Você está na página 1de 23

WORKING PAPER

VERSÃO PRELIMINAR
29/08/2023

CLÁUSULA DE SANDBAGGING EM CONTRATOS DE COMPRA E VENDA DE


PARTICIPAÇÃO SOCIETÁRIA: TRÊS POSSÍVEIS INTERPRETAÇÕES À LUZ DA
BOA-FÉ OBJETIVA

Rodrigo Fialho Borges1-2

ÍNDICE

1. INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 2

2. EXEMPLOS DE REDAÇÃO ...................................................................................................... 3

2.1. Cláusula pro-sandbagging ........................................................................................... 3

2.2. Cláusula anti-sandbagging .......................................................................................... 4

3. DISCIPLINA JURÍDICA APLICÁVEL E EMBATES DECORRENTES ............................................... 6

3.1. Origem......................................................................................................................... 6

3.2. Contexto Contratual .................................................................................................... 8

3.3. Jurisprudência dos Estados Unidos ........................................................................... 11

4. APLICAÇÃO NO BRASIL E POSSÍVEIS EMBATES DECORRENTES ........................................... 12

4.1. Boa-fé objetiva vs. autonomia da vontade ................................................................ 13

4.2. Três possíveis interpretações ..................................................................................... 17

4.2.1. CCVPs com cláusula pro-sandbagging .............................................................. 17

4.2.2. CCVPs com cláusula anti-sandbagging ............................................................. 18

4.2.3. CCVPs sem cláusula regulando sandbagging .................................................... 19

5. CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 20

1
Professor da Graduação e do Mestrado Profissional da FGV Direito SP. Doutor em Direito Comercial e bacharel
pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pesquisador visitante na University of Pennsylvania Law
School (2018-2019). Coordenador do Grupo de Estudos em Fusões e Aquisições (GEM&A) da FGV Direito SP.
Sócio no PGLaw.
2
Agradeço a Pedro Paulo de Tarso Augusto Rohrer pelo auxílio no desenvolvimento da pesquisa. Eventuais erros
são de minha exclusiva responsabilidade.

Electronic copy available at: https://ssrn.com/abstract=4568629


WORKING PAPER
VERSÃO PRELIMINAR
29/08/2023

1. INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo3 é, primordialmente, analisar se, quando transplantada de


sistemas jurídicos de common law para o sistema jurídico brasileiro, a prática e as cláusulas de
sandbagging são ou não limitadas de forma especial por princípios e regras já consolidados em
nosso sistema jurídico, como o princípio da boa-fé objetiva. A hipótese a ser testada é a de que
tal limitação ocorre, o que resultaria em três principais respostas interpretativas do nosso
sistema jurídico, a depender de como a prática de sandbagging está ou não regrada nos
contratos de compra e venda de participação societária (“CCVPs”). Para cumprir com tais
finalidades, o texto será estruturado da maneira descrita a seguir.

Inicialmente, no tópico 2, a fim de se delimitar o objeto central da análise a ser


desenvolvida, serão apresentados exemplos de possíveis redações das cláusulas de
sandbagging, tanto aquelas chamadas especificamente de cláusulas pro-sandbagging quanto
as chamadas de cláusulas anti-sandbagging.

Em seguida, no tópico 3, será discutida a disciplina jurídica de tal prática, identificando-


se desde a origem da terminologia utilizada e o contexto de utilização até a construção da
jurisprudência aplicável nos Estados Unidos. Com isso, pretende-se demonstrar sinteticamente
o caminho percorrido previamente ao início da discussão sobre a adoção de cláusulas de
sandbagging em CCVPs assinados no Brasil, sob regência do sistema jurídico brasileiro de
civil law.

Adiante, no tópico 4, será analisada a eventual admissibilidade da prática de


sandbagging sob a perspectiva do sistema jurídico brasileiro. Serão então apresentadas três
possíveis respostas do sistema jurídico brasileiro a três situações distintas que podem surgir em
CCVPs, as quais seriam balizadas especialmente pelo princípio da boa-fé objetiva.

Ao final, será apresentada conclusão, evidenciando-se a conexão entre todo o caminho


percorrido ao longo da análise empreendida até as propostas interpretativas apresentadas.

3
Este trabalho constitui um aprofundamento de conceitos e debates apresentados resumidamente no seguinte
trabalho prévio, realizado e publicado em coautoria com Analy Leal e Manoela Naquis: BORGES, Rodrigo F.;
LEAL, Analy; NAQUIS, Manoela, Sandbagging: A autonomia da vontade permite a criação de uma “carta
na manga” contratual?, CM&A Insights, disponível em: <https://www.cmnausp.com/post/sandbagging-a-
autonomia-da-vontade-permite-a-cria%C3%A7%C3%A3o-de-uma-carta-na-manga-contratual>.

Electronic copy available at: https://ssrn.com/abstract=4568629


WORKING PAPER
VERSÃO PRELIMINAR
29/08/2023

2. EXEMPLOS DE REDAÇÃO

A prática de sandbagging pode ser regulada de duas formas principais nos CCVPs: (i)
por meio de uma cláusula pro-sandbagging; ou (ii) por meio de uma cláusula anti-
sandbagging. Cada um dos subtópicos a seguir será destinado a contextualizar de forma prática
essas duas possibilidades, trazendo exemplos reais de redação de tais cláusulas encontrados em
contratos-modelo oficialmente publicados, literatura e jurisprudência.

2.1. Cláusula pro-sandbagging

Por meio das cláusulas pro-sandbagging, objetiva-se que o vendedor possa ser
responsabilizado pelo não cumprimento de declarações e garantias prestadas por ele
independentemente de o comprador ter tido a chance de estar previamente ciente sobre alguma
inveracidade ou imprecisão em tais declarações e garantias.

Dito de outra forma, o principal objetivo desse tipo de disposição em CCVPs é garantir
que o comprador não perca a possibilidade de exercer seus remédios jurídicos, como a
possibilidade de exigir do vendedor uma indenização, nos casos em que o próprio comprador
já tinha ou podia ter tido conhecimento sobre a inveracidade ou imprecisão das declarações e
garantias prestadas pelo vendedor antes da assinatura do CCVP ou da data de fechamento da
operação – por exemplo, por meio da realização de adequada auditoria jurídica (due diligence)
dos documentos e informações disponibilizados pelo vendedor.

Conforme contrato-modelo da American Bar Association, esta seria uma possível


redação de uma cláusula pro-sandbagging:

“O direito a indenização, pagamento, reembolso, ou outro remédio baseado em


qualquer declaração, garantia, compromisso ou obrigação não será afetado por qualquer
investigação (incluindo qualquer investigação ou avaliação ambiental) conduzida ou
qualquer Conhecimento adquirido a qualquer momento, seja antes ou depois da
assinatura deste Contrato ou da Data do Fechamento, com relação à precisão ou
imprecisão de, ou à conformidade com, tal declaração, garantia, compromisso ou
obrigação.”4

4
No original: “The right to indemnification, payment, reimbursement, or other remedy based upon any such
representation, warranty, covenant, or obligation will not be affected by any investigation (including any

Electronic copy available at: https://ssrn.com/abstract=4568629


WORKING PAPER
VERSÃO PRELIMINAR
29/08/2023

Na literatura estadunidense, encontram-se também diversos exemplos de redação de


cláusulas pro-sandbagging, como o seguinte:

“Os direitos do Comprador a indenização ou qualquer outro remédio previsto neste


Contrato não deverão ser impactados ou limitados por qualquer conhecimento que o
Comprador possa ter adquirido, ou pudesse ter adquirido, seja antes ou depois da data
de fechamento, nem por qualquer investigação ou due diligence realizada pelo
Comprador. O Vendedor, neste ato, reconhece que, independentemente de qualquer
investigação realizada (ou não realizada) pelo, ou em nome do, Comprador, e
independentemente dos resultados de tal investigação, o Comprador celebrou esta
transação em expressa confiança nas declarações e garantias do Vendedor prestadas
neste Contrato.”5

Por fim, conforme apontado em trabalhos anteriores6, CCVPs celebrados no Brasil dos
quais decorreram disputas judiciais também são fontes de exemplos públicos de cláusulas pro-
sandbagging, como esta:

