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SSRN Id4568629
SSRN Id4568629
VERSÃO PRELIMINAR
29/08/2023
ÍNDICE
1. INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 2
3.1. Origem......................................................................................................................... 6
5. CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 20
1
Professor da Graduação e do Mestrado Profissional da FGV Direito SP. Doutor em Direito Comercial e bacharel
pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pesquisador visitante na University of Pennsylvania Law
School (2018-2019). Coordenador do Grupo de Estudos em Fusões e Aquisições (GEM&A) da FGV Direito SP.
Sócio no PGLaw.
2
Agradeço a Pedro Paulo de Tarso Augusto Rohrer pelo auxílio no desenvolvimento da pesquisa. Eventuais erros
são de minha exclusiva responsabilidade.
1. INTRODUÇÃO
3
Este trabalho constitui um aprofundamento de conceitos e debates apresentados resumidamente no seguinte
trabalho prévio, realizado e publicado em coautoria com Analy Leal e Manoela Naquis: BORGES, Rodrigo F.;
LEAL, Analy; NAQUIS, Manoela, Sandbagging: A autonomia da vontade permite a criação de uma “carta
na manga” contratual?, CM&A Insights, disponível em: <https://www.cmnausp.com/post/sandbagging-a-
autonomia-da-vontade-permite-a-cria%C3%A7%C3%A3o-de-uma-carta-na-manga-contratual>.
2. EXEMPLOS DE REDAÇÃO
A prática de sandbagging pode ser regulada de duas formas principais nos CCVPs: (i)
por meio de uma cláusula pro-sandbagging; ou (ii) por meio de uma cláusula anti-
sandbagging. Cada um dos subtópicos a seguir será destinado a contextualizar de forma prática
essas duas possibilidades, trazendo exemplos reais de redação de tais cláusulas encontrados em
contratos-modelo oficialmente publicados, literatura e jurisprudência.
Por meio das cláusulas pro-sandbagging, objetiva-se que o vendedor possa ser
responsabilizado pelo não cumprimento de declarações e garantias prestadas por ele
independentemente de o comprador ter tido a chance de estar previamente ciente sobre alguma
inveracidade ou imprecisão em tais declarações e garantias.
Dito de outra forma, o principal objetivo desse tipo de disposição em CCVPs é garantir
que o comprador não perca a possibilidade de exercer seus remédios jurídicos, como a
possibilidade de exigir do vendedor uma indenização, nos casos em que o próprio comprador
já tinha ou podia ter tido conhecimento sobre a inveracidade ou imprecisão das declarações e
garantias prestadas pelo vendedor antes da assinatura do CCVP ou da data de fechamento da
operação – por exemplo, por meio da realização de adequada auditoria jurídica (due diligence)
dos documentos e informações disponibilizados pelo vendedor.
4
No original: “The right to indemnification, payment, reimbursement, or other remedy based upon any such
representation, warranty, covenant, or obligation will not be affected by any investigation (including any
Por fim, conforme apontado em trabalhos anteriores6, CCVPs celebrados no Brasil dos
quais decorreram disputas judiciais também são fontes de exemplos públicos de cláusulas pro-
sandbagging, como esta:
environmental investigation or assessment) conducted or any Knowledge acquired at any time, whether before or
after the execution and delivery of this Agreement or the Closing Date, with respect to the accuracy or inaccuracy
of, or compliance with, such representation, warranty, covenant, or obligation.” Cf. AMERICAN BAR
ASSOCIATION, Model stock purchase agreement with commentary, 2. ed. Chicago: American Bar
Association, 2010, p. 299. Cláusula citada também em: OLIVEIRA, Caio Raphael Marotti de, A Cláusula Pro-
Sandbagging (Conhecimento Prévio) em Contratos de Alienação de Participação Acionária, Dissertação de
Mestrado em Direito Comercial, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020, na qual o autor igualmente realizou
esforço de exemplificação de cláusulas pro-sandbagging e anti-sandbagging.
