tinha um professor, que você já conhece, de História chamado Eremildo Vianna.
O Eremildo, na primeira turma, em 65, estava sentado eu, o Guilherme, a Janete, a Yvonne e o
colega ofereceu um trabalho sobre Filosofia Social. Aconteceu... Interessante, agora que eu

25
estou percebendo... Aconteceu com o Gilberto o que iria acontecer depois comigo e com o
Wanderley. O rapaz fez um trabalho de Filosofia Social e se baseou no Ortega y Gasset, que
era um conservador, e o Gilberto levantou o dedo: “Está faltando o Marx, pô”. A professora,
chamava-se Vanda Torok: “Comunista! Eu já sei o que você quer dizer, é comunista!” O Jether,
que era o mais velho de todos nós e que era um senhor – naquela época, para nós, era um
senhor, ele tinha 40 e poucos anos, mas para nós era um senhor – se levanta de terno na frente
– ele já era formado dentista, era pastor protestante, importante: “A senhora não pode falar
assim com o aluno, não sei o que e tal”. “Tem mais alguém que queira pronunciar-se aqui para
referendar o comunismo nessa sala?”. Eu: “A senhora não pode falar assim e tal”. “Ah é?
Então...”. Rapaz, aí eu não sei quem, nós éramos uma turma de cinquenta, levantou e saiu e
todos nós levantamos e saímos atrás. Aquilo virou uma união incrível, só que nós perdemos o
ano.

C.C. – A Vanda Torok era professora de...?

E.F. – Sociologia. Aí passamos um ano em greve, sem aula. E o Eremildo chegou para mim,
não sei com os outros, mas pra mim, ele não gostava de mim: “Você é comunista, hein rapaz?
Tu não me enganas não. Você é comunista, mas comunista perigoso. Você é disfarçado,
entendeu? Você é insidioso, você fica por trás, você é eminência parda. Você não vai me
escapar, não”. E ele começou, realmente, a partir daquela época, a me denunciar. Depois eu
comecei, passei para o coisa... Aí ele aumentou a pressão contra mim. Com esse episódio que
eu falei da turma, ele usou aquilo também e mandava os informes. Então, basicamente era de
que eu... “Trata-se de elemento comunista, infiltrado na universidade, muito hábil e que sabe
fazer o trabalho de sapa, não sei o quê, etc”. A linguagem, eu vim saber depois, tinha diferença
entre informe e informação. Ele dava a informação, vinha um débil mental e criava o informe,
e pegava aquela informação como se fosse um fato empírico, verificado. E dizia pá: “esse cara
é comunista”.

C.C. – Porque a fonte era confiável.

E.F. – Porque a fonte era confiável. Uma barbaridade. Então, basicamente era isso. Houve uma
coisa também, eles forjavam, sabe? Eles faziam fotomontagem e me pegaram em um
movimento de 64, naquele famoso discurso de 13 de março de 64, que eu estava lá realmente.
Mas, poxa, eu estava junto com o Guilherme, nós éramos garotos.

26
C.C. – O discurso da Central do Brasil.

E.F. – Da Central. Nós todos estávamos lá sim. Mas, poxa, o Dante Pellacani era o presidente
da CGT. Me pegaram ao lado, abraçado com um cara da CGT: “Você fazendo movimento
internacional, rapaz. Você é comunista mesmo, lá de Moscou. Você está abraçado... Confessa!”
“Como posso confessar”. “Mas é você”. “Pode ser parecido comigo, mas não sou eu. Você
quer me deixar maluco?”. [risos]

C.C. – Hoje você está rindo, mas na época deve ter sido...

E.F. – Na época era uma coisa horrorosa, estou rindo porque era ridícula a burrice do cara.
[risos] Bom, você sabe o Brasil é o Brasil, não é? Duas coisas para mostrar que o Brasil é o
Brasil. O José Nilo Tavares, que era marxista e leninista mesmo, mas não era do Partido, porque
se ele fosse do Partido ele estaria preso. Então ele era marxista e leninista, mas não era do
Partido Comunista, mas tinha ligações com o Partido. Ele tomava cerveja com o pessoal aqui
na Lapa e um deles era agente no Dops. [risos]

C.C. – Ele não sabia que era agente?

E.F. – Sabia. Claro que sabia. Aí houve aquele período que houve a troca de prisioneiros
brasileiros pelo Elbrick. E esse cara do Dops foi escalado para levar os rapazes e as meninas.
E voltou e tinha que fazer um relatório. Só que o cara era semianalfabeto e o José Nilo era
escritor: “Vamos fazer o seguinte, eu vou escrever para você e depois você vai me dar um
favorzinho. É claro. Evidente”. E ele escreveu o relatório e o cara foi promovido. [risos] Um
relatório maravilhoso, espetacular! Ele inventou uns troços, não sei o quê, observações. Aí,
esse cara, ele me apresentou, falou: “O Eurico está precisando do atestado dele lá”. Bom,
aconteceu o seguinte, eu já casado, eu casei em 71. Bate um cara lá.

C.C. – Na sua casa?

E.F. – Na minha casa. Aí eu pergunto ao porteiro: “Quem é?”. “Ele diz que é do Dops”. [risos]
[INAUDÍVEL]. “Caramba, estou preso. Diz que tem que levar pelo menos algumas coisas.
Pasta de dente, que lá não tem pasta de dente. Pega o meu pijama e chinelo, porque eu não
posso andar sem chinelo, eu gosto de chinelo. E telefona para o pessoal aí, para o general Velho.
Eu estou preso”. O cara sobe. Sabe o que era? Não era o cara, era o sobrinho dele que queria

27
uma colher de chá em um curso para entrar na faculdade e tal. Mas esse era o clima, entendeu?
Falou que era o cara do Dops: “Estou preso”. Outra coisa foi o seguinte, minha irmã era casada
com um cara que tinha conhecimentos com o sistema; um deles era o procurador chamado
Eurico Castelo Branco, que não era parente do Castelo Branco. Eurico, meu nome, Castelo
Branco era o procurador chefe do Dops. Ele pediu para mim o atestado. Esse Eurico me chamou
lá: “Ô xará, tu és comunista?”. “Eu não sou comunista. Que obsessão de vocês dizendo que sou
comunista. [risos] Eu não aguento mais ser chamado de comunista. Eu não sou comunista”.
“Mas você é o quê?”. “Eu sou democrata e republicano”. “Ah, você é meio comunista”. [risos]
Democrata e republicano é a mesma coisa. “Vou te mandar investigar”. “Pode mandar”. Rapaz,
mandou mesmo. Depois eu vi no habeas data, não é? Ele falou: “Eu sei tudo sobre você.
Mandei dar a coisa. Realmente esses caras estão fabricando comunistas, você não é comunista
não”. Me deu o atestado. “Poxa vida, graças a Deus”. Aí eu peguei o dinheiro, comprei o
apartamento.

C.C. – Sem atestado você não recebia salário. Quer dizer...

E.F. – Não recebia salário, não assinava o contrato. Eu assinei o contrato e recebi os atrasados
todos, porque eu continuei a trabalhar.

C.C. – Continuou dando aula.

E.F. – Continuei dando aula por dois anos.

C.C. – Agora, Eurico, feita a tese de mestrado, teve alguma repercussão entre os militares ou
não, ninguém soube? Ou entre o meio acadêmico, como foi?

E.F. – Entre o meio acadêmico foi muito boa.

C.C. – Como foi a defesa? A defesa eu não sei como era na época. As pessoas que leram,
comentaram?

E.F. – Não, não foi. Foi seguinte, a minha banca foi o Simon, a Neuma Aguiar e Miriam
Limoeiro Cardoso. A Miriam era marxista, não é? E o fato de eu ter indicado a Miriam... E é
inteligentíssima, pode discordar dela, mas é inteligentíssima. E ela tinha escrito uma tese de
doutorado sobre isso, a análise estrutural, mas com outra maneira, do Jânio Quadros, era a tese

28
na USP. Que eu cito, inclusive, no meu trabalho. Uma outra foi da Neide Esterci, que eu cito
também. Casada com o filho do Jether, o José Ricardo.

C.C. – Agora, não era estranho? Você usa essa inspiração estrutural mais da Antropologia, o
Lévi-Strauss, o Eliseo Verón, que traduziu a Antropologia Estrutural para o espanhol – foi o
primeiro, parece. Na época já tinha Althusser? Quer dizer, já era o estruturalismo marxista?

E.F. – Tinha. Eu peguei outra vertente, não é? Peguei a antropológica, não é?

C.C. – Isso era o quê, influência do Machado, do Otávio ou não, era por conta própria?

E.F. – Foi minha mesmo.

C.C. – Você leu Nietzsche?

E.F. – Li tudo.

C.C. – Lévi-Strauss... Essa discussão se era possível fazer uma análise estrutural em uma
sociedade quente, como as pessoas falam em algum momento.

E.F. – Eu também entendi o seguinte, há um certo tricky aí, não é? Eu falei: “Caramba, eu
quero me manter na universidade, eu nasci para ser professor. Eu gosto disso. Tem a repressão.
Eu chamo de golpe de 64 e estou fora. Eu uso o marxismo em uma tese dessas e como professor
de universidade, eu estou fora. Sem ferir os meus princípios e os meus objetivos, eu não posso
usar uma linguagem alternativa, um instrumental alternativo? Posso. Para chegar aos meus
objetivos que eu ia chegar para o outro caminho. E ao mesmo tempo eles não podem dizer que
eu sou comunista, marxista.” Eu estava sobre um fogo cruzado muito grande. E confesso a
você que o fato de ter feito, por assim dizer, essa viagem metodológica, teórica, me
engrandeceu muito no ponto de vista pessoal.

C.C. – Você estudou ideologia por um caminho: consciente coletivo, análise estrutural...

E.F. – Pois é. E que me enriqueceu muito, me deu uma outra... Se eu fosse pelo caminho
tradicional, pela análise da ideologia, etc, não me acrescentaria tanto como, devido às
circunstâncias, essa escolha me engrandeceu.

29
C.C. – Por outro lado, lá no Iuperj, com essa influência, vamos dizer, norte-americana grande,
não era uma coisa estranha?

E.F. – Era, mas acontece que eu era bom aluno, não é?

C.C. – Quer dizer, no Museu seria mais comum na época?

E.F. – É. Como diz o... Eu não sei quem foi que falou isso lá... Eu até fiz uma piadinha que não
gostou. Quem foi, rapaz? Não foi o Edmundo Campos, não. A piada é o seguinte: “você pode,
porque você é marxista bom”. “Eu não sou marxista, eu sou marxistizante”. “Não, você é
marxista”. “Está bom”. “Mas você é bom”. Aí eu fiz a piada: “Quer dizer que se eu não fosse
marxista eu poderia ser ruim?”. [risos] Havia sim...