“Os direitos da Compradora de indenização relativos às declarações, garantias,


compromissos e obrigações dos Vendedores nos termos deste Contrato não deverão ser
afetados por qualquer investigação ou auditoria levada a cabo pela Compradora, pelos
Vendedores ou por seus respectivos assessores, assim como qualquer conhecimento
adquirido (ou passível de aquisição) a qualquer tempo pela Compradora ou assessores,
seja antes ou após a assinatura deste Contrato, com respeito à precisão ou imprecisão
ou à conformidade com quaisquer declarações, garantias, compromissos ou
obrigações.”7

2.2. Cláusula anti-sandbagging

environmental investigation or assessment) conducted or any Knowledge acquired at any time, whether before or
after the execution and delivery of this Agreement or the Closing Date, with respect to the accuracy or inaccuracy
of, or compliance with, such representation, warranty, covenant, or obligation.” Cf. AMERICAN BAR
ASSOCIATION, Model stock purchase agreement with commentary, 2. ed. Chicago: American Bar
Association, 2010, p. 299. Cláusula citada também em: OLIVEIRA, Caio Raphael Marotti de, A Cláusula Pro-
Sandbagging (Conhecimento Prévio) em Contratos de Alienação de Participação Acionária, Dissertação de
Mestrado em Direito Comercial, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020, na qual o autor igualmente realizou
esforço de exemplificação de cláusulas pro-sandbagging e anti-sandbagging.
5
No original: “The rights of the Purchaser to indemnification or any other remedy under this Agreement shall not
be impacted or limited by any knowledge that the Purchaser may have acquired, or could have acquired, whether
before or after the closing date, nor by any investigation or diligence by the Purchaser. The Seller hereby
acknowledges that, regardless of any investigation made (or not made) by or on behalf of the Purchaser, and
regardless of the results of any such investigation, the Purchaser has entered into this transaction in express
reliance upon the representations and warranties of the Seller made in this Agreement.” Cf. AVERY, Daniel;
WEINTRAUB, Daniel H., Trends in M&A provisions: “Sandbagging” and "Anti-sandbagging” provisions,
Bloomberg Law Reports, v. 5, n. 6, 2011, p. 1.
6
Cf. OLIVEIRA, A Cláusula Pro-Sandbagging (Conhecimento Prévio) em Contratos de Alienação de
Participação Acionária.
7
TJSP, Processo n. 2005632-17.2016.8.26.0000, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, fl. 191.

Electronic copy available at: https://ssrn.com/abstract=4568629


WORKING PAPER
VERSÃO PRELIMINAR
29/08/2023

Diferentemente, as cláusulas anti-sandbagging preceituam, basicamente, que o


vendedor não será responsabilizado por eventuais declarações e garantias inverídicas ou
imprecisas nos casos em que o comprador tinha ciência prévia sobre a respectiva inveracidade
ou imprecisão e, mesmo assim, decidiu seguir com o negócio sem alertar o vendedor sobre a
desconformidade existente.

Conforme contrato-modelo da American Bar Association, esta seria uma possível


redação de uma cláusula anti-sandbagging:

“O Comprador não tem conhecimento de quaisquer fatos ou circunstâncias que


serviriam de base para uma ação do Comprador contra os Vendedores fundamentada
na violação de qualquer uma das declarações e garantias dos Vendedores contidas neste
Contrato (ou violação de quaisquer compromissos ou acordos dos Vendedores a serem
realizados por qualquer um deles no, ou antes do, Fechamento). Considera-se que o
Comprador renunciou totalmente a qualquer violação de qualquer uma das
representações e garantias dos Vendedores (e de quaisquer compromissos e acordos)
da qual o Comprador tenha conhecimento no Fechamento.”8

Na literatura estadunidense, encontram-se também diversos exemplos de redação de


cláusulas anti-sandbagging, como a seguinte:

“O Comprador reconhece que teve a oportunidade de realizar a due diligence e


investigação com relação à Empresa e, em nenhum caso, o Vendedor terá qualquer
responsabilidade perante o Comprador com relação a uma violação de declaração,
garantia ou compromisso sob este Contrato na medida em que o Comprador sabia de
tal violação na Data de Fechamento.”9

Por fim, conforme apontado em trabalhos anteriores10, CCVPs celebrados no Brasil dos
quais decorreram disputas judiciais também são fontes de exemplos públicos de cláusulas anti-
sandbagging, como esta:

8
No original: “Buyer has no knowledge of any facts or circumstances that would serve as the basis for a claim by
Buyer against Sellers based upon a breach of any of the representations and warranties of Sellers contained in this
Agreement (or breach of any Sellers’ covenants or agreements to be performed by any of them at or prior to
Closing). Buyer shall be deemed to have waived in full any breach of any of Sellers’ representations and warranties
(and any such covenants and agreements) of which Buyer has knowledge at the Closing.” Cf. AMERICAN BAR
ASSOCIATION, Model stock purchase agreement with commentary, p. 301. Cláusula citada também em:
OLIVEIRA, A Cláusula Pro-Sandbagging (Conhecimento Prévio) em Contratos de Alienação de
Participação Acionária, na qual o autor igualmente realizou esforço de exemplificação de cláusulas pro-
sandbagging e anti-sandbagging.
9
No original: “The Purchaser acknowledges that it has had the opportunity to conduct due diligence and
investigation with respect to the Company, and in no event shall the Seller have any liability to the Purchaser with
respect to a breach of representation, warranty or covenant under this Agreement to the extent that the Purchaser
knew of such breach as of the Closing Date.” Cf. AVERY; WEINTRAUB, Trends in M&A provisions:
“Sandbagging” and "Anti-sandbagging” provisions, p. 1.
10
Cf. OLIVEIRA, A Cláusula Pro-Sandbagging (Conhecimento Prévio) em Contratos de Alienação de
Participação Acionária.

Electronic copy available at: https://ssrn.com/abstract=4568629


WORKING PAPER
VERSÃO PRELIMINAR
29/08/2023

“A compradora analisou de forma exaustiva todos os documentos e informações


disponibilizados pela Sociedade e suas controladas durante a Due Diligence, não se
caracterizando o descumprimento de nenhum dos itens acima quando já conhecidos
através dos documentos então disponibilizados. Ressalte-se, aqui, que as eventuais
consequências advindas dos fatos apresentados em Due Diligence (‘Passivos’) estão
referenciadas no item [...] deste Contrato e são de responsabilidade dos Vendedores.”11

3. DISCIPLINA JURÍDICA APLICÁVEL E EMBATES DECORRENTES

Uma vez realizada a exemplificação dos dois principais tipos de cláusula que, em geral,
regulam a prática de sandbagging nos CCVPs, a seguir será discutida a construção da disciplina
jurídica relacionada a tal prática, identificando-se desde a origem da terminologia utilizada e o
contexto de utilização até a formação da jurisprudência aplicável nos Estados Unidos.

3.1. Origem

As controvérsias acerca da prática de sandbagging começam na própria origem da


terminologia. Sustenta-se que a expressão é derivada da utilização, por gangues do século XIX,
de meias cheias de areia como armas12. Tais artefatos, por parecerem inofensivos à primeira
vista, permitiam que ataques-surpresa fossem realizados, machucando as vítimas de forma
efetiva e, em alguns casos, facilitando roubos subsequentes ao ataque13.

Com o tempo, o verbo “to sandbag” teria absorvido o significado geral de inicialmente
ocultar ou minimizar a própria posição, de forma a obter uma vantagem subsequente sobre
outra pessoa com tal atitude14. A incorporação de sua utilização em jogos de pôquer e golfe
teria contribuído para a fixação desse significado geral.

O termo teria se tornado mais popular ao ser utilizado no justamente contexto de


partidas de pôquer, referindo-se ao jogador que aparentava possuir cartas ruins, quando, na

11
TJSP, Processo n. 2150696-58.2016.8.26.0000, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, fl. 206.
12
Cf. WEST, Glenn D.; SHAH, Kim M., Debunking the Myth of the Sandbagging Buyer: When Sellers Ask
Buyers to Agree to Anti-Sandbagging Clauses, Who Is Sandbagging Whom?, The M&A Lawyer, v. 11, n. 1,
p. 1–9, 2007, p. 1.
13
Cf. Sandbag, in: Merriam-Webster, [s.l.]: Merriam-Webster, [s.d.]; WEST; SHAH, Debunking the Myth of
the Sandbagging Buyer: When Sellers Ask Buyers to Agree to Anti-Sandbagging Clauses, Who Is Sandbagging
Whom?, p. 1.
14
Cf. Sandbag; WEST; SHAH, Debunking the Myth of the Sandbagging Buyer: When Sellers Ask Buyers to
Agree to Anti-Sandbagging Clauses, Who Is Sandbagging Whom?, p. 1.

