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Ficha Técnica

Título original: Um Passeio pela Europa


Autor: Tiago Rebelo
Edição: Grupo Leya
Revisão: Grupo Leya
Capa: Rui Garrido
Fotografia do autor: direitos reservados
ISBN: 9789722066624

Publicações Dom Quixote


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Este livro segue a grafia anterior ao Novo Acordo Ortográfico de 1990.


O paradigma da solidão portuguesa

diziam que a europa era depois dos


quintais, para lá da grande plantação e do lugar do gado, mesmo
para lá do riacho onde íamos a lavar
o cão. diziam que a europa era um monte a subir por ali adiante até depois de muito e
muito caminho, até ao fim
diziam que a europa era assim uma terra levantada onde pousaram os países, divididos
nos séculos pelo
rigor de tantas sortes, e ficava já depois dos quintais, onde íamos ver o que havia,
proibidos de
avançar, onde púnhamos o cão limpo e lhe ordenávamos que sossegasse, porque ele
ladrava a encarar o desconhecido
e nós não tínhamos medo, apenas uma qualquer ansiedade feita sobretudo de não saber
não sabíamos se o que diziam era real ou inventado pela efabulação da lonjura, isso de
estarmos como sozinhos de tudo, porque era tão incrível que logo depois dos baldios
ficasse coisa tão digna quanto a europa
imaginávamos os reis e as rainhas, mais castelos e palácios, gentes de ar diferente e
roupas galantes em
luzes como de outro sol, imaginavamo-los como
numa linha contínua, em formação, logo ali
depois do limite das vistas, no dorso do monte a levantar, como se a europa fosse toda
junta ali, só depois de onde não
víamos mais, onde não íamos
eu teria seis anos e jurava que, por vezes, montados nos
cavalos, os reis mostravam as pontas das coroas por sobre alguma imprecisão da
mágica paisagem. ficávamos, então, muito quietos, perscrutando as refracções da luz,
esperando que o soberano
se deixasse ver de novo. auscultávamos também o vento, e alguns diziam perceber o
galope, o relincho do cavalo, um dia, um rapaz ouviu o grito de uma moça. eu nunca ouvi
nada
achámos, com tanta candura, que bastaria subir o monte
para estar tudo ali, exposto com a naturalidade das maravilhas a ser a europa. uma
europa que, desde então, não havia modo de englobar Portugal.