C.C. – O Edmundo já era professor?

E.F. – Já era. Era.

C.C. – Mas ele ainda não tinha feito aquele livro?

E.F. – Não, ele ia fazer mais tarde.

C.C. – José Murilo também não tinha feito aquele estudo..?

E.F. – Tinha, ele é de 74. A minha dissertação é anterior.

C.C. – Sobre as Forças Armadas na Primeira República, não tinha sido feito?

E.F. – Não tinha publicado ainda não. Aliás, interessante que eu viajei com ele agora, sentamos
no mesmo lugar no avião, e foi uma conversa interessantíssima.

C.C. – Mas vocês tinham algum diálogo sobre os militares, na época? O tema não era um tema
de discussão?

E.F. – Não, não era um tema de discussão e esse preconceito existe até hoje por parte dos nossos
colegas.

C.C. – Existe?

E.F. – Ah, existe.

30
C.C. – Você acha que existe no meio acadêmico quanto ao tema dos estudos dos militares?

E.F. – Sem dúvida nenhuma.

C.C. – Agora, e a recepção na época? Bom, dos militares não teve nada. Se tivesse, estaria
preso ou não teria o atestado ideológico. E no meio acadêmico? Alguém comentava ali, ou
não? Como foi isso?

E.F. – A vida intelectual daquela época era muito restrita. Essa dissertação, somente seis anos
depois, ganhou a forma de livro: Os Militares e a Democracia. Mas aí o tema já era outro.

C.C. – O período também já era...

E.F. – Nós estávamos em um processo de abertura, não é? Então as coisas que eram possíveis
em 80, não eram possíveis em 70. E aí sim já tinha uma pequena... Quer dizer, já tinha uma
comunidade sendo formada no Brasil de pessoas que se interessavam por isso. Muitos poucos,
contava nos dedos. Mas tinha o René, tinha o Alexandre Barros, tinha o irmão do Campos
Coelho, tinha o Eliezer. Não tinha muito mais do que isso, não.

C.C. – O Alexandre não estudou na sua época?

E.F. – Alexandre Barros estudou em Chicago e voltou para cá em 78, 79.

C.C. – Mas mestrado ele não fez no Iuperj?

E.F. – Ele fez em Chicago. Fez os dois.

C.C. – Agora, você mencionou, em algum momento, o Stepan, que você viria conhecer depois
desse período.

E.F. – Eu conheci o Stepan em 83.

C.C. – Mas o livro você leu já na época do mestrado?

E.F. – Li em 70. Li em inglês, a primeira versão dele e que foi um trabalho muito importante
para mim.

C.C. – A edição em português eu acho que é de 75, Artenova. O inglês é 71.

31
E.F. – Ele viu esse livro todo grifado não sei o quê e tal, e ele me deu uma dedicatória muito
bacana e eu emprestei esse livro para o Eduardo Mascarenhas e o Eduardo Mascarenhas perdeu
o livro dele e do Skidmore, que também tinha me dado com uma dedicatória muito carinhosa.
Quis perder, quis perder. Mas em suma, eu acho que esse preconceito existe até hoje e acho
que somos mal entendidos... Eu acho que eu sou mal entendido.

C.C. – Entre os militares ou entre os acadêmicos?

E.F. – Parte dos militares e parte dos acadêmicos. Eu costumo dizer nas minhas palestras, e eu
falo abertamente – Graças a Deus nós temos uma República e Democracia – que uma esquerda
burra quando vê essa minha aproximação com os militares me chamam de fascista. E uma
direita também burra e ignorante, quando me vê falando de democracia, república, justiça
social: “esse cara é comunista mesmo”. Então eu estou acostumado com isso, eu acho esse
preconceito está enraizado no meu próprio Comitê de Relações Internacionais de Estudos
Estratégicos. Os internacionalistas não entendem o que nós estamos fazendo. Os cientistas
políticos também não entendem direito o que nós estamos fazendo. Não tenho, assim, uma
ambiência maior entre os historiadores, talvez você tenha maior do que eu. E eu acho que foi
um sucesso nós termos criado a Abed3. Nós deixamos de ser o patinho feio, passamos a ter
espaço [acessível] real entre nós, não é?

C.C. – Agora, Eurico, vamos retomar um pouco Oxford. Você falou como chegou e como
mudou de tema. Isso em 74. Mas aí você interrompeu... 76... Você não foi...?

E.F. – É o seguinte, em 76 eu fui...

C.C. – Aí já era o tenentismo a sua tese. Mudou, não é?

E.F. – Era. Essas coisas estão muito relacionadas ao tempo, não é? A Ford financiava o Iuperj
e outras instituições, por exemplo o departamento de Ciências Políticas de Minas Gerais, e em
73 abriu duas possibilidade de bolsas de doutorado na nossa área de Ciências Sociais e fez uma
chamada não pública, mas quem estava no meio podia se candidatar. A Fulbright também fez
e eu sabia que no CNPq eu teria muita dificuldade. Na Capes eu teria muita dificuldade. E eu
então fiz a seleção para a Fulbright. Eram 173 finalistas e eu tirei o primeiro lugar. Eu falei:

3
Associação Brasileira de Estudos de Defesa.

32
“Bom, eu quero ir para a Inglaterra”. “Não pode, só pode ir para os Estados Unidos”. Eu fiz
para a Ford e selecionou uma bolsa aqui, fui eu, e outra em Pernambuco pra fazer Antropologia,
não sei quem era, um antropólogo de Pernambuco. Fui para a entrevista na final: “Bom, você
vai para o Estados Unidos”. “Não, eu quero ir para Oxford”. “Mas para Oxford? Você pensa
que vai ser aceito lá? Não vai, não”. Bom, eu sou cientista político, não é? Claro que eu já tinha
sido aceito. Eu já tinha feito minhas manobras à maneira brasileira com os amigos. Eu sou
brasileiro, eu confio nas pessoas e confio na amizade. Então eu tinha feito amizade com o
Alexandre Barros... Alexandre Barros não, Alexandre Ador, que tinha tido problemas no
Brasil, ele tinha passado para o Itamaraty. Aí fui conhecê-lo. Ele tinha ido para a Inglaterra, na
Inglaterra ele trabalhou no The Guardian. Entrou em Oxford, fez amizade lá, hoje ele é
anistiado, embaixador, está se aposentando. Um cara incrível. E ele me colocou em contato
com o pessoal lá. Chegou no Hermínio, o Hermínio leu e fui aceito lá.

C.C. – Mas seu interesse de ir para Inglaterra era por quê?

E.F. – Pelo seguinte, eu comecei a entender que o pai dos americanos era os ingleses, só que
10.000 vezes mais sofisticados, 10.000 vezes mais amplos. E tinha lá o debate que me
interessava que era o estrutural funcionalismo e o marxismo; e o marxismo estrutural
funcionalismo. Eu queria entender melhor isso lá, mas na terra dos fundadores. Eu não estava
totalmente errado não, viu? Essas coisas... E por outro lado eu não queria ir para a França. E
não tinha jeito de você fazer o doutorado no Brasil porque não tinha, ainda mais na área que eu
queria fazer, entendeu? Na minha geração você tinha que ir para fora. Então Oxford surgiu
como uma possibilidade. Além, também, de um certo colonialismo mental. Poxa, você ser
doutor por Oxford é importante para burro. Não tinha doutorado no Brasil praticamente. Tinha
o da USP, mas era desse tamaninho, era pequeno. Difícil. Muito bem. Então eu falei lá para
Oxford que eu queria ir. E eu consegui na UFRJ que houvesse a licença para que eu fosse com
o meu salário, porque a bolsa da Ford era o seguinte: “eu dou tudo, passagem para você e sua
mulher, Pago Oxford – que era caríssimo – pago roupa de inverno, pago livro, pago saúde,
pago não sei o quê. Mas o salário tem que ser mantido. Depois, conforme for, a gente te dá a
bolsa, mas por enquanto tem que ser...”. E a UFRJ concordou, através de seus departamentos,
seus colegiados, suas decanias, o ministro da Educação concordou. Saiu no Diário Oficial. Na
véspera de eu ir, eu fui dia 10 de fevereiro de 1974, no dia oito ou sete de fevereiro, chegou um
telegrama: “O docente não pode sair do país”. Ponto. Saudações... Eu não sabia ler na época o

33
que estava escrito direito. O que estava escrito embaixo, foi minha sorte mais tarde, DSI/MEC
– Divisão de Segurança e Informação barra MEC. E o que eu fiz, eu e a Janete? “Nós vamos
no peito”. “Nós vamos no peito, como?”. “Ué, nós vamos vender – aquele apartamento que eu
tinha vendido para trinta anos – a gente vende e vai”. E fomos. Só que a gente não vendeu, a
gente alugou. O cara não pagava e eu tive que voltar. Eu volto em 76 e já volto com dois filhos:
um nasceu em 74 mesmo, o Claudio, e o outro nasceu em 76 na Inglaterra. O Claudio e o
Leonardo. Voltei para cá e aí as coisas começaram a ficar mais difíceis. E eu também, confesso
a você, não achava tão importante ter o doutorado. Eu achava importante outras coisas. Eu
achava que eu queria, naquela época, me empenhar pela mudança do país. Eu passei a ter uma
participação muito grande. Fui fundador da Associação Docente na UFF, da Andes. Depois
veio 79 e eu conheci o Max da Costa Santos, que tinha sido exilado. O Max da Costa Santos
me abriu um leque de amizades incríveis. Inclusive vim conhecer o Fernando Henrique
Cardoso, o Darcy Ribeiro, todos esses exilados. E ele fez a editora, fez a Graal. Ele antes tinha
tido a Paz e Terra. E aconteceu um absurdo. Em 81 eu conheci o Miro, que não era para
conhecer. E o Miro tem mais ou menos a minha idade. Ele falou: “Eu preciso de um cara como
você”. Eu falei: “Para quê”. “Não, para ser o chefe da minha campanha”. “Você está maluco.
Eu não entendo disso”. “Exatamente por isso que eu quero. Eu não posso mais ter o estereótipo
de pessoa chaguista, não sei o quê e tal”. O fato é que eu acabei sendo o chefe dos “Luas
Pretas”.

C.C. – Os Luas Pretas eram esse grupo de assessores iniciais aí. E você coordenou a campanha
em 81, não é?