Electronic copy available at: https://ssrn.com/abstract=4568629


WORKING PAPER
VERSÃO PRELIMINAR
29/08/2023

verdade, eram boas. Por meio dessa estratégia, o jogador visava a induzir seus oponentes a
realizarem apostas maiores do que fariam caso detivessem conhecimento sobre o real cenário
da partida.15

Do pôquer ao golfe, a expressão, hoje, é reconhecidamente utilizada para se referir ao


jogador de golfe que finge ser pior do que realmente é, escondendo suas habilidades
inicialmente, a fim de obter vantagem posterior em torneios ou apostas.16

No entanto, há quem sustente que o caminho da expressão até o contexto da negociação


de CCVPs teria advindo diretamente da popularidade de sua utilização no pôquer para o M&A,
sem contar com a passagem pelo golfe. Anos depois de utilizar a expressão em seus jogos de
pôquer enquanto estudante, o advogado Richard Climan, atualmente sócio no Hogan Lovells,
afirma que teria passado a utilizá-la em treinamentos internos de escritórios de advocacia para
se referir ao comprador que, sabendo da existência de uma violação a cláusula de declaração e
garantia por parte do vendedor, omite tal informação, esperando apenas momento posterior ao
fechamento da operação para pleitear indenização.17

Independentemente da versão que se adote, fato é que, atualmente, a expressão é


utilizada na negociação de CCVPs para se referir justamente à prática mencionada por Richard
Climan.

Como visto acima, no contexto de uma operação de compra e venda de participação


societária, entende-se que a prática de sandbagging caracteriza-se pela conduta de um
comprador que, embora tome conhecimento de que uma garantia contratual concedida
expressamente pelo vendedor está sendo violada, segue com o fechamento da operação sem
comunicar o vendedor sobre tal violação – sendo que poderia tentar uma redução do preço ou
até mesmo desistir da operação –, a fim de posteriormente iniciar demanda indenizatória com
base na violação18.

15
Cf. WHITEHEAD, Charles K., Sandbagging: default rules and acquisition agreements, Delaware Journal of
Corporate Law, v. 36, p. 1081–1115, 2011; KELLEY, Brent, How did “Sandbagger” become a Golf Term?,
Liveabout, 2018; Sandbag, in: Online Etymology Dictionary, [s.l.]: Online Etymology Dictionary, [s.d.];
Sandbag.
16
Cf. KELLEY, How did “Sandbagger” become a Golf Term?; WEST; SHAH, Debunking the Myth of the
Sandbagging Buyer: When Sellers Ask Buyers to Agree to Anti-Sandbagging Clauses, Who Is Sandbagging
Whom?
17
Cf. WHITEHEAD, Sandbagging, n. 4.
18
Cf. Ibid., p. 1081; PORTUGAL GOUVÊA, Carlos; PARGENDLER, Mariana, As Diferenças entre Declarações
e Garantias e os Efeitos do Conhecimento, in: Fusões e Aquisições: pareceres, São Paulo: Almedina, 2022,
p. 299.

Electronic copy available at: https://ssrn.com/abstract=4568629


WORKING PAPER
VERSÃO PRELIMINAR
29/08/2023

Por meio de tal definição, percebe-se a conexão direta e óbvia da prática de


sandbagging com a cláusula de indenização dos CCVPs, bem como com as cláusulas de
declarações e garantias, que tomam boa parte da maioria das rodadas de negociação de CCVPs.
É tal contexto que será abordado no subtópico 3.2 abaixo.

3.2. Contexto Contratual

É sabido que as cláusulas de declarações e garantias, recorrentemente encontradas nos


CCVPs celebrados no Brasil, são originadas das “representations and warranties”
estadunidenses19. Tanto lá quanto aqui, há debate acadêmico menor do que desejado sobre a
natureza jurídica de tais disposições e sobre eventual efeito prático da diferença entre
declarações (representations) e garantias (warranties)20, sendo que muitos as consideram como
sinônimos21.22

Usualmente, o comprador se propõe a realizar um processo de investigação para


compreender melhor o negócio a ser adquirido, demandando diversas informações que
considera relevantes. Contudo, é evidente que o vendedor apresenta maiores facilidades não
apenas para ter acesso às informações, como também para conhecer os pontos falhos de seu
próprio negócio.

19
“É fato conhecido que as cláusulas de declarações e garantias foram incorporadas à prática doméstica com a
expansão das operações societárias no [p]aís a partir do processo de liberalização econômica, iniciado após a
transição para o regime democrático. A estrutura de contrato de compra e venda de participações societárias hoje
adotada internacionalmente, em que essas cláusulas são centrais, teve origem em países anglo-saxões, sobretudo
nos Estados Unidos da América, onde tal contrato passou a ser conhecido como stock purchase agreement ou
share purchase agreement. Com a integração econômica global e o avanço das macroempresas transnacionais,
esses modelos contratuais, conhecidos no mercado pela sua sigla, ‘SPA’, passaram a ser utilizados para aquisições
em múltiplas jurisdições, muitas vezes de forma simultânea.” Cf. PORTUGAL GOUVÊA; PARGENDLER, As
Diferenças entre Declarações e Garantias e os Efeitos do Conhecimento, p. 285. No mesmo sentido, v.
TRINDADE, Marcelo, Sandbagging e as Falsas Declarações em Alienações Empresariais, in: Direito Societário,
Mercado de Capitais, Arbitragem e Outros Temas: homenagem a Nelson Eizirik, São Paulo: Quartier Latin,
2020, v. III, p. 91.
20
Cf. PORTUGAL GOUVÊA; PARGENDLER, As Diferenças entre Declarações e Garantias e os Efeitos do
Conhecimento, p. 284–287.
21
Cf. WEST, Glenn D.; LEWIS JR., W. Benton, Contracting to Avoid Extra-Contractual Liability – can your
contractual deal ever really be the “entire” deal?, The Business Lawyer, v. 64, p. 998–1038, 2009, p. 1008.
22
Para um aprofundado estudo sobre as cláusulas de declarações e garantias, v. GREZZANA, Giacomo, A
Cláusula de Declarações e Garantias em Alienação de Participação Societária, São Paulo: Quartier Latin,
2019; PONTES, Evandro F. de, Representations and Warranties no Direito Brasileiro, São Paulo: Almedina,
2014.

Electronic copy available at: https://ssrn.com/abstract=4568629


WORKING PAPER
VERSÃO PRELIMINAR
29/08/2023

Por isso, é pacífico que as cláusulas de declarações e garantias exercem importantes


funções de redução de assimetria informacional23 e de alocação de riscos entre as partes, sendo
importante recurso para o alinhamento de expectativas entre comprador e vendedor em CCVPs.
No entanto, quando se discutem a admissibilidade e os efeitos das cláusulas de sandbagging,
uma cuidadosa definição que permita a diferenciação entre os conceitos é necessária.24

Nesse sentido, nos Estados Unidos, reconhece-se que cláusulas de declarações


(representations) cumprem a finalidade de “definir as premissas fáticas que servem de
fundamento à vontade das partes na formação do contrato”25, tornando expressos os
pressupostos fáticos passados ou presentes com base nos quais a participação societária é
negociada.

Por outro lado, garantias (warranties) são recorrentemente definidas de acordo com o
que foi sustentado pelo Juiz Learned Hand no caso Metropolitan Coal Co. v. Howard:

“[u]ma garantia é uma certeza sobre a existência de um fato, dada por uma parte em um
contrato, na qual a outra parte possa confiar. Destina-se precisamente a retirar da parte
destinatária o ônus de determinar o fato por si própria; isso equivale a uma promessa
de indenizá-la por qualquer perda caso o fato garantido se prove falso, pois, por óbvio,
aquele que fez a promessa não pode mais controlar o que já está no passado.”26

Ou seja, no caso das cláusulas de garantia, o aspecto de definição de premissas fáticas


fundamentadoras da vontade das partes dá lugar a uma verdadeira e expressa obrigação de
indenizar caso o fato garantido venha a se provar falso ou incorreto.