5
No original: “The rights of the Purchaser to indemnification or any other remedy under this Agreement shall not
be impacted or limited by any knowledge that the Purchaser may have acquired, or could have acquired, whether
before or after the closing date, nor by any investigation or diligence by the Purchaser. The Seller hereby
acknowledges that, regardless of any investigation made (or not made) by or on behalf of the Purchaser, and
regardless of the results of any such investigation, the Purchaser has entered into this transaction in express
reliance upon the representations and warranties of the Seller made in this Agreement.” Cf. AVERY, Daniel;
WEINTRAUB, Daniel H., Trends in M&A provisions: “Sandbagging” and "Anti-sandbagging” provisions,
Bloomberg Law Reports, v. 5, n. 6, 2011, p. 1.
6
Cf. OLIVEIRA, A Cláusula Pro-Sandbagging (Conhecimento Prévio) em Contratos de Alienação de
Participação Acionária.
7
TJSP, Processo n. 2005632-17.2016.8.26.0000, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, fl. 191.
Por fim, conforme apontado em trabalhos anteriores10, CCVPs celebrados no Brasil dos
quais decorreram disputas judiciais também são fontes de exemplos públicos de cláusulas anti-
sandbagging, como esta:
8
No original: “Buyer has no knowledge of any facts or circumstances that would serve as the basis for a claim by
Buyer against Sellers based upon a breach of any of the representations and warranties of Sellers contained in this
Agreement (or breach of any Sellers’ covenants or agreements to be performed by any of them at or prior to
Closing). Buyer shall be deemed to have waived in full any breach of any of Sellers’ representations and warranties
(and any such covenants and agreements) of which Buyer has knowledge at the Closing.” Cf. AMERICAN BAR
ASSOCIATION, Model stock purchase agreement with commentary, p. 301. Cláusula citada também em:
OLIVEIRA, A Cláusula Pro-Sandbagging (Conhecimento Prévio) em Contratos de Alienação de
Participação Acionária, na qual o autor igualmente realizou esforço de exemplificação de cláusulas pro-
sandbagging e anti-sandbagging.
9
No original: “The Purchaser acknowledges that it has had the opportunity to conduct due diligence and
investigation with respect to the Company, and in no event shall the Seller have any liability to the Purchaser with
respect to a breach of representation, warranty or covenant under this Agreement to the extent that the Purchaser
knew of such breach as of the Closing Date.” Cf. AVERY; WEINTRAUB, Trends in M&A provisions:
“Sandbagging” and "Anti-sandbagging” provisions, p. 1.
10
Cf. OLIVEIRA, A Cláusula Pro-Sandbagging (Conhecimento Prévio) em Contratos de Alienação de
Participação Acionária.
Uma vez realizada a exemplificação dos dois principais tipos de cláusula que, em geral,
regulam a prática de sandbagging nos CCVPs, a seguir será discutida a construção da disciplina
jurídica relacionada a tal prática, identificando-se desde a origem da terminologia utilizada e o
contexto de utilização até a formação da jurisprudência aplicável nos Estados Unidos.
3.1. Origem
Com o tempo, o verbo “to sandbag” teria absorvido o significado geral de inicialmente
ocultar ou minimizar a própria posição, de forma a obter uma vantagem subsequente sobre
outra pessoa com tal atitude14. A incorporação de sua utilização em jogos de pôquer e golfe
teria contribuído para a fixação desse significado geral.
11
TJSP, Processo n. 2150696-58.2016.8.26.0000, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, fl. 206.
12
Cf. WEST, Glenn D.; SHAH, Kim M., Debunking the Myth of the Sandbagging Buyer: When Sellers Ask
Buyers to Agree to Anti-Sandbagging Clauses, Who Is Sandbagging Whom?, The M&A Lawyer, v. 11, n. 1,
p. 1–9, 2007, p. 1.