E.F. – Eu coordenei a campanha. Foi uma experiência fantástica! Acabou a campanha. Nós
perdemos, mas eu fui ser presidente da Fundação Pedroso Horta. Fui do Diretório Nacional do
PMDB. Participei, portanto, da campanha das eleições diretas. E a decisão do Moreira Franco...
Para você ter uma ideia de como me empenhei nisso daí, a decisão do Moreira Franco de ser
candidato pelo PMDB surgiu na minha casa, em uma reunião com Paulo Alberto...

C.C. – Artur da Távola.

E.F. – É, Artur da Távola. O Gilberto Rodrigues que era do Legislativo e era da área da baixada,
o Claudio Moacir que era do PP antigo, do Chagas, mas era do interior, e do Jorge Gama, que
era o vice-presidente do partido, deputado federal. Nós tivemos a ideia de compor por fora e

34
por cima. Veio o Moreira Franco. Acontece que aí eu me separei da Janete, em 86, e eu fiquei
meio maluco, sabe? A dor foi muito grande e tal. Fiquei meio destrambelhado por um período.
Eu e o Mascarenhas, sabe? Nós éramos muito amigos. Eu fui morar na casa dele, porque ele
tinha acabado com a Christiane Torloni, e ele estava maluco também. E nós dois estávamos
bem malucos mesmo. [risos] Nós fizemos uma amizade muito bacana.

C.C. – Ele foi deputado pelo MDB.

E.F. – Ele não era para ser, sabe? Ele morreu porque... A política não era a praia dele. Ele era
um homem brilhantíssimo, uma das pessoas mais inteligentes que eu conheci na minha vida.
Mas não era a praia dele. E ele sofria muito. Ele teve tudo o que você possa imaginar nos
primeiros dois anos de mandato. Não conseguiu completar, não é? Ele morreu jovem. Era um
homem fortíssimo, inteligentíssimo.

C.C. – Ele morreu de quê?

E.F. – Ele teve câncer tríplice. Em tudo. Uma decomposição, assim, rápida. Em um ano ele...
Se não fosse tão forte ele teria morrido mais rápido. Ele teve tudo. Então o fato é que eu não
me sentia assim... Não era importante para mim. Eu comecei entender que não é o título que
faz o homem, mas o homem que faz o título, não é? Eu era recebido... O Stepan me convidou
para Yale, outros me convidaram para dar aula em Stanford. Não precisava de doutorado.
Americano não dar bola para isso em determinado nível. Determinado nível.

C.C. – Nessa época também não havia exigência do doutorado.

E.F. – Não havia exigência de doutorado. Quando foi em 2003, essa menina aí4 entra na UFF.
Você já estava em 2003 lá?

J. S. – Não, entrei em 2004.

E.F. – O atual vice-reitor da UFF era pró-reitor de pesquisa e pós-graduação. Houve uma crise
no departamento muito grande e ele falou: “Eurico, quem vai resolver essa crise é você”. “Eu?”.
“É, só que você precisa ter o título de doutor”. “Ah, eu não vou fazer doutorado agora”. “Não,
rapaz, na história da UFF tem um título que a gente dá que é o notório saber, e só tem cinco

4
Referindo-se à assistente de pesquisa do professor Celso Castro, Juliana Souza.

35
caras. Você será o quinto”, aliás. “Quem são esses cinco caras”. “Bom, o José Honório
Rodrigues, era o Castro Faria, o Bento (mas foi por motivos políticos porque ele era o reitor da
Ditadura), o Theotonio dos Santos e vamos dar para você. Aí você passa a ser doutor por
notório saber em Ciência Política que é um título raríssimo, mas que é aceito”. Eu falei: “Está
bom”. Aí os caras lá se movimentaram... “Desde que eu não faça nada. Eu não posso pedir para
mim”. E aí foi muito bacana porque o Luís Fernandes... Você conhece, não é?

C.C. – Sim, sim.

E.F. – O Renato Lessa, o Gisálio, o Ari, o Claudio, o departamento se mexeu. O Renato Lessa
era o professor titular e fez um belíssimo parecer. E, rapaz, surpresa: foi aprovado pelo
Conselho de Ensino e Pesquisa por unanimidade. Uma grande honra, sabe? E a partir dali eu
fundei o novo programa de Ciência Política. Eu fui o responsável. Fiz o mestrado e fiz o
doutorado. É interessante ver a minha irmã perguntar: “O que você está fazendo agora? Você
está trabalhando igual a um maluco”. “Não, eu estou fazendo doutorado”. “Mas nessa altura?”.
“Não estou fazendo um doutorado, eu estou construindo um doutorado”. “Mas o que é isso?”.
“Não, eu estou montando um doutorado”. [risos] “Ah bom, você não está fazendo uma
doutorado”. “Não, eu estou montando um doutorado”. Que foi uma coisa maravilhosa porque
eu trabalhava 24 horas por dia e li tudo, reli tudo e ampliei tudo. E tive a oportunidade de fazer
não só um mestrado e doutorado, mas também mais um outro mestrado, que foi de Estudos
Estratégicos, mais uma graduação, Relações Internacionais em Estudos Estratégicos, e mais o
Instituto. Ou seja, houve uma senilidade criativa muito boa.

C.C. – Institucional, não é?

E.F. – Institucional.

C.C. – Agora, Eurico, se puder voltar só um pouquinho antes. Eu queria perguntar do Núcleo
de Estudos Estratégicos que foi criado lá em 85, não é?

E.F. – 86. 85 é o NEE5, é o de Campinas. O que acontecia foi o seguinte...

C.C. – O René estava envolvido nisso? René Dreifuss.

36
E.F. – Estava. Foi através do René... Eu conheci o René como? Tudo é pessoal. Eu estava posto
em sossego aqui no Brasil em 77, o René chega e vem com uma carta da Escócia, para me
procurar, desse cara aqui: Peter Flynn. Conversa vai, conversa vem e ele fala que o nome da
mulher dele era Áurea, Áurea Fuks. Eu cheguei em casa e falo para a Janete: “Janete, eu conheci
um cara interessante que é casado com uma brasileira judia que se chama Áurea Fuks”. Ela:
“Quem? Áurea?”. “Áurea foi minha colega de creche. Não é possível. Vamos marcar um
encontro”. A partir das mulheres nós estabelecemos logo uma identidade profunda. Ou seja,
aquelas duas meninas eram malucas, elas foram gostar de cientista político e gostar de militar
em uma época da Ditadura. Não podem ser normais essas meninas. [risos] Gostavam de uns
caras diferentes. E ficamos muito amigos, sabe? Muito amigos mesmo. O René é brilhante, o
René é uma pessoa fantástica. Veio os anos 80, ele foi para Minas e eu consegui que ele viesse
para cá através do meu reitor, o José Raymundo Romêo. Ele veio para cá. Era em Águas de
Lindóia a Anpocs, sabe? E em vez de frequentarmos a Anpocs, nós ficamos ali...

C.C. – Águas de São Pedro, não era?

E.F. – São Pedro, São Pedro.

C.C. – Lindóia é hoje.

E.F. – É, Lindóia é hoje. E nós nos retiramos e ficamos conversando sobre os milicos, sobre
não sei o quê. “Você sabe que tem um pessoal lá de Campinas que tem pensado também, você
precisa conhecer, inclusive um milico que é sensacional”...

C.C. – Isso foi quando, Eurico?

E.F. – 84. “O Cavagnari, um major do Estado-Maior e tal. Eu vou a Brasília. A gente podia ir
lá para você conhecer”. Aí nós fomos a Brasília fazer não sei o que, palestra lá na UnB e tal,
nós fomos juntos. E eu conheci o Cavagnari e o Eliézer em 84. Aí nós quatro ficamos
conversando. E o Eliézer teve a ideia, em 84, 85, de fazer um grupo de estudos estratégicos.
Mas a nossa noção de estudos estratégicos era desse tamaninho perto do que é hoje. Hoje é
desse tamanho, naquela época era simplesmente a relação entre Forças Armadas e sociedade.
E a questão principal que se escondia nessa relação, qual era? O que vai acontecer no Brasil
acabando o ciclo militar e iniciando o ciclo democratizante. O que nós vamos fazer com os

37
militares. Ou seja, aquela velha questão da conquista da lealdade e da obediência das Forças
Armadas face às instituições republicanas e democráticas.

C.C. – Nesses dez anos, entre 74, quando você teve o termina o mestrado, e 84, quando está se
envolvendo no surgimento dos núcleos de estudos estratégicos, você não teve nenhuma relação
de pesquisa nem de convivência com a instituição militar?

E.F. – Não, pessoalmente não. Eu só fui me aproximar das instituições militares muito, muito,
muito mais tarde. Em 2004 só.

C.C. – Quer dizer, esse movimento então, como você disse, o grande interesse era discutir os
militares já sob o regime civil?

E.F. – Sobre o regime civil. Quer dizer, como iria ocorrer a passagem. Eu me lembro da
pergunta de um de nós, dizia assim: “Bom, os militares passam vinte anos no poder, a gente
acaba com o ciclo militar e eles vão escovar as botas no quartel? Não pode ser isso. É muito
mais complexo do que isso. Como vai fazer?”. Então eu fiz alguns trabalhos sobre isso.
Apresentei lá. O René escreveu, organizou o livro. O Eliézer também. A questão básica era
essa. Em 85, o Eliezer consegue fazer isso lá, na Unicamp. Em 86 nós replicamos aqui. E o
Romêo fez uma portaria, uma norma de serviço estabelecendo o Nest6 e a concepção que nós
tínhamos do Nest. E outra portaria designando o René o coordenador executivo e eu o
coordenador adjunto. O Núcleo foi muito interessante.

C.C. – Quem mais participava além de vocês dois?

E.F. – Basicamente éramos nós dois e teve muita gente que não teve, assim, um protagonismo
maior, mas nós começamos...

C.C. – O almirante Vidigal já participava?

E.F. – Não, foi o almirante Braga. O Vidigal chegou mais tarde em 87, 88 por aí.

C.C. – O almirante Braga era...? Você sabe ao certo o nome dele?

6
Núcleo de Estudos Estratégicos.

38
E.F. – Não, era almirante Braga. Eu posso ver para você. Ele era da Engenharia de Produção.
Ele era da reserva, mas era um homem muito aberto. Ficou muito amigo do René. O outro era
um coronel, mas que era um homem excepcional, era o Waldimir Pirró e Longo.

C.C. – Foi homenageado na última Abed.

E.F. – É. Era um homem... É um dos fundadores da ciência no Brasil. É um homem de um


saber incrível. É meu amigo. Não era meu amigo tanto naquela época não, ficou depois. Agora
veja bem, eu estou passando de 85, 86 a 90, 91. Em cinco anos eu passei muito mal.