VALTER HUGO MÃE


1. O PASSEIO

Há tempos que hesito sobre se valerá a pena reunir num volume os textos
que, ao longo dos anos, fui escrevendo sobre a Europa. Não sei, sequer, se
alguém alguma vez os leu – alguns foram obrigados a ouvi-los… –, quando
foram publicados nas revistas da especialidade. Não sei, também, se
alguém, alguma vez, lê estas recolhas de textos. Talvez estudantes de
Relações Internacionais das nossas universidades, investigadores, curiosos
interessados no processo europeu, quem sabe, um ou outro jovem diplomata
tentando, sabiamente, imbuir-se da experiência alheia. Existirá tal
abencerragem?
Mas muitos me dizem que é minha obrigação deixar testemunho dessa
experiência. É esse sentido de que, se não o fizer, não cumpro um dever,
bem como a inspiração do exemplo de alguns dos meus antecessores no
cargo de Secretários de Estado dos Assuntos Europeus, que me leva a
vencer a preguiça e alinhavar estas linhas.
Quero contudo advertir desde já que esta introdução não é, nem pretende
ser, um texto científico, de rigorosa hermenêutica dos tratados,
regulamentos e directivas, ou de análise detalhada e mecânica dos efeitos
concretos do processo europeu. É, e pretende ser, um texto que apenas visa
transmitir a minha experiência e a perspectiva, histórica e política, que
retenho do processo europeu, da sua ambição e da sua realidade, um pouco
como na definição vulgar de cultura, esquecido tudo o que aprendi ou,
talvez mais pretensiosamente, olhando para a floresta e procurando evitar
que cada árvore me ofusque a visão global. É pois uma espécie de
testamento, apetece-me chamá-lo diplomático, porque se aproxima o fim da
minha carreira.
Testamento para quem, pergunto-me, ao acabar de escrever estas linhas.
Bom, como talvez muita da escrita, testamento para mim. Mas também –
mantenho ainda essa ingénua dose de optimismo, que me preserva alguma
saúde mental –, contributo para a memória da carreira que, como
empreendimento colectivo, só poderá beneficiar se cada um dos seus
membros lhe transmitir a sua memória pessoal, seja ela qual for.
Embora considere a negociação de Timor como de longe a tarefa mais
fascinante e recompensadora da minha vida profissional, a Europa foi o fio
condutor que a dominou.
O meu Pai era diplomata. Desde criança que todos os dias o ouvia contar
à minha Mãe, ao almoço e ao jantar, o que de mais interessante ou picaresco
se passara nesse dia, no Ministério ou na Embaixada. Na adolescência,
passei a ouvir as conversas entre o meu Pai e os seus colegas e amigos que
frequentavam a nossa casa. A pouco e pouco, fui-me imbuindo desse mundo
caleidoscópico, onde se passavam e passam as coisas mais diversas, onde se
lidava com todos os aspectos da vida, onde se partia e se chegava em cais
que eu projectava quando relia, magnetizado, a Ode Marítima de Fernando
Pessoa. Dos sítios mais cosmopolitas e sofisticados, aos mais exóticos e
longínquos, onde se citavam poetas e se cotejava a guerra e a Paz, onde se
jogavam passes audazes e sublimes e se teciam torpes intrigas. Foi pois em
casa de meus Pais que comecei a beber o encantamento da Carreira, a que
acabei por tomar o gosto, e me comecei a interessar pelos seus meandros.
Quando, nos meados dos anos sessenta, meu Pai estava Suplente do
Representante Permanente de Portugal na NATO, na altura ainda sediada
em Paris, era o Calvet de Magalhães, velho amigo de família, Representante
de Portugal na OCDE, organização económica também com sede em Paris.
Eram frequentes os jantares e serões, que se prolongavam por longas
conversas, que eu ouvia com curiosidade, sobre o que se ia passando nas
duas organizações e o modo como Portugal as ia abordando. Também por
esse tempo comecei a folhear os Anuários Diplomáticos que o meu Pai
trazia para casa todos os anos – houve bizarros tempos em que os Anuários
eram anuais –, onde lia, fascinado, a longa biografia, repleta de
participações em estrambólicas e para mim misteriosas organizações
económicas internacionais, do Calvet, que foi um dos mais marcantes
diplomatas do seu tempo. Estimulado pelo longo, atraente e impressionante
currículo do Embaixador Calvet de Magalhães, polvilhado de reuniões
enigmáticas em locais improváveis, entrei, em 1975, para o Ministério dos
Negócios Estrangeiros, com a ambição de fazer carreira na área económica
multilateral. Tive a sorte de ver esse desejo concretizado logo que entrei
para o Ministério, pois o meu primeiro serviço foi, justamente, a
Repartição, como então se designava, das Organizações Económicas
Internacionais, na depois muito erradamente extinta Direcção-Geral dos
Negócios Económicos.
Logo no ano seguinte herdei do meu colega e amigo Eurico Paes o
pelouro das Comunidades Europeias. Era, então, o único funcionário que ao
meu nível se ocupava da matéria nas Necessidades, numa curta linha
hierárquica que, em três escalões, chegava ao Ministro – além, claro,
esclareço para o remoto leitor menos versado nestas andanças da
diplomacia, da então designada, porque não éramos membros, Missão de
Observação junto das Comunidades Europeias em Bruxelas e dos serviços
técnicos dos outros ministérios, com particular incidência para a Comissão
de Integração Económica onde residia o know-how técnico em matéria de
integração europeia, quer quanto à EFTA, quer quanto às Comunidades.
Preparava-se, na altura, o Protocolo Adicional ao Acordo Comercial entre
Portugal e a CEE, tido como um objectivo crucial para o desenvolvimento
das nossas relações com as Comunidades, sinal da já iniciada transição do
nosso País para a democracia. O entretanto eleito Primeiro Governo
Constitucional, sob a liderança clarividente de Mário Soares, tomou talvez a
mais histórica decisão nacional do final do século XX: dar o passo seguinte e
apresentar o pedido de adesão de Portugal às Comunidades Europeias.
Hoje, essa poderá parecer uma decisão óbvia, pacífica e consensual. Mas
não era assim nesse tempo. É para já necessário ter vivido aquela época
para apreender a ousadia e o alcance da tal decisão. A CEE era vista como
um baluarte dos valores Ocidentais, da Democracia, da estabilidade, mas
também da prosperidade. Um clube dos ricos. Portugal era o mais atrasado
e pobre, não só económica como socialmente, dos países da Europa
Ocidental, que saíra, dois escassos anos antes, de um longo regime
autoritário, fechado, inusitadamente retrógrado. O país emergia ainda de um
agitado processo revolucionário no qual, em plena Guerra Fria, com o
espectro da expansão soviética na Ásia e na África, não estava
definitivamente arredado o assalto ao poder por um Partido Comunista
anacrónico e radical, que não digerira sequer as críticas a Estaline.
Simultaneamente, ecoava ainda a imagem de um Portugal agarrado ao seu
Império colonial, em desafio aos ventos da História e às resoluções da então
mais influente ONU, o que se projectou, num felizmente curto período
depois da revolução de 1974, num Terceiro Mundismo deslocado.
Muitos, e não só em Portugal, receberam o anúncio da intenção
portuguesa de pedir a adesão às CEE, ou como um gesto algo ingénuo,
revelador da imaturidade política das novas classes dirigentes, ou com
cepticismo, considerando que os Nove (ao tempo o número de Estados-
membros da CEE) nunca aceitariam acolher um país com a nossa
debilidade económica e democrática. Foi justamente a visão estratégica
oposta de Mário Soares que o levou a formular a intenção de aderir à CEE:
esta seria a trave mestra da estabilidade democrática e do desenvolvimento
económico de que Portugal necessitava para se alçar ao nível dos restantes
países europeus, estabilizar a economia, estabelecer uma classe média
maioritária, capaz de atingir o nível de qualidade de vida e o esteio da
segurança que só a democracia e a partilha da prosperidade podem dar.
Eu, tendo vivido com os meus Pais em Londres e Paris, sentira como uma
ofensa o desprezo e o opróbio com que, no antigo regime, a opinião pública
europeia olhava Portugal, como um país primitivo e retrógrado, incapaz de
compreender os ventos da História, que Macmillan apontara. Mesmo para
regimes conservadores como o britânico ou o francês, que para connosco
tinham alguma tolerância devido à lógica da Guerra Fria, a repulsa pelos
regimes não democráticos relegáva-nos para uma situação de verdadeira
“diminutio capitis”. No plano mais universal e nos Passos Perdidos das
Nações Unidas, Portugal era então o que hoje se designaria por um país
pária.
Mal podia pois acreditar na sorte de me ser dada a oportunidade de estar
envolvido num processo capaz de levar Portugal a sair do seu atraso
endémico e a poder aspirar à almejada matriz de vida europeia.
Foram dois anos fascinantes. O pedido de adesão foi, como precisava de
ser, uma verdadeira campanha, pensada, estudada, planeada, conduzida com
mão de mestre pelo então Ministro dos Negócios Estrangeiros, José
Medeiros Ferreira. A apresentação do pedido de adesão constituía,
naturalmente, a prioridade da política externa do Governo de então. Do seu
desenlace poderia resultar, como se pretendia, a ancoragem definitiva de
Portugal ao mundo ocidental e democrático, ou a continuação da
vulnerabilidade política de um país entregue aos sobressaltos mais ou
menos golpistas dos regimes não democráticos.
Medeiros Ferreira, homem de convicções, aliadas a uma lucidez realista e
uma apurada sensibilidade táctica, conduziu a campanha de adesão com
audácia, realismo e um afinado sentido de Estado, a que juntava, não só a
percepção clara dos interesses nacionais, como a mais bem rara qualidade
da firmeza e determinação na sua prossecução.
Soube escolher, para o acompanhar nessa tarefa, como Adjunto do
Director-Geral e depois Director-Geral dos Negócios Económicos, uma
personalidade providencial, Alexandre Lencastre da Veiga. Homem de uma
inteligência fulgurante, com uma coerente visão estratégica dos interesses
nacionais e uma rara intuição político-diplomática. Frontal, não tinha medo
de dizer aos Ministros o que pensava, o que intuía, de alertar para os riscos
e vantagens de cada decisão, de os confrontar com as suas
responsabilidades, quando temia que se enveredasse por caminhos que
considerava nocivos para os interesses nacionais e não se coibia de defender
com veemência as opções que considerava melhor serviam esses interesses.
Caloroso, conseguiu estabelecer com todos os outros ministérios envolvidos
uma excelente articulação, deixando-lhes a área técnica, mas guardando
para o MNE a indisputada condução política do processo, activo que nem
sempre se manteve. Fazia-nos viver num turbilhão, com o seu feitio
impulsivo e sentido de humor arrebatado, mas tinha rasgos brilhantes e
imprimiu a todo o processo uma dinâmica infrene, sem a qual talvez não
tivesse chegado a bom termo.
Para mim foi um período inesquecível. Não podia ter tido melhor sorte no
baptismo da carreira diplomática. Aprendi a trabalhar com um grupo
notável de servidores do Estado, não só no Ministério, como nas instâncias
de coordenação que acompanhavam o processo de adesão, como a
Comissão para a Integração Europeia, de que fui secretário. Participei em
reuniões onde se preparavam, com meticuloso rigor, as posições
portuguesas. Assisti a negociações complexas sobre as questões mais
sensíveis, acompanhei encontros com entidades estrangeiras, tive os
primeiros contactos com o mundo das instituições europeias, onde um
ambiente de cosmopolitismo maduro se cruzava com um clima de sábio
profissionalismo. Essa foi a minha verdadeira formação diplomática.
Em 1976 integrei a delegação portuguesa, chefiada por Medeiros Ferreira,
que foi a Bruxelas para a assinatura do Protocolo Comercial entre Portugal
e as CEE. Na cerimónia, sentei-me num lugar lateral da mesa. Ao meu lado
sentou-se um, para mim, desconhecido. Perguntou-me se era português.
Disse-me pertencer à delegação britânica e pediu-me para transmitir ao meu
Ministro o apoio do Reino Unido ao pedido de adesão português e o gosto
que teriam se ele fosse apresentado durante a presidência britânica de 1977.
Era David Owen, na altura Minister (o equivalente a Secretário de Estado,
na terminologia britânica) no Foreign Office, que, pouco depois, sucedeu
como Foreign Secretary (Ministro) a Anthony Crossland, então “rising
star” do Partido Trabalhista britânico, desaparecido precocemente em 1977.
Em 1979 David Owen abandonou o Partido Trabalhista e fundou o Partido
Social Democrático que chefiou até 1989, tornando-se uma figura destacada
da política britânica. O recado, dado por alguém tão proeminente no
Governo de um Estado-membro, era um primeiro e muito encorajador sinal
de apoio às nossas pretensões. Como jovem Adido de Embaixada – o nível
de acesso e mais baixo da carreira diplomática –, foi com indisfarçável gozo
que o transmiti aos meus superiores que o receberam com entusiasmo.
No período em que fui o único funcionário da minha repartição a ocupar-
se das CEE – mais tarde, quando foram admitidos novos Adidos, o pelouro
foi reforçado com o Joaquim José Ferreira Marques – coube-me um
trabalho absorvente mas apaixonante. Não tinha sequer o apoio de uma
secretária. Fazia tudo. Ofícios, telegramas, informações, propunha decisões
sujeitas ao escrutínio severo e à exigência de fundamentação clara de
Lencastre da Veiga antes de subirem ao Ministro, escrevia textos de artigos
para publicar na imprensa nacional e estrangeira, fazia directamente os
contactos telefónicos necessários, marcava as viagens das missões ao
estrangeiro, preparava detalhadas informações sobre os passos conducentes
ao pedido de adesão e, depois deste apresentado, à respectiva evolução, que
eram distribuídos, com a regularidade possível, às embaixadas e missões.
Tudo isto tinha, comparado com a realidade actual, uma enorme lentidão.
Os textos eram dactilografados e as cópias feitas a stencil. O mais pequeno
erro obrigava a refazer tudo desde o princípio. Acompanhava muitas vezes
a tiragem das cópias e ajudava a fazer as colecções. Era informação,
recolhida, não só das negociações, mas também dos telegramas das
Embaixadas bilaterais e da Missão junto das CEE, que era devidamente
trabalhada na Secretaria de Estado, que não se limitava a redistribuir, sem
tratamento prévio, a informação oriunda dos postos, mas a enquadrava
numa visão global do processo negocial.
A partir de certo ponto do processo, a pressão era tal que passei, na
prática, a trabalhar directamente com o Director-Geral, Lencastre da Veiga,
ficando assim separado do Ministro apenas por um grau hierárquico, o que
era, naturalmente, muito motivante para um principiante. Um dia, estava eu
na Repartição a corrigir o texto dactilografado de uma nota informal que
alertava para a necessidade de acelerar as coisas, se quiséssemos apresentar
o pedido de adesão na data pretendida – início de 1977 –, quando Lencastre
da Veiga irrompeu, como era seu hábito, pela sala a dentro e me perguntou
o que estava a escrever. Quando lhe disse do que se tratava, quis ler a nota
e, ao tomar consciência que estávamos realmente a ficar com um atraso
preocupante, pegou nela tal como estava, cheia de rabiscos e emendas à
mão, e levou-a directamente ao Ministro, que imediatamente despachou no
sentido de se proceder conforme ali se propunha, para garantir o
cumprimento dos prazos estabelecidos.
Algum tempo antes da apresentação do pedido de adesão, perguntei a
Lencastre da Veiga se não era prática, antes de um passo com implicações
de tal alcance para Portugal, na frente interna como externa, informar
previamente os nossos principais parceiros não comunitários. Lencastre da
Veiga transmitiu esta sugestão ao Ministro, que a acolheu. Foram pois dadas
instruções, às nossas embaixadas em Washington, Brasil, PALOP e
parceiros EFTA para transmitirem aos respectivos Governos que Portugal ia
apresentar o pedido de adesão às Comunidades Europeias. As diligências
foram praticadas ao mais alto nível.
A iniciativa teve o melhor acolhimento, sobretudo em Brasília, em que o
então Presidente João de Figueiredo manifestou o maior apreço e interesse
pela informação e pediu para ser regularmente mantido ao corrente da
evolução do processo.
A sugestão valeu-me ainda uma menção pelo Ministro. Lencastre da
Veiga tinha a qualidade, rara num chefe, de não se atribuir os méritos dos
trabalhos dos seus subordinados. Fazia questão de apontar sempre ao
Ministro os funcionários responsáveis pelos trabalhos que este dizia
apreciar. Tinha confiança suficiente em si próprio para saber que o seu
papel era orientar e coordenar uma equipa, relevando o melhor de cada um
e não açambarcar e afunilar o trabalho todo. Foi uma lição que procurei
aprender e muitas vezes recordei quando assumi responsabilidades de
chefia.
Em Fevereiro de 1977 redigi o rascunho das três cartas a pedir a adesão
de Portugal aos três organismos que constituíam as então designadas
Comunidades Europeias: Comunidade Europeia do Carvão e do Aço,
Euratom e Comunidade Económica Europeia. Tratava-se de um mero
formulário chapa e burocrático, idêntico ao dos anteriores pedidos de
adesão, que a Comissão nos disponibilizou, onde apenas foi necessário
alterar nomes, datas e actualizar um ou outro dado. Aprovados os textos
pela hierarquia das Necessidades, as cartas subiram ao Primeiro-Ministro,
para assinatura. Nesse tempo, os pedidos de adesão eram entregues em
Bruxelas pelo Embaixador do país candidato ao Embaixador Representante
Permanente do país que detinha a presidência, acto informal e pouco ou
nada mediático. Ora, por qualquer motivo que não recordo, as cartas do
pedido só foram devolvidas, devidamente assinadas, na ante-véspera da tão
almejada data prevista para a sua apresentação, já sem possibilidade de
serem enviadas em tempo por Mala Diplomática, regular ou especial.
Tentou-se recorrer a um expediente então relativamente frequente: pedir
ao piloto do avião da TAP do dia seguinte que as levasse consigo e as
entregasse em Bruxelas a um funcionário da nossa Missão. O piloto
recusou-se, alegando tratar-se de uma grande responsabilidade, que podia
afectar o voo se, porventura, o funcionário que receberia as cartas em
Bruxelas por qualquer motivo se atrasasse, ou houvesse qualquer
desencontro – na altura, recorde-se, não havia telemóvel.
Lencastre, como era seu hábito, recorreu às grandes medidas e mandou-
me ir pessoalmente a Bruxelas levar as cartas ao nosso Embaixador. Lá fui,
exultante com esta missão “histórica”, agarrado às cartas, a pensar – ou
como diria Pessoa, a pensar que não conseguia pensar – que levava ali o
futuro do País.
Nesse tempo eu fumava e tinha um magnífico isqueiro Dupont lacado a
preto, cujo abrir, acender o cigarro e sobretudo o clique de fechar, era uma
liturgia que creio me dava maior prazer do que o fumo propriamente dito –
foi aliás o que mais me faltou quando perdi esse hábito.
O avião da TAP aterrou em Bruxelas, começou o desembarque e, quando
estou já quase a sair do avião, dou porque me tinha esquecido dos cigarros e
do precioso isqueiro. Desviei-me para um lugar já vago e esperei que
saíssem todos os passageiros para voltar ao meu assento a buscar os
cigarros e o isqueiro que, felizmente, ainda lá estavam. Quando finalmente
saí da manga do avião o pobre do Gonzaga Ferreira, o Conselheiro da
Missão que me tinha ido buscar – e às cartas –, estava à beira de um enfarte,
a pensar que eu não tinha vindo.
Era na altura nosso Representante em Bruxelas António Siqueira Freire.
Um grande Embaixador e um grande Senhor. Profissional cujo domínio das
matérias e escrupulosa competência, escondia com uma aristocrática
discrição. Era duma extrema educação e delicadeza e quando, no dia
seguinte, aliviado, lhe entreguei as cartas, disse-me: “Ó homem, já que você
cá está, venha também à cerimónia”. Eu, encantado, lá fui, com a
consciência de ir assistir a um momento histórico, tão mais raro por se
passar longe das luzes da ribalta.
Como desejou David Owen, o nosso pedido de adesão foi apresentado na
Presidência da nossa velha aliada. Lá nos dirigimos pois, no dia 28 de
Março de 1978, à hora aprazada e depois de comer uma sanduíche e beber
uma cerveja numa esplanada da Galerie St. Hubert, para a sede da
Representação – como se designam as embaixadas junto das instituições
europeias – do Reino Unido onde, numa cerimónia curta e despida de
qualquer retórica ou solenidade, o Embaixador Siqueira Freire entregou ao
Embaixador Donald Maytland as três anódinas cartas que mais mudaram
Portugal no século XX.
Não resisto a contar uma história, que nada tem a ver com o nosso pedido
de adesão, mas que é um exemplo do sentido lúdico que temo seja menos
comum na actual diplomacia britânica. Siqueira Freire era um homem
relativamente baixo. Como temos dos ingleses a ideia de um povo alto, pelo
menos em geral mais altos do que nós, ficou-me na memória que Donald
Maytland me surpreendeu por ter bem à vontade menos uma mão travessa
do que o nosso Embaixador. Mais tarde li, num livro sobre o Foreign
Office, que, quando Embaixador nas Nações Unidas, Sir Donald Maytland
recebeu instruções para fazer uma diligência ao mais alto nível junto da
Representação islandesa, a propósito das então sucessivas disputas de pesca
entre os dois países. O Embaixador islandês tinha dois metros de altura.
Donald Maytland pediu para o ir ver, entrou-lhe no gabinete, trepou para
cima da secretária do islandês e disse “recebi instruções para fazer uma
diligência ao mais alto nível”.
Formalizado o pedido de adesão português, seguido poucos meses depois
pelo pedido espanhol, a Comissão começou a preparar o parecer sobre
ambos, o que então se designava como “Fresco”, que implicava uma
sucessão de reuniões, em Lisboa e em Bruxelas, em que eu participava
como Secretário da Comissão de Integração Europeia, experiência que
constituiu uma excelente escola de negociação. Nesse quadro, cabia-me
acompanhar o Director-Geral da Comissão encarregado da preparação dos
“Frescos”, o Sr. Duchateaux, cada vez que vinha a Portugal. Um dia fui
esperá-lo ao aeroporto para seguirmos directamente para uma reunião.
Duchateaux chegou, respirou fundo e disse “que alívio chegar a Lisboa para
negociar a adesão de Portugal às Comunidades. Venho de Madrid, onde eles
estão a preparar a negociação da adesão das Comunidades à Espanha”. As
negociações de adesão com a Espanha foram efectivamente mais complexas
do que as de Portugal. Já o prevíamos, aliás, e por isso tinha sido relevante
apresentar o nosso pedido antes que o nosso vizinho o fizesse. Mas a
própria dimensão da Espanha, o seu peso económico, o chamado “cheque
agrícola” – o montante dos subsídios da Política Agrícola Comum que a
Espanha, uma vez membro das CEE, ia receber –, fazia com que a adesão
espanhola mexesse com muitos mais interesses do que a nossa. Foi a
complexidade do caso espanhol e a inviabilidade política de aderirmos
antes da Espanha, que ditaram os sete longos anos que mediaram entre a
apresentação do nosso pedido de adesão e a assinatura do Tratado, no
cenário magnífico dos claustro dos Jerónimos.
O desabafo de Duchateaux reflectia a índole dos negociadores espanhóis,
menos rodados nos meandros da diplomacia multilateral e europeia –
recorde-se que a Espanha não só ficara fora do processo de integração
económica europeia do pós-guerra, enquanto nós pertencíamos à EFTA,
como não era então membro da NATO –, muito ciosos da sua soberania,
que teriam dificuldade em partilhar – e essa partilha de soberania para a
gerir em conjunto era o cerne do que estava em causa nas negociações.
Portugal pediu a adesão às CEE como membro de pleno direito. Essa
opção não foi pacífica, quer nos meios comunitários, quer mesmo em
Portugal. Muitos pensavam mais prudente passar primeiro por uma fase de
associação, ou eventualmente por um estatuto, “a inventar”, de pré-adesão.
Foi um período duro, de contactos, viagens, negociações, para convencer as
chancelarias mais renitentes de que só a adesão plena servia os nossos
propósitos, no campo económico, mas sobretudo político. Não só porque a
adesão constituía um factor de consolidação da ainda titubeante democracia
portuguesa, onde se sentiam os resquícios das tentações golpistas da