13
Cf. Sandbag, in: Merriam-Webster, [s.l.]: Merriam-Webster, [s.d.]; WEST; SHAH, Debunking the Myth of
the Sandbagging Buyer: When Sellers Ask Buyers to Agree to Anti-Sandbagging Clauses, Who Is Sandbagging
Whom?, p. 1.
14
Cf. Sandbag; WEST; SHAH, Debunking the Myth of the Sandbagging Buyer: When Sellers Ask Buyers to
Agree to Anti-Sandbagging Clauses, Who Is Sandbagging Whom?, p. 1.
verdade, eram boas. Por meio dessa estratégia, o jogador visava a induzir seus oponentes a
realizarem apostas maiores do que fariam caso detivessem conhecimento sobre o real cenário
da partida.15
15
Cf. WHITEHEAD, Charles K., Sandbagging: default rules and acquisition agreements, Delaware Journal of
Corporate Law, v. 36, p. 1081–1115, 2011; KELLEY, Brent, How did “Sandbagger” become a Golf Term?,
Liveabout, 2018; Sandbag, in: Online Etymology Dictionary, [s.l.]: Online Etymology Dictionary, [s.d.];
Sandbag.
16
Cf. KELLEY, How did “Sandbagger” become a Golf Term?; WEST; SHAH, Debunking the Myth of the
Sandbagging Buyer: When Sellers Ask Buyers to Agree to Anti-Sandbagging Clauses, Who Is Sandbagging
Whom?
17
Cf. WHITEHEAD, Sandbagging, n. 4.
18
Cf. Ibid., p. 1081; PORTUGAL GOUVÊA, Carlos; PARGENDLER, Mariana, As Diferenças entre Declarações
e Garantias e os Efeitos do Conhecimento, in: Fusões e Aquisições: pareceres, São Paulo: Almedina, 2022,
p. 299.
19
“É fato conhecido que as cláusulas de declarações e garantias foram incorporadas à prática doméstica com a
expansão das operações societárias no [p]aís a partir do processo de liberalização econômica, iniciado após a
transição para o regime democrático. A estrutura de contrato de compra e venda de participações societárias hoje
adotada internacionalmente, em que essas cláusulas são centrais, teve origem em países anglo-saxões, sobretudo
nos Estados Unidos da América, onde tal contrato passou a ser conhecido como stock purchase agreement ou
share purchase agreement. Com a integração econômica global e o avanço das macroempresas transnacionais,
esses modelos contratuais, conhecidos no mercado pela sua sigla, ‘SPA’, passaram a ser utilizados para aquisições
em múltiplas jurisdições, muitas vezes de forma simultânea.” Cf. PORTUGAL GOUVÊA; PARGENDLER, As
Diferenças entre Declarações e Garantias e os Efeitos do Conhecimento, p. 285. No mesmo sentido, v.
TRINDADE, Marcelo, Sandbagging e as Falsas Declarações em Alienações Empresariais, in: Direito Societário,
Mercado de Capitais, Arbitragem e Outros Temas: homenagem a Nelson Eizirik, São Paulo: Quartier Latin,
2020, v. III, p. 91.
20
Cf. PORTUGAL GOUVÊA; PARGENDLER, As Diferenças entre Declarações e Garantias e os Efeitos do
Conhecimento, p. 284–287.
21
Cf. WEST, Glenn D.; LEWIS JR., W. Benton, Contracting to Avoid Extra-Contractual Liability – can your
contractual deal ever really be the “entire” deal?, The Business Lawyer, v. 64, p. 998–1038, 2009, p. 1008.
22
Para um aprofundado estudo sobre as cláusulas de declarações e garantias, v. GREZZANA, Giacomo, A
Cláusula de Declarações e Garantias em Alienação de Participação Societária, São Paulo: Quartier Latin,
2019; PONTES, Evandro F. de, Representations and Warranties no Direito Brasileiro, São Paulo: Almedina,
2014.