C.C. – Pessoalmente?

E.F. – É. Foi muito bom eu ter ido para o Alabama

[FINAL DE ARQUIVO II]

C.C. - Bom, você falou já claramente que esse tema dos militares sobre a democracia era o
tema de como é que fazia essa transição. Mas a impressão que eu tenho, é que por um lado, eu
posso estar errado, o certo preconceito do meio acadêmico que você via, ainda existia nessa
época, embora, talvez, mais amainado. E por outro lado também, vamos dizer, o diálogo, a
interlocução com os militares não era com o núcleo da instituição militar, mas com personagens
que tinham... O Almirante Braga estava na reserva, o Cavagnari não sei se já estava ou foi logo
para a reserva, como coronel. Quer dizer, não eram pessoas do comando da instituição. Eu não
sei se essa impressão é verdadeira.

E.F. – Está certo.

C.C. – Se era possível na época, também, haver outra coisa diferente disso.

E.F. – Eu acho que não.

C.C. – Qual era a sua impressão desse momento já de transição, vamos dizer, assegurada.

E.F. – Olha, é interessante observar a fala do nosso ex-ministro da defesa, Nelson Jobim – que
ficou meu amigo, aliás. O Nelson fala abertamente que, como constituinte, ele testemunhou
esse preconceito. Alguns deles defendiam, inclusive, simplesmente a extinção das Forças
Armadas. O Nelson Jobim: “Nós éramos tão preconceituosos, nós não tínhamos os estudos...

39
Nós não sabíamos nem que vocês existiam. O René... Nós não sabíamos nem que vocês
existiam. Você, Eurico, eu já sabia de você em 88 por causa do Ulisses de Guimarães que
gostava de você”. Eu fiz, inclusive, um depoimento lá na Câmara e tal. Aí, entrava em um
ouvido e saía no outro. Os caras até iam embora. Eu tenho raiva, eu detesto milico. Mas a
grande parte tinha sido punida pelo regime, tinha tido dificuldades. E muitos do PMDB estavam
muito contrariados com a conciliação que tinha sido no governo Sarney. Isso levava mais água
ao moinho, não é? Então, a nossa distância do meio político e a nossa distância do meio militar
era muito grande. E o nosso isolamento no meio acadêmico era muito grande também. Você
me perguntando agora porque nós persistíamos, eu acho que é porque nós achávamos que
realmente se tratava de algo muito importante para o país. Porque nós não tínhamos estímulos
de ninguém. Para você ter uma ideia, o nosso querido René, que foi um homem de uma
produtividade incrível, ele só teve, ao final da vida, uma bolsa da Faperj. Nunca teve nenhum
apoio da Capes nem do CNPq. Ele escreveu aquilo tudo sozinho. E se apoio ele teve, foi de
fundações internacionais, porque ele falava várias línguas, então ele tinha muito boas relações
com a Alemanha. E com a Alemanha ele conseguiu alguma coisinha. Nós tivemos uma grande
decepção com a Fulbright, qual foi? Eu consegui montar um almoço com o pessoal da
Fulbright, porque nós tínhamos que fazer uns eventos e tal, e os americanos foram muito claros,
donde eu percebi que uma questão com a defesa nacional... Nós nem falamos em defesa
nacional, rapaz. Nem falava em segurança internacional. O Brasil nem podia falar disso. A
coisa premente: “Escuta, não vai ter um golpe de volta, não é?”. Essa era a questão. Se vai ter
a volta desses caras depois. Essa que era a questão estratégica central. Falar em defesa nacional,
segurança internacional era besteira. Tinha que ter coisa antes. No entanto, estava acontecendo
algumas coisas no Brasil que eu só fui me aperceber depois. Vamos deixar para daqui a pouco.
Então, insistirmos na necessidade de o que é isto no Brasil, a história do Brasil, como foi a
história do Brasil, etc. A história do Brasil, a meu ver, e acho que os brasileiros e muitos do
meio acadêmico não entenderam isso ainda... Vou falar três minutos sobre isso. Em 89, golpe
militar, não é isso? 89 a 94, república das espadas, não é isso? 94 a 1930, república oligárquica
onde acontece aquilo que a June Hahner falou que foi algo interessantíssimo. Nós estudamos
como os militares entram na política, mas nós não estudamos direito como os militares saem
da política. Por outro lado é um período extremamente convulso, de 94 a 1930. Marcado
principalmente pelo o quê? Por 1922 a 1927, que é o Movimento Tenentista. Em 1930, nós
temos um golpe. Em 1932, nós temos uma tentativa de contragolpe. Em 1935, você tem uma

40
tentativa de golpe da esquerda. Em 1937, você tem o golpe do status quo. Em 1938, você tem
a tentativa de golpe da direita, o Movimento Integralista. Em 1945, você tem o golpe dentro do
próprio golpe, porque Getúlio é deposto por dois dos seus principais comandantes, que é o
Pedro Aurélio de Góis Monteiro e Eurico Gaspar Dutra. De 1945 a 64, você tem o que o César
Guimarães chama de uma democracia com participação limitada. Por que participação
limitada? Porque os comunistas estavam fora e não podiam estar, eles eram quinze a vinte por
cento dos votos. Então você tem quatro presidentes eleitos, mas um que se suicida. Um outro
renuncia, mas tenta um golpe. Tivemos a volta de um regime republicano parlamentarista após
a renúncia do Jânio Quadros. A volta do presidencialismo, o golpe de 64, o golpe dentro do
golpe de três de dezembro de 68. A guerra suja de 69 a 74. A tentativa de uma mudança política
por cima, abertura de 74 a 85. Tudo é milico. Você não vai entender a história do Brasil sem
os milicos. Então como você reverte isso? Só com o tempo histórico.

C.C. – Você mencionou que esse período aí de 85, 86, quando estão surgindo as experiências
do Nest lá, este era o tema: os militares, como eles vão sair dessa tradição histórica...

E.F. – E mais, como é que nós vamos entendê-los.

C.C. – Mas a tradição histórica republicana, pelo menos, brasileira, como você pontuou, é
recheada por ameaças de golpe e manifestos, outras coisas. Agora, fazendo um exercício
retrospectivo, se essa era a grande questão, o medo ainda presente no final da transição, 28
anos depois não teve de fato tentativa de golpe. Vamos dizer, nenhuma ameaça série desse tipo
que você nomeou, manifesto de coronéis também teve, enfim, uma série de coisas. Mas em 85
esse era um medo presente e muito mais real do que pode parecer hoje, não é?

E.F. – Ah sim, hoje o jovem parece um porteiro de geladeira, não é? Quer dizer, o que é o
jovem de classe média rico? “Pai, está faltando aqui a coca-cola. Está faltando presunto, não
sei o quê e tal”. “Ajuda a colocar também dentro. Você agora já é homem”. Eu eduquei meus
filhos assim, sabe? Não tem porteiro de geladeira lá em casa. Então a democracia não foi dada,
foi conquistada. Teve muita gente que sofreu aqui, teve gente que morreu, etc. E a questão
central ainda continua essa: a relação entre Forças Armadas e sociedade. Como nós somos
capazes de conquistar as armas para nós. Então eu fiz coisas que jamais pensei que poderia
fazer. Eu lá na Escola Superior de Guerra falando coisas que eu sei que... Meu irmão sempre
diz: “Eurico, esses caras já fizeram isso com você, vão fazer novamente. Você vai preso,

41
hein?!”. [risos] Porque eu falei coisas como, por exemplo: “Olha, as armas são da República,
não pode ser república das armas”. Os caras ficam me olhando, não é? “Eu ensino os meus
alunos que você não pode riscar o que eles têm, porque aquilo pertence ao povo, aquilo é da
res publica, é coisa do povo. Eu estou querendo dizer que esse fuzil seu é nosso, depende de
nós. Vocês são pagos por nós para nos defender. Isso aí pertence a nós.” Eu sei que ficam me
olhando. A primeira palestra que eu fiz lá foi em 2002, eu nem estava voltando ao Nest, eles
me convidaram. E eu me lembro perfeitamente como se fosse hoje, uma coisa, assim, que eu
quase tive um delírio interno. Eu fiz a minha palestra sobre Doutrinas Políticas
Contemporâneas. Olha só, Doutrinas Políticas Contemporâneas. Eu fiz a palestra e eles
provocam, sabe? Militar é fogo, cuidado com eles. Eu entendo eles. Tem um coronelzinho lá,
um tenente-coronel: “Professor, pergunta: o movimento aí dos Sem Terra, qual que o senhor
acha que deve ser a posição do Exército brasileiro?”. “Muito simples e muito clara. O Exército
brasileiro, de acordo com a nossa Constituição, que é a nossa regra maior, nossa lei maior,
obedecendo ao comandante em chefe das Forças Armadas, que é o nosso Presidente da
República, fará o que determina a lei e a vontade do Presidente que é de todos nós”. Está
respondida, vamos passar para a próxima. [risos] Eu lá em cima no palco falando para 500
milicos. É assim que você controla. Eu tinha lido e fiz. Aquilo foi um delírio, eu cheguei em
casa e chorei de alegria. Falei: “Meu Deus, como eu tive coragem de falar um troço desses,
rapaz!” [risos] Então é o seguinte, os caras resolveram, como eu os entendo... E militar gosta
que você seja transparente, leal, você não pode é fazer por trás; fazer intriga, fofoca por trás.
Isso aí você está roubado... E são mineiros, todo militar é mineiro. O que é isso? Se você ganha
a confiança de um, você pode ganhar a confiança de dois. Se você ganha de dois, você pode
ganhar de quatro. Você vai assim exponencialmente. Os caras me deram 500 medalhas e eu
dizendo isso.

C.C. – Essa palestra é 2002?

E.F. – 2002. Eu não tinha ainda voltado ao Nest não. Se eu te contar como foi ressuscitado o
Nest você vai achar que eu sou maluco.

C.C. – Então conte agora porque a gente está curioso para saber.

E.F. – Olha, o Nest... O René morreu em 2003, não é? E o Nest tinha sido desativado nos anos
90, porque o Nest era o René e o René era o Nest.

42
C.C. – Você faziam o quê? Eram reuniões...?

E.F. – Reuniões, palestras, conversávamos e tal.

C.C. – Tinha algum contato com Campinas ou não?

E.F. – Tínhamos, muito pouco, mas tínhamos. Principalmente o René, não é? O René vivia lá
e cá. E ele escrevia muito na revista deles: Premissas. O pessoal vinha aqui... Eu mesmo fui lá
e tal. Mas o René era o carro-chefe, não é?

C.C. – Agora, em termos de alunos era limitada a participação; de mestrandos...?