extrema-esquerda e do PCP, como porque um país como Portugal não podia
entrar para um clube de partilha de soberania com uma “diminutio capitis”,
ou como uma espécie de sócio de segunda classe.
Também em Portugal havia, como disse, dúvidas sobre qual o estatuto
que mais nos convinha, baseadas sobretudo, creio, no temor que a nossa
economia não estivesse preparada para a adesão. Essa divergência interna
pública vulnerabilizava a nossa posição junto dos Estados-membros mais
renitentes, o que preocupava a Comissão, que apoiava a nossa pretensão
como a única que fazia sentido no quadro europeu. Por isso Duchateaux,
numa das suas vindas a Portugal, pediu para se encontrar com os líderes do
PSD e do CDS, partidos que mantinham reserva em relação à adesão plena.
Acompanhei-o nessas reuniões. E foi com a maior surpresa que, ao entrar
no gabinete, Sá Carneiro, que eu não conhecia pessoalmente, este levantou-
se e, dirigindo-se a Duchateaux, disse-lhe, num francês ao menos tão bom
como o deste, “já sei ao que vem. Não se preocupe. Sei perfeitamente que
só a adesão plena faz sentido. A nossa é uma mera posição táctica de
política interna. No momento oportuno daremos o necessário apoio à
posição do Governo”.
A luta pelo “Sim” ao pedido de adesão não foi fácil. Exigiu um intenso
empenhamento da nossa diplomacia, sobretudo das embaixadas nos Nove,
contactos com aliados, uma intensa articulação comandada com mestria de
Lisboa por Lencastre da Veiga apoiada na orientação clara e na perspectiva
histórica do Primeiro-Ministro Mário Soares e do Ministro Medeiros
Ferreira. Este, nas declarações que prestou à imprensa no regresso de uma
viagem a uma capital menos entusiasta, não hesitou em correr o risco de
afirmar categoricamente, em relação ao pedido, que se tratava de uma
situação de “ou tudo ou nada”, ou seja, ou a adesão como membro de pleno
direito, ou rejeitaríamos qualquer estatuto menor ou de transição. Não tenho
dúvida que essa corajosa declaração constituiu uma viragem na posição de
parceiros mais renitentes à adesão plena de Portugal, que acabaram por
compreender a aberração e inviabilidade política de um estatuto alternativo.
Foi a minha primeira oportunidade de apreciar a nossa diplomacia em
funcionamento, sempre capaz de se alçar ao nível exigido quando o poder
político lhe traça linhas e objectivos claros e de compreender que Portugal
pode alcançar as suas pretensões quando defende, sem medo, os seus
interesses, desde que, é claro, estes sejam justos e sensatos.
Em Março de 1978 deixei, não sem alguma nostalgia, a pasta das CEE,
para ir para o Gabinete do novo Ministro, Sá Machado, onde só de longe
seguia o processo.
Em Outubro desse ano fui colocado em Nova Iorque, na nossa Missão
junto das Nações Unidas, quando Portugal foi pela primeira vez membro do
Conselho de Segurança. Tinha como chefes dois embaixadores
excepcionais, Vasco Futscher Pereira e Leonardo Mathias. Foi um período
entusiasmante, mas sem qualquer ligação à Europa. Quando em 1981
Leonardo Mathias foi nomeado Secretário de Estado dos Negócios
Estrangeiros, no segundo Governo da AD, liderado por Francisco Pinto
Balsemão, convidou-me para seu Chefe de Gabinete, convite a que não
resisti, não só pela já antiga amizade que nos ligava e liga, como pela
óptima experiência que tinha sido trabalhar com ele e pela relação de
confiança que entre nós se criara. Deixei, confesso que com alguma pena,
Nova Iorque e, enquanto ocupei as funções de Chefe de Gabinete, só
episódica e marginalmente me ocupei de assuntos europeus.
Em 1982 acompanhei Leonardo Mathias, que foi nomeado Embaixador
em Washington. Foi o período exaltante da Administração Reagan, com o
conhecido desenvolvimento das relações Leste/Oeste, de que eu me
ocupava na Embaixada, assim bem como dos contactos com o Congresso,
peça essencial do processo de decisão americano, que não deixa muito a
desejar em complexidade ao comunitário.
Em Julho de 1985 e após a assinatura do Tratado de Adesão às
Comunidades Europeias, Portugal passou a participar, como observador, no
chamado período de pré-adesão, nas reuniões de coordenação comunitária
em Washington. A nossa era, a seguir à do Luxemburgo, a mais pequena
embaixada europeia na capital americana.
Julgo que somos o único País que não compreendeu que Washington é a
maior “organização multilateral” do Mundo, e a única com real poder (ou
pelo menos era nessa altura). Assim, enquanto países como a Dinamarca ou
a Bélgica tinham dez ou doze diplomatas, (os britânicos cerca de oitenta),
com números dois que em alguns casos já tinham exercido funções de
embaixador, e conselheiros económicos, comerciais (os franceses tinham
55), financeiros, sociais, culturais, científicos (os alemães 37), agrícolas,
consulares, de imprensa, alguns deles antigos directores-gerais das suas
áreas, nós éramos meia dúzia de gatos pingados de carreira, e cinco ou seis
conselheiros técnicos, alguns dos quais contratados locais. Tínhamos, pois,
que nos desdobrar por todas as reuniões de coordenação comunitária, a que
se juntava a área política, a cargo dos Embaixadores e dos denominados
DHM (Deputy Head of Mission).
A mim, dada a minha prévia e relativa experiência comunitária,
naturalmente nesse tempo rara entre nós, coube-me acompanhar as reuniões
financeiras, comerciais e agrícolas, onde as restantes embaixadas estavam
representadas por um funcionário diferente em cada uma. Por vezes
surgiam nas reuniões questões que, pela sua proximidade, implicavam estas
três áreas e eram sempre os ingleses que, com o inigualável sistema de
coordenação interna do Foreign Office, as conheciam e procuravam
conciliar. Mas a pouco e pouco, para espanto dos meus colegas estrangeiros
que não sabiam que eu participava nas reuniões das outras áreas, passei
também a contribuir para a articulação destes diversos sectores, o que deve
ter subido a consideração pela capacidade de coordenação da nossa
diplomacia.
Em finais de 1985 fui chamado a fazer um estágio em Bruxelas, no
âmbito de um programa de formação e preparação de diplomatas
portugueses, com vista à próxima adesão. Programa bem intencionado mas,
ao menos no que me diz respeito, e ressalvado o aspecto gastronómico em
que Bruxelas é imbatível, pouco profícuo.
Concretizada a adesão em 1 de Janeiro de 1986, decidiu o Ministro Pires
de Miranda convidar Leonardo Mathias para assumir a complexa e sensível
chefia da Representação Permanente de Portugal junto das Comunidades
Europeias (REPER, designação também comumente dada ao Representante
Permanente).
Como já disse, eu trabalhava com ele desde 1978, primeiro na Missão
junto das Nações Unidas, em Nova Iorque, onde Mathias era Representante
Permanente Adjunto, depois como seu Chefe de Gabinete e, então, em
Washington. Unia-nos, e une-nos, uma sólida amizade. O relacionamento
entre os dois, pessoal como profissional, foi sempre excelente. Leonardo
Mathias foi, sem dúvida, o meu principal mestre nas artes da diplomacia.
Mas tínhamos concordado que, mesmo que a oportunidade se apresentasse,
Washington seria a última vez que trabalhávamos juntos, pois a minha
carreira tinha de se autonomizar.
Contudo, quando o Ministro lhe pediu que assumisse a responsabilidade
de chefia da nossa Representação Permanente junto das Comunidades
Europeias, permitindo-lhe escolher a sua equipa, Leonardo Mathias não
hesitou e disse-me que, sendo eu na altura um dos poucos diplomatas com
experiência numa área que até então lhe fora estranha e uma pessoa da sua
inteira confiança, não dispensava que o acompanhasse para mais este
desafio da sua invulgar carreira, desafio que aceitei com o maior gosto e
entusiasmo.
Fui pois transferido para a dita Representação Permanente em Bruxelas
em Julho de 1986, onde servi até 1990, como “Antici”, nome dado aos
membros do grupo do mesmo nome, que alcançou uma imagem quase
mítica nos meandros do Conselho das então Comunidade Europeias por
razões que abaixo explicarei.
Para tal, haverá que fazer uma pequena incursão pelo processo de decisão
comunitário e pela estrutura e funcionamento das Representações
Permanentes dos Estados-membros junto das então Comunidade Europeias.
Segundo o Tratado de Roma, na sua versão original de 1957, a Comissão
detém, no processo de decisão comunitário, o exclusivo da iniciativa. No
exercício desse poder, a Comissão elabora propostas que apresenta ao
Conselho de Ministros, instituição que detém o poder de decisão.
Tais propostas são submetidas à apreciação dos Estados e sujeitas, nos
múltiplos grupos de trabalho do Conselho, a negociações com o objectivo
de procurar conciliar os interesses, por vezes, se não quase sempre, não
coincidentes, ou mesmo divergentes, dos Estados-membros, com vista à sua
aprovação ou rejeição final a nível político.
O Tratado de Roma encontrou uma inteligente fórmula para assegurar que
a Comissão, como detentora da iniciativa, mas também como garante do
Tratado e do interesse comum, tenha uma posição crucial nesse processo: o
Conselho só pode alterar as suas propostas, ou por acordo negocial com a
Comissão, ou por unanimidade dos Estados-membros. Quer dizer, ou a
Comissão dá o seu acordo às alterações que o Conselho pretenda introduzir,
ou só podem ser aprovadas pela unanimidade dos Estados-membros. Trata-
se pois de um complexo e difícil processo negocial, muitas vezes moroso.
Essa negociação, antes de subir ao nível político, é conduzida ao nível
técnico em múltiplos grupos de trabalho, formados por técnicos
competentes em cada sector (agricultura, veterinária, energia, indústria,
comércio externo, etc.) que reúnem regularmente em Bruxelas. Por isso e
também para assegurar a representação junto das instituições europeias,
cada Estado membro dispõe, em Bruxelas, de uma missão designada por
Representação Permanente, chefiada por um Embaixador Representante
Permanente e composta por diplomatas e técnicos competentes nos
múltiplos sectores por onde se desdobra a acção das Comunidades, que,
com os diversos tratados que alteraram o Tratado de Roma, se estende hoje
também à política externa segurança e defesa e à justiça e administração
interna, o que à época não sucedia ainda.
Os Representantes Permanentes reúnem num órgão pouco conhecido do
público, mas que desempenha um papel crucial no processo de decisão
comunitário: o Comité dos Representantes Permanentes, designado por
COREPER, que desempenha um papel charneira no processo de decisão
comunitária.
Neste quadro, uma vez apresentadas as propostas da Comissão, são
entregues aos grupos técnicos que procuram chegar a um acordo, ao seu
nível. Quando se dá por concluído o trabalho do grupo, ou porque se
chegou a acordo, ou porque não foi possível atingi-lo, a proposta,
acompanhada de um relatório dando conta do estado das negociações no
grupo de trabalho, passa para o Comité de Representantes Permanentes que,
ou endossa o acordo atingido ou, se não há acordo, procura atingi-lo ao seu
nível. Em função do resultado do trabalho no COREPER, ou se obteve
acordo e a proposta sobe ao Conselho de Ministros para mera aprovação
formal ou, caso contrário, a negociação prossegue ao nível político, até se
chegar a uma conclusão.
É o COREPER que prepara o Conselho de Ministros, detentor do poder
de decisão ao nível político, ao qual cabe aprovar, ou não, as propostas
legislativas que lhe são submetidas, resultantes da negociação das propostas
da Comissão nos grupos técnicos e no COREPER. Tratando-se de normas
que produzem efeito imediato ou mediato na ordem interna dos Estados-
membros, com as consequentes repercussões económicas e sociais, a
descrição deste processo dá, creio, uma ideia da responsabilidade enorme
do trabalho da REPER.
Para cobrir todo o longo espectro de competências das Comunidades
Europeias o Conselho de Ministros reúne em diversas composições,
Assuntos Gerais, Negócios Estrangeiros, Agricultura, Finanças, Energia,
Mercado Interno, Justiça e Administração Interna, etc. A fim de
corresponder a esse larguíssimo leque de competências, foi sentida a
necessidade de estabelecer dois Comités de Representantes Permanentes,
seguido um pelos Representantes Permanentes e o outro pelos
Representantes Permanentes Adjuntos, que acompanham os Conselhos de
Ministros da sua área de competência com total autonomia, o que faz que
este cargo pouco conhecido seja um dos mais relevantes da diplomacia de
todos os Estados-membros, certamente mais importante do que a maioria
das embaixadas bilaterais.
Por razões inexplicáveis, mas típicas da União Europeia, designa-se como
COREPER II o comité dos Representantes Permanentes e por COREPER I
o dos Representantes Permanentes Adjuntos.
O COREPER II trata dos temas mais globais e com maior incidência
política, entre eles, nesse tempo, o chamado Conselho dos Assuntos Gerais,
que, além da competência própria, tinha a seu cargo a coordenação geral de
toda a actividade da CEE e a preparação do Conselho Europeu composto
então pelos Chefes de Estado e de Governo e pelos Ministros dos Negócios
Estrangeiros.
A multiplicidade de áreas de competência do COREPER e a crescente
dificuldade que as sucessivas presidências iam encontrando para
coordenação, com as respectivas capitais, com as restantes REPER e
mesmo dentro da própria REPER nacional, e ainda com o Secretariado
Geral do Conselho e a Comissão, levou a que numa presidência italiana nos
anos setenta o Embaixador criasse um grupo encarregado de organizar as
reuniões do COREPER. O primeiro presidente desse grupo foi um
diplomata italiano, de nome Paolo Massimo Antici, que vim a conhecer, já
Embaixador jubilado, quando representou a Itália na reunião informal dos
Ministros da Juventude, no Funchal, durante a nossa Presidência de 1992.
A princípio a função do Grupo Antici era preparar e ordenar a complexa
agenda do COREPER II. Cabia-lhe sobretudo ajustar a ordem da agenda,
tentando coordenar o momento em que tinham de estar presentes os
múltiplos técnicos – comércio externo, ambiente, finanças, etc. –, da
REPER e vindos das capitais, a quem cabia assistir o Embaixador nos
diversos pontos da agenda.
Sendo o COREPER a “locomotiva” da actividade das Comunidades, o
grupo Antici foi inevitavelmente adquirindo crescente relevância e os seus
membros estavam normalmente entre os quatro ou cinco diplomatas mais
graduados das enormes missões junto das Comunidades. O Antici alemão
do meu tempo, por exemplo, vinha de Embaixador no Brunei. Além disso, a
pouco e pouco, o grupo foi adquirindo competências mais alargadas, com
projecção na “política” da Missão, como ultrapassar impecilhos vindos dos
grupos técnicos, fixar o objectivo do debate de cada ponto da Agenda e o
modo como seria abordado no COREPER, bem como combinar diversos
detalhes processuais e logísticos, não só do COREPER e do Conselho de
Ministros, como do próprio Conselho Europeu. Por vezes, dada a discrição
em que prosseguia a sua actividade, por não haver interpretação nem
relatórios escritos das respectivas reuniões, era encarregado de procurar
encontrar soluções negociadas para questões de particular melindre.
Os membros do grupo Antici, os anticis, como se diz na gíria
comunitária, transformaram-se nos mais próximos e directos colaboradores
dos Representantes Permanentes, uma espécie de seus chefes de gabinetes
que, no interior de cada Representação, foram adquirindo um crescente
papel de coordenação.
Além disso, por inerência das funções que desempenham, têm “lugar
cativo”, tão apetecido pelos outros funcionários, nas reuniões dos
Conselhos de Ministros da área do COREPER II e são, além do Primeiro-
Ministro e do Ministro dos Negócios Estrangeiros, os únicos funcionários
das delegações nacionais aos Conselhos Europeus que têm acesso nominal
à zona reservada onde, numa sala própria, são regularmente brifados
pelos“note-takers” do Secretariado Geral do Conselho sobre o
desenvolvimento dos trabalhos do Conselho Europeu, alimentando com
essas notas as delegações nacionais.
É também a eles que, quando estão em reunião, os Chefes de Estado e de
Governo recorrem se necessitam de apoio ou de falar com algum outro
membro da delegação. Este acesso pessoal à zona reservada dos Conselhos
Europeus, a instância máxima do poder europeu, acesso não concedido
sequer a Secretários de Estado ou ao próprio Representante Permanente, aos
Directores-Gerais ou aos membros dos gabinetes, tornava-se objecto de
inveja por parte dos outros membros das numerosas delegações às cimeiras
europeias, tendo por vezes provocado, aos meus colegas anticis e a mim
próprio, situações caricatas, sobretudo quando, como sucedia ainda no final
dos anos oitenta, a cerveja e o whisky eram servidos livremente desde
manhã nas áreas abertas às delegações.
No tempo em que os Conselhos Europeus tinham lugar no país que
exercia a Presidência, na véspera da respectiva reunião o Grupo Antici fazia
uma visita aos locais onde o Conselho se ia desenrolar, para os ficar a
conhecer e poder, no dia seguinte, orientar os “Chefes”. Em Copenhague,
em 1987, o nosso colega dinamarquês mostrou-nos, ufano, as instalações do
recém e bem restaurado antigo armazém onde o Conselho Europeu ia ter
lugar, incluindo, naturalmente, a casa de banho que os Chefes de Estado e
de Governo poderiam utilizar. Aí, ouviu-se a voz do Antici britânico, com
fleumático gozo a perguntar “e a casa de banho das senhoras?” O
dinamarquês ficou lívido. Tinham esquecido logo a Sra. Thatcher.
As Representações em Bruxelas não são embaixadas como as outras, em
que existe uma coordenação em linha hierárquica vertical. Pela vastidão da
sua competência, que abarca a prática totalidade das matérias de que os
Estados se ocupam, estão, como acima disse, organizadas como uma esfera
dividida ao meio, cabendo ao Representante Permanente (COREPER II)
uma meia esfera e ao Representante Permanente Adjunto (COREPER I) a
outra metade. Pela diversidade e complexidade de temas que tratam, essas
meias esferas raramente se juntam ou têm de juntar. Por isso, na maioria das
missões, como na portuguesa, na ausência dos Embaixadores são os anticis
que substituem os Representantes Permanentes no COREPER II, cujos
trabalhos os Repers Adjuntos não podem acompanhar, pois vivem
assoberbados de trabalho com as suas complexas e sensíveis competências
e responsabilidades. Tal permitiu-me viver alguns episódios que não resisto
a recordar.
Era pois eu que substituía o Embaixador nas suas ausências nas reuniões
do COREPER II. Porém, uma vez em que Leonardo Mathias teve de ir a
Lisboa acompanhar uma visita de Jacques Delors, pediu-me que fosse um
colega mais velho, que se ocupava então das relações comerciais com os
países ACP (América, Pacífico e Caraíbas), a usar da palavra quando esse
ponto fosse suscitado no COREPER. Tratava-se de saber se os Estados-
membros podiam levantar as reservas que tinham colocado quanto à
abertura a esses países do mercado de certos produtos agrícolas. A
presidência vai dando a palavra às diversas delegações. Quando chega a
nossa vez, passo o microfone ao dito colega, pessoa de invulgar cultura mas
de equiparável grau de distracção, que diz, com ar feliz, “podemos levantar
a reserva em relação aos morangos, mas temos de manter a reserva em
relação ao tomate. Mantemos também a reserva quanto ao pepino (sorriso
aberto na cara do Representante grego), não porque tenhamos problemas
próprios (sorriso menos rasgado do grego) mas a pedido de uma delegação
(ar contraído do grego) cujo nome não posso dizer e que é a Grécia (o grego
a enfiar-se debaixo da mesa)”. Perplexidade na sala. Julgo que consegui
manter durante todo o episódio uma expressão inalterada.
Nesse tempo, ainda só com 12 Estados-membros, era tradição, que o
Embaixador do país que detinha a Presidência oferecesse um almoço na
residência, no primeiro COREPER a que presidia. Em Julho de 1990 o
Embaixador Simões Coelho, que substituíra Leonardo Mathias, deixou o
posto antecipadamente, por razões de saúde. O almoço da então Presidência
italiana teve lugar no período de transição entre a sua saída e a chegada do
seu sucessor, Paulouro das Neves. Eu estava pois a assegurar a nossa
presença no COREPER e fui ao almoço, onde prosseguia o trabalho da
reunião.
O Embaixador de Itália era Di Roberto. Substituíra Calamia,
verdadeiramente um dos patrões do COREPER, que conhecia de trás para a
frente matérias e procedimentos, e esgrimia com invulgar destreza, eficácia
e inteligência argumentos em defesa dos interesses do seu país. O prestígio
que lhe conferia a sua reconhecida autoridade e competência, concedia à
Itália um peso de primeira grandeza nas deliberações do COREPER e, por
arrasto, do Conselho. Foi afastado e substituído pouco antes da presidência
italiana por se ter incompatibilizado com o seu novo Ministro, De Michelis,
ao que se dizia por ter procurado fazer-lhe ver que não podia alongar-se, nas
sessões dos Conselhos de Ministros comunitários, em infindáveis arengas
estranhas aos assuntos que estavam a ser tratados. Durante os anos em que
continuei a acompanhar os assuntos europeus, creio que a Itália não voltou
a ter o peso que Calamia lhe conferira. Foi a primeira vez que compreendi o
enorme mal que os políticos podem fazer ao seu próprio país quando, com o
entusiasmo dos novatos, não ouvem os que conhecem os assuntos e as
rotinas.
Di Roberto era uma figura picaresca, de pequena estatura, franzino,
saltitante, recém chegado e com pouca experiência comunitária. Durante a
manhã deixou as discussões do COREPER arrastarem-se, não tirava
conclusões, permitia que se reabrissem pontos, para desespero do
experiente e competentíssimo Secretário-Geral do Conselho, o embaixador
dinamarquês Ersboll, cujos conselhos e orientações não parecia
compreender que devia, e era sobretudo da sua conveniência, seguir, como
faziam colegas bem mais experimentados do que ele quando assumiam a
presidência. Havia na agenda dois ou três pontos bastante controversos e a
reunião chegou ao fim da manhã com um grau de conflitualidade maior que
o habitual, justamente pela falta de competência da presidência. Foi com
esse ambiente que fomos para o almoço, onde a discussão continuou
agitada.
Ao longo do almoço fui-me apercebendo de uma considerável agitação
no serviço. Os empregados andavam visivelmente nervosos. Ouvia-se o cair
de loiças e talheres na cozinha. De vez em quando, um empregado
aproximava-se do anfitrião e sussurrava-lhe ao ouvido qualquer coisa que o
fazia reagir impaciente. A certo ponto, uma empregada que eu até aí não
tinha visto, aproximou-se de Di Roberto com um ar sereno e severo e, de
mãos atrás das costas, segredou-lhe ao ouvido qualquer coisa que o deixou
lívido e suspenso. A discussão prosseguia, acesa. O dono da casa advertiu
uma ou duas vezes, “já é tarde, temos de parar, continuamos no
COREPER”. Mas um ou outro embaixador insistia em fazer mais um ponto,
dizer mais uma coisa. Até que Di Roberto, com um tom mais determinado
na voz, disse, “meus senhores, temos de terminar. A minha sogra acaba de
morrer no andar de cima. A reunião prossegue às cinco e meia na sala do
COREPER”. Creio que em trinta segundos deixámos a residência italiana.
No elevador, de regresso ao último andar do edifício Charlemagne, então
sede do Secretariado Geral do Conselho, onde tinham lugar as reuniões,
comentámos que o mais provável era que Di Roberto não regressasse
naquela tarde e tivesse de ser substituído pelo Embaixador do Luxemburgo,
Joseph Weygand, a quem cabia a presidência seguinte. Fui pois descansado
para a sala da delegação portuguesa começar a preparar o telegrama com o
relato da reunião do COREPER, função que cabe também aos antici. Às
cinco e pouco avisaram-me de que a reunião ia recomeçar. Subi e ao entrar
na sala vejo o bom do Di Roberto, com o mesmo ar feliz da manhã, mas de
gravata preta.
Faz parte das atribuições do REPER brifar o seu Ministro antes das
reuniões do Conselho, pondo-o a par do modo como se prevê que os pontos
controversos da Agenda sejam abordados, bem como dos interesses e das
tendências em jogo. Em Junho de 1990, tive de ser eu a fazer esse briefing