Por outro lado, garantias (warranties) são recorrentemente definidas de acordo com o
que foi sustentado pelo Juiz Learned Hand no caso Metropolitan Coal Co. v. Howard:
“[u]ma garantia é uma certeza sobre a existência de um fato, dada por uma parte em um
contrato, na qual a outra parte possa confiar. Destina-se precisamente a retirar da parte
destinatária o ônus de determinar o fato por si própria; isso equivale a uma promessa
de indenizá-la por qualquer perda caso o fato garantido se prove falso, pois, por óbvio,
aquele que fez a promessa não pode mais controlar o que já está no passado.”26
23
Como demonstrado por Akerlof, o processo de seleção adversa decorrente da assimetria informacional pode
levar, em última análise, ao desaparecimento de determinados mercados. O exemplo mais paradigmático usado
pelo autor é o do mercado de carros usados, no qual existem carros de qualidade boa e ruim (“lemons”). Nesse
mercado, como em muitos outros, os vendedores têm mais informação sobre a qualidade dos produtos vendidos
do que os potenciais compradores, de modo que os vendedores de lemons tentam fazê-los passar por carros bons.
Sabendo da possibilidade de serem enganados, os compradores tendem a precificar todos os carros num patamar
médio entre o que estariam dispostos a pagar pelos carros bons e o que estariam dispostos a pagar pelos carros
ruins. Diante de tal precificação média, os vendedores de carros bons decidem sair do mercado, pois não estão
dispostos a venderem seus carros por tal preço, o que faz com que nele restem apenas os lemons, caracterizando-
se uma seleção adversa. Cf. AKERLOF, George A., The Market for “Lemons”: Quality Uncertainty and the
Market Mechanism, The Quarterly Journal of Economics, v. 84, n. 3, p. 488, 1970.
24
Para maiores aprofundamentos sobre as diferenças entre declarações e garantias tanto nos sistemas de tradição
anglo-saxã quanto nos de tradição romano-germânica, v. PORTUGAL GOUVÊA; PARGENDLER, As
Diferenças entre Declarações e Garantias e os Efeitos do Conhecimento.
25
Cf. Ibid., p. 290.
26
No original: “[a] warranty is an assurance by one party to a contract of the existence of a fact upon which the
other party may rely. It is intended precisely to relieve the promisee of any duty to ascertain the fact for himself;
it amounts to a promise to indemnify the promisee for any loss if the fact warranted proves untrue, for obviously
the promisor cannot control what is already in the past.” Cf. Metropolitan Coal Co. v. Howard, 155 F.2d 780 (2d
Cir. 1946).
Adotando-se tais definições para declarações e garantias, algumas diferenças entre elas
tornam-se muito evidentes. É o caso, por exemplo, da sua relação com a cláusulas de
indenização também presentes nos CCVPs. Em geral, a ideia é que uma violação a uma
disposição presente na cláusula de declarações e garantias de um CCVP gere à contraparte o
direito à reparação.
27
Aqui, percebe-se que os interesses tutelados são também diversos. No caso da declaração, tutela-se o chamado
“interesse negativo”: a quantificação da indenização deve objetivar o restabelecimento da parte lesada à posição
que estaria caso a declaração falsa não tivesse existido. Por outro lado, quando há garantia, tutela-se o “interesse
positivo”: a quantificação da indenização deve objetivar colocar a parte lesada na situação em que estaria se o fato
garantido se revelasse realmente verdadeiro. Cf. PORTUGAL GOUVÊA; PARGENDLER, As Diferenças entre
Declarações e Garantias e os Efeitos do Conhecimento, p. 292–293.
28
Cf. Ibid., p. 302.
10
de garantia. Mas essa não é a única limitação. A admissibilidade das cláusulas de sandbagging
é bastante debatida29 tanto nos sistemas de common law quanto nos de civil law, conforme se
verificará abaixo.
