Você está na página 1de 10

SALVE SE QUEM PUDER: trabalho, raça e poder às vésperas da abolição no Maranhão

Iuri Humberto da Silva Petrus1

A historiografia brasileira relativa ao processo de transição do trabalho escravo para o


trabalho livre divide-se, segundo Regina Faria (FARIA, 2001, p. 14), em três grupos
temáticos: uns abordam especificamente a vida econômica e social do Brasil, outros, a crise
do escravismo e abolição, e os últimos, a formação do mercado de trabalho livre. Também
existem alguns estudos que abordam a transformação do trabalho2 como um processo
puramente econômico de mudança do tipo de mão de obra explorada, outros, partindo da
experiência paulista, acabam generalizando o processo de transição ocorrido naquela
província para o restante do país. De certa forma, percebe-se que a maioria não aponta as
modificações e permanências, ocorridas em decorrência da transição, que começavam a afetar
os escravos e libertos3, os quais juntos com grande parte dos livres pobres comporiam a
população paulatinamente considerada negra.
Por outro lado, Sílvio Cunha (CUNHA, 2004, p. 214) afirma que “o fim da escravidão
racial brasileira significou mais do que a transformação do trabalho, implicou também na
transição das formas de regulação das relações raciais, visto que estas não teriam mais a
escravidão como instituição reguladora” e passariam a atuar mais ainda através da categoria
raça, aumentando o público-alvo a ser subordinado. Trata-se de uma perspectiva
diferencialista defendida pelo autor, segundo a qual, “a transição não é apenas econômica, ou
seja, somente do regime de trabalho escravo para o semi-escravo e livre, mas é também das
formas de preservação e reprodução do poder, de mentalidades, das maneiras de ser e agir
individual e coletivamente” (CUNHA, 2004, p. 38). Sendo assim, é essencial frisar a
centralidade racial, ou a questão racial, na transformação do trabalho e não apenas a
econômica.