pois, quando íamos partir para o Luxemburgo, onde o Conselho reúne nos
meses de Abril, Junho e Outubro, o Embaixador Simões Coelho adoeceu. O
tema quente da Agenda do Conselho era a proposta da presidência alemã de
uma Declaração das Comunidades Europeias felicitando-se pela evolução
para a democracia da Polónia, Hungria e Checoslováquia e traçando a
perspectiva do seu acolhimento no seio da Europa. No fundo, uma
declaração saudando o fim do comunismo nos três países do grupo de
Visegrado e prometendo-lhes a meta de adesão às Comunidades como meio
de os incitar no sentido da consolidação da Democracia. Como tinha
sucedido connosco, a Grécia e a Espanha, após 74.
Participava essa noite no briefing o Secretário de Estado dos Assuntos
Europeus. O Ministro chegava na manhã do dia seguinte. Os nossos
técnicos da área do comércio traziam de Lisboa a indicação de que Portugal
se devia opor a essa declaração, pois temiam a concorrência desses países
com a nossa indústria têxtil. Tive de argumentar, numa longa discussão, que
Portugal, país fundador da NATO, não se podia excluir e muito menos opor,
por causa dos têxteis, por justificada que fosse a necessidade de defender a
nossa indústria e o nosso emprego, a uma declaração que celebrava a
derrota do comunismo na Europa de Leste e a vitória do Ocidente, da
NATO de que éramos membro fundador, da própria Comunidade Europeia
e dos valores que as informavam, ao fim de 40 anos de confronto político
com o bloco soviético, que estávamos a vencer. Não cederam. Acabei
advertindo que no dia seguinte o Conselho de Ministros das Comunidades
Europeias iria aprovar por unanimidade a declaração em causa, com ou sem
o assentimento de Portugal. Esgrimiram-se, é claro, argumentos jurídicos,
que tentei dizer seriam inócuos perante o peso da realidade política. No dia
seguinte de manhã cedo, coube-me, estando ausente o Embaixador, ir
esperar o Ministro ao aeroporto. A viagem para a cidade permitiu-me expor-
lhe a realidade crua do que estava em jogo, que ele, com a sua perspicácia
política, compreendeu. Na discussão que precedeu a aprovação da
inevitável declaração procurámos, como outros países, salvaguardar
interesses nacionais “afinando” a linguagem das perspectivas que ela abria
aos três países no plano económico. A certo ponto Genscher deu a
Declaração como aprovada por unanimidade, embora três ou quatro
ministros ficassem de braço no ar a tentar, não opor-se à substância, mas a
detalhes de redacção. Era evidente que não se podiam contrapor interesses
individuais, por legítimos que fossem, à saudação da vitória de décadas de
Guerra Fria.
Tive a sorte de exercer as funções de Antici, de 1986 a 1990, num período
particularmente rico da História da integração europeia, com uma Europa
ainda a doze, o que levava a que as decisões e as negociações que a elas
conduziam decorressem nas próprias reuniões dos Conselhos de Ministros e
dos Conselhos Europeus, em discussões por vezes longas e duras, a cujo
conteúdo os Antici tinham acesso directo, ou porque a elas assistiam no
caso do Conselho de Ministros, ou porque eram brifados quase
imediatamente pelos serviços do Secretariado Geral do Conselho, no caso
dos Conselhos Europeus.
Foi nesse período que se aprovaram o Acto Único, a primeira e talvez
mais positiva alteração ao Tratado de Roma, o Pacote Delors I, reforçando o
sentido de solidariedade e consolidando as políticas estruturais como
prioritárias, que se deu a queda da União Soviética e do Muro de Berlim e
se avançou para a reunificação da Alemanha, para a Moeda Única, para a
União Política. Iniciou-se também a transição dos avanços cautelosos da
integração para voos mais ousados e voluntaristas, cujo efeitos hoje
vivemos.
Recordo o Conselho Europeu de Estrasburgo, em 1998, em que os note
takers do Secretariado Geral nos iam dando conta da intervenção intensa e
emotiva em que Kohl, colhendo os colegas de surpresa, apelou à aprovação,
naquele mesmo dia, de uma declaração política das Comunidades Europeias
a favor da reunificação da Alemanha. Foi a mais arrebatada e política
intervenção de Kohl a que assisti, mas não foi recebido com grande calor
pelos seus homólogos. Embora se tratasse de um desfecho que estava nas
cartas, ninguém pensava que tivesse chegado já o seu tempo. Fomos
tomando nota das reacções pouco entusiastas e mais ou menos subtis dos
diversos Chefes de Governo. A reacção mais extrema foi a do Primeiro
Ministro holandês, Lubbers, o qual, sem cerimónias, retorquiu, “over my
dead body”, linha que o Chefe do Governo dinamarquês seguiu, embora,
segundo me lembro, em tom menos vigoroso.
A discussão tornou-se mais acesa nos outros temas da Agenda e outros
interesses foram cruzados. No fim, Kohl obteve a sua inevitável declaração.
Menos de um ano depois chumbou irremediavelmente o nome de Lubbers
para suceder a Delors à frente da Comissão Europeia.
Surpreendeu-me, neste episódio, a força que ainda tinham, em 1988 os
ressentimentos da Segunda Guerra Mundial, a que fomos poupados.
Assisti nesse período à consagração de Jacques Delors como um líder de
estatura europeia e à resposta que estadistas como Kohl, Mitterrand ou
González, deram aos desafios que a História lhes apresentou.
O percurso de Delors é, nesse plano, exemplar das vicissitudes da história
e da condição humana. Dotado de inegável perspectiva histórica e visão
estratégica, Delors foi capaz de gizar o caminho que retirou a Europa de um
certo marasmo em que tinha caído, e a levou a enfrentar os principais
desafios que se lhe deparavam, como o avanço do Mercado Único e a
revisão da Política Agrícola Comum, com um peso no Orçamento
comunitário cada vez mais injustificado e desfasado da realidade. Foi nesse
contexto que apresentou a proposta da política de coesão para, em
contrapartida do Mercado Único, responder à necessidade de atenuar as
assimetrias económicas acentuadas pelos novos Estados-membros (Grécia,
Portugal e Espanha), mas também por regiões de países mais desenvolvidos
que não apanharam o comboio do crescimento. Com coragem e liderança
enfrentou os interesses dos Estados-membros que as suas reformas iam
afectar. Com inteligência gizou os equilíbrios onde todos tinham mais a
ganhar do que a perder.
Após longas e duras negociações, tudo parecia conjugado para que no
Conselho Europeu da Presidência dinamarquesa, em Dezembro de 1987, se
chegasse a acordo sobre o que viria a ser o Pacote Delors I. Esteve-se
próximo e muitos se esforçaram nesse sentido. Recordo a intervenção
verdadeiramente inspirada do Primeiro-Ministro Cavaco Silva, que juntou a
sólidos argumentos económicos uma verdadeira perspectiva política
europeia que inseria uma visão lúcida do interesse nacional. Nada, porém,
demoveu os alemães, que se opunham obstinadamente à redução dos
subsídios da PAC – ou que, segundo outros, queriam que a aprovação deste
pacote de medidas, reconhecidamente histórico, fosse aprovado na sua
presidência, que começava no mês seguinte. Kohl chamou mesmo a
Copenhaga o Ministro da Agricultura, para se tentar um acordo de última
hora. Não foi porém possível porque, como o Ministro disse à imprensa,
não permitiria que os agricultores alemães fossem obrigados a trocar os
Mercedes por Opéis Corsa. Foi o impasse. Era visível a desilusão da
Presidência dinamarquesa, que viu injustamente soçobrar o notável esforço
que tinha feito. O desenlace desse Conselho foi visto como uma derrota
pessoal do Presidente da Comissão e das suas propostas.
A estrela de Delors caiu a pique. Reagiu mal, com amargura e irritada
frustração. Diversamente dos seus sucessores, Delors assistia sempre às
reuniões do Conselho dos Assuntos Gerais, o dos Ministros dos Negócios
Estrangeiros, e participava activa e empenhadamente nas negociações que,
com a sua inteligência, domínio das matérias e realista perspectiva do
interesse europeu, fazia avançar e levar a bom porto. Recordo-me tantas
vezes de vê-lo vir para a sala a seguir ao almoço do Conselho, onde os
trabalhos prosseguiam, com o seu copo de Bordeaux. Dava gosto ver a
clareza de propósitos, a independência, a firmeza, o bom senso, com que ia
conduzindo os debates.
Porém, no Janeiro a seguir ao Conselho Europeu de Copenhaga, não foi
assim. No almoço do primeiro COREPER da presidência alemã, Delors
mostrou-se enervado, irritado, impaciente. Embirrou com o modelo de
participação da Comissão nas reuniões do G7, que ia ocorrer pela primeira
vez e que ali estava em apreciação. Abandonou a sala. Regressou a
contragosto. No dia seguinte dava-se por contado que “estava arrumado”,
que não seria reconduzido no fim do seu mandato. Mas Bona decidiu
retomar as negociações do “seu” pacote. Delors, como um leão, mobilizou
as suas forças, excedeu-se na procura de soluções e compromissos, avocou,
como lhe competia, a condução das negociações.
Em Fevereiro as coisas estavam suficientemente maduras para que os
alemães convocassem um Conselho Europeu extraordinário, Conselho em
que, às tantas da madrugada, foi aprovado o Pacote Delors, viragem
verdadeiramente histórica da política comunitária. Foi unanimemente
reconhecido o papel decisivo que o Presidente da Comissão jogou em todo
esse processo, como decorre de lhe ter sido atribuído o seu nome. Ao
contrário do que vim a experimentar quando era Secretário de Estado nas
negociações das Perspectivas Financeiras 2007-201311, a proposta em
negociação era a da Comissão e não das presidências e o interlocutor de
cada país era Delors. Creio poder afirmar que foi aí que afirmou o nome e o
prestígio de que merecidamente goza na História da Europa.
Não esqueço esse Conselho de Fevereiro 1989. Como disse, o Conselho
prolongou-se pela madrugada. Julgo que acabou por volta das três da
manhã. Como sempre estávamos na “sala Antici”, ao lado da sala onde
reuniam os Chefes de Estado e de Governo. Os “Note-takers” do
Secretariado Geral saíam da sala do Conselho e vinham imediatamente
ditar-nos as suas notas, com que alimentávamos as respectivas delegações
nacionais sobre o que ia ocorrendo. De vez em quando, os nossos chefes
chamavam-nos à sala para pedir qualquer informação, requerer um
contributo ou chamar alguém da delegação. Ali estávamos, há mais de doze
horas, mas com todo o conforto, aquecidos do frio exterior, enquanto o
serviço nos ia dando de comer e de beber – até whisky, nesse tempo
distribuído nas reuniões do Conselho, coisa que seria hoje totalmente
inadmissível.
Começámos porém a queixar-nos do cansaço e, com apurado sentido de
humor e oportunidade, o Antici francês, Bruno Joubert, disse “c’est quand
même mieux que les tranchées”. Frase lapidar, que nos chamou à realidade,
e corporizava o sentido da integração europeia que era bom não fosse
esquecido pelas novas gerações de políticos europeus.
Nesse longo Conselho, de cada vez que um de nós era chamado à sala,
era inevitável que ao regressar dois ou três colegas perguntassem do que
estavam a falar. Ora sucede que a maioria das vezes estavam no uso da
palavra Chefes de Governo de países cuja língua não compreendíamos,
como o grego, o dinamarquês ou o holandês. Uma vez, ao voltar da sala do
Conselho à sala Antici, surgiu a fatal pergunta. Não resisti a provocá-los e
respondi que estava a Thatcher a dizer ‘the only thing I don´t like about
Europe is the Continent’”. Houve dois ou três colegas que durante uns
segundos hesitaram se eu estaria a falar a sério.
O prestígio alcançado pelo grupo Antici e a influência de que se dizia os
seus membros gozavam, levou a que, num livro britânico sobre o processo
de decisão do Conselho, os autores, pouco escrupulosos na investigação a
que procederam, afirmem que o nome do grupo deriva do que pensaram ser
a raiz latina da palavra “antigos” e traduzam como “the Ancients”, os
homens sábios!
As Representações Permanentes junto da União Europeia são hoje as
embaixadas, ou missões externas, mais importantes para todos os Estados-
membros, pois desempenham uma função diplomática entrosada com a
função legislativa, o que torna aliciante e único para os diplomatas o
exercício de funções na REPER, embora naturalmente as decisões sejam
tomadas só ao nível político.
Não espanta por isso que cada país coloque como seu Representante na
REPER os seus melhores embaixadores. Em 1986, quando cheguei a
Bruxelas, era o caso. O COREPER era um verdadeiro clube de elite, de
doze embaixadores saisonées, escolhidos a dedo entre os melhores dos
melhores. Era o caso Leonardo Mathias, mas também do seu extraordinário
grupo de colegas, Noterdaeme, da Bélgica, Lyberopoulos, da Grécia, Carlos
Westendorp, da Espanha, David Hannie, do Reino Unido, Scheer, da
França, Calamia da Itália, a que se juntava o Secretário-Geral do Conselho,
o Embaixador dinamarquês Ersboll, verdadeira trave mestra da acção do
COREPER e do Concelho, para referir apenas aqueles com quem tivemos
mais contacto ou que estiveram nesse período em maior evidência, por
estarem mais envolvidos nas negociações em curso ou terem exercido a
Presidência.
Como já disse, os Antici são, ou ao menos eram no meu tempo, uma
espécie de sombra dos Representantes Permanentes aos quais assistiam em
toda a sua actividade. Adquiriam por isso uma visão geral da acção da
União Europeia, não conferida aos diplomatas que seguem os grupos
sectoriais, totalmente absorvidos com o seu intenso trabalho. Seguem, dia a
dia, semana a semana, a acção dos embaixadores no COREPER, bem como
a interacção com o poder político na passagem para o Conselho de
Ministros. Para um diplomata, ser Antici é o mais completo curso de
formação que se pode ter numa fase intermédia da carreira. Coube-me a
sorte de ter como mestre Leonardo Mathias, que à sua inteligência, cultura,
afinada perspectiva histórica, junta um apurado e como que instintivo
sentido de Estado, uma alta noção do lugar de Portugal, equilibrada por um
sensato realismo, uma intuição diplomática inata, que fazem dele o maior
diplomata português da sua geração. Aprendi muito a observar, nas reuniões
semanais do COREPER, o modo como apresentava as nossas posições,
como escolhia as palavras, esgrimia os nossos argumentos, defendia os
nossos interesses, sem nunca perder a visão de conjunto e o sentido das
proporções, de até onde se podia ir para obter o máximo sem perder tudo.
Devo-lhe ter partilhado comigo tanto do seu saber. Foi o que interiorizei da
experiência da sua forma de actuar que me levou a dizer um dia, numa
sessão sobre Diplomacia na Assembleia da República, que a grandeza da
diplomacia portuguesa é a de agir olhando de igual para igual todos as
outras potência, com a consciência dos nossos limites.
O Grupo Antici tornou-se um elemento fulcral do funcionamento, não só
das missões nacionais, como do processo comunitário. A participação nesse
grupo confere, como disse, uma visão global e política única de toda a
actividade comunitária e uma proximidade do processo de decisão
comunitário e nacional que constitui uma experiência inestimável. A
contrapartida é não ter, como os funcionários que se ocupam de áreas
específicas, o conhecimento profundo das matérias.
Foi uma riquíssima experiência e uma verdadeira formação intensa de
quatro anos que contribuiu, de modo determinante, para o evoluir da minha
carreira e me preparou para enfrentar as negociações mais árduas. Foi um
período exaltante, com a aprovação do Acto Único – a mais substancial
alteração até agora feita ao Tratado de Roma, no sentido do reforço da
integração e da supranacionalidade –, do pacote Delors 1, da preparação da
Conferência Intergovernamental que levou ao Tratado de Maastricht.
Ao fim de quatro anos, quase decano do dito grupo, sentia-me à vontade
nas funções e procedimentos que tínhamos de exercer e gerir e a minha
memória de casos passados podia ajudar na resolução das novas
dificuldades que íamos enfrentando. Fazia-o com o gosto de estar seguro
com o que contribuíamos para o avanço dos trabalhos do COREPER e
portanto do Conselho. Guardo a T-Shirt que, por inspiração do sentido de
humor do colega irlandês, Bobby MacDonagh, (mais tarde Representante
Permanente) os meus colegas me deram quando deixei o Grupo, com a
inscrição “King of the Antici”.
Em 1989 o Embaixador Leonardo Mathias foi instruído a manifestar ao
então Secretário-Geral do Conselho, o Embaixador dinamarquês Ersboll, a
pretensão do nosso Governo de ter um português com um lugar de Director-
Geral no Secretariado Geral do Conselho. A situação era complexa, pois
não seria fácil encontrar uma vaga. Ersboll, com cujo Chefe de Gabinete e
membro do Secretariado no Grupo Antici, Poul Christoffersen, também ele
mais tarde REPER dinamarquês, eu mantinha um excelente relacionamento,
disse que tal propósito seria facilitado se o candidato fosse eu, pois
preferiam um diplomata com experiência do funcionamento das
instituições. Os primeiros “anticis” espanhol e grego ocupavam já então
lugares de Director-Geral no Secretariado.
Na altura entusiasmei-me com a possibilidade de fazer uma carreira como
funcionário europeu e, com o apoio e ajuda de Mathias, solicitei ao
Ministro a possibilidade de concorrer ao referido lugar. O Ministro João de
Deus Pinheiro assim não entendeu e trouxe-me para Lisboa para me ocupar
da organização da primeira presidência portuguesa das então ainda
Comunidades Europeias, no primeiro semestre de 1992.
Regressei a Lisboa em Outubro de 1990 para iniciar a preparação da
organização da Presidência. A minha função era a de preparar toda a
logística e a organização das reuniões da Presidência que teriam lugar em
Portugal, incluindo instalações para as reuniões, interpretação, alojamento e
transportes para os participantes, alimentação, segurança, actividades
culturais.
Em Portugal havia uma ideia um pouco difusa sobre o que era a
Presidência. Alguns pareciam pensar que as instituições europeias e os seus
milhares de funcionários se mudariam para Lisboa por seis meses. Ou, ao
menos, que a Presidência traria a Portugal uns milhares de visitantes – o
que era verdade – e que estes prolongariam entre nós as suas estadias – o
que não era verdade, ou só o era numa proporção absolutamente mínima,
pois a esmagadora maioria dos participantes nas reuniões regressava, de
imediato, a Bruxelas ou aos seus países, para elaborar os respectivos
relatórios e prosseguir com o seu trabalho, como sucedia com as nossas
delegações.
No Ministério da Cultura, por exemplo, havia a ideia de preparar para
todo o semestre um completo programa em que em cada semana haveria
um concerto, um ballet, uma tourada, ao mesmo tempo que no Centro
Cultural de Belém, sede da Presidência, decorreriam, em simultâneo com as
reuniões, variadas exposições. Não esqueço a desilusão que causei quando
fiz ver que não haveria público para tais espectáculos e que era inviável ter
exposições no CCB durante a Presidência, pois o CCB estaria, por razões
de funcionalidade e segurança, fechado ao público.
Havia até entidades privadas que tomavam iniciativas para a Presidência,
que queriam que depois adoptássemos. Um dia fala-me um funcionário de
um Banco privado, dizendo que tinham emitido umas dezenas ou centenas
de medalhas alusivas à Presidência portuguesa do Conselho da Europa, que
esperavam pudéssemos adquirir para oferecer aos participantes. Fiquei
estupefacto. Expliquei-lhe que Portugal ia presidir ao Conselho de
Ministros das Comunidades Europeias e não ao Conselho da Europa,
organização totalmente distinta, de que Portugal fazia parte e que também
tinha uma presidência rotativa que, nessa ocasião, não nos calhava. O
sujeito insistiu, “ora essa, então ele não via as notícias sobre a participação
do nosso Primeiro Ministro no Conselho da Europa, a que ia presidir?”.
Respondo lamentar, mas o órgão que juntava os Chefes de Estado e de
Governo das Comunidades era o Conselho Europeu. O fulano não
desarmava, isso era um pormenor, o Banco (pelo menos ele) tinha investido
muito naquelas medalhas. Tentei mostrar-lhe o ridículo e a troça em que
cairíamos se distribuíssemos aquelas medalhas. Era como receber o Rei da
Suécia com uma medalha da Suíça. Nada o demoveu e acabou a dizer que
eu não passava de um burocrata e se ia queixar da minha conduta.
Nesse tempo tinham lugar no País que detinha a presidência semestral,
não só os Conselhos Europeus – reunião dos Chefes de Estado e de
Governo, que, na altura, reunia, por norma, uma vez por semestre –, como
os Conselhos de Ministros informais, nas suas diversas formações, o
Comité Político, que reunia mensalmente, e diversos grupos de trabalho,
quer da Cooperação de Política Externa, quer da Administração Interna e
Justiça, áreas que na altura eram intergovernamentais – ou seja, tratava-se
de uma cooperação entre os Estados-membros fora do Tratado das então
Comunidades Europeias. Também os COREPER e alguns grupos técnicos
comunitários tinham tradicionalmente uma reunião semestral no País da
Presidência. A isso se somavam reuniões internacionais, com outros países
e regiões, umas institucionalizadas, outras pontuais, como foi o caso, na
nossa Presidência, da reunião com os países da Comunidade dos Estados
Independentes (Estados oriundos da antiga União Soviética), que reuniu em
Lisboa Ministros dos Negócios Estrangeiros de cerca de 85 países, ou ainda
reuniões da iniciativa da Presidência, como sucedeu, no nosso caso, com a
primeira Ministerial CEE/Mercosul, que teve lugar em Guimarães.
A “sede” da Presidência, onde ia ter lugar o Conselho Europeu e as
reuniões de grupos mais frequentes ou que se realizassem em Lisboa, estava
já decidida e em construção: o Centro Cultural de Belém (CCB). Tendo
escolhido o CCB para sede da Presidência, o Governo de então quis garantir
as condições ideais para a realização do Conselho Europeu, que havia a
manifesta e correcta intenção de transformar num factor de prestígio para o
País e para o Governo. A estrutura do CCB correspondia aos requisitos do
Vade Mecum do Secretariado Geral do Conselho para os Conselhos
Europeus: o módulo 1 incluía a sala do Conselho Europeu, sala anexa para
os Antici, mais duas salas para reuniões paralelas, sala de honra para as
refeições dos membros do Conselho Europeu, salas para as delegações,
“passos perdidos”, restaurante para os delegados e até, com algum exagero
em relação aos requisitos, uma enfermaria híper equipada. O Módulo 2
tinha um auditório de grande dimensão para a conferência de imprensa final
da Presidência – o actual pequeno auditório, mais do que suficiente para o
efeito e não a actual Ópera, cuja construção só se concluiu depois da
Presidência. O terceiro módulo era todo dedicado à imprensa, tendo o
espaço requerido para cerca de 700 jornalistas e salas de conferência de
imprensa para cada uma das outras onze delegações nacionais e para a
Comissão.
Mal cheguei a Lisboa e assumi funções como coordenador da estrutura
criada no MNE para a organização da Presidência, que dava pelo horrível
acrónimo GTOL (acho que por minha culpa…), Grupo de Trabalho de
Organização e Logística, tratei de visitar o CCB. Para um “leigo” em obras,
foi uma experiência aterradora e fascinante. Aquele enorme canteiro de obra
desventrado, cheio de paredes e colunas inacabadas de onde saíam tubos de
aço, pelo meio das quais se movia um enxame de operários, técnicos,
engenheiros, arquitectos, metia medo, como um ser orgânico com vida
própria. Era difícil acreditar que não dependia dele, mas dos engenheiros
responsáveis pela obra, estar ou não pronto para o início da Presidência.
A estrutura do CCB correspondia, como disse, aos requisitos do Conselho
Europeu. Mas entre os responsáveis no Gabinete do Primeiro Ministro pelo
Conselho Europeu, havia uma verdadeira paranóia com a exclusividade e a
segurança. Assim, foi imposto que tudo fosse feito de modo a acomodar
exclusivamente os doze países que então compunham as Comunidades e
que só houvesse cabines de interpretação para as línguas oficiais, que então
eram nove. Salas de reuniões, cabines de interpretação, lindíssimas, de uma
qualidade sem paralelo com as dos Conselhos em que tinha participado,
eram em cimento e mármore, não tinham qualquer tipo de flexibilidade, era
impossível alterá-las se tal se viesse a revelar necessário, o que me criou