23
Como demonstrado por Akerlof, o processo de seleção adversa decorrente da assimetria informacional pode
levar, em última análise, ao desaparecimento de determinados mercados. O exemplo mais paradigmático usado
pelo autor é o do mercado de carros usados, no qual existem carros de qualidade boa e ruim (“lemons”). Nesse
mercado, como em muitos outros, os vendedores têm mais informação sobre a qualidade dos produtos vendidos
do que os potenciais compradores, de modo que os vendedores de lemons tentam fazê-los passar por carros bons.
Sabendo da possibilidade de serem enganados, os compradores tendem a precificar todos os carros num patamar
médio entre o que estariam dispostos a pagar pelos carros bons e o que estariam dispostos a pagar pelos carros
ruins. Diante de tal precificação média, os vendedores de carros bons decidem sair do mercado, pois não estão
dispostos a venderem seus carros por tal preço, o que faz com que nele restem apenas os lemons, caracterizando-
se uma seleção adversa. Cf. AKERLOF, George A., The Market for “Lemons”: Quality Uncertainty and the
Market Mechanism, The Quarterly Journal of Economics, v. 84, n. 3, p. 488, 1970.
24
Para maiores aprofundamentos sobre as diferenças entre declarações e garantias tanto nos sistemas de tradição
anglo-saxã quanto nos de tradição romano-germânica, v. PORTUGAL GOUVÊA; PARGENDLER, As
Diferenças entre Declarações e Garantias e os Efeitos do Conhecimento.
25
Cf. Ibid., p. 290.
26
No original: “[a] warranty is an assurance by one party to a contract of the existence of a fact upon which the
other party may rely. It is intended precisely to relieve the promisee of any duty to ascertain the fact for himself;
it amounts to a promise to indemnify the promisee for any loss if the fact warranted proves untrue, for obviously
the promisor cannot control what is already in the past.” Cf. Metropolitan Coal Co. v. Howard, 155 F.2d 780 (2d
Cir. 1946).

Electronic copy available at: https://ssrn.com/abstract=4568629


WORKING PAPER
VERSÃO PRELIMINAR
29/08/2023

Adotando-se tais definições para declarações e garantias, algumas diferenças entre elas
tornam-se muito evidentes. É o caso, por exemplo, da sua relação com a cláusulas de
indenização também presentes nos CCVPs. Em geral, a ideia é que uma violação a uma
disposição presente na cláusula de declarações e garantias de um CCVP gere à contraparte o
direito à reparação.

Ainda que existam consequências legais para o descumprimento de qualquer prestação


contratual, as partes, em geral, definem nos CCVPs quais serão os remédios aplicáveis a tais
casos, cuja aplicação naturalmente extrapola as cláusulas de declarações e garantias, atingindo
também as demais obrigações contratuais. No entanto, quando partimos da diferenciação
cuidadosa entre as declarações e as garantias, os efeitos dessa distinção sobre eventual demanda
indenizatória se tornam patentes.

Nesse sentido, em qualquer discussão acerca da indenização por violação de uma


declaração, é necessário demonstrar que (i) o declarante mentiu, pois sabia da falsidade quando
declarou (ou, pelo menos, deveria saber), e que (ii) o destinatário confiou na informação falsa.
Diversamente, no caso de uma garantia, em virtude de sua natureza objetiva, não é necessário
perquirir sobre o elemento subjetivo, o real intento ou o estado psíquico do declarante.27

Em virtude disso, o que se verifica é que a prática de sandbagging no contexto de


CCVPs está ligada essencialmente às garantias (warranties)28. Isso, porque, no caso das
declarações, um dos requisitos a serem demonstrados em caso de demanda indenizatória é o de
confiança, por parte do destinatário, na veracidade da informação. Ou seja, se é necessário
comprovar que o destinatário confiou na informação falsa, não há que se falar em sandbagging,
pois é da natureza de tal prática que o destinatário tenha conhecimento sobre a violação da
garantia – de modo que não poderia nela confiar – e deliberadamente decida não a revelar
previamente ao garantidor, a fim de demandar indenização posteriormente.

Configura-se aqui, portanto, uma primeira limitação – de natureza conceitual – à prática


de sandbagging: ela, diferentemente do que se poderia pensar, não está originalmente atrelada
às cláusulas de declarações e garantias genericamente consideradas, mas apenas às cláusulas

27
Aqui, percebe-se que os interesses tutelados são também diversos. No caso da declaração, tutela-se o chamado
“interesse negativo”: a quantificação da indenização deve objetivar o restabelecimento da parte lesada à posição
que estaria caso a declaração falsa não tivesse existido. Por outro lado, quando há garantia, tutela-se o “interesse
positivo”: a quantificação da indenização deve objetivar colocar a parte lesada na situação em que estaria se o fato
garantido se revelasse realmente verdadeiro. Cf. PORTUGAL GOUVÊA; PARGENDLER, As Diferenças entre
Declarações e Garantias e os Efeitos do Conhecimento, p. 292–293.
28
Cf. Ibid., p. 302.

10

Electronic copy available at: https://ssrn.com/abstract=4568629


WORKING PAPER
VERSÃO PRELIMINAR
29/08/2023

de garantia. Mas essa não é a única limitação. A admissibilidade das cláusulas de sandbagging
é bastante debatida29 tanto nos sistemas de common law quanto nos de civil law, conforme se
verificará abaixo.

3.3. Jurisprudência dos Estados Unidos

Como mencionado anteriormente, as bases das operações de compra e venda de


participações societárias brasileiras originaram-se a partir de práticas internacionais,
especialmente aquelas adotadas nos Estados Unidos30. É indispensável, portanto, verificar
como as cortes estadunidenses avaliam as cláusulas de sandbagging.

Lá, é recorrente na literatura a divisão dos Estados entre aqueles com tendência
jurisprudencial favorável à prática de sandbagging e aqueles que apresentam posicionamento
contrário à prática de sandbagging no contexto dos CCVPs.31 No entanto, mesmo nas
jurisdições tradicionalmente referidas como mais favoráveis à prática de sandbagging32, a
resistência existe ou, pelo menos, já se mostrou presente, como é o caso de Nova Iorque e
Delaware.33

Em Nova Iorque, a fonte da informação obtida pelo comprador é tida como relevante
para a decisão dos casos. No caso Galli v. Metz34, reconheceu-se que, ao prosseguir com o
negócio tendo plena ciência e aceitação de fatos divulgados pelo vendedor que constituíam
violação às garantias prestadas, o comprador teria renunciado ao direito de buscar reparação,
exceto se tivesse expressamente preservado esse direito. No caso Rogath v. Siebenmann35,
entendeu-se que se a fonte da informação que deu conhecimento ao comprador sobre a violação
for um terceiro, e não o vendedor, ou então se a informação for de conhecimento comum, então
o comprador teria direito à reparação.36

29
Cf. WHITEHEAD, Sandbagging, p. 1081.
30
V. nota 19 acima.
31
Nesse sentido, v. WHITEHEAD, Sandbagging.
32
JASTRZEBSKI, Jacek, “Sandbagging” and the Distinction between Warranty Clauses and Contractual
Indemnities, UC Davis Business Law Journal, v. 19, p. 207–251, 2019, p. 215; WHITEHEAD, Sandbagging,
p. 1087.
33
Cf. WHITEHEAD, Sandbagging, n. 22.
34
Cf. Galli v. Metz, 973 F.2d 145 (2d Cir. 1992).
35
Cf. Rogath v. Siebenmann, 129 F.3d 261 (2d Cir. 1997).
36
Ainda nesse sentido, v. Gusmao v. GMT Group, Inc., 06 Civ. 5113 (GEL) (S.D.N.Y. Aug. 1, 2008).

11

Electronic copy available at: https://ssrn.com/abstract=4568629


WORKING PAPER
VERSÃO PRELIMINAR
29/08/2023

Já em Delaware, uma decisão de 2018 também veio a abrir espaço ao questionamento


do entendimento pro-sandbagging que se acreditava ser a tendência do estado. No caso Eagle
Force Holdings, LLC v. Campbell37, embora a questão não tenha sido enfrentada diretamente
por se tratar de um tema lateral ao caso, tanto o voto condutor da decisão por maioria quanto o
voto vencido fizeram menção à controvérsia sobre a admissibilidade da prática de sandbagging
quando o comprador tem conhecimento da violação antes da assinatura (signing) do CCVP.
Tal simples nota, mesmo que irrelevante para o julgamento em questão, foi suficiente para
colocar em dúvida a manutenção da tendência pro-sandbagging nas cortes de Delaware38. No
entanto, em decisão ainda mais recente, de 2022, no caso Arwood v. AW Site Services LLC,
reafirmou-se a tendência interpretativa no sentido pro-sandbagging para contratos que não
contenham regra dispondo o contrário (cláusula anti-sandbagging)39.