E.F. – Muito, mas eu dava aula...

C.C. – Não, não. Estou falando no Nest.

E.F. – Não, não tinha cursos, assim, palestras. Não eram nem cursos, era uma vida muito
pequena. Não tinha uma efervescência. Porque o René, a missão dele era escrever. Antes de
dar aula e antes de ser um professor, ele era um pesquisador. Ele, inclusive, não gostava de dar
aula. Ele gostava de pesquisar, ele gostava de escrever. E foi fecundo, não é? Já eu não, eu
gosto muito de dar aula, eu adoro dar aula, eu sou louco por dar aula. Sou professor, nasci para
isso. Eu gosto de me jogar com os alunos, de me envolver com eles, sentar com eles no chão.
Eu gosto disso. Gosto!

C.C. – Mas o ressurgimento do Nest... Foi em 2003, não é?

E.F. – Eu ia muito...

C.C. – O René morreu em...?

E.F. – Morreu no dia quatro de maio de 2003. Um dia antes do nascimento de Marx, cinco de
maio e um dia antes também do nascimento da minha filha, cinco de maio. A minha filha
nasceu no mesmo dia que Marx. Em suma, naquela época eu ia a um programa da TV Educativa
que era da Lucia Leme. Eu ia lá muito e um dia tinha um cara lá maluco chamado Ronaldo
Leão. Ronaldo Leão era um jornalista e economista que tinha ficado famoso na guerra do
Golfo, porque ele era o comentarista de estratégia da Globo. E esse cara sabia tudo de mim,
rapaz. Então saímos do programa, fomos tomar um café e ele falou: “Sou um admirador seu

43
por causa disso, daquilo”. Sabia coisa de mim do arco da velha. O cara tinha uma memória
incrível. “O Brasil precisa ressuscitar o Nest dentro de uma outra feição pensando a defesa
nacional, etc”. Eu falei: “Está certo. Toma o meu cartão. A gente bate um papo aí depois”. Mas
nem dei bola, sabe? Não é que o cara me liga no dia seguinte? Escuta: “Aquele negócio que eu
falei não é de brasileiro não, é de inglês. Eu quero conversar com o senhor mesmo”. O fato é
que ele me convenceu a refazer. Eu cheguei para o meu reitor e falei que queria refazer o Nest
e ele falou: “Você está maluco, rapaz? Isso não existe mais”. Mas eu fui para cá, fui para lá...

C.C. – Ele foi criado, mas não foi extinto oficialmente.

E.F. – Não, não foi.

C.C. – Então continuava a portaria lá...

E.F. – Continuava com a portaria. Aí, esse cara, o Cícero Mauro Rodrigues Fialho, o reitor,
junto com esse pró-reitor de pesquisa e pós-graduação, o Sidney de Matos Mello – que vai ser
o futuro reitor agora – eles gostam de mim, entendeu? Eu adoro a UFF. Sou louco pela UFF.
Minha vida. E eles me deram um voto de confiança: “Vamos fazer esse troço aí. Mas não dou
um tostão”. Aí eu falei: “Bom, como vou fazer?”. Aí eu já estava entendendo a questão da
defesa nacional, segurança internacional, estudos estratégicos. Esse troço todo estava na minha
cabeça. Aí eu resolvi me dedicar a esse troço... Sei lá, foi um troço maluco, tipo missão: “eu
tenho que fazer isso”. Missão. Não sei porquê. E come a trabalhar 24 horas por dia. Eu era
chefe de departamento, depois passei a ser coordenador, depois passei a ser tudo junto:
coordenador do Nest, chefe de departamento, coordenador da pós-graduação. E fui sozinho na
Eceme7. Tinha dois caras lá no Centro de Estudos Estratégicos que eles tinham fundado em
2002. Era o major Matsuda e o coronel Cunha e Cunha. Nunca mais esqueci o nome dele,
porque Cunha e Cunha é incrível. Eu só tinha algumas ideias e não tinha nada na mão. E não é
que os caras me ouviram, rapaz?

C.C. – Você foi convidá-los para?

E.F. – Eu fui convidado para conversar e eu tinha a ideia seguinte: “Eu não tenho força aqui
dentro, eu tenho que trazer força de fora para dentro”. Então, a primeira ideia que eu tive foi

7
Escola de Comando e Estado-Maior do Exército.

44
criar um Conselho Consultivo para mostrar, perante a comunidade, perante a UFF, que eu tinha
força. E como eu faço? Eu faço com os amigos. Então conversei com os amigos: chamei o
Guilherme. “Guilherme, você é importante para cacete, você vai ser Conselho Consultivo.
Renato, você vai ser do Conselho Consultivo. Teotônio, você vai ser...”. Você está vendo a
linha política dos caras. Todos eles são diferentes, um pouquinho mais para esquerda. Chamei
um ex-reitor, o Raymundo Romêo, chamei o Luiz Fernandes, o Antônio Celso. Então tenho
sete caras civis, e eu preciso de três milicos e eu não conheço ninguém. Esse cara, que tinha
me dado a ideia, falou: “Olha, um almirante bacana para você conhecer é o Mauro César
Rodrigues Pereira. Vou apresentar você a ele”. Esse Mauro César me deu uma esnobada:
“Olha, eu posso te receber em quinze minutos para você tomar um café”. Rapaz, a conversa de
quinze minutos foi de três, quatro horas. E ele tinha sido ministro da Marinha. Ficou meu
amigo. Ele falou: “Eu vou te ajudar. Bom, precisamos arrumar agora um general”. Aí vai para
cá, não sei o que e tal. Arranjamos o Luiz Carlos Schroeder Lessa, era na época presidente do
Clube Militar.

C.C. – Ele foi comandante na Amazônia e depois presidente do Clube Militar. Ainda é vivo?

E.F. – É, é vivo. Aí precisávamos da Aeronáutica. Na Aeronáutica eu forcei a barra. Eu falei:


“Precisamos colocar um cara que dentro das Forças Armadas seja emblemático, que seja herói
e que seja de esquerda”. Quem? Moreira Lima. Esse mesmo cara me apresentou Moreira Lima,
ele morava na Santa Clara.

C.C. – Esse mesmo cara quem?

E.F. – O Rui Moreira Lima.

C.C. – Mas quem apresentou? Mauro?

E.F. – O Ronaldo Leão. E eu fui lá conhecer o cara. Me recebeu na casa dele. Poxa, um cara
espetacular, uma brasileiro de melhor qualidade. E fizeram o diabo com ele. Nem mecânico
deixaram ele ser. Ele sobreviveu como vendedor da Barsa, enciclopédia. Homem de uma
integridade incrível. Ele morreu agora, pouco tempo.

C.C. – Agora Eurico, você falou uma frase que eu estou...

45
E.F. – Aí cheguei ao reitor e apresentei: “Escuta, eu preciso de duas coisas. Primeiro eu preciso
que esses caras sejam do Conselho da UFF e que a gente faça um coquetel para eles como
conselho superior e tal para eles tomarem posse. E eu quero que você vá lá”. “Você está maluco,
Eurico? Não existe conselho, conselho só tem dois: conselho universitário e conselho de ensino
e pesquisa. O resto não existe”. “Não, tem aqui o artigo tal que você pode ter Conselho Ad
Hoc”. “Deixa eu ver esses nomes”. Aí eu mostrei, ele falou: “Pô, são esses caras?”. “São esses
caras”. “Então... Fulana, vem cá. Tem um dinheirinho para fazer aqui um coquetel?”. [riso]
“Tem um dinheirinho”. “Então marca com o Conselho Superior, eu vou presidir esse troço. O
que vai ter?”. “Vai ter um discurso meu e do ministro da Marinha?”. “Pô, ministro da
Marinha?”. “É, do ex-ministro da Marinha”. “E você vai falar também?”. “Vou falar”. Aí
fizemos. Foi um sucesso. E eu comecei, então, a fazer o primeiro ciclo de palestras. Nós
estamos no décimo segundo hoje. E aí comecei a fazer o negócio.

C.C. – Eurico, você falou a frase: “Eu não conhecia ninguém”. Quer dizer, nesse momento,
mesmo tido a passagem pelo primeiro Nest, tendo estudado militares, quer dizer, o contato
com, vamos dizer, a instituição militar e com pessoas que tinham sido mais centrais, era nulo?

E.F. – É. Acontece o seguinte...

C.C. – Quer dizer, em 2002 você foi dar uma palestra na ESG.8

E.F. – Pior ainda, na Eceme. A ESG é até melhor. Foi na ECEME – Escola de Comando e
Estado-Maior do Exército.

C.C. – Sua entrada triunfal foi lá.

E.F. – Foi lá.

C.C. – Já era o CPEAEx9 ou era a Eceme mesmo? Eram os cinquentas coronéis ou era...?

E.F. – Eu comecei a dar não foi para os coronéis não, era melhor ainda, era maior, era para os
majores e os tenentes-coronéis. Os mais jovens. E passei a dar dez anos de aula e me deram o

8
Escola Superior de Guerra.

9
Escola de Comando e Estado-Maior do Exército.

46
título de colaborador emérito. Eu sou colaborador emérito do Exército. Não é da ECEME não,
é do Exército. Eles me deram um título maior ainda de graça, não é? [riso]

C.C. – Aí então ressurgiu o Nest lá com coquetel.

E.F. – É, e começamos a fazer os ciclos de palestra e esse ciclo de palestras foi um sucesso,
entendeu? Esses militares começaram a me dar apoio, os civis começaram a me dar apoio.
Ninguém acreditava que eu ia ser capaz de fazer, nem eu mesmo. Então, em 2012 surgiu o
Inest. Aliás, na verdade, em 2011 a criação e a implantação em 2012. Tem um ano e pouco o
Inest e já tem 500 pessoas.

C.C. – Agora, o Programa de Estudos Estratégicos já era anterior ao Inest?

E.F. – Tudo na vida na vida é virtú e fortuna, não é? Se você não tiver sorte, as condições
históricas que depende da sua vontade você não surge nada. Em 2005 surgiu o Pró-Defesa I e
o Pró-Defesa I foi fundamental, porque eu tive a ideia – o negócio da liderança intelectual civil
– de criar um curso de mestrado e doutorado sob a liderança civil incorporando as três forças.

C.C. – Você juntou as três escolas?

10
E.F. – As três escolas: Eceme, Escola de Guerra Naval e a Ecemar/Unifa – porque lá na
Aeronáutica é diferente, lá tem universidade. Então o ente maior é a Unifa, Ecemar é um ente
menor. Era com os dois, mas quem assinava era o comandante da Unifa.