1 Graduado em História licenciatura pela Universidade Estadual do Maranhão.


2 A expressão transformação do trabalho foi consolidada desde os debates no século XIX, porém, não
expressa exatamente, ou exagera as mudanças ocorridas no mundo do trabalho. Houve sim a passagem
significativa do trabalho escravo para o trabalho livre, junto com a formação de um mercado de trabalho
livre, contudo, o cotidiano do trabalho conservou certas práticas existentes no escravismo e os
contemporâneos não presenciaram uma enorme transformação no ambiente de trabalho. Opta-se por
continuar utilizando aquela expressão tanto por sua já consolidada posição, quanto por não encontrar outra
que melhor expresse a transição do trabalho escravo para o livre. Agradece-se à Prof.ª Drª Regina Faria por
esta observação.
3 No Brasil Império, a escravidão indígena era proibida, logo entende-se que os escritos analisados na presente
pesquisa fazem referência aos africanos e seus descendentes, que foram ou estavam escravizados, quando
utilizam os termos escravo e liberto. Opta-se por trabalhar basicamente com o olhar das elites do Maranhão,
no século XIX, sobre as pessoas identificadas por essas duas categorias, considerando que estavam
associados aos que eram classificados como integrantes da “raça” negra. Entretanto, é sempre relevante
lembrar que o termo “negro” não está sendo usado como sinônimo de escravo e/ou liberto.
As elites brasileiras do século XIX produziram textos representando os escravos
africanos e suas práticas cotidianas, assim como os índios, mestiços e livres pobres,
analisando-os basicamente em função do processo de transição do trabalho escravo para o
livre, com claro viés, por parte dos contemporâneos a esse processo, de manter e reafirmar o
trabalho compulsório. Entende-se que o olhar ou visão de mundo elitista 4 sobre os escravos e
libertos, que juntos com grande parte dos livres pobres comporiam a população considerada
negra no século XX, exerceu forte influência na História social do negro, na medida em que
estava cotidianamente presente na sociedade e influenciou a trajetória social do negro.
No intuito de colaborar para a História social do negro no Maranhão, percebe-se a
necessidade de estudar as representações sobre os escravos africanos e seus descendentes, que
estavam sendo alforriados cada vez mais, e os próprios libertos, inseridas no debate regional
sobre a transformação do trabalho. A leitura dos escritos maranhenses contemporâneos a esta
temática possibilita a percepção de que aqueles e outros atores sociais (índios, livre pobres e
imigrantes) foram analisados como elementos importantes na formação do mercado de
trabalho livre e necessitando de uma nova disciplina imposta para o trabalho. A disciplina do
trabalho escravo era marcada pelo “espetáculo punitivo”, basicamente através da “tecnologia
do chicote”, com o controle exercido pela apropriação do corpo (marcando-o com o castigo),
assim como a alma dos escravos5. Contudo, o liberalismo vinha tratando de minar os
fundamentos dessa disciplina.
Paralelamente e desde o século XVII, segundo Foucault (2007), cada vez mais
consolidava-se uma disciplina, ou “as 'disciplinas'”, atuando sobre a mecânica do corpo,
aproveitando suas habilidades e exercitando-as. No mundo do trabalho, esta disciplina, que se
tornaria típica das fábricas, passa a ser exercida sobre a mão de obra através de um controle
vigilante do tempo, do espaço, da atividade e do próprio corpo. Ela também atuaria como
“uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem
tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo
o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente” (FOUCAULT, 2007, p. 119).
Esta nova “mecânica” ou “microfísica do poder” sobre o trabalhador será o principal meio de
controle do trabalho livre.
Todavia, a formação do mercado de trabalho livre no Brasil não se deu pautada
unicamente por essa nova forma de controle. As elites sentiram a necessidade de preservar
4 As elites enquanto integrantes de uma classe social reunida por um “conjunto de aspirações, de sentimentos e
de ideias” em comum, conforme Lukàcs (apud CHARTIER, 2002, p. 47). Tendo em mente também que “As
classes e frações de classes estão envolvidas numa luta propriamente simbólica para imporem a definição do
mundo social mais conforme aos seus interesses” (BOURDIEU, 2010, p. 11).
5 Cf. Souza Filho (2005, p. 161-175).
certas estruturas de poder atuantes também sobre o corpo do cativo, mas de forma diversa da
“tecnologia do chicote”. Elas estariam ligadas às relações etnorraciais consolidadas pela
escravidão, necessitando assim de outra fundamentação. As relações passaram a ser
fundamentadas também pelas teorias raciais brasileiras, surgidas entre os séculos XIX e XX a
partir da forte influência de concepções científicas e pseudocientíficas 6 advindas da Europa,
naturalizando e hierarquizando as diferenças sociais e culturais. Desta forma, elas faziam
parte do racismo científico, o qual “era um processo de ressignificação, de transmutação do
racismo – um fenômeno secularmente conhecido – para o conhecimento científico” (CUNHA,
2004, p. 46).
Para um melhor entendimento das categorias raça e racismo se faz necessária pequena
retrospectiva. Primeiro, parte-se do entendimento de que o próprio termo negro é uma
construção social formulada pelo europeu e, durante a escravidão moderna, reduziu a enorme
diversidade étnica africana à identidade negra, metamorfoseando etnias em raça. Para José
D'Assunção Barros, essa (re)construção do negro contextualiza-se da seguinte forma:
Por ora, registremos que a desconstrução da diversidade de etnias negras e
das realidades culturais africanas, mergulhando-as dentro de uma grande
raça localizada em um espaço geográfico único e imaginariamente
homogêneo – e a simultânea visão desta parte da humanidade como
“inferior”, ao mesmo tempo em que se encarava o continente africano como
lugar exterior à “civilização” – tudo isto, juntamente com uma nova noção
de “escravo”, constituiu o fundo ideológico da montagem do sistema
escravista no Brasil (BARROS, 2008, p. 48).

O conceito raciológico “negro” foi articulado para viabilizar a escravidão africana.