Lá, é recorrente na literatura a divisão dos Estados entre aqueles com tendência
jurisprudencial favorável à prática de sandbagging e aqueles que apresentam posicionamento
contrário à prática de sandbagging no contexto dos CCVPs.31 No entanto, mesmo nas
jurisdições tradicionalmente referidas como mais favoráveis à prática de sandbagging32, a
resistência existe ou, pelo menos, já se mostrou presente, como é o caso de Nova Iorque e
Delaware.33
Em Nova Iorque, a fonte da informação obtida pelo comprador é tida como relevante
para a decisão dos casos. No caso Galli v. Metz34, reconheceu-se que, ao prosseguir com o
negócio tendo plena ciência e aceitação de fatos divulgados pelo vendedor que constituíam
violação às garantias prestadas, o comprador teria renunciado ao direito de buscar reparação,
exceto se tivesse expressamente preservado esse direito. No caso Rogath v. Siebenmann35,
entendeu-se que se a fonte da informação que deu conhecimento ao comprador sobre a violação
for um terceiro, e não o vendedor, ou então se a informação for de conhecimento comum, então
o comprador teria direito à reparação.36
29
Cf. WHITEHEAD, Sandbagging, p. 1081.
30
V. nota 19 acima.
31
Nesse sentido, v. WHITEHEAD, Sandbagging.
32
JASTRZEBSKI, Jacek, “Sandbagging” and the Distinction between Warranty Clauses and Contractual
Indemnities, UC Davis Business Law Journal, v. 19, p. 207–251, 2019, p. 215; WHITEHEAD, Sandbagging,
p. 1087.
33
Cf. WHITEHEAD, Sandbagging, n. 22.
34
Cf. Galli v. Metz, 973 F.2d 145 (2d Cir. 1992).
35
Cf. Rogath v. Siebenmann, 129 F.3d 261 (2d Cir. 1997).
36
Ainda nesse sentido, v. Gusmao v. GMT Group, Inc., 06 Civ. 5113 (GEL) (S.D.N.Y. Aug. 1, 2008).
11
Assim, ainda que o vendedor não tenha um direito expresso de ser informado pelo
comprador e este não possua um respectivo dever de fornecer informações, nota-se que a
admissibilidade da prática de sandbagging é controvertida até mesmo nos Estados com mais
tendência pro-sandbagging dos Estados Unidos, onde, com base num regime de tradição anglo-
saxã, originaram-se as principais práticas que pautaram e até hoje influenciam as operações de
compra e venda de participação societária em todo o mundo.
37
Cf. Eagle Force Holdings, LLC v. Campbell, 187 A.3d 1209 (Del. 2018).
38
Cf. DURAN, Sarah G.; JAMAL, Sacha, Possible Shift in Delaware Law: buyer’s silence on sandbagging is not
golden, Business Law Today, 2018; WOLF, Daniel E., Sandbagging in Delaware.
39
Cf. Arwood v. AW Site Services LLC, C.A. No. 2019-0904-JRS (Del. Ch. Mar. 31, 2022).
12
40
Cf. PORTUGAL GOUVÊA; PARGENDLER, As Diferenças entre Declarações e Garantias e os Efeitos do
Conhecimento, p. 301–302; KRAIEM, Rúben, Leaving Money on the Table: contract practice in a low-trust
environment, Columbia Journal of Transactional Law, v. 42, n. 3, p. 715–751, 2003, p. 748.
41
“Também aqui autonomia privada e boa-fé se encontram em relação de dialética tensão, porque essas relações
são marcadas normativamente pelos vetores da igualdade e da liberdade e estão polarizadas pela noção de
empresa, que, por definição, implica a finalidade de obtenção de lucro e de assunção de riscos, bem como a de
mercado, não mais um lugar de troca de uma produção determinada, mas o mecanismo regulador de toda a vida
econômica.” Cf. MARTINS-COSTA, Judith, A Boa-fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação,
2a. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 301.