Assim, ainda que o vendedor não tenha um direito expresso de ser informado pelo
comprador e este não possua um respectivo dever de fornecer informações, nota-se que a
admissibilidade da prática de sandbagging é controvertida até mesmo nos Estados com mais
tendência pro-sandbagging dos Estados Unidos, onde, com base num regime de tradição anglo-
saxã, originaram-se as principais práticas que pautaram e até hoje influenciam as operações de
compra e venda de participação societária em todo o mundo.

O que resta saber é se nos sistemas jurídicos de tradição romano-germânica, como o


brasileiro, a resistência à prática de sandbagging é maior ou menor e por quais motivos. No
Brasil, haveria mais ou menos etapas e requisitos a cumprir para se admitir a eventual licitude
da prática de sandbagging? É esse questionamento que será enfrentado, especialmente sob a
ótica do princípio da boa-fé objetiva, ao longo do tópico 4 abaixo.

4. APLICAÇÃO NO BRASIL E POSSÍVEIS EMBATES DECORRENTES

Os sistemas jurídicos de civil law, em geral, apresentam mais fatores de resistência à


licitude e exequibilidade da cláusula sandbagging do que os de common law. Isso se dá,
principalmente, em virtude de duas características naturais dos sistemas de tradição romano-
germânica: (i) a maior relevância dada ao princípio da boa-fé objetiva, limitando a amplitude

37
Cf. Eagle Force Holdings, LLC v. Campbell, 187 A.3d 1209 (Del. 2018).
38
Cf. DURAN, Sarah G.; JAMAL, Sacha, Possible Shift in Delaware Law: buyer’s silence on sandbagging is not
golden, Business Law Today, 2018; WOLF, Daniel E., Sandbagging in Delaware.
39
Cf. Arwood v. AW Site Services LLC, C.A. No. 2019-0904-JRS (Del. Ch. Mar. 31, 2022).

12

Electronic copy available at: https://ssrn.com/abstract=4568629


WORKING PAPER
VERSÃO PRELIMINAR
29/08/2023

da autonomia da vontade; e (ii) a presença da culpa como fundamento da responsabilidade


contratual.40

Especificamente quanto ao ordenamento jurídico brasileiro, a prática de sandbagging


(fundamentada ou não em cláusula presente no CCVP) levanta extensas controvérsias
interpretativas, sobretudo quando analisada pelas lentes do direito civil.

Nesse sentido, surgem discussões interessantes e absolutamente relevantes sobre,


dentre outros tópicos, a validade e eficácia das cláusulas pro-sandbagging ou anti-
sandbagging; a aplicabilidade das disciplinas do vício redibitório, da evicção e do abuso de
direito; a aplicabilidade das disciplinas do erro, dolo e da simulação; a relevância dos deveres
anexos decorrentes do princípio da boa-fé objetiva, como o dever de informar, para o
regramento da prática; e a limitação da autonomia da vontade das partes em relações
contratuais.

De todas essas discussões, o simples embate entre os princípios da boa-fé objetiva e da


autonomia da vontade parece suficiente para revelar três respostas possíveis para três situações
diferentes que podem surgir quando se está a discutir a prática de sandbagging em CCVPs. É
a esse embate que o os tópicos a seguir se dedicarão.

4.1. Boa-fé objetiva vs. autonomia da vontade

É muito instigante o questionamento sobre a possibilidade de a prática de sandbagging


ser utilizada como uma “carta na manga” contratual ocultada do vendedor. Aqui, o tradicional
embate entre o princípio da autonomia da vontade das partes e o princípio da boa-fé objetiva41
é muito elucidativo.

De um lado, o ambiente em que acontecem as operações de compra e venda de


participação societária é bastante específico, caracterizado, em geral, pela presença de partes

40
Cf. PORTUGAL GOUVÊA; PARGENDLER, As Diferenças entre Declarações e Garantias e os Efeitos do
Conhecimento, p. 301–302; KRAIEM, Rúben, Leaving Money on the Table: contract practice in a low-trust
environment, Columbia Journal of Transactional Law, v. 42, n. 3, p. 715–751, 2003, p. 748.
41
“Também aqui autonomia privada e boa-fé se encontram em relação de dialética tensão, porque essas relações
são marcadas normativamente pelos vetores da igualdade e da liberdade e estão polarizadas pela noção de
empresa, que, por definição, implica a finalidade de obtenção de lucro e de assunção de riscos, bem como a de
mercado, não mais um lugar de troca de uma produção determinada, mas o mecanismo regulador de toda a vida
econômica.” Cf. MARTINS-COSTA, Judith, A Boa-fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação,
2a. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 301.

13

Electronic copy available at: https://ssrn.com/abstract=4568629


WORKING PAPER
VERSÃO PRELIMINAR
29/08/2023

experientes e muito habituadas à prática mercantil de alto risco, as quais contam, ainda, com
assessoria jurídica e financeira bastante sofisticada e qualificada, muito bem remunerada para
estar acostumada com transações de alta complexidade. Tal contexto afasta, à primeira vista,
algumas tutelas específicas pautadas em hipossuficiência, desconhecimento ou ingenuidade,
resultando, portanto, em maior espaço à prevalência da autonomia da vontade das partes.

De outro lado, sabe-se que o princípio da boa-fé objetiva representa um padrão


comportamental esperado das partes contratantes, atuando, em determinados casos, como um
limitador do princípio da autonomia da vontade. Com base nele, espera-se que as partes ajam
com lealdade e probidade. Dentre as suas funções, destaca-se, para a análise aqui empreendida,
aquela integrativa, dentro da qual se revelam os deveres informativos, que, dentre outras
possibilidades, podem ser entendidos como deveres anexos à obrigação principal42, os quais
podem acompanhar o contrato antes da, durante a e após a sua vigência43, conforme o caso.

Assim, em se tratando de contexto no qual a assimetria informacional entre as partes é


particularmente presente44, é possível entender o dever informativo como um dos principais
deveres anexos às obrigações principais entabuladas nos CCVPs, o que faz com que ele, em
específico, e o princípio da boa-fé objetiva, de forma geral, revelem-se muito importantes à
análise da prática de sandbagging. Trata-se de um dever que consubstancia uma justa
expectativa das partes quanto ao mútuo e recíproco fornecimento de informações sobre todos
os aspectos relevantes ao vínculo contratual. Nesse sentido, Martins-Costa aponta:

“o tema dos deveres informativos é exemplarmente ilustrativo do caráter


eminentemente relacional da boa-fé́ . O conteúdo e a extensão da informação devida são

42
“Trata-se de grupo extremamente polimorfo, pois a informação pode ser caracterizada, conforme as
circunstâncias, como a própria obrigação principal (e.g, um contrato cujo objeto reside na prestação de
informações sobre aplicações financeiras); um dever anexo ao dever principal (por exemplo, informar, via ‘manual
de instruções’, sobre o correto uso da máquina adquirida); um dever lateral de proteção (v.g., informar sobre riscos
de queda no chão do supermercado que está a ser lavado); um dever legal (por exemplo, a informação devida
pelos administradores à assembleia de acionistas) e mesmo um ônus ou encargo material, como, por exemplo, o
chamado ‘dever de se informar’ atribuído aos profissionais sobre o estado da arte de sua profissão, ou, ainda, de
um comprador de determinado bem para que se informe sobre as suas utilidades e/ou potencialidades, pois mesmo
no domínio das relações de consumo, em que a informação é dever legal do fornecedor, não se excluiu totalmente
o princípio da autorresponsabilidade, sendo esse o correlato necessário à autonomia: quem abre conta em banco
deve, no mínimo, se informar, a cada cheque a emitir, sobre o estado de seu saldo bancário.” Cf. Ibid., p. 578–
579.
43
Cf. AZEVEDO, Antônio Junqueira de, Insuficiências, Deficiências e Desatualização do Projeto de Código Civil
na Questão da Boa-fé Objetiva nos Contratos, Revista Trimestral de Direito Civil, v. 1, n. 1, p. 3–12, 2000, p. 4;
AZEVEDO, Álvaro Villaça, Contratos: disposições gerais, princípios e extinção, in: AZEVEDO, Álvaro Villaça;
TÔRRES, Heleno Taveira; CARBONE, Paolo (Orgs.), Princípios no Novo Código Civil Brasileiro e Outros
Temas: homenagem a Tullio Ascarelli, 2a. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 53; MARTINS-COSTA, A
Boa-fé no Direito Privado, p. 590.
44
V. subtópico 3.2 acima.