Com seu fim, novamente foi utilizado para fundamentar relações sociais que se modificavam,
especialmente as do mundo do trabalho. O racismo científico impôs à raça um significado
biológico nunca antes encarnado, proporcionando novos elementos na análise da questão
racial. A discussão acumulada pelo racismo científico possibilitou que as elites brasileiras
encaminhassem a transformação do trabalho encarando a questão racial como um dos
aspectos centrais dessa transição. A racialização mais uma vez garantiu a subordinação de
determinados grupos sociais.
No Maranhão, também é perceptível o discurso racial no centro do debate sobre o
trabalho, contudo, é importante conhecer as especificidades regionais possíveis, já que aqui
não houve a entrada de estrangeiros como mão de obra e elemento “civilizador” tão desejado.
Visando apreender indícios que confirmem o viés raciológico dessa transição em escritos
deixados por letrados7 maranhenses, fez-se a análise de propostas de transformação do
6 Darwinismo social, antropometria, positivismo, evolucionismo, antropologia criminal e variedades.
7 São enquadrados nas elites maranhenses do século XIX, pois, a sociedade local era composta por “uma
trabalho publicadas em jornais da capital, participantes em um concurso proposto pela
Associação Comercial do Maranhão. Ela oferecia, menos de um mês antes da abolição,
prêmio para quem elaborasse o “melhor methodo ou plano” de “substituição do trabalho servil
pelo trabalho livre, com applicação à lavoura da provincia”, utilizando “os proprios elementos
da provincia”, já que não seria possível trazer imigrantes.
A proposição do concurso bem próximo à abolição, cujo trâmite legislativo já estava
em andamento, é sintomática, assim como a conclusão final do júri do concurso, de que a
lavoura8 não estava em boas condições, descapitalizada para investimentos. As elites
compreendiam que o Maranhão vinha se arrastando em uma crise e, com a liberdade dos
cativos, algumas medidas seriam necessárias. Esta é a tônica geral das propostas.
Dentre as diversas medidas apontadas, cabe destacar as referentes à mão de obra a ser
utilizada após a abolição. Idealizado o europeu, mas distante da realidade local, e o índio
quase totalmente excluído como alternativa, o braço nacional é praticamente representado
durante o concurso pelos “libertos” e “homens livres”. Apesar dos autores apresentarem o
liberto como o “homem livre”, parte da “população nacional”, fica claro a abordagem
diferenciada dos dois grupos pela maior presença dos “libertos” nas propostas. Entende-se que
a maior atenção dada ao liberto está ligada aos interesses do setor agroexportador, na medida
em que estava mais preocupado em manter presos à terra os sujeitos antes escravizados –
“adstricção ao solo”9.
S. A. A.10 atribui ao liberto, como “aspiração muito natural e legitima”, um “desejo”
de ter sua própria produção, terra e animais. Mas, isto não o impede de defender leis que
obriguem ao trabalho, assim como orientar os “ex-senhores” a “guiar os primeiros passos”
dos libertos, do contrário, abandonados “aos seus naturaes instinctos, a embriaguez da
liberdade os conduzirá á ociosidade, á indolencia e d'ahi são incalculaveis os males por vir”.
Quais seriam esses instintos? Fica a dúvida, mas já é um indício da naturalização da questão
racial.
Agrícola11 acreditava que os libertos, habituados à vida no campo, continuariam
trabalhando nas atividades rurais e os que partissem logo voltariam. Para esse letrado isso
aconteceria “principalmente” quando eles começassem a habituar-se à “moralidade da
família”, que não era vivenciada devido sua condição escrava. É certo que a escravidão desfez

imensa maioria de iletrados e excluídos” (FARIA, 2001, p. 26).


8 Termo utilizado pelos letrados do século XIX como referência à produção agrícola voltada para a exportação,
assim como o lavrador era proprietário de terras ligado à agroexportação.
9 Cf. J. D. A. M. (1888, p. 2).
10 Cf. S. A. A. (1888, p. 1).
11 Cf. Agrícola (1888, p. 1).
e até impediu de serem construídos laços familiares entre muitos africanos e seus
descendentes, mas diversos estudos comprovam a existência de laços familiares entre
escravos africanos. Além do mais, a concepção de família do autor, assim como das elites,
baseada principalmente no casamento católico, excluía as relações típicas de uma família
entre os escravos, jogando-as para o concubinato e a libertinagem. Os libertos carregarão o
rótulo de pessoas imorais, devassas e libertinas, e futuramente os negros, pois, “a condição de
escravo foi formalmente extinta com o fim da escravidão, contudo, não se extinguiu o fulcro
da escravidão: o ser negro” (CUNHA, 2004, p. 15, grifo no original).
Bethulia12 propunha “sociedades com os libertos” tendo o proprietário como “centro
director”, mas descarta a possibilidade de serem “fornecedor de canna”, por considerar que:
“Os libertos jamais se colligarão, as desconfianças medrarão, e elles se irão dividindo,
separando os seus serviços, fazendo conseguintemente menos, e acabarão por se desgostarem
– com prejuizo para a fabrica, que conta com os seus fornecimentos”. Além de propor um
guia para os libertos – as elites deveriam guiar a transformação do trabalho – a proposta
subtrai a capacidade associativa àqueles, seres incapazes de estabelecer autonomamente
sociedades, inclusive entre si.
Também traçando uma espécie de sociabilidade do liberto, Carlos Theodoro
Gonçalves13 desaconselha aos proprietários auferir “frutos por arrendamento”, em virtude de
não:
Esperar que os libertos entre si se associem [o que] é uma esperança
perigosa, infeliz. Elles não alimentão sentimentos de sociabilidade; são
desconfiados por excellencia: rixosos de condição: logo sem um centro que
os dirija, e que respeitem e confiem, nada d'elles se pode e deve esperar –
sinão crimes e ociosidade (GONÇALVES, 1888, p. 2).