alguma ansiedade. Por outro lado, a obsessão com a segurança por pessoas
não profissionais levou a que se impusessem regras ridiculamente
exigentes, que não eram requeridas, e a descurar outras que eram
fundamentais.
Num edifício que é um verdadeiro concerto de espaço e luz, exigiram que
os “Gabinetes dos Chefes de Estado e de Governo”, nas respectivas salas
das delegações, onde os Chefes de Estado e de Governo iriam estar, no dia e
meio que ia durar o Conselho, no máximo uma ou duas horas, fossem
interiores, não tivessem janelas, obrigando a construir nas salas das
delegações uns Bunkers onde julgo nunca ninguém entrou. Para o próprio
Primeiro Ministro português estava destinada uma sala interior, sem janelas,
que sabiamente ele recusou utilizar quando a viu.
Em contrapartida, quando chego à magnífica sala onde teria lugar a
reunião do Conselho Europeu, onde os Chefes de Governo iam estar as
longas horas da reunião, verifico que uma das paredes era inteiramente em
vidro, e dava, ainda por cima, para zona habitada. O vidro era reforçado e a
segurança teria, como teve, modo de obviar à situação. Mas além de não ser
o ideal em matéria de segurança, era clamoroso o ridículo contraste entre a
preocupação com a segurança num espaço onde ninguém ia estar e a falta
de atenção à divisão do edifício que exigia maior segurança, tanto mais que
qualquer pessoa com experiência na matéria, se lembraria do sucedido na
sede das Nações Unidas em Nova Iorque, onde as salas de reunião têm uma
parede em vidro que dá para o East River, situação que foi preciso adequar
após um atentado feito a partir de uma embarcação no rio.
Quando me mostraram a lindíssima sala do Conselho Europeu, não resisti
a manifestar a minha divertida estupefacção perante aquela contradição.
Imediatamente o Eng. Lemos, encarregado da obra, um homem de invulgar
determinação, entusiasmo e capacidade de decisão e de desenrascar
imprevistos, sem o qual penso que a obra nunca teria ficado pronta a tempo,
não hesitou e exclamou: “não faz mal, cobre-se com uma placa de aço
blindado”. Tal não foi naturalmente necessário. As condições de segurança
na Sala do Conselho eram obviamente adequadas. O caricato era o contraste
que assinalei.
Tudo estava também previsto apenas para uma reunião com o formato de
então: a magnífica mesa do Conselho Europeu, que não era possível
aumentar, tinha exclusivamente os 27 lugares requeridos para os Chefes de
Estado e de Governo e Ministros dos Negócios Estrangeiros de cada um dos
então Estados-membros, dois lugares para a Comissão e um para o
Secretário-Geral do Conselho. Sucede que, em duas ou três presidências
que precederam a nossa, com as obras do CCB já adiantadas, os Ministros
das Finanças participaram, juntamente com os Primeiros Ministros e os
Ministros dos Negócios Estrangeiros, em parte do Conselho Europeu, o que
seria impossível na sala do CCB, verdadeiro ex-libris da nossa Presidência.
Este foi também um factor de alguma ansiedade e penso que a sensibilidade
dos responsáveis políticos de então levou a conduzir as coisas de modo a
dispensar a presença dos Ministros das Finanças no Conselho Europeu de
Lisboa, o que teria obrigado a recorrer a outro local, mesmo que no interior
do CCB, o que teria sido um flop que a imprensa não deixaria de explorar.
Temia-se aliás o risco de o CCB não ficar pronto a tempo. Só ficou
devido ao profissionalismo, sentido de responsabilidade e extraordinária
capacidade de esforço de todos os que ali laboraram. Houve momentos de
enorme tensão e de grande ansiedade. Recordo-me de reuniões com as
responsáveis das comunicações da obra, da Portugal Telecom e da Câmara
Municipal, para ultrapassar uma discórdia sobre quem era responsável por
fazer passar para o CCB as 800 linhas de telefone necessárias que estavam
do outro lado da rua, e que cada um defendia que cabia ao outro trazê-los
para o lado de cá. Linhas essas que eu tive de dizer onde deveriam ser
colocadas em cada sala, numa reunião que me pareceu surrealista.
O próprio Ministro dos Negócios Estrangeiros temia esse atraso e
encarregou-me de procurar alternativas de recurso, o que fiz, preparando
para essa efeito planos para a Galeria do Palácio da Ajuda e para a antiga
FIL. À medida que as coisas iam avançando e que fui contactando com os
responsáveis da obra, o Arq. Manuel Salgado, o Eng. José Curvelo, o Eng.
Paulo Lemos, que fui interiorizando o modo como se movia aquela massa
“orgânica” que era o CCB.
Fui compreendendo a difícil realidade “la pallissiana” de que as coisas
não estão prontas até estarem prontas. Passei a acreditar que a obra ia estar
pronta a tempo. Passei mesmo a partilhar a fé dos engenheiros e arquitectos
envolvidos na obra em que tal iria acontecer.
Não escondo contudo que, quando no dia 2 de Janeiro me encontrei
sentado num sofá, ainda embrulhado em plástico, numa sala do Módulo 1
do CCB, por onde iam circulando umas centenas de operários, senti algum
desânimo e deixei-me ficar meio abstracto e angustiado. Mas cedo fui
devolvido à realidade. Um funcionário vem-me dizer que estava à porta o
presidente de uma região autónoma espanhola, creio que Navarra, que
gostaria muito de visitar o edifício. Após um primeiro sobressalto – como
mostrar a uma autoridade estrangeira um edifício ainda naquele estado –,
caí em mim. “Diga que as obras ainda não estão concluídas e só o poderei
mostrar com um pedido oficial da Embaixada de Espanha”, respondi.
Ocorreu-me que poderia ser um jornalista “esperto”, como há para aí tantos,
que recorresse àquele estratagema para entrar no CCB e dizer que não
estava pronto, ou que ali entrava quem quisesse, sem segurança.
Os meus receios justificavam-se. O CCB continuou em obras durante
todo o período da Presidência em áreas que para esta não eram necessárias,
como o Grande Auditório. Os trabalhos só eram interrompidos quando
havia reuniões de grande dimensão e/ou que implicassem uma segurança
particular. O Grande Auditório só ficou pronto uns meses depois da
Presidência, como saberá quem se recordar da pompa da sua inauguração,
com a Kiri Te Kanawa, para a qual não fui naturalmente convidado. Ora um
dado dia aparece num jornal, não me recordo sinceramente qual, em
grandes parangonas e com o usual histerismo da nossa comunicação social,
que não havia segurança nenhuma no CCB e que um sujeito, a quem
chamar jornalista seria um insulto para a profissão, tinha, num dia de uma
reunião vulgar na semana anterior, percorrido toda a extensão do edifício, o
que provava com uma fotografia da entrada do Módulo 1 tirada nesse dia.
Por azar do energúmeno pudemos provar que nesse dia, justamente por ter
tido lugar a tal reunião, não era aquela a disposição da entrada do CCB. O
espertalhão, abusando da amizade ou subornando alguém da empresa de
construção, tinha percorrido o CCB, sim, mas a parte ainda em construção.
Outro, inesperado e para mim mais difícil desafio apareceu. Quando
cheguei a Lisboa em Outubro de 1990, o Secretário de Estado dos Assuntos
Europeus, Vítor Martins, disse-me que o CCB estaria a funcionar para a
Presidência, com administração própria, cabendo-me apenas a organização
das reuniões que lá teriam lugar: disposição das salas, transportes,
acreditação dos delegados, refeições, etc., o que já não era pouco. Mas em
Outubro de 1991, a três meses do início da Presidência, fui informado de
que assim não seria e que teria dois curtos meses para pôr em pé a estrutura
administrativa do edifício: assistência técnica, limpeza, serviços, pessoal de
apoio às reuniões, restauração, etc., além da segurança. Confesso que fiquei
verdadeiramente paralisado com a ideia de ter pouco mais de dois meses,
com o Natal pelo meio, para pôr de pé toda uma estrutura capaz de fazer o
CCB funcionar.
Para obviar à inexistência de uma administração que garantisse o
funcionamento do edifício, foi decidido criar uma Comissão de Gestão do
CCB, composta por um Presidente, que nunca chegou a ser nomeado, e três
vogais, um do MNE, que era eu, que substituíria o Presidente nas suas
ausências, um do Ministério da Cultura, dono da obra, e um da empresa
construtora do edifício.
Iniciámos imediatamente reuniões para cumprir a nossa impossível tarefa.
Era a mim, como representante do Ministério responsável pela Presidência,
que caberia a iniciativa e a responsabilidade de pôr o CCB a funcionar, até
por ser o único com experiência de reuniões comunitárias e conhecimento
das exigências de uma Presidência. Recordo-me, por exemplo, que na
primeira reunião, a Maria José Stock, representante do Ministério da
Cultura, por orientações do secretário de Estado e na perspectiva de criar
estruturas que permanecessem no edifício para lá da Presidência, colocou a
hipótese de contratarmos funcionários – contínuos, pessoal de limpeza, etc.
– e que fizéssemos um concurso público para concessão do restaurante. Eu,
que não tinha experiência deste tipo de tarefas, estava ainda meio
anestesiado com o choque da tarefa que me tinha sido atribuída, não fazia
ideia como me desenvencilhar. Fui ouvindo as diversas propostas nas duas
ou três primeiras reuniões. Depois comecei a acordar para a realidade.
Contratar o pessoal um a um, como funcionários públicos era totalmente
inviável. Se fossemos por aí, talvez os primeiros entrassem no fim da
Presidência. Quanto ao restaurante, tive de decepcionar as expectativas de o
“rentabilizar”, acalentadas pelo Ministério da Cultura: durante os seis meses
da presidência, o CCB estaria, por definição, fechado ao público e todas as
pessoas que comessem no restaurante, os delegados às reuniões, seriam,
como sempre sucedia, convidados da Presidência. Não era, nessas
condições, viável dar o restaurante em concessão a ninguém.
Partimos pois para a única solução possível para garantir o
funcionamento do CCB em todas as áreas: com base em legislação prevista
justamente para estas situações, fizemos concursos e contratámos uma
empresa que, com pessoal próprio, se encarregou da limpeza e manutenção
do edifício, e bem assim da assistência às reuniões, uma outra que ficou
encarregue do restaurante e, para a complexa assistência técnica a um
edifício “inteligente” que ia estar sob teste no período da Presidência, a
empresa encarregue da fiscalização da obra, que por conseguinte tinha
conhecimento de todos os aspectos do edifício.
Uma tarefa vertiginosa, mas tudo correu excepcionalmente bem. Era
ainda preciso encontrar uma equipa que se encarregasse de gerir no dia a
dia o edifício. Felizmente o José Bouza Serrano, que tinha trabalhado
comigo no Gabinete do Leonardo Mathias, e que há pouco tempo deixara a
chefia do Gabinete do Secretário de Estado da Cultura, Santana Lopes,
estava disponível. Era a pessoa ideal, não só pela total confiança que tinha
nele, como por fazer a ponte entre o MNE, que utilizava a parte do CCB
cedida à Presidência, e a Cultura, dona da obra.
Não sei se antes ou depois da nossa Presidência das Comunidades
Europeias de 1992 houve outro Conselho Europeu com tanta qualidade e
com uma situação comparável à do CCB. Mas sei que foi um privilégio
trabalhar naquele espaço esculpido em mármore e usufruir da luminosidade
magnífica do fim da tarde, com a luz do poente a iluminar o Tejo, a Praça
do Império, os Jerónimos, o palácio da Ajuda, a Igreja da Memória, a
Fábrica de Electricidade. E estou certo que tal contribuiu para que os
delegados europeus que por ali passaram tenham levado de Portugal a
imagem de um País com História capaz de projectar a sua tradição e afirmar
a sua cultura na realidade contemporânea.
Além do Conselho Europeu, realizaram-se no CCB todas as reuniões a
outros níveis que tiveram lugar em Lisboa. É porém tradição distribuir um
pouco por todo o país da Presidência as reuniões informais de Ministros, e
de alguns grupos de trabalho mais clássicos – como os COREPER, Comité
de Agricultura, etc. Trata-se de um modo de fazer “chegar” a Europa perto
dos cidadãos, de dar a estes o sentido de que eles são a Europa e ao mesmo
tempo dar a conhecer aos responsáveis políticos, funcionários e peritos dos
parceiros europeus, as particularidades regionais de cada país, e de
conhecerem, ao vivo, os problemas próprios e os decorrentes interesses que
cada Estado-membro procura explicar nas salas de Bruxelas.
A preparação das reuniões dos outros ministérios suscitava naturalmente
algum melindre, pois cada um tinha a sua equipa encarregada de organizar
as respectivas reuniões. O Governo, contudo, decidiu, a meu ver bem,
centralizar a coordenação dessa organização no MNE, e o então Secretário
de Estado da Presidência do Conselho, Luís Marques Guedes, passou a ser
o meu interlocutor para dirimir eventuais divergências que pudessem surgir.
Mantivemos a melhor das relações e o sistema funcionou às mil maravilhas,
também com os diversos ministérios, pois evitou que fosse um mero
funcionário do MNE, como eu, a ter de obstar a ideias ou iniciativas menos
ortodoxas de cada Ministério ou Ministro, em relação às respectivas
reuniões, de que cada um tinha um forte sentido de propriedade.
Para escolher os locais das reuniões que não teriam lugar no CCB, tive de
me deslocar por todo o País a averiguar onde havia instalações que
correspondessem, quer às rigorosas exigências mínimas de espaço, desde
logo por causa das cabines de interpretação, quer hotéis com dimensão e
qualidade suficiente para albergar todos os participantes nas reuniões, que
por vezes ascendiam a centenas e articular tudo isso com a vontade dos
ministros responsáveis por cada Conselho, de as realizar nas regiões da sua
preferência. Foi uma excelente oportunidade de conhecer melhor o País e
estabelecer um contacto pessoal com as entidades locais, responsáveis
administrativos, conservadores de monumentos e museus, e constatar o
profissionalismo e a devoção que todos dedicavam às suas funções. Nem
sempre os locais escolhidos pelos respectivos ministros tinham as
características necessárias para a realização das reuniões. Mas foi quase
sempre possível encontrar soluções que satisfizeram todos.
O meu trabalho não se esgotava contudo na selecção dos locais. Tinha de
preparar toda a logística, desde a chegada ao(s) aeroporto(s), segurança,
transportes, alojamento, acreditação, refeições, presentes, protocolo,
actividades culturais. Procurámos sempre fazê-lo tirando proveito dos
recursos já existentes. Por exemplo, o Serviço do Protocolo do Estado ficou
responsável pelas suas tarefas habituais, adaptadas às características e
regras europeias, através da articulação comigo do vice-Chefe do Protocolo,
o meu saudoso amigo e colega Rui Ávila, com quem foi sempre um prazer
trabalhar.
Tudo isto repleto das mais inesperadas peripécias e lances imprevistos,
uns mais angustiantes, outros mais divertidos, desde ter de pôr
verdadeiramente os pés à parede, recusando liminarmente que a segurança
da Presidência e do CCB fosse atribuída a uma empresa privada, até uns
imprevisíveis quase incidentes diplomáticos.
No primeiro caso, havia não sei porquê, a ideia peregrina, inspirada
certamente na cartilha do turbo liberalismo como panaceia para os males do
demoníaco Estado, do outsourcing e das parcerias público-privadas que
estamos agora a pagar, de que se iria encarregar uma empresa privada da
segurança do CCB. Opus-me terminantemente e afirmei que me recusaria a
ser responsável pela organização da Presidência se a segurança não fosse
entregue à PSP e à GNR. Não só a era a dignidade do Estado que estava em
causa, como certamente os serviços de segurança nacionais não podiam
permitir que se entregasse a privados a segurança de entidades que viriam a
Portugal, segurança que tinha de obedecer a normas internacionais. A minha
posição prevaleceu, sem muita dificuldade, devo dizer, e deu origem a
reuniões densas com os comandos das nossas forças de segurança, de que
me ficou sempre a dúvida se tinham dela conhecimento ou se suspeitavam
que eu advogasse a posição oposta.
No plano diplomático os incidentes foram mais inopinados. Tendo sido
reservados, para alojar as delegações ao Conselho de Segurança, os hóteis
Ritz e Meridien, julgámos adequado reservar para o Presidente Mitterrand,
o único Chefe de Estado participante, a suite presidencial do Meridien, visto
tratar-se de um hotel francês. O Embaixador de França veio ver-me e disse-
me que o Presidente teria um particular gosto em ficar instalado no Ritz,
hotel mítico pela sua arquitectura e decoração. Fizemos-lhe a vontade.
Passados uns dias, veio o Embaixador alemão. Ficaria com a cabeça a
prémio, disse-me, se Mitterrand ficasse na suite presidencial e o Chanceler
Kohl no mesmo hotel, numa suite menos nobre. Salvámos-lhe a cabeça. Daí
a uns dias voltou. Teria outra vez a cabeça a prémio se Kohl e Genscher – o
então Ministro dos Negócios Estrangeiros alemão – ficassem no mesmo
hotel e se Genscher não tivesse um cortejo automóvel separado do seu
Chefe.
Era um bocado de mais, para não dizer absurdo. Procurámos garantir
meia cabeça alemã.
Foi um desafio aliciante, um trabalho de organização e coordenação
insano, mas em que me empenhei com agrado e me ocupou três anos
absorventes e extenuantes, compensados pela forma reconhecidamente
excelente como, também quanto à organização, correu a nossa Presidência.
Tínhamos consciência de que um exercício da presidência em que
mostrássemos conhecimento das matérias, capacidade de negociação e de
encontrar e promover consensos, mas também de organização e
coordenação, era essencial para consolidar uma imagem de competência e
rigor nas Comunidades, o que contribuiria para a nossa credibilidade e,
consequentemente, beneficiaria a nossa capacidade negocial futura. Aposta
plenamente conseguida, pelo esforço conjunto de todos os que colaboraram
na Presidência portuguesa de 1992. Guardo, com particular satisfação, por
conhecer bem o seu autor e sabê-lo parco em encómios, a carta em que Poul
Christoffersen, o Chefe de Gabinete do Secretário Geral do Conselho, me
felicitou pelo Conselho Europeu mais bem organizado a que tinha assistido,
juízo para que muito terão contribuído as condições excelentes do Centro
Cultural de Belém.
Fui recompensado com a Presidência do Instituto de Cooperação
Económica e afastei-me assim, por quase dois anos, das lides europeias.
Porém, ao fim de ano e meio, em 1994, Christoffersen desafiou-me para me
candidatar a um lugar de Director no novo serviço que ia ser criado em
consequência da entrada em vigor do Tratado de Amesterdão que criara a
Política Externa e de Segurança Comum (PESC). Estava previsto que o
departamento PESC fosse composto por funcionários do Conselho e por um
diplomata destacado de cada Estado-membro, dos quais dois seriam
Directores, em regime de rotação por três ou quatro anos.
Consultado o Ministro Durão Barroso, considerou tratar-se de um lugar
de interesse e candidatei-me a um dos dois lugares de Director. Fui,
juntamente com o candidato francês, seleccionado e servi, como Director
do Departamento Bilateral até 1997. Entre os restantes candidatos excluídos
estava um alemão. Era então Ministro dos Negócios Estrangeiros da
Alemanha Kinkel, que não apreciou esse desfecho e pouco tempo depois foi
criado mais um lugar de Director, por coincidência ocupado por esse
alemão.
Aliciou-me a ideia de trabalhar no que na altura parecia ser a génese de
uma diplomacia europeia, bem como a experiência de trabalhar em equipa
com os parceiros que, no quadro nacional, são também adversários e tentou-
me também, não escondo, a oportunidade de testar as minhas capacidades
profissionais num quadro internacional mais alargado e exigente.
O saldo da experiência foi misto…Constituindo o Secretariado Geral uma
estrutura de apoio às presidências rotativas, não só estávamos sempre em
presidência, como trabalhávamos, cada seis meses, com o Ministério dos
Negócios Estrangeiros de cada país que a exercia. Como diplomata, foi
extremamente interessante e pedagógico ficar a conhecer por dentro os
outros ministérios. Constatar que os equilíbrios e idiossincracias do serviço
se movem e vão compondo como entre nós. Verificar que a nossa
preparação, os nossos métodos de trabalho, nada ficam a dever à dos
restantes parceiros e que, no essencial, quanto ao funcionamento da
actividade diplomática propriamente dita, confrontam dificuldades e sofrem
de debilidades análogas às nossas. Fiquei com uma visão diferente e mais
real das diplomacias dos nosso parceiros e também, e sobretudo, do
funcionamento interno das instituições europeias e da sua contingente
relação interinstitucional.
Em contrapartida, o Secretariado, ao menos na área PESC, era
verdadeiramente uma estrutura esquizofrénica: o Comité Político (COPO),
que juntava uma vez por mês os Directores-Gerais Políticos dos Estados-
membros, e o COREPER, que não abdicava da sua competência exclusiva
de preparação do Conselho de Ministros. Muitas vezes estes dois comités
contrariavam-se, quando não se degladiavam, e davam-nos instruções não
só diversas, como incompatíveis. Além disso, não tínhamos informação
própria sobre o que se passava no Mundo, além daquela que alguns, poucos,
Estados-membros nos facultavam. A Comissão, avara das suas
competências e pouco entusiasta com um serviço PESC que temia lhe
fizesse sombra, não partilhava a informação que recebia das suas
delegações. Era como um Ministério dos Negócios Estrangeiros sem
embaixadas. A isto acrescia uma burocracia processual kafkiana, na recém
iniciada PESC “à procura de si própria”, e que por isso mudava todas as
semanas de procedimentos, ao ponto de se tornar paralisante e frustrante.
Um grande contraste com a actividade diplomática nacional onde a
definição do interesse nacional e o modo de o prosseguir foi para mim
sempre inequívoco.
Em contrapartida, era um serviço de grande competência, crucial para o
funcionamento das presidências, pois, se estas o ouvissem, assegurava a
continuidade e evitaria excessos de entusiasmos quanto à margem de
iniciativa e de capacidade de cada país influenciar no seu semestre a agenda
europeia. Acontecia, porém, que quase sempre as presidências entravam de
rompante seguras e confiantes, até que a realidade as obrigava a adaptar-se
e a seguir os conselhos do Secretariado. A esse propósito, é curioso notar
que, em regra, os países grandes assumiam a presidência com menor
ansiedade do que os pequenos, que viam no seu mandato uma forma de se
afirmar externa e internamente, preparando-se com esforço e empenho. Os
países maiores – calharam-me as presidências alemã, francesa e italiana –
encaravam a presidência como uma rotina, que pouco ou nada influenciara
a sua imagem ou o seu peso internacional. Por isso, enquanto os serviços
dos países pequenos faziam questão de controlar e alterar as “speaking
notes” que o Secretariado preparava e de as fazer chegar às mãos dos seus
ministros como sendo da sua autoria, os ministros dos países grandes liam
as notas do Secretariado na íntegra, por vezes pela primeira vez na própria
reunião, chegando a haver uma presidente que lia também as observações
que colocávamos em itálico sobre as eventuais reacções das diversas
delegações.
Regressei a Lisboa em 1997, para me ocupar das negociações de Timor, a
mais recompensadora tarefa de que tive a incrível sorte de me ocupar na
minha carreira, mas essa é outra história. Realizado o referendo em Timor
em Agosto de 1999 e dadas por concluídas as negociações de que me
ocupara, nas vésperas de Natal de 1999 o Ministro Jaime Gama convidou-
me para ser o Porta Voz da Presidência portuguesa da União Europeia, que
começava daí a uns escassos dias. Recordei-lhe que tinha passado os
últimos três anos absorvido pelas negociações de Timor, que entretanto
tinha entrado em vigor o Tratado de Nice, que tinha sido criada a PESD
(Política Europeia de Segurança e Defesa) e que eu não estava sequer
familiarizado com a nova linguagem que ela desenvolvera.
O Ministro retorquiu “Ora! Deixe-se disso” e oito dias depois mergulhei a
frio numa entrevista à BBC justamente sobre a PESD. Segundo o meu
antigo Director-Geral no Secretariado Geral do Conselho, Brian Crowe, não