14

Electronic copy available at: https://ssrn.com/abstract=4568629


WORKING PAPER
VERSÃO PRELIMINAR
29/08/2023

determináveis apenas em vista de um compósito de elementos contextualmente


enquadrados. Por essa razão, no exame do caso concreto, devem ser averiguados e
entrecruzados (i) elementos fáticos subjetivos (ligados à pessoa dos envolvidos, tais
como a sua possibilidade de acesso à informação; bem como à presunção, ou não, de
assimetria informacional entre as partes); (ii) elementos normativos (tais como os usos
do tráfico jurídico, a presença, ou não, de um dever legal e/ou contratual de informar)
e elementos fáticos objetivos (v.g., a aceitabilidade, conforme a relação, de assumir-se
o risco de ‘jogadas equivocadas’, como é próprio das relações interempresariais, o
cuidado prévio revelado pela realização de due diligence, ou a sua negligência, etc.).
Em qualquer caso, o quantum informativo é questão de grau: não há dever jurídico de
dação de informação ilimitada.”45

Sob esse aspecto, embora se reconheça claramente que o dever de informar decorrente
da boa-fé objetiva não deva ser ilimitado, ele, em si, parece limitar a autonomia da vontade das
partes que celebram um contrato escondendo informações relevantes ao negócio entabulado e
à possibilidade de cumprimento do contrato sem desconto de preço. A expectativa de concessão
de tal tipo de informação não parece exceder o quantum razoavelmente esperado de contraentes
em boa-fé. Sobre o assunto, Menezes Cordeiro esclarece:

“[o]s deveres de informação adstringem as partes à prestação de todos os


esclarecimentos necessários à conclusão honesta do contrato. Tanto podem ser violados
por acção, portanto com indicações inexactas, como por omissão, ou seja, pelo silêncio
face a elementos que a contraparte tinha interesse objectivo em conhecer.”46

Dado que o princípio da boa-fé objetiva deve ser respeitado em todas as etapas do
negócio jurídico, da sua formação à sua conclusão47, também é esperado que o dever de
informar incida igualmente, com os devidos contornos, em todas as fases do negócio jurídico,
inclusive, no caso de um CCVP, no momento de sua negociação e no período entre a sua
assinatura e o fechamento da operação.

Contudo, como visto, o dever de informar não deve ser absoluto (ou ilimitado), o que
implica que sua extensão deve ser considerada no caso concreto, mas a omissão intencional de
informações relevantes durante a formação ou celebração do CCVP, caracterizando a prática
de sandbagging, tende a apresentar resistências no ordenamento brasileiro, conforme se verá
no subtópico 4.2 abaixo.

45
Cf. MARTINS-COSTA, A Boa-fé no Direito Privado, p. 587.
46
Cf. MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e, Da Boa Fé no Direito Civil, Coimbra: Almedina,
2020, p. 583.
47
V. nota 43 acima.

15

Electronic copy available at: https://ssrn.com/abstract=4568629


WORKING PAPER
VERSÃO PRELIMINAR
29/08/2023

De todo modo, não se pode esquecer que a incidência do princípio da boa-fé objetiva
em transações comerciais tem contornos específicos48, decorrentes principalmente do ambiente
e contexto em que são realizadas e da qualificação das partes. A esse respeito, Martins-Costa
esclarece o seguinte:

“incidência do princípio da boa-fé é, neste campo, peculiarizada por alguns traços que
vale a pena destacar, na medida em que infletirão nas tonalidades que o revestirão.
Sinteticamente, são eles: (i) a noção de mercado; (ii) o dinamismo coerente à noção de
atividade empresarial (art. 966) que está no núcleo da fattispecie empresário; (iii) o
forte impacto que a praxis tem nesse campo, coligando imediatamente boa-fé, usos do
setor e as práticas das partes; (iv) a informalidade e a atipicidade; e (v) a dinâmica
circulação/apropriação de modelos provindos da praxe internacional ou da experiência
comparatista.”49

Nesse sentido, Forgioni explica que “para o direito comercial, agir de acordo com a
boa-fé significa adotar o comportamento jurídica e normalmente esperado dos ‘comerciantes
cordatos’, dos agentes econômicos ativos e probos em determinado mercado” 50. Adiciona,
ainda, que “[a] boa-fé no direito comercial não acompanha padrões que a apontariam como
reflexo de altruísmo exacerbado ou de algo semelhante”51.

É dessa tensão entre a autonomia da vontade e a boa-fé objetiva no direito comercial


que parecem decorrer, pelo menos, três possíveis interpretações para a prática de sandbagging,
as quais são ligadas, por sua vez, a três contextos diversos entre si e bastante específicos. É a
elas que, finalmente, o subtópico 4.2. abaixo se dedicará.

48
“O que há de peculiar ao Direito Empresarial é a maior imantação pela prática, que condiciona o sentido da
boa-fé, apresentando-a em conformidade com o standard da probidade específica – ‘pelo mesmo modo e sentido
por que os negociantes se costumam explicar, posto que entendidas de outra sorte possam significar coisa diversa’,
como estava no art. 30 do Código Comercial de 1850. Assim, devendo ser concretizada em imediata ligação com
os usos do tráfico e com o ambiente do mercado, nesse campo adquire o princípio da boa-fé tons e cores modulados
por uma paleta de significações advindas do viés confiança em seus matizes: a confiança como confiabilidade ou
credibilidade (valorizando-se a posição do agente, isto é, o investimento de confiança daquele que recebe
determinada ação ou declaração bem como, por exemplo, a posição de autoridade do emissor da declaração); e a
confiança como previsibilidade necessária para o cálculo do investidor, sócio, ou empresário para poder mensurar
o risco, apresentando-se especialmente, então, como elemento da segurança jurídica.” Cf. MARTINS-COSTA,
A Boa-fé no Direito Privado, p. 309.
49
Cf. Ibid., p. 301–302.
50
Cf. FORGIONI, Paula A., Contratos Empresariais: teoria geral e aplicação, [s.l.]: Revista dos Tribunais,
2015, p. 123.
51
Cf. Ibid., p. 124. A autora ainda ressalta que “[n]o direito comercial, o respeito ao princípio da boa-fé não pode
levar, em hipótese alguma, a uma excessiva proteção de uma das partes, sob pena de desestabilização do sistema.
O ‘erro de cálculo’ do agente é um instrumento que premia a eficiência do outro. No processo de interpretação
dos contratos mercantis, a boa-fé não pode ser confundida com equidade ou com ‘consumerismo’, erro em que
incidem vários autores não habituados à dinâmica de mercado.” Cf. Ibid., p. 126.

16

Electronic copy available at: https://ssrn.com/abstract=4568629


WORKING PAPER
VERSÃO PRELIMINAR
29/08/2023

4.2. Três possíveis interpretações

Os três principais cenários nos quais o embate entre a autonomia da vontade e a boa-fé
objetiva pode resultar em três interpretações distintas para a prática de sandbagging são os
seguintes: (i) CCVPs nos quais há cláusula pro-sandbagging; (ii) CCVPs nos quais há cláusula
anti-sandbagging; e (iii) CCVPs nos quais não há regulação sobre a prática de sandbagging.
A seguir, serão apresentadas as propostas interpretativas a cada um desses cenários.

4.2.1. CCVPs com cláusula pro-sandbagging

Nos CCVPs em que as partes decidiram voluntariamente negociar e incluir uma


cláusula pro-sandbagging, a autonomia da vontade parece prevalecer sobre eventual
possibilidade de invalidação da cláusula com base no princípio da boa-fé objetiva, desde que
presentes alguns requisitos que afastariam o entendimento da cláusula como uma “carta na
manga”.