O apontamento do liberto como ser sem capacidade associativa é um forte indício da


centralidade raciológica da transição para o trabalho livre. O “liberto”, e num futuro bem
próximo o “negro”, representaria um ser antissocial, perigoso e preguiçoso, a não ser que sua
participação na sociedade fosse orientada pelo proprietário ou, futuramente, pelas elites
brancas. Uma consequência bem mais sutil e simbólica da atribuição de uma conduta
antiassociativista é a negação da capacidade dos próprios libertos, depois os negros, de se
unirem. Muito provavelmente essa compreensão contribuiu para prejudicar a organização dos
negros durante o século XX.
O mesmo Carlos Theodoro Gonçalves não recomenda o assalariamento por entender
que o escravo foi educado “refractario ao estimulo” e o salário não seria incentivo suficiente
12 Cf. Bethulia (1888, p. 2).
13 Cf. Gonçalves (1888, p. 2).
para que se esforçasse no trabalho. Assim como outros participantes que acham que o liberto
não teria ambição, no sentido de competição, ele atribui ao liberto a característica de
despreparo para lidar com a principal forma de remuneração do trabalho livre na sociedade
capitalista. Constitui-se assim “o mito de inadequação do ex-escravo às relações capitalistas,
ou melhor, às novas relações de trabalho no pós-abolição” (CUNHA, 2004, p. 19). O
liberalismo considerou irracional o trabalho escravo e o liberto um despreparado para o
trabalho livre.
J. D. A. M14, o único que domina claramente noções do racismo científico, através do
positivismo, e já utiliza o termo raça, afirma:
É certo que muito temos que esperar da raça negra que é a raça affectiva, e
nos traz um poderoso contingente para a futura moralidade das nossas
instituições. Mas por outro lado o deffeito primordial da educação e os
vestigios indeleveis de um jugo degradante, trarão um elemento poderoso
para a desordem social. Isto porem, não perturba a marcha progressiva do
paiz. São escolhos que apparecem constantemente nas transições sociaes.
Uma montanha que desaba não turva senão por momentos as aguas do
oceano (J. D. A. M., 1888, p. 2).

A despeito do entendimento do negro como um perigo para a ordem social, devido às


consequências da educação e da escravidão, mas que a categoria raça tende a naturalizá-las, o
autor necessita afirmar que isto não retardará o progresso. A inevitabilidade do progresso
passa pelo que denomina de “raça affectiva”, cabendo à “raça intelligente” procurar meio de
“conserval-os” na fazenda, pois, aquela teria “um amor acrysolado á terra” e manifesta “o
apego e a veneração”. Esta caracterização pressupõe a aceitação, por parte dos negros, do
domínio dos brancos.
Para manter o liberto na fazenda deveria ser oferecido salário, e não parceria nem
arrendamento. Quanto à primeira, o autor entendia que igualaria os papéis sociais do
fazendeiro e do trabalhador, sendo que a teoria social positiva afirma dever existir uma
“ordem social”, uma “hierarquia social”. Quanto ao segundo, o liberto “estava acostumado a
ser dirigido” e não obteria sucesso por conta própria. Ambas formas seriam prejudiciais à
lavoura e à “ordem social”.
O autor também faz uma crítica à moralidade do “proletariado brazileiro”, que estava
“corrompido pela escravidão”, a qual tem como “fulcro” o ser negro. Consequentemente, a
“mancebia”, a “prostituição” e os “desregramentos”, que ajudaram a “enegrecer” os “livros
das parochias” com vários “nascimentos illegitimos”, passam a ser características ligadas ao
ser liberto, ao ser negro. A função moralizadora do branco e/ou do proprietário seria