me terei saído mal. Devo dizer que me diverti na função de Porta Voz, a
mais leve que tive no meu “percurso europeu”.
Permitiu-me, infelizmente, confirmar a minha impressão da comunicação
social portuguesa com que já ficara da experiência timorense. Estabeleci,
desde o início da Presidência, fazer dois briefings semanais à imprensa. Nas
primeiras semanas as salas de briefing estavam repletas de jornalistas
portugueses, que se empolgavam só por dois temas: as duas apostas da
Presidência portuguesa que suscitavam mais obstáculos e que todos
pensavam (“esperavam” seria mais apropriado dizer) iriam correr mal: o
Conselho Europeu de Lisboa de Março, onde a Presidência apresentou a
ambiciosa e ousada proposta de definir uma nova estratégia política para a
Europa, baseada na economia do conhecimento, que veio a ser a “Estratégia
de Lisboa”, que se sabia levantava fortes reservas, não só em muitos dos
Estados-membros, mas também por parte da Comissão; e a Cimeira UE/
África, de que não havia à partida garantia que tivesse lugar, não só pelo
frio entusiasmo, se não oposição, de alguns parceiros europeus, como pelas
dificuldades de fazer aceitar a presença de Marrocos que, devido ao
problemas do Sahara Ocidental, não fazia parte da então chamada
Organização de Unidade Africana.
Quando constataram que ambas se tinham saldado num estrondoso êxito,
que fez da nossa presidência uma das mais marcantes da História europeia,
deixou de lhes cheirar a sangue e a sala de briefings esvaziou-se, apenas
continuando a aparecer, além de honrosas excepções portuguesas, os
correspondentes estrangeiros.
A realização da Cimeira UE/África constituiu um indubitável êxito da
diplomacia portuguesa. Desde logo pela iniciativa; depois, por ter
conseguido ultrapassar as resistências daqueles que se lhe opunham no
interior da União, uns por não terem sensibilidade para os problemas
africanos, outros porque gostariam de ter sido eles a ter a iniciativa – dei-
me bem conta disso quando, no Cairo, fui, perante o espanto cúmplice dos
jornalistas portugueses, que me assessoravam divertidos na marcação dos
encontros, verdadeiramente assediado pelas televisões de países africanos
sem qualquer ligação particular a Portugal que, ao entrevistar o Porta-Voz
da Presidência, queriam sobretudo manifestar gratidão e lembrar ao seu
público que era Portugal o autor daquela iniciativa.
Mas a marca indubitável dessa presidência foi a aprovação, no Conselho
Europeu de Março, em Lisboa, da que ficou designada como Estratégia de
Lisboa. A ideia de delinear uma estratégia de crescimento para a Europa
baseada na economia do conhecimento, de trazer a Europa à nova realidade
económica, cara a três chefes de Governo europeus, Guterres, Blair e Aznar,
não foi acolhida com grande entusiasmo, não só por alguns dos restantes
parceiros, como pela Comissão, que não se quis envolver num projecto que
lhe parecia ter elevada probabilidade de não ser aprovada – um projecto que
não provinha do famigerado eixo franco-alemão.
A Comissão não assumiu a iniciativa de preparar uma proposta a
submeter ao Conselho Europeu. O Primeiro Ministro Guterres não hesitou
contudo em arriscar e aceitar o desafio, e foi a Presidência portuguesa que
se encarregou do descomunal trabalho de preparação do Conselho, tendo
solicitado aos Estados-membros que apresentassem nos primeiros meses de
2000 os seus contributos nacionais. Foram esses contributos que, devido às
reticências de alguns Estados-membros, tardaram a chegar e esse atraso que
foi alimentando a expectativa de que o projecto falharia. Quando nos
briefings dava conta da chegada, a conta gotas, dos contributos nacionais,
despertava comentários irónicos da parte dos jornalistas. Porém, à medida
que, face à determinação da Presidência, foi aumentando o apoio à nossa
iniciativa e se começaram a multiplicar os contributos nacionais e a própria
Comissão começou a colaborar, a atitude da imprensa mudou e em Março
todos constataram o enorme êxito do Conselho de Lisboa, conduzido com
inexcedível mestria pelo Primeiro-Ministro António Guterres.
Jean-Claude Piris, o todo poderoso Director dos Serviços Jurídicos do
Secretariado Geral do Conselho, que eu conhecia desde Nova Iorque,
quando integrava a Missão francesa na ONU, disse-me, com a autoridade
da sua longa experiência dos assuntos europeus, que nunca tinha assistido a
uma presidência tão brilhante de uma sessão do Conselho Europeu. Não foi
total novidade. Quando, depois de eleito, António Guterres participou pela
primeira vez num Conselho Europeu, os três “note-takers” do Secretariado
Geral que seguiram a sessão vieram felicitar-me, impressionados pela
qualidade da sua participação activa e inteligente.
Portugal ocupou também nesse semestre a Presidência da Organização da
Europa Ocidental, cuja relativa relevância se foi apagando com a criação da
PESD. Confesso que tinha um conhecimento quase nulo do funcionamento
dessa Organização. Contudo, como eu era Porta Voz da Presidência da UE,
o Ministro achou que poderia fazer essa função na Cimeira que teve lugar
na Alfandega do Porto, em Junho de 2000. Fiquei um pouco apreensivo e lá
tentei absorver a informação que me deram sobre a OCE. A cimeira
começou numa segunda-feira. Na véspera, teve lugar a última jornada do
campeonato Nacional de Futebol, em que o meu clube, o Sporting, se
sagrou campeão, ao fim, creio, de 18 anos de abstinência. O Francisco
Ribeiro de Menezes, Adjunto do gabinete do Ministro e aficionado
sportinguista, estava connosco no Porto, para a dita reunião. Fomos pois
festejar num jantar, aliás pacato, num restaurante popular em que alguns
portuenses sportinguistas festejavam também a vitória do seu clube.
No dia seguinte tinha de dar, às oito da manhã um briefing a toda a
imprensa, nacional e estrangeira, acreditada na Cimeira. Dormi pouco,
tomei um pequeno-almoço um bocado estremunhado e lá fui para o
briefing, sem sequer ter tido oportunidade de olhar para a imprensa do dia.
Abro o briefing e, na primeira pergunta, um jornalista americano atira-me:
“num artigo hoje publicado no DN o seu Ministro diz que a OCE está
moribunda. Porque não a enterram?” Eu não tinha conhecimento do artigo.
Tinha de evitar qualquer declaração que entrasse em conflito com o que lá
se dizia. E além de dois ou três lugares-comuns sobre a situação da
Organização, o que me ocorreu dizer foi “porque na Europa a eutanásia
ainda não está legalizada”. O jornalista não insistiu e no fim da reunião, o
Secretário-Geral da NATO, perante pergunta idêntica, replicou, “como
alguém disse hoje…” A sua frase veio citada no dia seguinte no Herald
Tribune.
Em 2001 fui para Embaixador em Luanda e só voltei às lides europeias
quando mais tarde, já como Embaixador em Dublin, acompanhei a
Presidência irlandesa de 2004, cujo momento alto foi a assinatura, nos
relvados de Phoenix Park, num inusitado dia de sol radioso, do Tratado
Constitucional, cerimónia marcada pela solenidade discreta e o tom de
paganismo sagrado que é apanágio daquele magnífico país, onde não faltou
a voz enorme do bardo Seamus Heaney a divinizar o nome da Europa.
Fui transferido em 1 de Fevereiro de 2005 para a tranquila capital
holandesa. No dia 11 de Março, estava há pouco mais de um mês na Haia e
tínhamos nesse dia o primeiro jantar em casa, felizmente só com
portugueses, quando me chamaram ao telefone. Era o Diogo Freitas do
Amaral, amigo de muitos anos, cuja nomeação como Ministro dos
Negócios Estrangeiros do recém formado Governo de José Sócrates
surpreendera todos. Não lhe tinha ainda ligado a felicitá-lo, para não dar ar
de me estar a pôr nas pontas dos pés, como se costuma dizer. Pensei que me
ia pedir para trocar algumas impressões sobre o Ministério. Mas não.
Convidou-me para Secretário de Estado dos Assuntos Europeus. Julgo que
não hesitei durante mais de uma dúzia de segundos. Dei a única resposta
que em retrospectiva podia dar, depois de trinta anos a lidar com a
integração europeia. Era irresistível, para quem tinha ido levar as cartas a
Bruxelas, tinha passado horas no COREPER, no COPO, nos Conselhos de
Ministros, a acompanhar os Conselhos Europeus. Era a altura de pôr à
prova tudo o que tinha aprendido. Era a oportunidade de servir o meu País
ao mais alto nível. Nunca recusei servir onde me pediram. Três dias depois
estava no Palácio da Ajuda a tomar posse.
Apenas ocupei o cargo até Julho de 2006, quando o Ministro Freitas do
Amaral teve de se demitir por motivos de saúde. Fui encontrar uma União
muito diferente da que deixara em 2000. Com 25 e depois 27 Estados-
membros, as reuniões do Conselho de Ministros, onde antes se negociavam
em profundidade as questões relevantes até se chegar a acordo, tinham-se
tornado numa liturgia tipo Nações Unidas, onde cada um lia um curto texto
já preparado e normalmente anódino, e tudo era negociado nos bastidores.
As únicas ocasiões em que os debates eram abertos e substanciais, por só
estarem presentes os ministros, eram os almoços dos Conselho de
Ministros, os Gymnichs (reuniões informais dos Ministros dos Negócios
Estrangeiros) e os jantares dos Conselhos Europeus. Devido ao estado de
saúde do Ministro, que como é sabido infelizmente se foi agravando, tive de
o substituir muitas vezes nessas reuniões, seguramente entre as mais
interessantes em que me foi dado participar e onde tive a satisfação de ter
utilizado tudo o que aprendera ao longo do meu percurso europeu.
Não resisto a vangloriar-me com uma intervenção que me deu particular
gozo. Estávamos no Gymnich de Newport, País de Gales, durante a
Presidência britânica de 2006. O tema eram os eternos e pouco fecundos
contactos do RU, França e Alemanha com Teerão para procurar uma
solução para o problema nuclear iraniano. Portugal mantinha a posição, de
todos conhecida, de apoio à procura de uma solução negociada e satisfatória
para todas as partes. Não tínhamos, no quadro daquela reunião concreta,
nada a acrescentar.
Há quem considere que devemos sempre intervir em todos os debates,
para marcar o nosso empenho como actor da cena internacional e não dar
ideia que só intervínhamos quando tínhamos interesses nacionais directos
em jogo. Tenho uma posição pessoal sobre a matéria. Penso que cada
representante português, quando inicia trabalhos nos fora internacional,
deve marcar posição e destacar o nosso interesse nas diversas questões.
Afirmada essa posição, devemos evitar dizer banalidades que nos
descredibilizem e intervir apenas quando temos contributos para o debate,
para promover os nossos interesses ou em sua defesa quando eventualmente
postos em causa.
Não tencionava por isso interferir naquele específico debate e, enquanto
ouvia o que diziam, ia olhando para uma placa em madeira na parede da
sala nobre do clube de golfe do País de Gales onde a reunião tinha lugar,
com a insólita inscrição “Jim qualquer coisa and daughters award”.
Pareceu-me fascinante que alguém instituísse um torneio em seu nome e de
suas filhas e fez-me lembrar um atraente livro de Dylan Thomas, Rebbeca’s
Daughters, onde tudo é o contrário do que parece. A certo ponto, dou-me
conta de que todos os outros parceiros tinham já pedido a palavra. Nessas
circunstâncias, a minha teoria caía por terra e parecia-me inevitável intervir.
Quando o Foreign Secretary Jack Straw me deu a palavra, ocorreu-me
dizer: “não tenho muito a acrescentar na matéria, mas aquela placa faz-me
lembrar um livro excepcional do meu escritor galês preferido, para dizer a
verdade, do único que sei que é galês, Dylan Thomas, onde nada parece o
que é – é o que sucede nas negociações com o Irão”. Não adiantei muito,
mas pelo menos Straw deu atenção ao que eu disse.
O mais fascinante de todo esse período foi contudo a negociação das
Perspectivas Financeiras, aqui relatadas mais adiante2, que constituíram um
retumbante êxito de um trabalho de equipa, magistralmente chefiada pelo
Primeiro-Ministro, e que incluiu, em perfeita articulação, o seu Gabinete, as
competentes estruturas das Necessidades e a nossa REPER em Bruxelas.
Aquando da aprovação do anterior quadro comunitário de apoio, as
patéticas cassandras da desgraça nacional que povoam os programas das
nossas televisões e as páginas dos nossos jornais, anunciavam que Portugal
nunca mais teria apoio dos fundos estruturais europeus e que nos esperava
um futuro negro. Como fazem de novo quando escrevo estas linhas,
vésperas de novas negociações das Perspectivas Financeira 2013-2020. Não
só tal nunca esteve em causa, como, porque apresentámos um caso bem
estruturado e com objectivos claros, e porque tínhamos razão e sabíamos o
que queríamos, obtivemos um resultado muito superior (22,3 mil milhões
de euros) ao que, quando cheguei a Secretário de Estado, me tinha sido
apontado como o máximo absoluto possível e muito provavelmente
inatingível (19,5). Nada pode dar maior satisfação a um diplomata.
Em Julho de 2006 representei Portugal num Conselho Assuntos Gerais da
UE extraordinário realizado em Genebra, por causa do ainda persistente
impasse em torno do Doha Round. Deixei de lado as speaking notes que me
tinham preparado e disse aquilo que pensava, dirigindo-me ao Comissário
Mandelson, que representava a União nessa negociações. Entendi que, por
insuficientes que alguns as pudessem considerar, as concessões feitas pela
União onde as devia e podia fazer eram já apreciáveis. Era preciso
compreender que havia países, como a França, que manifestamente não
estavam em condições de avançar mais. Era necessário que os países
emergentes compreendessem que também tinham de fazer concessões e que
nós não queríamos defender indústrias sem futuro na Europa, mas sim abrir
os mercados em sectores onde ambos, países industrializados e emergentes,
estavam em condições de concorrer, com benefício para todos, no volume
de comércio e criação de postos de trabalho. O próprio Mandelson acolheu
favoravelmente esta intervenção. No final da reunião fui procurado por
colegas de países tão díspares em matéria de comércio como a Suécia e a
Itália que me pediram contactos para desenvolvermos esta ideia. No dia
seguinte Freitas do Amaral apresentou a sua demissão do Governo devido à
sua situação de saúde que o impedia de continuar e eu acompanhei-o na
saída do Governo.
Tive, pois, talvez, a mais diversificada e extensa experiência em assuntos
europeus de toda a minha geração. Estive na génese do processo de adesão,
servi na nossa REPER, com funções que me proporcionaram uma visão de
conjunto muito abrangente da actividade comunitária, tive a experiência
não só da dimensão logística e organizativa de uma presidência, como da
dimensão mediática, tive experiência no campo comunitário mas também
da política externa, com as funções que exerci no departamento PESC, tive
a experiência de trabalhar nas instituições europeias e de conhecer o seu
funcionamento interno, tive a experiência de Governo numa das
negociações mais difíceis que Portugal teve de enfrentar. Daqui decorreu,
logicamente, que à parte o Primeiro-Ministro Sócrates, que me pediu que o
representasse em duas reuniões sobre os Balcãs, quando eu era Secretário
Geral do Ministério, não me foi pedido um parecer, um conselho, uma
opinião, durante a Presidência portuguesa de 2007.
Acentuado o lado lúdico e algumas das peripécias mais divertidas deste
meu passeio e composto um cesto para a feira das minhas vaidades, falemos
agora da Europa.
1 Cf. Perspectivas Financeiras 2007-2013: o processo negocial, p. 181.
2 Cf. Perspectivas Financeiras 2007-2013: o processo negocial, p. 181.
2. A EUROPA
Os textos recolhidos neste livro testemunham, e são testemunho, de
alguma da experiência europeia a que acima me referi. O entusiasmo com a
perspectiva da adesão – que parecia um sonho inatingível para quem saía
das águas pardas e cinzentas do Estado Novo, que projectava no exterior
uma imagem de um Portugal fechado, retrógrado e pobre, enquanto no
interior tínhamos a sensação de não participar no banquete de democracia,
prosperidade e vitalidade em que se deliciava a Europa Ocidental, ou seja, a
que ficava para além dos Pirenéus. A experiência exaltante dos primeiros
anos após a adesão, coincidente com a fase de aprofundamento das
Comunidades Europeias de que Delors foi, e continua a ser, o expoente. A
maturidade mais cautelosa face à adaptação das ainda Comunidades às
alterações decorrentes da queda da URSS, e os consequentes saltos
voluntaristas da União Monetária e da União Política.
Esses textos, espero, mostram que considero o processo de integração
europeia como a mais conseguida e exemplar experiência de cooperação
entre Estados soberanos. Um verdadeiro marco histórico, não só nas
relações europeias, como internacionais. Mas reflectem também
preocupação com alguns aspectos da evolução institucional e política que,
desde a década de noventa, o processo de integração tem vindo a conhecer,
afastando-se do testado e seguro método comunitário, tão inteligente e
habilmente arquitectado pelos Pais fundadores desta Europa, e ainda mais
com o risco de uma mutação, que se perfila, dos valores em que assenta a
integração europeia.
Algumas dessas preocupações institucionais são objecto de artigos aqui
incluídos que, descontadas as circunstâncias conjunturais em que foram
escritos, ou a que se destinavam, julgo continuam actuais e pertinentes.
Gostaria porém, nesta introdução, de sublinhar dois assuntos que são, a meu
ver, cruciais para o futuro da União e da Europa: o défice democrático do
processo de decisão e o respeito pelo princípio da igualdade entre Estados.
Abordarei depois questões suscitadas pela evolução mais recente do
processo de integração e pela vertigem em que a crise da globalização
precipitou o Mundo e a Europa.
Do ponto de vista institucional, a mais grave falha da construção europeia
será a imperfeita legitimidade democrática do processo de decisão. Uso
aqui propositadamente a expressão “défice democrático”, termo consagrado
para designar este problema quando ele começou a ser alvo de atenção, aí
pelos anos oitenta, quase deixado cair depois das sucessivas reformas do
Tratado. Faço-o justamente para sublinhar que não julgo que essas reformas
o tenham resolvido.
Desenvolvo o tema no artigo “Europa ou Democracia”3 onde contrario a
tendência, que prevaleceu ao longo da reforma institucional, de que o
“défice democrático” se resolvia aumentando os poderes do Parlamento
Europeu, quando, a meu ver, este órgão não usufrui de uma legitimidade
democrática plena. Trata-se, aliás, de uma questão que veio a merecer maior
atenção no debate em torno da ratificação do Tratado de Lisboa.
O Parlamento Europeu é, inegavelmente, um órgão representativo.
Porém, talvez mais que da representatividade, a legitimidade democrática
provém da existência de um vínculo de responsabilidade entre o eleito e o
eleitor, entre a instância que decide e o eleitorado, aquilo que em inglês se
designa, mais expressivamente por accountability.
Nos Estados, os Governos que conduzem a política nacional emanam dos
Parlamentos. As eleições legislativas constituem o momento em que se
estabelece esse vínculo: os eleitores exprimem o seu julgamento pelo modo
como o mandato que conferiram aos eleitos foi exercido, ou dão o seu apoio
aos programas que lhes são apresentados. É daí que provém a legitimidade
democrática de quem governa.
Tal momento não existe na União Europeia. Com a co-decisão e o centro
de decisão “disperso” entre várias instituições e cargos institucionais, não é
possível determinar a nível europeu uma entidade responsável pela política
europeia, cuja selecção seja claro que o eleitorado possa influenciar. A
política europeia permeia hoje toda a vida colectiva, mas não existe um
momento, equivalente às eleições legislativas nacionais, em que os cidadãos
europeus possam pedir responsabilidade pelo modo como o voto que deram
aos eleitos foi exercido, ou escolher aqueles que lhe merecem confiança
para o exercer no futuro e que constitui o momento fundador da
legitimidade democrática.
A concessão, pelo Tratado de Lisboa, de um papel mais interveniente aos
parlamentos nacionais dá um tímido passo no sentido certo e reflecte o
reconhecimento desta lacuna, mas é insuficiente.
Essa insuficiência democrática foi de algum modo reflectida no Acórdão
do Tribunal Constitucional alemão sobre o Tratado de Lisboa e assume
particular acuidade num momento em que instâncias da União estão a
assumir novas competências, nem sequer previstas no Tratado, como o
domínio orçamental.
A meu ver, só a introdução de um elemento federalista no processo de
decisão europeu, distinguindo com clareza, em função da matéria, o
processo de decisão supranacional e intergovernamental, poderia ajudar a
suprir esta falha da construção europeia. Incompreensivelmente a palavra
federalismo tornou-se anátema no debate sobre a integração europeia,
mesmo entre nós, mesmo nos meios europeístas. Creio contudo que, se bem
entendido e aplicado, onde se entenda gerir em comum áreas centrais de
soberania, um modelo federalista, respeitador do princípio da igualdade
entre Estados, constituiria a melhor defesa dos Estados mais pequenos face
às tentações directoriais dos grandes, sempre favorecidas por procedimentos
menos precisos como os que estão em vigor.
E é justamente a subalternização do respeito pelo princípio da igualdade
entre Estados soberanos, que tantos séculos e tanto sangue custou a
conquistar, pilar do Direito Internacional moderno e certamente factor
determinante para a aceitação da transferência de soberania para uma
entidade supra-nacional, que permanece como a minha outra principal
preocupação, pois considero esta situação susceptível de, no plano
institucional, condicionar o porvir da integração europeia.
Portugal bateu-se, ao longo das negociações do tratado constitucional,
pela consagração deste princípio no texto do Tratado. Talvez a
especificidade da História de Portugal, e os nossos 900 anos de
independência, nos tornem particularmente sensíveis à preservação e
respeito deste princípio. Mas a resistência que encontrámos à adopção de
um artigo onde esse princípio ficasse expresso de modo mais claro, ou a
subalternização do seu valor, mesmo entre aqueles que nos apoiavam
conceptualmente, não deixa de suscitar alguma inquietação quanto à
preservação futura dum pressuposto curial da harmonia europeia.
A nossa pretensão ficou de algum modo reflectida no Art.º 4º n.º 2, onde
se reconhece “a igualdade dos Estados-membros perante os Tratados”.
Penso contudo que o princípio da igualdade entre Estados soberanos
constitui o conceito fulcral de uma união de Estados que decidem gerir em
comum parte da sua soberania, e nos quais reside a sua única verdadeira
legitimidade democrática. Não me parece suficiente o modo indirecto como
ficou reflectido no Tratado. Deveria estar consagrado logo no início do
Tratado, como pedra angular de toda a construção europeia.
Até porque é a mais relevante questão com que se prende o processo de
decisão e o equilíbrio político da União. Um dos objectivos obsessivos das
sucessivas reformas institucionais, como sucedeu com a que levou ao
presente Tratado, foi melhorar a eficácia do processo de decisão
comunitário, nomeadamente através da passagem da unanimidade para a
maioria qualificada. Objectivo certamente compreensível. Mas a procura da
eficácia não pode ser conseguida à custa do respeito pelas regras
democráticas. Não se pode esperar que uma União de 28 Estados soberanos
e democráticos com forte identidade histórica, cujos Governos têm de
responder perante 28 eleitorados diferentes e que procura o equilíbrio entre
interesses à partida divergentes, se não mesmo conflituais, tenha um
processo de decisão simples. Entidades análogas, como por exemplo os
Estados Unidos, têm um processo de decisão que não é menos complexo. A
resposta à pergunta cabotina de Kissinger sobre o número de telefone da
Europa é pedir o de Washington: a Casa Branca? O Capitólio? O
Pentágono? O National Security Council? A desejável eficácia da decisão,
posta hoje ainda mais à prova pela velocidade com que a sociedade evolui,