C.C. – E como foi para que eles aceitassem isso? Em 2005 você já tinha... Alguém te ajudou
nisso ou você ia na cara de pau?

E.F. – Primeiro houve o efeito de demonstração, não é? Desde 2004 eu estava ligado ao
ministro da Marinha. Ele me apresentou as pessoas.

C.C. – Mauro César Rodrigues.

E.F. – É. Conheci um almirante sensacional que você conhece que é o Rui, que está fazendo o
doutorado hoje [no IME] e está acabando. Ele era o comandante da EGN. E me dei com ele,
hoje é meu amigo também. Se você está notando que eu tenho uma porção de amigos, graças

10
Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica – Universidade da Força Aérea.

47
a Deus. Esse cara ficou meu amigo também e tal. Nós íamos fazer um mestrado na Marinha,
sabe? Mas veio o Pró-Defesa I... Eu tinha os contatos na Eceme, coloquei a Eceme. Faltava a
Ecemar. Um coronel, chamado Márcio Rocha, não sei se você conhece, hoje é da Abed,
literalmente da FAB, chegou voando, nos últimos minutos, já estava acabando o negócio, e me
deu a chance de fazer [com as três, rapaz]. Aí eu trabalhando igual a um maluco, nós mandamos
o negócio... O projeto foi mandado no último minuto por causa da Ecemar. Esse rapaz, Márcio
Rocha, depois ia fazer o doutorado comigo, acabar o doutorado, fazer o concurso e é professor
no Inest 11hoje. E é um grande colaborador.

C.C. – O Inest hoje, qual o desafio maior? Nesse meio tempo, só para... Em 2010 você foi
aposentado, não é? Você continua à frente do Inest mesmo como professor aposentado.

E.F. – Fui, porque eu fui reativado, nome horrível. Você desativou, pá, parou tudo. Agora ativa
aí. [risos] Eu fui reativado com uma outra Siape. No serviço público você tem que ter Siape.
Então eu tenho dois Siapes. Aliás, eu tenho três Siapes, porque eu sou professor também
aposentado, anistiado da UFRJ e sou professor titular da UFF, e sou diretor do Instituto. O
reitor me nomeou o ad hoc porque o diretor é nível de nomeação do reitor para um caso de
implantação. Então, possivelmente eu serei um diretor enquanto eu quiser, mas eu não pretendo
ficar mais de um ano no que eu estou fazendo não.

C.C. – Qual você acha que é o grande desafio do Inest agora?

E.F. – Olha, no dia que o conselho universitário o criou, dia 28 de setembro de 2011, eu quase
tive um troço, sabe? Porque foi muito difícil. Para você criar uma unidade autônoma, uma
faculdade dentro de uma estrutura universitária federal, que é um gigante, implica em você,
primeiro, convencer seus pares imediatos do departamento. Depois que você convencer seus
pares imediatos, você tem que convencer – o que não é fácil – o Colegiado Superior do seu
Instituto – que no caso da UFF, o ICHF, é historiadores, antropólogos, sociólogos, psicólogos
e cientistas políticos. É convencer esses caras. Depois disso você tem que convencer o Cepe,
Conselho de Ensino e Pesquisa, onde toda a universidade está representada.

C.C. – Todas as áreas.

11
Instituto de Estudos Estratégicos.

48
E.F. – Todas as áreas. Então você tem que falar com veterinário, tem que falar com físico, tem
que falar com químico. São só dezesseis. Depois você tem que falar com as Câmaras Técnicas,
que são cinco: Câmara de Assuntos Estudantis, Câmara de Assuntos Financeiros, Câmara de
Assuntos Administrativos, Câmara de Assuntos Acadêmicos e Legislação e Normas. Esse cara
aqui é fundamental, era meu amigo, era o diretor da Faculdade de Direito. Eu tinha tido lá umas
tetras com ele. Convenci o cara. Isso depois de passar por 500 caras. Aí vai para o Conselho
Universitário. O Conselho Universitário para criar algo é fórum especial, é dois terços. Quer
dizer, a nossa Câmara de Deputados são 120 caras. A UFF tem 60.000 pessoas hoje. Então tem
movimento estudantil, tem movimento de sindicato, tem movimento não sei o quê, tem o
PSOL, tem o PSTU, tem aluno maluco, tem professor doido, tem não sei o quê. E como
convence esses caras todos? Pô, foi uma batalha! Então o dia que foi colocado em votação e
que eu consegui, porque eu sou amigo também do chefe da oposição, o professor Palharini,
virei para o Palharini e disse: “Não vai fazer isso comigo. Tu vais votar nesse troço”. “Eurico,
deixa comigo. Vou te surpreender hoje”. Ele me surpreendeu tanto que o reitor ficou com
ciúme: “Pô, esse cara está querendo tirar a minha bandeira?”. [risos] Ou seja, foi votado... O
troço demorou pra burro e tal. Só que eu achava: “mas agora acabei”. Pô, não tinha visto nada.
É incrível você ter que montar uma coisa nova dentro de uma estrutura pesada. Meu filho mais
velho, Claudio, que é advogado, falou: “Papai, o que você quer? Eu fazer uma empresazinha
desse tamanho é uma coisa difícil para burro, você quer fazer uma faculdade em uma
universidade gigantesca como a sua, dentro do Ministério do Planejamento e dentro do
Ministério da Educação”. Olha, eu passei um ano sem poder respirar: você tem que ir na
SIORG, tem que não sei o quê, criar cargo. Isso para 500 pessoas. Como você abriga 500
pessoas? Aula, salas, isso e aquilo, professor, concurso e concurso e concurso! Foram dezesseis
concursos e tem mais quatro para fazer. E a minha obra está incompleta, por quê? Nós não
temos espaço ainda. Hoje eu vou falar sobre um sonho, maluco. Eu quero ter o Forte Gragoatá.
Vou sair daqui e vou conversar com o designado pelo chefe do Estado-Maior do Exército,
porque eu coloquei o ministro da Defesa, o Celso, na jogada – teu xará – para conquistar o
Forte. Porque eu quero o Forte não é por nada não, é por causa do simbolismo.

C.C. – O Forte mesmo?

E.F. – O Forte Gragoatá. E eu quero que os caras saibam que tem aqui e tem um negócio civil
nosso lá. Tem que conquistar o espaço. O reitor, que vai ser o próximo, agora no aniversário

49
dele quando lançou a campanha, ele falou: “Eurico, quero dizer a você o seguinte: independente
de qualquer coisa eu vou te dar a droga desse prédio. Vou te dar um prédio de quatro andares,
cinco andares. Agora, continue mantendo o negócio do Forte.” Claro, porque eu não posso
colocar quinhentas pessoas dentro do Forte, mas eu posso colocar a pós-graduação, eu posso
te convidar, eu posso convidar os chineses, os ingleses, os franceses. Colocar dois leões na
porta para eles verem que nós não estamos brincando, que nós, brasileiros, pensamos grande
pelo nosso país com a guarda militar e comando civil. Pô, tudo aquilo que Eurico estava
pensando lá em Oxford está conseguindo realizar aqui. Agora eu não sei como eu faço isso
não. Se você me perguntar como eu faço isso, eu não sei. Eu sei que vou por aqui, vou para lá,
converso para cá, vou para lá. Dou um passo pra lá, danço um bigorrilho aqui, um bigorrilho
acolá. Pego a moça, pego a moça acolá. Dou a mão para cá, dou a mão pra... E vou adiante,
vou dançando e vou fazendo. Agora como é eu não sei. Não tenho nem ideia.

C.C. – No meio disso também, Eurico, para a gente não esquecer, teve a feitura da Abed, que
começou em pizza. Geralmente as coisas no Brasil terminam em pizza...

E.F. – Você estava presente, não é?

C.C. – Eu estava na pizza lá no hotel Lopes. É hotel Lopes, não é?

E.F. – É onde eu estava. Era o Lopes. Você estava?

C.C. – Estava. Estava o Manuel, Suzeley. Enfim, esse grupo lá. A gente foi comer uma pizza...

E.F. – João Roberto. E tivemos a aventura e a sabedoria de entender que nós tínhamos que
fazer esse movimento, que é altamente bem-sucedido – nunca pensei que seria tão bem-
sucedido. Eu me lembro do nosso primeiro encontro em 2007, foi lá em São Carlos, o João
Roberto falou: “Caramba, Eurico, tem três representantes do Estado-Maior do Exército”. Agora
nós esnobamos, tem ministro dando palestra, tem não sei o que, tem isso, tem aquilo. Todas as
forças reunidas. E acho que estamos no rumo certo se não fizermos besteira, não é? Eu acho
que a Abed teve o cuidado... Eu conheci o Samuel e conheci o João, que acho que hoje são
meus amigos, eu os considero assim, gosto muito deles, pessoalmente, e os admiro
intelectualmente. Nós tivemos a sabedoria de não brigar e de resolver... Quer dizer, a Abed
ainda é uma associação... Você sabe que aqui no Brasil se faz uma associação em um dia e
desfaz no outro, porque os caras brigam. Brasileiro adora brigar, não é possível. Então a gente

50
não briga, entre nós a gente não briga. A gente briga com o adversário, mas o adversário não
está aqui, ele está lá fora. Tem os caras querendo comer a gente lá fora, aqui dentro a gente não
briga, aqui a gente se entende. A gente chega a um consenso, que consenso não é unanimidade,
é uma concordância generalizada. Nós temos que ter essa sabedoria. E nós tivemos as três
primeiras... Você vê, nós estamos hoje com 600 trabalhos apresentados. Nós tínhamos 80, 90.
Em pouquíssimo tempo... E vamos ter mais! O meu Instituto... – “o meu”, olha a minha
pretensão. Quer dizer, o Instituto que eu ajudei em uma pequena parcela talvez, porque se não
tivesse a vontade dos outros não seria nada. Eu apenas talvez tenha ajudado os outros a
decidirem, porque quem decidiu na verdade foram eles, não eu. A minha vontade não vale
nada, vale a vontade deles. Eu tenho essa compreensão. Só o Inest vai ser um manancial
tremendo. São 500 meninos e meninas lindos, adoro eles. Menininhos de dezoito, dezenove
anos, dezessete anos pensando em segurança internacional, cultura estratégica, cultura de
defesa. Eu mapeei 43 subtemas nossos na área de estudos estratégicos. Eu vejo estudos
estratégicos como o papel da força na ordenação dos sistema internacional. Ora, para você
entender o papel lá fora, você tem que entender o papel aqui dentro. E esse papel se dá em dois
sentidos: nos sentido da defesa nacional e no sentido da segurança internacional. Ora, para você
entender a defesa nacional você não pode entender ela por ela mesma, você tem que entender
ela em um contexto maior, que é o sistema de segurança internacional. Então os estudos
estratégicos caminham pari passu com as relações internacionais. E as relações internacionais
sem os estudos estratégicos perde em acuidade porque não vê o papel da força. O que está
acontecendo todos os dias nos jornais não entende: os Estados Unidos colocou uma bomba ali;
a Inglaterra fez não sei o quê; a Síria é isso, etc. Então é um campo muito rico e que precisa
das relações internacionais. E já existe a compreensão acadêmica disso. Tanto é que nós
tivemos a sorte também... O Pessoal do Inep mandava gente avaliar a gente aqui. São duas
avaliações: uma do Inep e a outra do Enade. Do Inep veio aquele cara lá, Antônio Carlos, da
Universidade de Brasília, tem aquela revista Política Internacional – que é A agora, é A1. E o
cara veio e o cara é inteligente. O cara não está interessado em ver o secundário, nem o
supérfluo, nem o adjetivo. Ele está interessado em ver o substantivo, o essencial. Nos deu cinco.
“Pô, cinco? Não pode, cara.”. “E a ideia não vale nada? O novo não vale nada? Isso aqui é
novo. Ninguém fez o que esses caras fizeram. Vamos dar cinco”. Veio o Enade e nós não
tiramos cinco porque ainda tem uns meninos, que eu preciso conversar com eles, de
esquerdinha idiota, que responderam quase tudo certo, mas tinha umas perguntas que eles não