13
experientes e muito habituadas à prática mercantil de alto risco, as quais contam, ainda, com
assessoria jurídica e financeira bastante sofisticada e qualificada, muito bem remunerada para
estar acostumada com transações de alta complexidade. Tal contexto afasta, à primeira vista,
algumas tutelas específicas pautadas em hipossuficiência, desconhecimento ou ingenuidade,
resultando, portanto, em maior espaço à prevalência da autonomia da vontade das partes.
42
“Trata-se de grupo extremamente polimorfo, pois a informação pode ser caracterizada, conforme as
circunstâncias, como a própria obrigação principal (e.g, um contrato cujo objeto reside na prestação de
informações sobre aplicações financeiras); um dever anexo ao dever principal (por exemplo, informar, via ‘manual
de instruções’, sobre o correto uso da máquina adquirida); um dever lateral de proteção (v.g., informar sobre riscos
de queda no chão do supermercado que está a ser lavado); um dever legal (por exemplo, a informação devida
pelos administradores à assembleia de acionistas) e mesmo um ônus ou encargo material, como, por exemplo, o
chamado ‘dever de se informar’ atribuído aos profissionais sobre o estado da arte de sua profissão, ou, ainda, de
um comprador de determinado bem para que se informe sobre as suas utilidades e/ou potencialidades, pois mesmo
no domínio das relações de consumo, em que a informação é dever legal do fornecedor, não se excluiu totalmente
o princípio da autorresponsabilidade, sendo esse o correlato necessário à autonomia: quem abre conta em banco
deve, no mínimo, se informar, a cada cheque a emitir, sobre o estado de seu saldo bancário.” Cf. Ibid., p. 578–
579.
43
Cf. AZEVEDO, Antônio Junqueira de, Insuficiências, Deficiências e Desatualização do Projeto de Código Civil
na Questão da Boa-fé Objetiva nos Contratos, Revista Trimestral de Direito Civil, v. 1, n. 1, p. 3–12, 2000, p. 4;
AZEVEDO, Álvaro Villaça, Contratos: disposições gerais, princípios e extinção, in: AZEVEDO, Álvaro Villaça;
TÔRRES, Heleno Taveira; CARBONE, Paolo (Orgs.), Princípios no Novo Código Civil Brasileiro e Outros
Temas: homenagem a Tullio Ascarelli, 2a. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 53; MARTINS-COSTA, A
Boa-fé no Direito Privado, p. 590.
44
V. subtópico 3.2 acima.
14
Sob esse aspecto, embora se reconheça claramente que o dever de informar decorrente
da boa-fé objetiva não deva ser ilimitado, ele, em si, parece limitar a autonomia da vontade das
partes que celebram um contrato escondendo informações relevantes ao negócio entabulado e
à possibilidade de cumprimento do contrato sem desconto de preço. A expectativa de concessão
de tal tipo de informação não parece exceder o quantum razoavelmente esperado de contraentes
em boa-fé. Sobre o assunto, Menezes Cordeiro esclarece:
Dado que o princípio da boa-fé objetiva deve ser respeitado em todas as etapas do
negócio jurídico, da sua formação à sua conclusão47, também é esperado que o dever de
informar incida igualmente, com os devidos contornos, em todas as fases do negócio jurídico,
inclusive, no caso de um CCVP, no momento de sua negociação e no período entre a sua
assinatura e o fechamento da operação.
Contudo, como visto, o dever de informar não deve ser absoluto (ou ilimitado), o que
implica que sua extensão deve ser considerada no caso concreto, mas a omissão intencional de
informações relevantes durante a formação ou celebração do CCVP, caracterizando a prática
de sandbagging, tende a apresentar resistências no ordenamento brasileiro, conforme se verá
no subtópico 4.2 abaixo.
45
Cf. MARTINS-COSTA, A Boa-fé no Direito Privado, p. 587.