tem de ser equilibrada com o respeito pelas garantias constitucionais, sob
pena de pôr em risco a própria democracia.
As pacientes horas, dias, semanas, por vezes mesmo meses ou anos, que
as instituições comunitárias levam para encontrar decisões consensuais, em
vez de proceder a votações fracturantes, por mais que tal possa parecer
desesperante, são o reconhecimento dessa realidade e provam a maturidade
e sabedoria com que a União tem sido conduzida. Aliás, o efeito positivo da
extensão da decisão por maioria qualificada tem sido não o uso do voto a
cru, mas o acelerar do processo negocial, ao condicionar a táctica de cada
Estado-membro.
Ora é justamente pelo processo de decisão que se pode avaliar o efectivo
respeito pelo princípio da igualdade entre Estados. É verdade que o
processo de decisão adoptado pelo Tratado de Lisboa tem em conta este
princípio. A solução de dupla maioria adoptada para as decisões por maioria
qualificada, derivada já do Tratado de Nice, reflecte-o. Penso, contudo, que
a adopção ostensiva do critério demográfico é de democraticidade
questionável e menos feliz que o sistema de ponderação previsto no Tratado
de Roma. Teria, a meu ver, sido melhor e mais simples a adaptação, à
realidade de uma União alargada, da ponderação de votos consagrada no
Tratado de Roma, que se baseava num mais subtil e menos ostensivo
equilíbrio entre o respeito do princípio da igualdade entre Estados no plano
político/jurídico e a avaliação ponderada dos impactos diferentes derivados
da dimensão geográfica, demográfica, militar e económica de cada Estado.
Poderá parecer estranha esta defesa de um processo decisório “lento”,
quando a Europa, e o mundo democrático, estão sob um ataque do Monstro
da Especulação Financeira que eles próprios libertaram. A questão reside
aqui, todavia, muito menos no método de decisão do que nos líderes
europeus, aparentemente incapazes de se aperceberem da extensão do risco
que enfrentamos e sem a coragem de tomar as decisões radicais que a
gravidade da situação exige. Muitos são os grandes Estadistas que ficaram
na História por saberem encontrar as soluções correctas nos momentos
cruciais. Infelizmente são talvez mais aqueles em que o procedimento
oposto juncou os campos e os mares de cadáveres.
Outras inovações do Tratado quanto ao processo de decisão, pela falta de
clareza e indefinição que introduzem, não salvaguardam de modo
satisfatório o respeito pelo princípio da igualdade entre Estados, que
constitui o cerne da supra-nacionalidade, e criam condições susceptíveis de
levar a uma deriva intergovernamental.
A título de exemplo, talvez o mais ostensivo, aponto o caso do Art.º 15º,
n.º 4, que determina que o Conselho Europeu, que, recordo, agora se tornou
uma instituição da União, “pronuncia-se por consenso”, nas suas
deliberações, que estabelecem as linhas estratégicas da União. Já no Art.º
16º se estabelece que o Conselho de Ministros “delibera por maioria
qualificada, salvo disposição em contrário dos Tratados”, caso em que
decide por unanimidade. Esta indefinição confere maior espaço à propensão
dos Estados grandes para imporem as suas prioridades ao não distinguir
com rigor a diferença entre este vago “consenso” do Conselho Europeu e a
unanimidade, que era até agora a norma da decisão do Conselho Europeu.
Tal não só favorece as tensões “directoriais” e salvaguarda mal o respeito
pela soberania dos Estados com menos peso, como afecta, como a
experiência parece já estar a demonstrar, o equilíbrio intra-institucional em
prejuízo da Comissão, que deve continuar a constituir o esteio da
construção europeia, como único órgão susceptível de representar e assumir
o interesse comum.
Nessa perspectiva, entre outras opções que reputo menos felizes do
Tratado de Lisboa, que mereceu aliás resistência de Portugal e outros
Estados-membros, está a criação de um Presidente permanente do Conselho
Europeu.
Desde logo a criação deste cargo, bem como a atribuição da Presidência
do Conselho de Negócios Estrangeiros ao Alto Representante PESC, anula,
ao retirar-lhe as duas funções de maior impacto e maior visibilidade
política, a principal razão de ser das presidências nacionais rotativas, que
porém se mantém: estabelecer um elo forte e um sentimento de pertença
entre os nacionais desse Estado e a Europa. Creio até que se corre o risco de
dar, ao país que assume a presidência, uma imagem de redundância,
susceptível de provocar justamente o efeito contrário.
Depois, e mais preocupante, um Presidente permanente do Conselho
Europeu, agora elevado a instituição, dotado de competências no
estabelecimento da agenda da União, cria um campo de indefinição na
articulação com a Comissão, susceptível de pôr em risco o papel desta
como motor da integração e detentor exclusivo da iniciativa em matéria
comunitária e acresce assim os riscos de uma deriva intergovernamental, da
afirmação de directórios e de uma depreciação do papel da Comissão, risco
que, infelizmente, julgo se está a evidenciar.
Dito isto, a entrada em vigor do Tratado de Lisboa teve o mérito de pôr
cobro a duas décadas de intermináveis reformas institucionais e de permitir
que a União concentre agora os seus esforços no prosseguimento e
consolidação da integração. Ou pelo menos retirou-lhe a desculpa para que
não o faça.
Por isso, quando em funções ligadas à União, apoiei a ratificação do
malogrado Tratado Constitucional, que o de Lisboa largamente reproduz,
com as modificações suficientes para permitir ultrapassar o óbice dos
referendos holandês e sobretudo francês. Porque ter reaberto a discussão
sobre outros pontos do Tratado teria sido, para quem o fizesse, um suicídio
político. Portugal, com a Presidência de 2007, prestou por isso, mais uma
vez, um relevante serviço à Europa, ao conseguir fazer aprovar o Tratado de
Lisboa.
Continuo porém a pensar, como digo no artigo da página 121,
“Alargamento e Constituição da União Europeia: de Monnet a
Metternich”4, despropositado o processo desencadeado pela Declaração de
Laeken, que levou a resultados opostos ao pretendido. Em vez de um
Tratado simplificado que substituísse os dezoito já existentes, ficámos com
mais um Tratado que julgo ninguém que o leia considerará simplificado.
Quinze Estados soberanos, com décadas de experiência do processo de
integração europeia, teriam, a meu ver, métodos mais correctos, adequados
e profícuos – mas talvez menos mediáticos – para rever os tratados que já
os uniam numa comunidade supranacional, do que uma Convenção à
procura do sabor fundador da revolução americana. Talvez tivesse sido
melhor ir buscar inspiração aos exemplos adaptáveis do federalismo
americano, desde logo o estrito respeito pelo princípio da igualdade entre
Estados.
Agora, há é que definir uma estratégia clara e mobilizadora para a União,
capaz de dar resposta rápida aos desafios colocados pela maior crise que o
modelo de economia de mercado até hoje criou e viveu. Infelizmente, a
imagem que prevalece é a de uma União a reagir a acontecimentos que
pouco influenciou, enredada no reacender de cegos egoísmos nacionalistas
e mostrando a dificuldade das suas instituições em assumir uma clara
liderança para enfrentar os desafios do presente e do futuro, em contraste
com o que sucedeu em décadas passadas.
Passando ao papel da União no mundo, confesso que julgo patética a
interminável litania em que os dirigentes europeus se gastam queixando-se
da falta de expressão internacional da União. A proeminência internacional
não se adquire por decisão própria: ou se tem ou não se tem. E quem se
queixa da sua falta, só expõe a sua debilidade.
Só uma efectiva integração económica da Europa, reforçando o interesse
comum face aos interesses nacionais, poderá dar lugar a uma verdadeira
convergência numa política externa europeia que se sobreponha, ou se
coteje, com as políticas nacionais. Será um processo longo e nunca
terminado: pelo peso que a tradição das relações externas dos países
europeus têm na sua própria identidade, pelas divergências de interesses
que a própria extensão geográfica da Europa implica – veja-se o exemplo
dos EUA, onde sucede os representantes dos Estados manifestarem
interesses diferentes em matéria de relações externas em função da sua
situação geográfica ou composição demográfica. Não abordarei sequer aqui
a questão do poder militar, que no presente se afirma sobretudo na
dimensão atlântica.
De momento, porém, os interesses externos dos Estados-membros, não só
em muitos casos não são convergentes, como são mesmo contraditórios,
senão conflituais. Felizmente nestas circunstâncias, sobretudo para um país
com a dimensão e as ligações extra europeias de Portugal, as decisões em
matéria de política externa são tomadas por unanimidade. Portugal é o
único país da sua dimensão que tem relações históricas particulares em
todas as outras regiões do Globo. É por isso essencial mantermos uma larga
autonomia nas relações com os países a que nos ligam esses laços. O caso
de Timor foi disso esclarecedora demonstração.
Além disso, quero crer que, no presente equilíbrio euro-atlântico, a União
não estará em condições de assumir, em matéria de política externa em que
estejam em causa interesses cruciais de segurança para os EUA, posições
comuns que não sejam 100% coincidentes com as de Washington.
Seria melhor dedicar o tempo gasto nas lamentações sobre as limitações
do peso da Europa no Mundo a uma reflexão séria sobre o processo de
integração, em que, sem a pressão de prazos artificiais, se confrontassem as
diversas perspectivas estratégicas para o futuro do processo europeu e se
apontasse o caminho, ou caminhos, para prosseguir o interesse comum
capaz de integrar os interesses nacionais de cada um e de congregar a
vontade de todos, de modo a avaliar até que ponto existe disponibilidade
para partilhar soberania na condução desse processo, mesmo se
desenvolvido em geometria variável.
Nesta perspectiva tem porém de se reconhecer que os dois últimos
alargamentos, para 25 e 27 (depois 28) Estados, diminuíram a coesão da
União. A relativa condescendência que, por razões políticas externas à
União, se manifestou quanto ao estado de preparação e adequação do
processo de adesão de cada candidato – condescendência que, com
nuances, se perfila em relação a alguns dos processos em aberto –, não é
um bom sinal quanto à perspectiva com que se encara o projecto europeu.
São visíveis as suas repercussões no sentimento de coesão.
É preocupante o esbatimento do sentido do interesse comum europeu. A
criação de interesses objectivamente comuns, pela colocação e utilização
em conjunto de recursos cujo controlo esteve ao longo da História na
origem dos conflitos europeus, constitui a génese do êxito da União
Europeia e o cimento agregador do processo comunitário. A percepção
dessa mais-valia consolidou um interesse supranacional que integra os
interesses individuais de cada Estado-membro e de algum modo se lhes
sobrepõe, por ser a melhor garantia de realização dos interesses individuais.
Como dizia Schuman, a Europa “não se fará de um golpe,…mas através de
realizações concretas e solidariedades de facto…”. Solidariedades que
integram o interesse nacional, que são mesmo condição da sua realização, e
que têm sido o garante da paz e da estabilidade que cada vez mais parece
esquecer-se que deu à Europa o mais longo período de estabilidade,
segurança e prosperidade da sua História e foi erigido como um farol para
os povos que almejavam análogo bem-estar.
Expressão da quebra do sentimento de coesão é ouvir responsáveis
políticos de alguns países, de que comentadores mediáticos “bem
pensantes” e bem remunerados se fazem eco entre nós, falar de quem
“paga” e quem “recebe”, a propósito da distribuição do orçamento da
União. A visão redutora da União a um mero instrumento de redistribuição
orçamental, a uma contabilidade de deve e haver, é deplorável, pela falta de
visão estratégica, pelo que revela de desconhecimento do cerne da União e
é até risível, pois trata-se, mesmo quantitativamente, de uma expressão
relativamente secundária do processo europeu. Como anualmente é
evidenciado em relatórios vários independentes, os países ditos “pagadores”
são, em termos económicos, os maiores beneficiários da integração
europeia. Sem o mercado único, as exportações da Alemanha ou as receitas
dos portos da Holanda não seriam o que são.
Para mais, é necessário sublinhar que a Política de Coesão é, como dizia
Delors, a contrapartida do Mercado Único. E não compreender que é do
interesse comum o desenvolvimento de todas as regiões da União, única
forma de garantir a sustentabilidade da procura, de reduzir a dependência
do exterior, e de fortalecer a economia de todos e cada um, é não
compreender a essência do processo de integração europeia. Não resisto a
referir aqui o espectáculo de patético provincianismo de comentadores
nacionais que, na altivez da sua ignorância, consideram que, por receber
fundos europeus, Portugal está na Europa de mão estendida, sem sequer se
darem ao trabalho de, ao menos, deduzir desses montantes a nossa
contribuição para o Orçamento comunitário, de recordarem o que no
mesmo contexto a Alemanha ou a Irlanda também beneficiam da política de
coesão e recebem verbas dos fundos europeus, ou de compararem o que
recebemos per capita com outros parceiros.
Seria ainda neste contexto salutar não continuar com a cabeça metida na
areia em relação aos limites geográficos da União. É a meu ver necessário
assumir que o alargamento é um processo político e não jurídico e que, a
partir de certo limite, só poderá servir à diluição e redundância da União.
Mas se estes são problemas, diria conjunturais e funcionais, que julgo
inquietantes, a verdadeira questão será contudo de saber se continua a
existir uma convergência de interesses e uma perspectiva comum quanto ao
futuro da Europa e vontade para prosseguir o projecto europeu, que não é
claro seja abraçado pela actual geração de dirigentes, muitos dos quais não
parecem revelar uma visão estratégica sobre os desígnios da Europa. Nem
sequer resulta claro, como Delors recentemente referiu, que prevaleçam
ainda os valores e princípios em que a construção europeia assentou.
Penso que será mais ou menos consensual que uma das grandes tragédias
da Humanidade, ao nível individual e colectivo, será a incapacidade de cada
geração aprender com os erros e a experiência da anterior. O processo de
integração europeia constituirá um dos raros – o único que me ocorre –
casos na História em que uma geração soube transmitir à geração que se lhe
seguiu a experiência dos erros que a anterior lhe impôs.
Terá sido necessário que a barbárie, a crueldade, a desumanidade, tenham
chegado ao seu expoente máximo, para que uma geração tenha tido a
sabedoria de digerir e aprender com a experiência da História. A carnificina
gratuita da primeira guerra, com a aniquilação fria e sem sentido de quase
toda uma geração masculina, devido sobretudo à sucessão de erros
cometidos por políticos medíocres, confortados por uma opinião pública
que pensava os horrores da guerra coisa do passado. O horror da barbárie
ideológica do nazismo e do nacionalismo japonês, servidos por meios
tecnológicos com uma eficácia destrutiva sem precedentes. A proximidade
do Apocalipse a que se chegou na segunda guerra. Tudo isto terá levado os
dirigentes políticos do Ocidente a compreender que era preciso mudar, que
era necessário lançar novas fundações da ordem internacional se não se
quisesse voltar aos erros do passado, se não se desejasse que, como sempre
tinha sucedido, a paz fosse apenas um intervalo entre guerras.
Tal foi compreendido pelos dirigentes americanos, que resistiram a
utilizar contra a URSS a superioridade absoluta que lhes conferia o
exclusivo da posse da bomba atómica logo após a segunda guerra. Bem
como ao promover, através do Plano Marshall, um esforço conjunto de
reconstrução da Europa, nele igualando vencedores e vencidos, no que terá
sido a mais generosa remissão destes na História – compare-se com a Paz
de Versailles, ou com a “paz soviética” imposta no Leste europeu. Foram
desse modo lançadas as bases de uma ordem internacional assente nos
valores do humanismo, da liberdade, do Direito – e bem assim as bases da
integração europeia.
Foi também a experiência do esforço conjunto e solidário dos aliados
durante a segunda guerra que esteve na génese do processo de integração: a
criação, pela partilha de recursos até aí objecto de concorrência, de um
interesse objectivamente comum, que se sobrepusesse aos interesses
individuais de cada um. Objectivo esse plenamente conseguido, pois onde
antes havia competição, constatou-se, com a prática, que a cooperação
produzia resultados mais favoráveis para todos e criava estabilidade,
segurança e prosperidade.
A criativa estrutura institucional gizada pelos fundadores da Europa para
gerir esses recursos em comum, com a criação de uma entidade supra-
nacional dotada de competências e poderes, que obrigavam os Estados a tê-
la em conta para poderem obter acordo em torno dos objectivos que
prosseguiam, bem como a inteligente e equilibrada construção institucional
consagrados no Tratado de Roma, conduziram a um período de estabilidade
e prosperidade sem precedentes e constituiu um êxito que levou ao
aprofundamento da integração.
A solidez da construção europeia vinha, sobretudo, dos então muito vivos
ideais que todos compartilhavam, de paz, de solidariedade, de prosperidade,
de segurança, no respeito de valores que emergiam, como que sacralizados,
da carnificina de duas guerras, e que triunfavam sobre os ecos da
abominação do Gulag e da infâmia da revolução Cultural. A liberdade, a
democracia, o respeito pelos Direitos Humanos e pelas garantias
individuais, enfim, os valores de um humanismo esclarecido. Mas também
a experiência das sociedades mais afluentes que, baseadas, senão num
código ético, na experiência, mostravam que a estabilidade e a prosperidade
só eram sustentáveis numa sociedade de que todos beneficiassem e de que
todos se sentissem sujeitos, com uma distribuição mais equitativa de bens e
recursos, única capaz de permitir um nível sustentado de consumo que
assegurasse o desenvolvimento económico.
São esses valores, essa aliança de princípios éticos e inteligência prática
que, temo, o mundo arrogante da globalização queira espezinhar e deitar
para o caixote do lixo da História. Os valores humanistas passaram a ser
vistos com mal disfarçado desdém, como uma caturreira de generosos e
uma pieguice de perdedores, dos que não são capazes de lutar sem regras,
numa luta onde os fins justificam os meios, onde, como no futebol
moderno, as próprias faltas, mascaradas de tácticas, são vistas como
virtuosas. Parece ter-se esquecido que, como já dizia Henry Ford, “a
produção de massa deve ser acompanhada de um consumo de massa e que
este requer uma distribuição do rendimento razoavelmente uniforme”.
A queda do Muro de Berlim, o aparente estertor incautamente anunciado
da História, a subalternização da política, a cupidez dos oportunistas, levou
a que se proclamasse, com gritante ausência de perspectiva histórica, a
morte das ideologias. A meu ver foi o contrário que sucedeu. A seguir à
queda da União Soviética, afastada a ameaça do comunismo, entrámos
numa das épocas mais fortemente ideológicas da História. Uma ideologia
única e hegemónica, também ela com as pretensões pseudo-científicas do
marxismo, que veio arvorar o interesse material em único motor da vontade
humana, o mercado livre e a sua hoje tão ostensivamente mão invisível em
dogma incontestável e bem assim erigir a rentabilidade em único ídolo a
venerar. Uma ideologia totalitária que mercantilizou todos os aspectos da
vida individual e colectiva. Uma ideologia, que se pretende afirmar
simultaneamente nas evidências do pragmatismo e no saber críptico dos
sacerdotes que a servem e cultivam em templos do saber moderno, que
auto-proclamam a sua excelência e perfeição eterna – “o fim da História”.
Ideologia sem contraponto, porque divide o Mundo entre os vencedores,
que a seguem e praticam, e os que a rejeitam, à partida definidos não só
como vencidos mas fora da realidade. Uma ideologia, talvez a primeira,
sem ethos, e que talvez por isso não se identifica, ou não é identificada,
como uma ideologia.
O projecto de uma estrada, uma escola, um hospital, que antes se
avaliavam em função da sua utilidade para transportar, ensinar ou curar,
passou a ser encarado exclusivamente à luz da sua rentabilidade. O sentido
de serviço à Comunidade perdeu-se – primeiro passo para se perder o
sentido de comunidade. Prefere-se desviar recursos das actividades
produtivas, ou de benefícios para a comunidade, para a especulação, que
beneficia os proselitores dessa ideologia e os gestores que subordinam o
objecto social das empresas que dirigem à especulação bolsista. Wall Street
esmagou Main Street. O equilíbrio das sociedades livres e justas esvaneceu-
se.
A crise financeira iniciada em 2008, filha dessa ideologia, expôs de modo
tão obsceno o desprezo pela pessoa humana que, na cimeira de l’Aquila, de
Julho de 2009, os membros do G8 sentiram a necessidade de afirmar o
propósito de “repor” o Homem no centro da economia. As mais recentes
encíclicas papais assinalam a situação humanamente devastadora a que o
primado do rendimento conduziu a sociedade. A economia que mata, na
expressão do Papa Francisco.
Não foram as ideologias que morreram. Foram os ideais. Por isso a UE,
de uma estratégia para um futuro europeu de paz, justiça, solidariedade,
estabilidade, segurança, prosperidade, de garantia do respeito pelas
liberdades, pelo Estado de Direito e pela democracia, parece cada vez mais
encarada como um mero instrumento táctico e utilitário de oportunismo
político. Uma mera ferramenta que os Estados-membros, sobretudo os
grandes, utilizam ou não a seu bel-prazer, regressando em parte à lógica
letal do poder do mais forte, parecendo esquecer os ensinamentos da
integração que, porém, mostrou de forma muito óbvia que o bem de cada
um está indelevelmente ligado ao bem de todos, e que só unindo esforços a
Europa poderá manter o seu nível de vanguardismo e bem-estar.
A História está repleta de tragédias e catástrofes causadas por erros de
acção ou omissão, pela incapacidade de decisão, tantas vezes originados na
falta de coragem dos dirigentes, mas sempre na ausência de uma
perspectiva estratégica clara ou determinada.
A integração europeia foi o mais lúcido rasgo da História. Seria trágico
que a geração que herdou esta construção sem precedentes desbaratasse
essa herança, logo quando os valores que arvorava pareciam poder ter
vencimento universal.
Poderá parecer que a recente multiplicação de reuniões do Conselho
Europeu, ou a constante e frustrada intenção de dar maior peso
internacional à Europa, constituem manifestação do crescente europeísmo.
São, pelo contrário, a meu ver, e como dizia Delors numa recente entrevista,
fugas para a frente. A verdadeira manifestação de europeísmo seria voltar
ao método comunitário, dando passos talvez curtos mas sólidos e efectivos
no quadro de uma estratégia que não carece de ser reinventada: concretizar
os objectivos que a União traçou, a inovação, o conhecimento, a
investigação mas também o reforço da coordenação económica e sobretudo
completar o Mercado Único, fim primeiro da União, ainda longe de ter
libertado todo o seu potencial e base de, e para, uma real convergência de
interesses.
A vontade para desenvolver esses esforços só pode existir se se
reafirmarem os valores europeus e se ressuscitar o ideal da integração. Se a
Europa voltar a ser um desígnio e uma estratégia dos seus dirigentes. Se
não, talvez a integração europeia tenha cumprido a sua missão e a Europa
esteja condenada à marginalização e ao epílogo do seu predomínio de cinco
séculos, iniciado, como Toynbee bem definiu, com a viagem de Vasco da
Gama, que conferiu à Europa o controlo da navegação, posta agora em risco
pela ausência de cultura histórica dos fundamentalistas da sociedade sem
Estado, insensíveis ao âmago da civilização, em que diziam acreditar e
julgavam defender.