51
responderam porque achavam que era apoio ao PT. Então não responderam, fizeram um
boicotizinho. Tiramos quatro. Porque, modéstia à parte... Você sabe quantos são no nosso
concurso? São 42 caras por vaga. É bom para cacete. Eu tenho o filé mignon. Os garotos pedem
para estudar, pô. Eu sou encantado por eles, eu sou louco. E tem o seguinte, eles entenderam o
que eu quero deles. O que eu quero? Eu quero que eles sejam a excelência, porque há um mal
entendimento de uma esquerda idiota, de dizer que a República paga para eles serem burros.
Eles pagam para ser elite, pô. Você tem que ser elite, você tem que ser elite, nós temos que ser
elite, porque o Brasil precisa do nosso conhecimento. Nós não vamos decidir o que fazer com
ele não, quem vai fazer são os políticos. Mas nós precisamos produzir e dar condições à
sociedade de ser cada vez melhor. E portanto nós somos nobres, nos nossos objetivos. Nossos
objetivos são elevados. E não é que os garotos se autodenominam sabe o que? Nas suas festas
e nas disputas esportivas? Os barões e as baronesas. Dá vontade de chorar. Entenderam tudinho
o que eu falei. E o pouco que falo com eles e os garotos me chamam de Eurico. Tem até outro
que me chamou de Euriquinho outro dia. [risos] Aí vem um professor mais velho: “Engraçado,
a mim me chamam de senhor e você nem fala com eles direito e eles te chamam de Eurico,
outro até te chamou de Euriquinho. Como pode?”. “Sei lá, eles me adoram e eu adoro eles”.
Ou seja, tem um mistério ali, entendeu? Eu, por enquanto, quero ainda permanecer, mas não
posso por mais de dois anos porque eu tenho... Eu estou desequilibrado. A vida é trabalho e
amor, amor e trabalho. Eu me dediquei muito ao trabalho e desequilibrei o amor. Se eu não
tivesse encontrado uma segunda mulher, que é maravilhosa, que entende os mistérios do
homem ausente e presente. Quer dizer, estou dentro de casa mas estou ausente, estou
escrevendo, tô no telefone, não sei o quê. A mulher é maravilhosa. Se não fosse isso eu estava
roubado. E meus filhos também. E hoje eu tenho quatro netos que fazem questão da minha
presença e tal. Eu sou louco por eles. E estou desequilibrado. Por outro lado eu estou
desequilibrado no meu trabalho também, porque eu dou muito para a instituição e pouco para
mim. Eu tenho que escrever. Eu não tenho tempo. Eu tenho convite para ir à Rússia, à China e
eu não posso ir até a esquina, porque esse troço todo depende de tempo. Eu quero, então, dar
mais um ano como diretor para poder equilibrar o trabalho e o amor, e o amor e o trabalho,
para poder ser um cara mais realizado como pessoa, como ser humano. E cada vez, estou
ficando mais velho, estou gostando mais da vida. Eu estou querendo ficar por aqui mais um
pouco, sabe?

52
C.C. – [risos] Isso é ótimo. Agora, Eurico, só para falar um pouquinho mais da Abed. Quer
dizer, você estava com todo esse movimento de estudos estratégicos já acontecendo na UFF,
esse périplo todo até resultar, mais à frente, no Inest, você assume a Abed, não é? As duas
coisas você, de alguma forma, conciliou durante esse período aí de 2008 a 2010. Olhando
retrospectivamente, como você viu a sua questão na Abed, quais foram os desafios ou
dificuldades maiores?

E.F. – A primeira dificuldade maior era firmar a instituição, torná-la conhecida nos órgãos de
Estado, nos que nos eram diretamente aceitos. Ou seja, o Ministério da Defesa, a Capes, o
CNPq prioritariamente. Ficar, se possível, conhecida também internacionalmente. Mas antes
de mais nada era preciso solidificar a sua importância institucional no Brasil. Eu acho que isso
nós fizemos. Não sei se você esteve em 2012, quando eu me despedi, lá em Brasília.

C.C. – Não, Brasília não.

E.F. – Eu tive a oportunidade de conhecer um cara que ficou meu amigo também, o embaixador
Samuel Pereira Guimarães. Que, aliás, eu estou trazendo ele para trabalhar comigo lá no Inest
como professor visitante. Esse cara foi incrível porque eu não o conhecia. Eu fui lá procurá-lo
e tal. Eu falei umas besteiras para ele e ele falou: “Cara, senta aí. Vamos conversar”. Saí com
um financiamento de 250 paus para fazer o encontro. Encontro espetacular, tudo pago. Só que
foi bom e foi ruim, porque eu coloquei um patamar que nós nunca tínhamos atingido e que eu
nunca vi uma associação pagar para você apresentar. Geralmente você consegue o seu
financiamento. E eu consegui passagem, consegui estadia, consegui carro, consegui
alimentação, tudo pago. Isso aí colocou a necessidade da Abed ir para o andar de cima. Então
eu deixei dificuldades para o Samuel e deixei dificuldades para o Domingos porque eles têm
mantido isso, o que é difícil. Agora está ficando mais. E como é a resposta das agências a isso?
Eu só pude fazer aquilo que eu fiz em 2010 porque o embaixador me deu apoio da Secretaria
de Assuntos Estratégicos. Em 2009 custou 25.000 reais, e eu só tive apoio da [Fundação]
Auracária lá no Paraná, Londrina. Em 2008 eu fiz por 50.000 aqui na UFF e foi um sucesso.

C.C. – Essa eu participei.

E.F. – Eu fiz três: em 2008, 2009 e 2010. Então eu acho que quando eu saí, a nossa Abed já era
outra. A nossa Abed era a Abed reconhecida pelos órgãos de estado. E mais ainda, procurando

53
a integração, a cooperação civil-militar fortemente. Entendendo que isso era vital para nós, e
sempre mantendo a ideia da representação controlada, ou seja, tem militares, mas os civis são
a maioria, sem veto. Se houver um militar, agora, que tenha a formação acadêmica como a
nossa, civil, ele pode ser também o presidente, mas naquela época não podia – inclusive, não
tinha. Agora tem. Então eu acho que o principal desafio que eu enfrentei na época, foi este:
desenvolver e solidificar a Abed como uma instituição ligada à comunidade por um lado e
ligada às agências de Estado por outro. Nós conseguimos isso. No entanto, eu acho que a Abed,
já hoje, ela é bem mais ampla, inclusive, aumentou a sua diretoria. Não sei se poderia
experimentar uma disputa interna. Não sei se ela poderia. Talvez ela não possa. E não se
esqueça que nós temos uma outra instituição que a gente não fala, mas que existe, que são os
Encontros Nacionais de Estudos Estratégicos, ENEE, que o Estado continua bancando. E eu
acho que nós tínhamos que ter o desafio de ver qual é a nossa relação com esses encontros,
porque é perigoso. Ou seja, é um encontro do Estado e da comunidade, como é esse negócio?
Eu acho que nós tínhamos que ter a sabedoria de saber como nos relacionar com esse fenômeno
e talvez ter uma política em relação a essa fenômeno, de termos os encontros do Estado e termos
os encontros da comunidade. Eu acho que a comunidade nossa é muito pequena e acho que não
é bom termos encontros doutrinários. Eu acho que é bom termos encontros científicos, como
nós chamamos, não é?

C.C. – O Encontro Nacional de Estudos Estratégicos, quem é que patrocina?

E.F. – Geralmente quem faz é a GSI.

C.C. – GSI, exatamente, Gabinete de Segurança Institucional.

E.F. – Ou seja, ligada à Presidência da República.

C.C. – O Ministério da Defesa agora tem o Instituto Pandiá Calógeras, ele também está se
movimentando na parte acadêmica. O Ramalho que está à frente, não é?

E.F. – É. Eu gosto muito do Celso Amorim. Eu acho que ele... Se tivesse vindo o Samuel ao
invés do doutor Celso, nós teríamos outra vida. Porque o Samuel sabe lidar com os milicos, ele
gosta e sabe. Ele sabe! “Faça isso! Mandei você fazer, pô”. É assim. Mas leal: “Está
discordando de mim? Fala. Qual é o problema?”. E tem que falar claro e grosso. Não pode
falar: “Ah, não sei o quê...”. Militar gosta de clareza. E também não está acostumado a ser

54
maltratado. Você sabe uma coisa que eu aprendi? Você é filho de militar, então você sabe do
que estou falando. Os militares são finos, eles são cavalheiros. As mulheres ficam encantadas,
porque eles são gentis, são cavalheiros, são educados. Eu estou aprendendo a ser educado com
eles, é mole? Você vai em um ambiente militar e você sai sempre com um presentinho, pequeno
que seja. Não é verdade?

C.C. – É.

E.F. – Dão sempre um presentinho, um agradozinho. Fazem questão de receber você bem. Às
vezes sem muitos recursos. No caso da Marinha, não. A Marinha é uma beleza.

C.C. – O Fundo Naval.