14 Cf. J. D. A. M. (1888, p. 2).


incentivar a família entre os libertos, assim como aplicar “correctivo energico” aos desvios
morais, considerados típicos deste grupo social.
A análise das propostas oferecidas no concurso possibilita perceber uma série de
atributos sociais e morais impostos ao liberto, que geraram uma imagem de inferioridade
inata também ao negro. Esses atributos indicam a existência de uma centralidade racial no
debate sobre a transformação do trabalho. Devido à necessidade de reforçar a subordinação de
boa parte das classes trabalhadoras, já que a escravidão deixaria de existir como forma de
exercício do poder, o discurso dos letrados apresenta uma ênfase cada vez maior na
inferioridade da “raça” negra. A questão racial, que certamente existia há muitos séculos,
passa a ter maior destaque nessa transição para o trabalho livre.
No intuito de manter as relações de poder antes exercidas e legitimadas pela
escravidão, os letrados utilizaram-se de estratégias para preservá-las sobre uma nova
fundamentação. Desta forma, o poder antes exercido sobre o escravo, tenderá a ser exercido
sobre o negro, através de mecanismos menos físicos, os quais não foram descartados, e mais
simbólicos, contudo, aproveitando-se da herança da escravidão sobre o negro, transformando-
se em herança “negra” e funesta.
A centralidade raciológica da transformação do trabalho consiste justamente em
constatar, nesse caso através dos escritos dos letrados, que as relações sociais como um todo
tomaram um rumo no sentido de reafirmar e reconstruir o critério étnico-racial como um dos
fatores determinantes. Todavia, à semelhança do cotidiano do trabalho, que ainda apresentaria
práticas herdeiras da escravidão, não se pode afirmar que tenha havido propostas de
transformação radical. Desta forma, pode-se afirmar que as propostas do concurso
apresentaram:
[...] estratégias ideológicas elaboradas com o propósito de dissimular a
desagregação das classes dominantes já em curso, por conta da decadência
da agricultura mercantil e, por isso mesmo, sugerir os meios necessários para
a recomposição das relações de dominação de classe em outras bases
(PEREIRA, 2006, p. 177-178).

A especificidade do Maranhão, e do concurso, está no fato de que a impossibilidade de


trazer o imigrante europeu para cá, fez com que a “suposta influência deformadora da
escravidão” (AZEVEDO, 2004, p. 19) não fosse tão acentuada pelos letrados, já que visavam
manter os libertos como mão de obra. Daí o tom otimista da maioria das propostas,
principalmente relativo aos “libertos”, quanto ao engajamento no trabalho. Todavia, “o mito
de inadequação” continuava fazendo parte do discurso letrado, o que se percebe pela ciência
da dificuldade em implantar medidas de obrigatoriedade do trabalho e o combate à
“ociosidade”. Mas, certo é que a preocupação das elites em preservar certas relações de poder,
para isso transmutando-as, está ligada com o alerta de Philorgonagri 15 para não esperar que
“viesse bater á porta com um cortejo assombroso, negro e ameaçador: ouvindo-se vozes de
grita dos timidos e covardes a bradarem salve se quem puder”!16
Por fim, reafirma-se a importância de acrescentar a centralidade raciológica da
transição do trabalho livre para o escravo como contribuição para o conhecimento das
relações raciais no Maranhão, em especial as que envolvem a população negra. Antes de
finalizar, apresenta-se um trecho da entrevista concedida pelo Deputado Federal do Maranhão
Francisco Escórcio:
Qual o problema do Maranhão?