46
Cf. MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e, Da Boa Fé no Direito Civil, Coimbra: Almedina,
2020, p. 583.
47
V. nota 43 acima.
15
De todo modo, não se pode esquecer que a incidência do princípio da boa-fé objetiva
em transações comerciais tem contornos específicos48, decorrentes principalmente do ambiente
e contexto em que são realizadas e da qualificação das partes. A esse respeito, Martins-Costa
esclarece o seguinte:
“incidência do princípio da boa-fé é, neste campo, peculiarizada por alguns traços que
vale a pena destacar, na medida em que infletirão nas tonalidades que o revestirão.
Sinteticamente, são eles: (i) a noção de mercado; (ii) o dinamismo coerente à noção de
atividade empresarial (art. 966) que está no núcleo da fattispecie empresário; (iii) o
forte impacto que a praxis tem nesse campo, coligando imediatamente boa-fé, usos do
setor e as práticas das partes; (iv) a informalidade e a atipicidade; e (v) a dinâmica
circulação/apropriação de modelos provindos da praxe internacional ou da experiência
comparatista.”49
Nesse sentido, Forgioni explica que “para o direito comercial, agir de acordo com a
boa-fé significa adotar o comportamento jurídica e normalmente esperado dos ‘comerciantes
cordatos’, dos agentes econômicos ativos e probos em determinado mercado” 50. Adiciona,
ainda, que “[a] boa-fé no direito comercial não acompanha padrões que a apontariam como
reflexo de altruísmo exacerbado ou de algo semelhante”51.
48
“O que há de peculiar ao Direito Empresarial é a maior imantação pela prática, que condiciona o sentido da
boa-fé, apresentando-a em conformidade com o standard da probidade específica – ‘pelo mesmo modo e sentido
por que os negociantes se costumam explicar, posto que entendidas de outra sorte possam significar coisa diversa’,
como estava no art. 30 do Código Comercial de 1850. Assim, devendo ser concretizada em imediata ligação com
os usos do tráfico e com o ambiente do mercado, nesse campo adquire o princípio da boa-fé tons e cores modulados
por uma paleta de significações advindas do viés confiança em seus matizes: a confiança como confiabilidade ou
credibilidade (valorizando-se a posição do agente, isto é, o investimento de confiança daquele que recebe
determinada ação ou declaração bem como, por exemplo, a posição de autoridade do emissor da declaração); e a
confiança como previsibilidade necessária para o cálculo do investidor, sócio, ou empresário para poder mensurar
o risco, apresentando-se especialmente, então, como elemento da segurança jurídica.” Cf. MARTINS-COSTA,
A Boa-fé no Direito Privado, p. 309.
49
Cf. Ibid., p. 301–302.
50
Cf. FORGIONI, Paula A., Contratos Empresariais: teoria geral e aplicação, [s.l.]: Revista dos Tribunais,
2015, p. 123.
51
Cf. Ibid., p. 124. A autora ainda ressalta que “[n]o direito comercial, o respeito ao princípio da boa-fé não pode
levar, em hipótese alguma, a uma excessiva proteção de uma das partes, sob pena de desestabilização do sistema.
O ‘erro de cálculo’ do agente é um instrumento que premia a eficiência do outro. No processo de interpretação
dos contratos mercantis, a boa-fé não pode ser confundida com equidade ou com ‘consumerismo’, erro em que
incidem vários autores não habituados à dinâmica de mercado.” Cf. Ibid., p. 126.
16
Os três principais cenários nos quais o embate entre a autonomia da vontade e a boa-fé
objetiva pode resultar em três interpretações distintas para a prática de sandbagging são os
seguintes: (i) CCVPs nos quais há cláusula pro-sandbagging; (ii) CCVPs nos quais há cláusula
anti-sandbagging; e (iii) CCVPs nos quais não há regulação sobre a prática de sandbagging.
A seguir, serão apresentadas as propostas interpretativas a cada um desses cenários.