Pargendler e Portugal Gouvêa são enfáticos ao dizer que “a utilização da cláusula de


sandbagging como ‘carta na manga’ atenta contra a boa-fé objetiva.”52 Tal interpretação, no
entanto, foi apresentada em um contexto específico no qual se discutia a aplicabilidade de
cláusula pro-sandbagging a uma situação de possível violação de mera declaração de uma das
partes, prestada mediante a qualificadora “no melhor conhecimento”.

Diferentemente, quando se parte do princípio de que a cláusula pro-sandbagging está


atrelada essencialmente às garantias (warranties), e não às declarações (representations),
conforme discutido no subtópico 3.2 acima, sua fixação em CCVPs e posterior aplicação não
parecem violar a boa-fé objetiva, de forma geral, ou os deveres informativos, de forma
específica, mas apenas preencher o espaço de negociação livre aberto às partes pela autonomia
da vontade.

Ou seja, quando se trata de evento em que as partes absolutamente diligentes,


qualificadas e bem assessoradas (i) entabularam obrigação de garantia em CCVP, (ii) atrelaram
à prestação de tal garantia uma cláusula pro-sandbagging, e, posteriormente, (iii) encontram-
se em situação de violação da garantia prestada, a aplicação da irrelevância da ciência prévia

52
Cf. PORTUGAL GOUVÊA; PARGENDLER, As Diferenças entre Declarações e Garantias e os Efeitos do
Conhecimento, p. 316.

17

Electronic copy available at: https://ssrn.com/abstract=4568629


WORKING PAPER
VERSÃO PRELIMINAR
29/08/2023

do comprador sobre a referida violação (sandbagging) não poderá ser entendida como “carta
na manga”, salvo especificidades do caso concreto.

Nesses casos, é preciso reconhecer o contexto de alta sofisticação contratual em que


ambas as partes, habituadas à prática mercantil e assessoradas por profissionais altamente
qualificados em direito e finanças, decidiram voluntariamente negociar obrigação de garantia
e atrelar a ela a irrelevância da ciência prévia pelo comprador, precificando os riscos e as
consequências de tal decisão.

Entender o contrário seria, eventualmente, ignorar os contornos específicos do princípio


da boa-fé objetiva no direito comercial, exprimindo indesejados “altruísmo exacerbado”53 ou
“excessiva proteção de uma das partes”54, conforme desenvolvido no subtópico 4.1. acima.

4.2.2. CCVPs com cláusula anti-sandbagging

Da mesma forma como a autonomia da vontade abre às partes a possibilidade de


incluírem em CCVPs cláusulas pro-sandbagging sem violarem a boa-fé objetiva aplicável às
transações comerciais, a inclusão de cláusulas anti-sandbagging também parece ter respaldo
em tal espaço aberto à livre negociação entre as partes.55

Se a interpretação acima proposta é que as partes não violam o princípio de boa-fé


objetiva (particularizado por traços próprios do direito comercial56) ao negociar cláusula pro-
sandbagging em CCVP, da qual decorre a possibilidade de, diante de obrigação de garantia, a
parte compradora poder se valer de conhecimento prévio sobre violação da referida garantia
para exercer seus remédios contratuais, parece muito menos gravoso ou polêmico admitir a
proibição expressa de tal possibilidade, consubstanciada na cláusula anti-sandbagging.

Em verdade, no ordenamento brasileiro, a inclusão da cláusula anti-sandbagging serve


para trazer ao CCVP, agora de forma expressa e com maior segurança jurídica, interpretação
bastante semelhante àquela que a ele já seria atribuída pela aplicação do princípio da boa-fé

53
FORGIONI, Contratos Empresariais: teoria geral e aplicação, p. 124.
54
Ibid., p. 126.
55
Trindade, ao analisar a questão sob o ponto de vista de outros tópicos de direito privado para além do princípio
da boa-fé objetiva, encaminha entendimento que vai em sentido semelhante: “[a]mbas as cláusulas, pro e anti-
sandbagging, são, a nosso ver, válidas, de maneira geral, à luz do direito brasileiro, lidando apenas com direitos
disponíveis.” Cf. TRINDADE, Sandbagging e as Falsas Declarações em Alienações Empresariais, p. 97.
56
V. nota 49 acima.

18

Electronic copy available at: https://ssrn.com/abstract=4568629


WORKING PAPER
VERSÃO PRELIMINAR
29/08/2023

objetiva quando silente sobre a prática de sandbagging57, conforme será abordado em maiores
detalhes no subtópico 4.2.3 a seguir.

4.2.3. CCVPs sem cláusula regulando sandbagging

Enfim, nos CCVPs em que não há cláusula regulando a prática de sandbagging, ou seja,
em que não há cláusula pro-sandbagging ou anti-sandbagging, a boa-fé objetiva parece, de
fato, atuar impedindo a prática, salvo especificidades do caso concreto. Em consonância com
o que sustentam Portugal Gouvêa e Pargendler, nesse caso, a eventual admissão da prática de
sandbagging em contexto de CCVP regido pelo direito brasileiro atentaria contra a boa-fé
objetiva58.

Embora sob outros fundamentos, Trindade também chega a uma conclusão prática
semelhante: “na omissão de disciplina pelas partes, o devedor do preço, credor da coisa,
aceitando a execução do contrato, mesmo ciente da falsidade da declaração do alienante
devedor, não poderá voltar atrás, seja para pedir a anulação, seja para pleitear
indenização”59.

Ou seja, nesse tipo de situação, a concessão, pela parte compradora, da informação de


que tem conhecimento sobre fato que resultaria em violação de determinada declaração ou
garantia prestada (ou prestes a ser prestada, nos casos em que o CCVP ainda não foi celebrado)
pela parte vendedora não excederia o quantum60 do dever informativo razoavelmente esperado
de contraentes em boa-fé. Caso contrário, realmente seria reconhecido o direito a uma “carta
na manga” ao comprador.

Aqui, portanto, em ausência de disposição contratual sobre a temática, o princípio da


boa-fé objetiva, particularizado pelos traços dos negócios regidos pelo direito comercial61, tem
importante e decisiva incidência por meio de sua função integrativa, dentro da qual se

57
“É igualmente o que se depreende, a contrario sensu, da seguinte conclusão de Trindade: “as cláusulas pro-
sandbagging constituem na única forma abrangente pela qual o adquirente, ciente da falsa declaração do alienante,
preservará, no direito brasileiro, a faculdade de dar imediato cumprimento ao contrato, sem qualquer ressalva,
conservando a possibilidade de demandar [...] posteriormente indenização pelos danos decorrentes da falsa
declaração do alienante, esteja ou não pré-fixada em cláusula penal.” Cf. Ibid., p. 104.
58
Cf. PORTUGAL GOUVÊA; PARGENDLER, As Diferenças entre Declarações e Garantias e os Efeitos do
Conhecimento, p. 316.
59
Cf. TRINDADE, Sandbagging e as Falsas Declarações em Alienações Empresariais, p. 103.
60
V. notas 45 e 46 acima.
61
V. nota 49 acima.

19

Electronic copy available at: https://ssrn.com/abstract=4568629


WORKING PAPER
VERSÃO PRELIMINAR
29/08/2023

encontram os deveres informativos como deveres anexos62 às obrigações principais


entabuladas no CCVP. Há, em decorrência de tal incidência, uma limitação à autonomia da
vontade das partes, que, caso contrário, teriam tido a possibilidade de negociar e executar
declaração ou garantia sabidamente inverídica ou imprecisa.63

5. CONCLUSÃO

O objetivo do artigo foi analisar se, quando transplantada de sistemas jurídicos de


common law para o sistema jurídico brasileiro, a prática e as cláusulas de sandbagging são ou
não limitadas de forma especial por princípios e regras já consolidados em nosso sistema
jurídico, como o princípio da boa-fé objetiva. Dentro de tal objetivo, perseguiu-se o teste da
hipótese de que tal limitação ocorre, resultando em três principais respostas interpretativas do
nosso sistema jurídico.

Com tal intuito, desenvolveu-se metodologia analítico-descritiva a partir da qual tanto


a contextualização prática (exemplificação) desenvolvida no tópico 2 quanto a análise das
origens da prática de sandbagging nos Estados Unidos e da jurisprudência lá decorrente
revelaram elementos posteriormente utilizados para a construção das possibilidades
interpretativas desenvolvidas no tópico 4.