As desigualdades. Eu vejo que o Maranhão passou por alguns períodos:


primeiro foi no início, quando nós tivemos um Maranhão composto de
índios e de negros. Pouca quantidade de brancos. Isso nos levou a uma
situação que só o tempo se encarregou de fazer essa miscigenação. Depois
nós tivemos um período em que fizemos uma sociedade de muitos
brasileiros que vieram pra cá, principalmente os retirantes da seca. Os
retirantes da seca não traziam nada, a não ser a esperança de viver no nosso
estado. E o próprio tempo se encarregou de fazer com que eles se
misturassem à nossa população. Agora estamos vendo um Maranhão
diferente, cheio de oportunidade onde estão desembarcando pessoas com
tecnologia, investimentos e isso é muito bom para o Maranhão. Precisamos
ter audácia e a iniciativa de capacitar a nossa população para não perder as
oportunidades que estão chegando (CORREIO POPULAR, 3 ago. 2011.
Disponível em <http://www.jornalcorreiopopular.com/?p=12072>. Acesso
em: 10 ago. 2011).

É muitíssimo interessante perceber que um representante da atual elite política


maranhense apresenta um discurso parecido com o de alguns letrados de há mais de um
século atrás. A resposta acima tem uma grande diversidade de elementos possíveis de ser
destrinchados e analisados em outro trabalho. Elementos envolvendo preconceito racial,
social, marginalização da pobreza, desenvolvimentismo, esperança no que vem de fora e
muito mais, que poderiam despertar diversas temáticas além da aqui discutida. Contudo, cabe
ressaltar que mais de um século após a abolição ainda é possível observar no discurso das
elites locais como a questão racial assume um papel central na explicação dos nossos
“problemas”.

15 Cf. Philorgonagri (1888, p. 1).


16 Grifo no original.
REFERÊNCIAS

AGRÍCOLA. Reorganisação do trabalho agrícola na provincia. Diário do Maranhão. São


Luís, 29 maio 1888, p. 1.

AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das
elites século XIX. São Paulo: Annablume, 2004.

BARROS, José D'Assunção. A construção social da cor. Desigualdade escrava e diferença


negra no processo de formação e superação do escravismo colonial. In: Desigualdade e
Diversidade. [online]. nº 3, p. 39-55, 2008. Disponível em <http://publique.rdc.puc-
rio.br/desigualdadediversidade/media/Barros_desdiv_n3.pdf>. Acesso em: 17 set. 2011.

BETHULIA. Substituição do trabalho. Pacotilha. São Luís, 20 maio 1888, p. 2.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Algés: Difel, 2002.

CORREIO POPULAR. Imperatriz, 3 ago. 2011. Seção Manchete. Disponível em


<http://www.jornalcorreiopopular.com/?p=12072>. Acesso em: 10 ago. 2011.

CUNHA, Sílvio Humberto dos Passos. Um retrato fiel da Bahia: sociedade-racismo-


economia na transição para o trabalho livre no recôncavo açucareiro, 1871-1902. Tese
(Doutorado em Economia) – Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 2004. Disponível em <http://cutter.unicamp.br/document/?code=vtls000376591>.
Acesso em: 13 mar. 2011.

DIÁRIO DO MARANHÃO. São Luís, abr.-jun. 1888.

FARIA, Regina Helena Martins de. A transformação do trabalho nos trópicos: propostas e
realizações. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Pernambuco,
Recife, 2001.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2007.

GONÇALVES, Carlos Theodoro. Sem epígrafe. O Paiz. São Luís, 30 maio 1888, p. 2.

J. D. A. M. Transformação do trabalho. Diário do Maranhão. São Luís, 2 jun. 1888, p. 2

O PAIZ. São Luís, maio-jun. 1888.

PACOTILHA. São Luís, maio-jun. 1888.

PEREIRA, Josenildo de Jesus. As representações da escravidão na imprensa jornalística


do Maranhão na década de 1880. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2006. Disponível em
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-11072007-
103448/publico/TESE_JOSENILDO_JESUS_PEREIRA.pdf>. Acesso em: 11 jun. 2011.
PHILORGONAGRI. Transição do trabalho escravo a trabalho livre. Diário do Maranhão.
São Luís, 21 maio 1888, p. 1.

S. A. A. Á digna Associação Commercial. Diário do Maranhão. São Luís, 06 jun. 1888, p. 1.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial
no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia da Letras, 1993.

SOUZA FILHO, Benedito de. Escravidão e espetáculo punitivo no Maranhão do século XIX.
In: COELHO, Mauro Cezar; GOMES, Flávio dos Santos et al. Meandros da história:
trabalho e poder no Grão-Pará e Maranhão séculos XVIII e XIX. Belém: UNAMAZ, 2005.

Você também pode gostar