52
Cf. PORTUGAL GOUVÊA; PARGENDLER, As Diferenças entre Declarações e Garantias e os Efeitos do
Conhecimento, p. 316.
17
do comprador sobre a referida violação (sandbagging) não poderá ser entendida como “carta
na manga”, salvo especificidades do caso concreto.
53
FORGIONI, Contratos Empresariais: teoria geral e aplicação, p. 124.
54
Ibid., p. 126.
55
Trindade, ao analisar a questão sob o ponto de vista de outros tópicos de direito privado para além do princípio
da boa-fé objetiva, encaminha entendimento que vai em sentido semelhante: “[a]mbas as cláusulas, pro e anti-
sandbagging, são, a nosso ver, válidas, de maneira geral, à luz do direito brasileiro, lidando apenas com direitos
disponíveis.” Cf. TRINDADE, Sandbagging e as Falsas Declarações em Alienações Empresariais, p. 97.
56
V. nota 49 acima.
18
objetiva quando silente sobre a prática de sandbagging57, conforme será abordado em maiores
detalhes no subtópico 4.2.3 a seguir.
Enfim, nos CCVPs em que não há cláusula regulando a prática de sandbagging, ou seja,
em que não há cláusula pro-sandbagging ou anti-sandbagging, a boa-fé objetiva parece, de
fato, atuar impedindo a prática, salvo especificidades do caso concreto. Em consonância com
o que sustentam Portugal Gouvêa e Pargendler, nesse caso, a eventual admissão da prática de
sandbagging em contexto de CCVP regido pelo direito brasileiro atentaria contra a boa-fé
objetiva58.
Embora sob outros fundamentos, Trindade também chega a uma conclusão prática
semelhante: “na omissão de disciplina pelas partes, o devedor do preço, credor da coisa,
aceitando a execução do contrato, mesmo ciente da falsidade da declaração do alienante
devedor, não poderá voltar atrás, seja para pedir a anulação, seja para pleitear
indenização”59.
57
“É igualmente o que se depreende, a contrario sensu, da seguinte conclusão de Trindade: “as cláusulas pro-
sandbagging constituem na única forma abrangente pela qual o adquirente, ciente da falsa declaração do alienante,
preservará, no direito brasileiro, a faculdade de dar imediato cumprimento ao contrato, sem qualquer ressalva,
conservando a possibilidade de demandar [...] posteriormente indenização pelos danos decorrentes da falsa
declaração do alienante, esteja ou não pré-fixada em cláusula penal.” Cf. Ibid., p. 104.
58
Cf. PORTUGAL GOUVÊA; PARGENDLER, As Diferenças entre Declarações e Garantias e os Efeitos do
Conhecimento, p. 316.
59
Cf. TRINDADE, Sandbagging e as Falsas Declarações em Alienações Empresariais, p. 103.
60
V. notas 45 e 46 acima.
61
V. nota 49 acima.
19
5. CONCLUSÃO
62
V. nota 42 acima.
63
Como visto, a interpretação aqui sugerida é possível pelo simples embate entre o princípio da boa-fé objetiva e
a autonomia da vontade, mas, para além da análise aqui empreendida, outros regramentos de direito privado
também indicariam para a mesma conclusão (os quais intencionalmente foram desconsiderados no presente
estudo), como em TRINDADE, Sandbagging e as Falsas Declarações em Alienações Empresariais.
64
V. nota 63 acima.
20
cláusula com base no princípio da boa-fé objetiva; (ii) nos CCVPs em que as partes decidiram
voluntariamente negociar e incluir uma cláusula anti-sandbagging, a autonomia da vontade
parece prevalecer igualmente admitir tal caminho; e (iii) nos CCVPs em que não há cláusula
regulando a prática de sandbagging, a boa-fé objetiva parece, de fato, atuar impedindo a
prática, limitando a extensão da autonomia da vontade das partes.
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