No tópico 4, a partir do embate entre a autonomia da vontade e a boa-fé objetiva


particularizada no direito comercial, foram desenvolvidas as três sugestões interpretativas
apresentadas, que, embora aqui tenham decorrido exclusivamente da análise de tal complexo
embate, podem decorrer também da aplicação de outros regramentos de direito privado64.

Foram sugeridos, enfim, os seguintes caminhos interpretativos aplicáveis, salvo


especificidades de casos concretos, a partir da análise da tensão entre a boa-fé objetiva e a
autonomia da vontade: (i) nos CCVPs em que as partes decidiram voluntariamente negociar e
incluir uma cláusula pro-sandbagging (atrelada a real garantia, e não a mera declaração), a
autonomia da vontade parece prevalecer sobre eventual possibilidade de invalidação da

62
V. nota 42 acima.
63
Como visto, a interpretação aqui sugerida é possível pelo simples embate entre o princípio da boa-fé objetiva e
a autonomia da vontade, mas, para além da análise aqui empreendida, outros regramentos de direito privado
também indicariam para a mesma conclusão (os quais intencionalmente foram desconsiderados no presente
estudo), como em TRINDADE, Sandbagging e as Falsas Declarações em Alienações Empresariais.
64
V. nota 63 acima.

20

Electronic copy available at: https://ssrn.com/abstract=4568629


WORKING PAPER
VERSÃO PRELIMINAR
29/08/2023

cláusula com base no princípio da boa-fé objetiva; (ii) nos CCVPs em que as partes decidiram
voluntariamente negociar e incluir uma cláusula anti-sandbagging, a autonomia da vontade
parece prevalecer igualmente admitir tal caminho; e (iii) nos CCVPs em que não há cláusula
regulando a prática de sandbagging, a boa-fé objetiva parece, de fato, atuar impedindo a
prática, limitando a extensão da autonomia da vontade das partes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AKERLOF, George A. The Market for “Lemons”: Quality Uncertainty and the Market
Mechanism. The Quarterly Journal of Economics, v. 84, n. 3, p. 488, 1970.

AMERICAN BAR ASSOCIATION. Model stock purchase agreement with commentary.


2. ed. Chicago: American Bar Association, 2010.

AVERY, Daniel; WEINTRAUB, Daniel H. Trends in M&A provisions: “Sandbagging” and


"Anti-sandbagging” provisions. Bloomberg Law Reports, v. 5, n. 6, 2011.

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Contratos: disposições gerais, princípios e extinção. In:


AZEVEDO, Álvaro Villaça; TÔRRES, Heleno Taveira; CARBONE, Paolo (Orgs.).
Princípios no Novo Código Civil Brasileiro e Outros Temas: homenagem a Tullio
Ascarelli. 2a. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2010.

AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Insuficiências, Deficiências e Desatualização do Projeto de


Código Civil na Questão da Boa-fé Objetiva nos Contratos. Revista Trimestral de Direito
Civil, v. 1, n. 1, p. 3–12, 2000.

BORGES, Rodrigo F.; LEAL, Analy; NAQUIS, Manoela. Sandbagging: A autonomia da


vontade permite a criação de uma “carta na manga” contratual? CM&A Insights.
Disponível em: <https://www.cmnausp.com/post/sandbagging-a-autonomia-da-vontade-
permite-a-cria%C3%A7%C3%A3o-de-uma-carta-na-manga-contratual>.

DURAN, Sarah G.; JAMAL, Sacha. Possible Shift in Delaware Law: buyer’s silence on
sandbagging is not golden. Business Law Today, 2018. Disponível em:
<https://businesslawtoday.org/2018/09/possible-shift-delaware-law-buyers-silence-
sandbagging-not-golden/.>. Acesso em: 10 jan. 2021.

21

Electronic copy available at: https://ssrn.com/abstract=4568629


WORKING PAPER
VERSÃO PRELIMINAR
29/08/2023

FORGIONI, Paula A. Contratos Empresariais: teoria geral e aplicação. [s.l.]: Revista dos
Tribunais, 2015.

GREZZANA, Giacomo. A Cláusula de Declarações e Garantias em Alienação de


Participação Societária. São Paulo: Quartier Latin, 2019.

JASTRZEBSKI, Jacek. “Sandbagging” and the Distinction between Warranty Clauses and
Contractual Indemnities. UC Davis Business Law Journal, v. 19, p. 207–251, 2019.

KELLEY, Brent. How did “Sandbagger” become a Golf Term? Liveabout, 2018. Disponível
em: <https://www.liveabout.com/origin-of-the-term-sandbagger-1564484>. Acesso em:
7 jan. 2022.

KRAIEM, Rúben. Leaving Money on the Table: contract practice in a low-trust environment.
Columbia Journal of Transactional Law, v. 42, n. 3, p. 715–751, 2003.

MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação.


2a. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da Boa Fé no Direito Civil. Coimbra:


Almedina, 2020. (Teses de Doutoramento).

OLIVEIRA, Caio Raphael Marotti de. A Cláusula Pro-Sandbagging (Conhecimento Prévio)


em Contratos de Alienação de Participação Acionária. Dissertação de Mestrado em Direito
Comercial, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020.

PONTES, Evandro F. de. Representations and Warranties no Direito Brasileiro. São Paulo:
Almedina, 2014.

PORTUGAL GOUVÊA, Carlos; PARGENDLER, Mariana. As Diferenças entre Declarações


e Garantias e os Efeitos do Conhecimento. In: Fusões e Aquisições: pareceres. São Paulo:
Almedina, 2022.

TRINDADE, Marcelo. Sandbagging e as Falsas Declarações em Alienações Empresariais. In:


Direito Societário, Mercado de Capitais, Arbitragem e Outros Temas: homenagem a
Nelson Eizirik. São Paulo: Quartier Latin, 2020, v. III, p. 91–104.

WEST, Glenn D.; LEWIS JR., W. Benton. Contracting to Avoid Extra-Contractual Liability –
can your contractual deal ever really be the “entire” deal? The Business Lawyer, v. 64, p. 998–

22

Electronic copy available at: https://ssrn.com/abstract=4568629


WORKING PAPER
VERSÃO PRELIMINAR
29/08/2023

1038, 2009.

WEST, Glenn D.; SHAH, Kim M. Debunking the Myth of the Sandbagging Buyer: When
Sellers Ask Buyers to Agree to Anti-Sandbagging Clauses, Who Is Sandbagging Whom? The
M&A Lawyer, v. 11, n. 1, p. 1–9, 2007.

WHITEHEAD, Charles K. Sandbagging: default rules and acquisition agreements. Delaware


Journal of Corporate Law, v. 36, p. 1081–1115, 2011.

WOLF, Daniel E. Sandbagging in Delaware. Disponível em:


<https://corpgov.law.harvard.edu/2018/06/20/sandbagging-in-delaware/>. Acesso em:
28 jan. 2021.

Sandbag. In: Merriam-Webster. [s.l.]: Merriam-Webster, [s.d.]. Disponível em:


<https://www.merriam-webster.com/dictionary/sandbag>. Acesso em: 1 jul. 2022.

Sandbag. In: Online Etymology Dictionary. [s.l.]: Online Etymology Dictionary, [s.d.].
Disponível em: <https://www.etymonline.com/search?q=sandbag>. Acesso em: 1 jul. 2022.

Jurisprudência:

Arwood v. AW Site Services LLC, C.A. No. 2019-0904-JRS (Del. Ch. Mar. 31, 2022).

Eagle Force Holdings, LLC v. Campbell, 187 A.3d 1209 (Del. 2018).

Galli v. Metz, 973 F.2d 145 (2d Cir. 1992).

Gusmao v. GMT Group, Inc., 06 Civ. 5113 (GEL) (S.D.N.Y. Aug. 1, 2008).

Metropolitan Coal Co. v. Howard, 155 F.2d 780 (2d Cir. 1946).

Processo n. 2005632-17.2016.8.26.0000, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, TJSP,


Relator Hamid Bdine, julgado em 18.05.2016.

Processo n. 2150696-58.2016.8.26.0000, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, TJSP,


Relator Ricardo Negrão, julgado em 19.02.2018.

Rogath v. Siebenmann, 129 F.3d 261 (2d Cir. 1997).

23

Electronic copy available at: https://ssrn.com/abstract=4568629

Você também pode gostar