E.F. – O Fundo Naval. Eles recebem sempre melhor. Tem lá um uisquinho de doze anos, um
vinhozinho chileno. O Exército não, o Exército é horrível, mas mesmo assim eles fazem o
possível para te dar o melhor. E a Aeronáutica também. Em suma, voltando à Abed, eu acho
que o principal risco da Abed é ainda a possibilidade dela não ter a sabedoria para tomar
decisões de consenso e, portanto jogar na sua estabilidade institucional. As instituições, no
Brasil, eu acho que precisam de dez anos para poder experimentar golpes internos, ventanias,
temporais internos mais fortes, senão ela... cede. Eu tenho medo disso.

C.C. – E essa relação entre... Quer dizer, você está falando de instituições, uma tem o nome
de defesa e a outra de estudos estratégicos. Como esses rótulos, eles se...? Rótulos que se
referem a áreas e temas...

E.F. – Olha, eu me lembro bem que nós lá em Caxambu...

C.C. – Você já teve inclusive já uma Associação de Estudos Estratégicos, não é? Predominou
a ideia da Abed de defesa.

E.F. – É. Por quê? Porque alguns colegas nossos achavam, erradamente, que a expressão
“estudos estratégicos” era algo dos milicos. Eu registrei isso.

C.C. – Que era o que dos milicos?

E.F. – A expressão “estudos estratégicos” é dos milicos. Não é. Mas, quando eu vi que se eu
insistisse com a minha ideia da expressão “estudos estratégicos”, eu tinha ter tudo que os

55
Estudos Estratégicos... Eu era do Núcleo de Estudos Estratégicos... Começou a ser conhecido
em 1985, no Brasil, com o NEE lá da Unicamp, depois pela UFF. Eu estava no caminho dos
Estudos Estratégicos. Inclusive a minha tese de professor titular é sobre isso. Eu tenho, eu acho,
arrazoados relativamente substanciais para poder afirmar isso. Então eu acho que como eu não
queria bater, porque se eu batesse eu poderia não ver o fundamental, e o fundamental qual era?
O fundamental era criar uma associação. Está bem, fui lá e fiz. Depois eu tive que enfrentar
esse problema na criação do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos na UFF e
que, por conciliação, eu tive que colocar Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança
Internacional, porque lá os caras me cobraram. Tudo bem. Eu não vou cair no nominalismo, eu
não vou cair na discussão retórica, não vou. Só na discussão substantiva. Estamos fazendo?
Ótimo. Então vamos por aqui. Agora eu acho que o campo, ou melhor, usando a terminologia
da Capes e do CNPq, a área é de Estudos Estratégicos, onde você tem esses dois objetos inter-
relacionados, organicamente inter-relacionados, inter-fecundantes, que é a defesa nacional e a
segurança internacional e todos os outros subtemas se referem a esses dois objetos. Os 43 temas
que eu falei, depois posso te mandar para você ver, estão relacionados a esses dois objetos.
Então, para mim, é uma questão mais nominalista do que substancial. Eu acho que vai se
desenvolver. Como um exemplo, por exemplo, nos Estados Unidos você tem a universidade
da Defesa e os Centros de Estudos Estratégicos, os programas de pós-graduação em estudos
estratégicos. Na Inglaterra você tem os institutos de estudos estratégicos. Na França você tem
os institutos de estratégica e os estudos estratégicos. Se você quiser também eu posso mandar
minha tese, que eu preciso publicar, onde eu fiz o estudo de tudo isso: como surgiu, como se
desenvolveu, como foi nos Estados Unidos, como foi na França, como foi no Brasil. Tem tudo,
inclusive, mapeado. Uma pesquisa de fôlego. Eu costumo dizer que o Inest é inédito, único e
original, mas ele não vai ser e nem deve ser. Ele deve ser um centro de referência para a criação
de outros. Então, o general Villas Bôas, que é o comandante da Amazônia, você deve conhecer,
um homem inteligente, ficou meu amigo também. Está vendo? Mais um amigo. O general
Villas Bôas falou: “Eurico, você não sabe da maior, rapaz?” “O que foi general?”. “Eu estive
na Inglaterra”. “É mesmo?”. “É”. “Você sabe como é o Estado-Maior deles?”. “Não tenho a
mínima ideia”. “Nem eu, rapaz”. “Está bem, você é general, eu sou professor também não sei.

56
Mas como é?”. “Eu cheguei lá, eu pensei: o nosso prédio, o [Forte] Apache12, é um negócio de
louco”. Você já foi lá?

C.C. – Forte Apache, Brasil.

E.F. – É espetacular. É um negócio de fazer inveja nos americanos. Não é bem assim, eu estou
exagerando [risos], mas é um negócio espetacular, para mim, pelo o que vi e tal. E sabe como
é o deles? O deles é uma grande sala. Cheguei lá tem o general, o general se apresenta, mas faz
questão de dizer que é doutor em Ciência Política. Me apresentou outro general e o cara faz
questão de dizer que é doutor em Economia, o outro fala e é doutor em Estudos Estratégicos.
“Engraçado, todo mundo aqui é doutor”. Aí: “Desculpa perguntar, mas o Centro de Estudos
Estratégicos do Exército Imperial Britânico é isso aqui?”. “É”. Mas como?”. “Você quer ver
uma coisa?”. Aí mostrou o mapa. “Você sabe onde está as nossas questões do Oriente Médio?
Em Cambridge. Você sabe onde é a nossa indústria de Defesa? Em Leeds. A questão do nosso
problema de cultura estratégica é uma parte em Oxford e uma parte em Londres. E a parte x e
a parte y”. Ou seja, a cooperação civil-militar é orgânica, ela entranhada dentro da universidade.
E os militares são capazes de entender as demandas de produção de conhecimento da
Universidade para a execução e plano de aplicação de força.

C.C. – Nesse campo ainda há muito a fazer por aqui, não é?

E.F. – Poxa, o Inest é o primeirinho. Vai ter que ter em São Paulo. Vai ter que ter no Rio Grande
do Sul. Agora, e a incompreensão disso? Inclusive, a incompreensão que às vezes me machuca,
sabe Celso? Porque eu não quero nada para mim. Eurico é desse tamanhinho. Eurico não é
nada. Eurico é zero. Mas a ideia é boa, entende? Eurico passa, ninguém vai se lembrar dele.
Mas a ideia não, a ideia é necessária porque se é importante para o garante porque não pode
ser importante para nós. E existe uma incompreensão muito grande. Eu acho que os caras iam
me valorizar mais. Ora, certos caras que se diziam meus amigos, depois que eu fiz o Inest
deixaram de ser.

C.C. – Você está falando do meio acadêmico e não dos militares.

E.F. – Do meio acadêmico.

12
Apelido dado ao prédio do Comando do Exército, em Brasília.

57
C.C. – Agora, entre os militares você acha que... Eu lembro que fui também convidado várias
vezes a falar. Muito tempo atrás, as primeiras vezes, a sensação que eu tinha é que era uma
coisa mais protocolar “precisa se relacionar com o meio civil”. Então convida um professor,
dá uma palestra e tal. Você acha que isso já passou para uma outra fase de mais interesse
efetivo, ou ainda está muito protocolar? Como você vê esse relacionamento?

E.F. – Não, tem três movimentos que, nós civis, não entendemos direito que aconteceu nas
Forças Armadas. Nas três, mas principalmente na maior de todas que é o Exército. O primeiro
foi o negócio das Malvinas. O segundo foi o término da Guerra Fria. E o terceiro foi o avanço
do processo democrático entre nós. A Guerra das Malvinas, o que fez? Bom, puxa vida, a
Argentina fez todo o dever de casa, os americanos adoram os argentinos. Os argentinos vão
tomar essa posição. América para os americanos. Doutrina Monroe. Deram uma banana para
os argentinos e apoiaram os ingleses, porque o parceiro mais importante não está aqui, o
parceiro mais importante está na Europa. E apoiou decididamente. Os militares brasileiros
pensaram: “Caramba, se fizeram isso com eles, imagina com nós. Nós não fizemos tão bem a
lição como os argentinos fizeram. Fizemos, mas não fizemos tão bem. Nós estamos roubados”.
Veio depois a Guerra Fria. Acabou esse troço: quem é o comunista? Eu sei lá onde está o
comunista, pô. Não tem mais comunista. Acabou comunista. Tem uns trem em Cuba, mas esses
cubanos são malucos, não interessa não, não vão me fazer nada. Poxa, aí veio o corte com o
círculo militar. Poxa, quais são os novos tempos, como nós fazemos? O que é isso? Qual é o
nosso papel? Ou seja, ntão eme deu muita ideia de um Pirandello, sabe? Quer dizer, seis
personagens em busca de um autor.13 Três forças em busca de um intérprete. Eles me
perguntaram isso várias vezes, militares importantes – generais quatro estrelas. “Professor, o
que a gente faz?”. “Eu não sei, não está na minha cabeça não. Esse negócio de que está na
minha cabeça era do Brizola. Eu não sou brizolista. Eu não sei, nós podemos conversar juntos”.
Ou seja, a sua pergunta, eu acho que eles estão cada vez sim mais empenhados em conversar
com a gente. Agora, não quer dizer que não haja uma direita burra lá dentro. Existe e é forte,
principalmente entre os coronéis e generais de pijamas, que ainda tem força principalmente nos
clubes. Você vê aí pelo manifesto deles. Tem um rapaz entre nós que está estudando isso, o
Eduardo Heleno.

13
Referência à peça de Luigi Pirandello.

58
C.C. – Sim, eu fui da banca de mestrado dele.

E.F. – É um rapaz ótimo e tem dificuldades e tal. Mas precisamos mapear isso e ele está
mapeando. O Lula naquele episódio que colocou o José de Alencar como ministro, não é? Ele
entendeu tudo. O Lula é um gênio. Eu não gostava do Lula até o segundo mandato, depois do
segundo mandato que eu vi que o Lula e o PT são duas coisas completamente diferentes, eu
passei a gostar dele. Eu sou lulista, mas não sou petista. [risos] Eu gosto do Lula, mas não gosto
do PT. Então, o Lula falou: “Caramba, esses caras são tão importantes, tão importantes, que eu
vou colocar nessa crise nada mais, nada menos... Não é um político não. Não é um cara
qualquer não. Vou colocar o segundo homem da República. Não posso colocar eu mesmo,
então vou colocar o segundo homem”. E chamou o José de Alencar. Eu sei disso porque eu
tenho amigos que falaram. O José de Alencar: “Você está maluco. Eu não sei nem o que é um
revólver”. “Pois é, mas você sabe o que é ser vice-presidente. Você vai ser vice-presidente lá,
sendo ministro”. “E o que eu faço?”. “Nada, você empurra com a barriga e depois sai. Você é
mineiro, você sabe fazer isso também”. [risos]

[FIM DO DEPOIMENTO]

59

Você também pode gostar