P.S.

Terminei o texto desta introdução, ainda em Roma, em 2012. Desde aí, e


até agora, não senti necessidade de acrescentar nada. Até por não querer dar
ao texto um carácter conjuntural. A mensagem essencial que quis transmitir,
e consta do texto acima, mantém-se: “a integração europeia foi o maior
rasgo de lucidez da História. Seria trágico que a geração que herdou essa
construção sem precedentes, em que uma geração soube construir sobre a
experiência da anterior, desbaratasse essa herança...”
Mas a evolução dos tempos mais recentes leva-me a acrescentar alguma
coisa.
Por um lado, é verdade que se vislumbra alguma vontade de corrigir os
excessos da linha neo-liberal seguida para combater a crise financeira
internacional, derivada justamente do excesso de liberalização, e bem assim
atenuar o protagonismo de um “directório” de um só membro.
Mas essa linha, ao sobrepor interesses meramente financeiros (e note-se
que não digo económicos) aos valores humanistas que até então constituíam
o fundamento da integração europeia, levou, com a estagnação dos salários,
a ameaça de regressão do Estado Social, o crescimento do desemprego e o
aumento da desigualdade ao renascer dos demónios que dilaceraram a
Europa no século passado: o populismo, o racismo, o ódio ao próximo, o
egoísmo nacional, que deixou de procurar encaixar o interesse nacional no
interesse europeu mais geral a chave do êxito da integração europeia.
Sacrificou-se o homem a índices financeiros abstractos e aleatórios – e
aos propósitos nada aleatórios dos especuladores financeiros que hoje
condicionam o poder político, reduzindo em considerável medida a margem
de manobra dos Governos.
Deixou, no processo de decisão europeu, de se procurara harmonizar os
interesses de todos os parceiros, para se impor aos mais fracos a vontade
ideológica dos mais fortes, sem que estes se eximissem de manifestar o seu
sentimento de superioridade sobre aqueles.
Daí a ascenção de movimentos populistas radicais, mais de extrema-
direita do que de extrema-esquerda, e o surgir no interior da própria União
de Governos que violam ostensivamente os valores e critérios democráticos
que a regem, perante uma incompreensível passividade desta. Ou seja,
sobrepuseram-se os critérios de Maastricht aos de Copenhague, as finanças
que dividem aos valores que unem.
Tudo isto num contexto de uma aceleração estonteante das mudanças que
o mundo está a viver, em que as inovações tecnológicas parecem ter
ultrapassado a ficção científica e nos deixámos ultrapassar pelas alterações
do clima, ao mesmo tempo que os EUA, o nosso aliado indispensável, e
garante da segurança europeia, estão a marginalizar a ordem internacional
ocidental que eles próprios criaram e a subverter, na sua acção política e
económica, os valores que a sustentaram.
Neste panorama a União Europeia não parece capaz de definir uma linha
própria e firme, nem na defesa desses valores no plano interno, nem no
externo, aparentemente perdida face ao bailado dos equilíbrios
internacionais, onde a União surge com crescente irrelevância, e do rápido
emergir de novas potências e novos riscos para a Paz mundial.
3 Cf. p. 103.
4 V. p. 121.
União Política5
Das responsabilidades que exerceu durante a Segunda Guerra Mundial
nos organismos encarregados de coordenar o abastecimento dos Aliados,
retirou Jean Monnet a convicção de que a cooperação entre Estados
soberanos só pode ser efectiva se tiver por base uma real convergência de
interesses, capaz de criar uma solidariedade objectiva.
Se, na euforia do pós-guerra, propícia ao germinar de ideais e ilusões, o
próprio Monnet terá sucumbido à tentação de queimar etapas e de avançar
de imediato para níveis superiores de integração entre os países europeus, a
verdade é que foi a colocação sob uma autoridade comum dos bens
essenciais à reconstrução dos países mais devastados da Europa Ocidental,
o carvão e o aço, que, criando solidariedades objectivamente capazes de se
sobreporem aos egoísmos nacionais, constituiu a semente que germinou no
subsequente processo efectivo de integração supranacional – exemplar na
sua individualidade e originalidade – que as Comunidades Europeias
consubstanciam.
Não se pode ignorar que para o êxito desse processo terão contribuído
factores exógenos ou apriorísticos, certamente não desprezíveis, como o
Plano Marshall, a NATO, ou as limitações impostas à soberania alemã –,
mas há que reconhecer que as políticas comuns do carvão e do aço, da
energia, a Política Agrícola Comum e a criação da União Aduaneira abriram
aos seis membros originais perspectivas que a manutenção das fronteiras
nacionais não teria permitido antever, multiplicando as interdependências e
os interesses objectivamente convergentes, de modo a inscrever o fim
comum da integração no interesse individual de cada Estado, gerando desse
modo a solidariedade efectiva ambicionada por Monnet. Tão efectiva que as
comunidades passaram a constituir um pólo de atracção para os países
vizinhos. E se o primeiro alargamento e a recessão dos anos 70 pareceram,
por vezes, afectar a coesão dessa solidariedade de interesses, o sistema
comunitário acabou por criar uma lógica própria, que logo se revelou tão
fértil e sólida que, ao embater no primeiro escolho a que o formalismo das
suas instituições o conduziu, a questão orçamental britânica, soube
encontrar, mesmo que em aparente detrimento dos princípios que o
informam, uma solução que garantisse a sua preservação.
A crise então vivida pelas Comunidades, apodada por vezes de
“euroesclerose”, levou muitos a descrerem do processo comunitário. Mas
foi justamente o respeito pelos princípios caros a Jean Monnet,
suficientemente bem traduzidos no equilíbrio institucional estabelecido
pelos Tratados, que permitiu às Comunidades superá-la. Não afrontando o
interesse individual de nenhum Estado-membro, antes encontrando o modo
de o assimilar ao interesse comum, a Comunidade soube sublinhar e utilizar
a força da solidariedade criada, o que lhe permitiu aproveitar a recuperação
económica dos anos 80 para, sem voluntarismos, com segurança e
consensualmente, absorver o segundo alargamento e acelerar a construção
do Mercado Único, fim primordial da Comunidade Económica Europeia.
A dinâmica comunitária foi então ainda comprovada pela imediata
capacidade de reacção demonstrada: quando o desenvolvimento do
processo de construção do Mercado Interno revelou a conveniência de
aprofundar a integração no plano económico e monetário. Se persistem as
divergências quanto à forma final que deverá assumir a União Económica e
Monetária, nunca ninguém negou que a consecução do Mercado Único
implicará uma maior convergência das políticas económicas dos Estados-
membros e um reforço da disciplina das políticas monetárias.
O lançamento da Conferência Intergovernamental para a UEM, surge,
assim, como corolário da evolução progressiva da integração europeia, cuja
multiplicação e encadeamento de interesses, gerando sempre mais
interdependências e novas convergências, cria a necessidade de reforçar
essa integração.
Não se trata de impor, por voluntarismo, laços artificiais entre os Estados-
membros, ou de lhes reduzir a autonomia por razões ideológicas. Antes de,
face a necessidades reais e sobre bases sólidas, aprofundar o processo de
integração onde ele se revela mais vantajoso do que a prossecução da acção
individual e dispersa de cada um. Já a convocação da Conferência
Intergovernamental da União Política não surge tanto ou apenas da lógica
própria do processo de integração, mas é sobretudo induzida por factores
exógenos e conjunturais.
Se a teia de solidariedades objectivas que as Comunidades Europeias
foram criando explica, em parte, o período de paz e prosperidade que a
Europa Ocidental tem vivido desde o final da Segunda Guerra Mundial – é-
se tentado a dizer, para utilizar uma imagem em voga, a «interrupção da
guerra civil europeia» –, não se pode contudo esquecer que o
enquadramento internacional favorável em que ela se desenvolveu assenta,
sobretudo na vertente de defesa e segurança, em pólos situados fora da
Europa.
O esbatimento da bipolarização Leste-Oeste derivado da evolução interna
da União Soviética, o enfraquecimento desta como superpotência, a sua
decorrente retracção da Europa e a libertação da Europa de Leste, alteraram
o equilíbrio externo em que assentou o nascimento e o crescimento da
Europa comunitária. Mas foi sobretudo a oportunidade criada por esses
desenvolvimentos à reunificação da Alemanha, a perspectiva de reassunção
da sua plena soberania política e os reflexos que a evolução a Leste
necessariamente terá sobre as prioridades desta, que mais radical e
inexoravelmente mudaram o quadro em que as Comunidades se movem.
Certamente que a conveniência de adaptar as Comunidades a uma nova
realidade que tão directamente a afecta, pode justificar a preocupação de
reflectir sobre a eventual necessidade de lhe conferir uma nova dimensão
política, e/ou de estender a sua competência ao domínio da política externa
e da defesa. Certamente, também, que a realização do Mercado Interno e o
eventual advento de uma política económica e monetária comum,
consentem que se preveja a necessidade de conferir um maior poder às
instituições comunitárias, ou de colocar em comum novas parcelas de
soberania.
Tal avanço na integração europeia seria menos controverso, e geraria
menos tensões, se decorresse da evolução destes dois processos, que é
prematuro antecipar. A iniciativa do lançamento da União Política, porém,
não terá derivado tanto de uma necessidade unanimemente reconhecida,
como de uma reacção táctica que espelha sobretudo a preocupação com os
riscos derivados da evolução do Leste e da emergência da nova Alemanha.
Compreende-se o intuito de salvaguardar, e até reforçar, os laços
comunitários na presente conjuntura: mas, como atrás se referiu, estes só
são sólidos se tiverem por base uma efectiva solidariedade de interesses. No
momento presente, é ainda prematuro julgar se as propostas originais de
lançamento da União Política terão a capacidade de fazer emergir novas
solidariedades e de se sobrepor à lógica dos interesses nacionais, que ao
longo dos séculos determinaram os (des)equilíbrios europeus, ou se, pelo
contrário, não decorrerão delas.
Bem como se o lançamento de uma iniciativa desta envergadura e
ambição não deveria ser precedido de uma reflexão e de um debate mais
profundo, sério e alargado, sobre os seus princípios e consequências, a fim
de evitar precipitações. A evolução do processo negocial das diversas
propostas apresentadas antes e após o início da Conferência
intergovernamental, e que aqui se não pretendem analisar, parecem revelar
a inevitabilidade de se proceder a essa reflexão. Para assegurar que assim
seja, é, desde logo essencial que no exercício em curso não se perca nunca
de vista que os Estados soberanos são, e têm de continuar a ser, a unidade
básica e o ponto de referência em que assenta a Comunidade Europeia: esta,
aliás, mais não pode ser do que a soma da(s) parcela(s) de soberania que os
Estados-membros considerem mais útil gerir em comum do que
isoladamente.
É nos Estados que reside a soberania, e é na sua estrutura político-
constitucional interna – e exclusivamente nela – que está assegurada a
representatividade e a transparência que constituem o fundamento da
legitimidade democrática. No plano teórico é possível, e até fácil, discernir
formas de transferir essa legitimidade para soluções supranacionais. Mas no
campo da realidade seria uma trágica ilusão se se pretendesse acelerar o
processo de integração europeia absorvendo nele, com voracidade precoce,
o Estado-nação.
Poderá haver ponderosas razões económicas e políticas que, neste
contexto, sobreponham conjunturalmente o interesse no acelerar da
integração ao respeito pelo papel dos Estados na construção comunitária.
Mas seria um imperdoável erro que se supusessem eternas essas razões
circunstanciais, e se ignorasse que o acentuar de uma recessão económica,
uma solução institucional que se revelasse menos equilibrada, uma
distribuição de benefícios mais assimétrica, poderiam rapidamente
reacender pela Europa Ocidental as mesmas chamas nacionalistas que estão
a atear, no Leste, os incêndios devastadores a que estamos a assistir. A
consolidação do Estado-nação é uma conquista recente.
Na Europa Ocidental é ele que representa a estrutura política que
consubstancia a liberdade e a democracia, o direito dos povos de disporem
de si próprios, a vitória sobre as tentações hegemónicas. A única forma
segura de, a nível comunitário, progredir no caminho de uma união mais
profunda, sem provocar retrocessos nacionalistas, é justamente a de
continuar a garantir ao Estado o lugar e o papel de principal sujeito desse
processo, e a de permitir que prossiga livremente, e sem imposições
extemporâneas, a dialéctica interesse nacional/interesse comum, própria do
processo comunitário.
Ceder à tentação de soluções unitárias precoces, ou a miragens de
regionalismos pouco clarificados, será pôr inutilmente em risco o próprio
processo de unificação que se visa alcançar de um modo gradual.
Aliás, não será fácil encontrar prova mais clara da força que detêm as
convicções nacionais do que a que resulta do exame das reacções dos doze
Estados-membros aos projectos de União Política que estiveram na base do
actual processo negocial: cada um tomando posturas que correspondem,
quase que se é tentado a dizer que mecanicamente, ao fluir natural da sua
experiência histórica, e à sua condição geoestratégica, equacionados com as
realidades presentes de modo mais ou menos mediato, conforme o grau em
que são afectados pelas recentes convulsões do Continente Europeu.
Enganam-se os que sonham que o respeito pela identidade de cada nação
é garantia suficiente para, numa sociedade próspera, ser aceitável qualquer
estrutura política supranacional, desde que democrática. Porque a aspiração
suprema de cada identidade nacional é, justamente, a possibilidade de a
fazer coincidir com a faculdade de dispor da sua própria estrutura de poder,
ou seja, do Estado nacional. A isso se chama independência. E, enquanto
assim for, o modo mais seguro de prosseguir o processo de integração é o
de preservar o Estado, por um lado como fiança de democraticidade desse
processo, e por outro como garantia da capacidade dos povos que
representa disporem de si próprios.
O lugar do Estado como sujeito e base da Comunidade não deve, pois,
repete-se, ser posto em causa neste novo passo no sentido da união. Tal
significa que, por um lado, o equilíbrio institucional comunitário tem de ser
respeitado e, por outro lado, que à medida que o escopo da competência
comunitária se for alargando a áreas de soberania mais fundamentais, se
deve nelas assegurar a representação paritária que, por definição, tem de ser
a norma na relação entre Estados soberanos.
Daqui decorre, desde logo, que a superação do que tem sido designado
por «défice democrático» do processo de decisão comunitário não pode
passar por um mero reforço dos poderes do Parlamento Europeu. Trata-se
de uma questão que se prende com o cerne da democracia da(s)
sociedades(s) europeia(s) e com a legitimidade do poder.
Não parece poder haver dúvidas de que, na Europa, são os parlamentos
nacionais que detêm a efectiva legitimidade democrática, assente no
binómio cidadão-eleitor/governante, e no poder revogável que aqueles
conferem a estes para organizar e gerir o Estado, designadamente no plano
da fiscalidade, da segurança, da defesa e das relações com o exterior. No
contexto comunitário é, pois, o Conselho, composto pelos Governos saídos
dos Parlamentos, que representa essa legitimidade.
A decisão de fazer eleger o Parlamento Europeu por sufrágio directo,
ocorrida num período de estagnação do processo de integração comunitária,
desinserida assim de um contexto que a impusesse e talvez mais com
intuitos de transmitir aos cidadãos europeus um sinal de vitalidade do ideal
europeu, do que de alteração do equilíbrio dos poderes nacionais e
comunitários, poderá ter acabado por ter tido efeitos contraproducentes.
É plausível prever que uma transferência acrescida de poderes do foro
nacional para o comunitário exija uma revisão do modo de fiscalização do
processo de decisão comunitário, para assegurar a sua transparência. Mas
tal terá de passar por uma reflexão profunda sobre a base democrática dos
órgãos parlamentares que se venham a instituir, ultrapassando riscos de
duplas legitimidades ou de legitimidades parciais, que não pode ser
resolvida pelo mero reforço mecânico dos poderes do actual Parlamento
Europeu, antes pela definição de uma nova articulação entre os parlamentos
nacionais e as instituições comunitárias.
Por outro lado, as soluções que se pretenderem encontrar para reforçar a
eficácia das instituições comunitárias têm de ter uma coerência própria e
clara e não podem esquecer que a singularidade do processo comunitário
não permite que para ele se extrapolem os equilíbrios dos sistemas
nacionais, unitários ou federais, sob pena de se pôr em causa o equilíbrio da
divisão de poderes que é próprio da democracia.
O sistema institucional comunitário tem servido com êxito para a
administração da parcela limitada de soberania que através dele os Estados-
membros actualmente gerem em conjunto. Mas se se pretende colocar em
comum atributos fundamentais da soberania, na área fiscal, monetária, da
defesa, da segurança ou da política externa, não se pode deixar de
equacionar o problema da legitimidade democrática na articulação entre os
órgãos nacionais e supranacionais, nem esquecer a questão constitucional
que assim se colocará a todos e cada um dos Estados-membros. Por
exemplo, a proposta de intervenção do Parlamento Europeu na nomeação
ou confirmação do Presidente da Comissão, fazendo assim intervir na
designação de um órgão tão distinta e especificamente comunitário, como é
a Comissão, um processo análogo ao da legitimação dos executivos pelas
assembleias nacionais, provocaria o risco de conferir à Comissão uma
representatividade artificial e eventualmente nociva. Do mesmo modo, se a
ponderação de voto hoje utilizada no processo de decisão comunitária
corresponde, em função das matérias que dele são neste momento objecto, a
uma feliz e realista fórmula de ponderação dos interesses em jogo, já a
gestão em comum de atributos essenciais da soberania, que não são
quantificáveis em função da dimensão dos Estados de onde essa soberania
provém, exigirá o recurso à paridade de voto, se nesses domínios se quiser
ultrapassar o sistema da unanimidade na tomada de decisões, a exemplo,
aliás, do sistema que vigora nos Estados federais.
Não pode finalmente esquecer-se que as Comunidades Europeias
prosperaram num quadro internacional mais vasto em que uma das
variáveis essenciais foi a Aliança com os EUA. Esta não deve apenas ser
encarada como uma resposta à ameaça soviética, mas como um sistema de
defesa colectivo baseado na identidade de valores democráticos e do
respeito pelos Direitos do Homem que unem as suas partes.
As convulsões internas vividas na União Soviética terão provocado uma
retracção do seu papel como superpotência e – muito embora não haja
razões para crer que não persista intacta a sua capacidade bélica, ao menos
no domínio nuclear – reduzido ou alterado a ameaça daí procedente, que
terá sido a causa imediata da criação da NATO. Mas aqueles valores
mantêm-se inalterados e a existência de um sistema de defesa colectivo, que
durante meio século foi capaz de preservar a paz, revelou ter a eficácia que
Churchill tanto propugnava quando, no período entre as duas guerras, o
defendia como único antídoto ao reaparecimento de novas tensões na
Europa.
A presença americana na Europa é o selo de garantia da defesa comum,
corresponde aos laços históricos que ligam europeus e americanos e que os
dramas deste século estreitaram, é a marca da comunidade de valores de
que partilham as democracias de aquém e além Atlântico e um dissuasor
eficaz das tensões intraeuropeias. Pretender basear a união da Europa na
divisão entre esta e os EUA, seria agir com uma xenofobia irónica para a
circunstância.
A União Europeia, a criação de um espaço comum onde todos os
europeus se possam mover livres de barreiras artificiais, seja de que
natureza for, é certamente uma aspiração nobre e legítima que merece os
esforços que hoje mobiliza. Mas só será válida se for uma união consentida
pelos europeus livremente organizados nos diferentes Estados que integram
as Comunidades. Não pode ser imposta por circunstâncias conjunturais,
nem motivada por interesses parciais. Tem de ser ponderada em todas as
suas implicações constitucionais, procurando-se as formas originais de lhe
dar corpo e assegurando que se preserve sempre uma relação de
legitimidade democrática entre o cidadão e os órgãos que o representam, tão
clara como a que hoje existe ao nível nacional. Antes do federalismo, e mais
do que este, o que a Europa deve ir buscar aos EUA é o exemplo de
democraticidade, transparência e abertura do processo de decisão, do
respeito pela soberania popular, não como um conceito abstracto, mas como
uma prática quotidiana, assente no exercício dessa soberania pela expressão
de todos e cada um dos indivíduos-cidadãos que são os seus sujeitos e na
responsabilização do poder político perante eles. Só assim será
verdadeiramente livre, consentida e sólida a Europa que se pretende
construir com e para todos os europeus, e as instituições de que se decida
dotá-la ao nível local, regional, nacional e comunitário.
A atenção que na Conferência Intergovernamental tem vindo a ser
conferida à consideração do alargamento das competências comunitárias,
no respeito salutar do princípio da subsidiariedade, sublinhando pois a
criação dos fundamentos sólidos do estreitamento da União do que
desígnios menos concretos, permite confiar que será pelo caminho apontado
por Jean Monnet que as Comunidades continuarão a progredir.
5 Artigo em Política Internacional n.º 4, 1991.
A Revisão do Tratado de Maastrich e a Soberania6
“Historically Portugal is the only
continuous nation state in Europe”
Conrad Russell – The Independent 2.1.95

A Conferência Intergovernamental (CIG) para revisão do Tratado da


União Europeia ocorre num momento em que a Europa se procura ajustar à
nova realidade política derivada da desagregação da União Soviética e do
fim da Guerra Fria e, simultaneamente, fazer face aos problemas estruturais
que, no plano económico e social, resultam da aceleração vertiginosa da
revolução tecnológica e da globalização da economia.
É inevitável que os problemas concretos e imediatos que daqui derivam
para a União Europeia – o alargamento a Leste, o desemprego, etc. –
influenciem os debates e as conclusões da CIG. Mas a CIG representa uma
oportunidade a não desperdiçar para, num espírito construtivo capaz de
sublinhar os interesses comuns e valorizar as soluções consensuais, debater
abertamente as questões de fundo com que a UE se confronta, desde os
fundamentos constitucionais da União, face às mudanças que uma
integração acrescida e um salto qualitativo na natureza da soberania que se
pretende partilhar acarretam, às perspectivas de um alargamento capaz de
pôr em risco a coesão do processo de integração e compatibilização dos
diversos modelos de Europa em confronto.
Para Portugal, como em geral para os países pequenos com uma forte
identidade nacional, haveria toda a vantagem em que os princípios básicos
da integração europeia fossem objecto de um debate frontal e que as novas
regras e orientações que a Conferência defina sejam claras e transparentes,
designadamente no que respeita às relações de soberania, ao projecto de
integração europeia e à política externa comum.
A questão da soberania tem estado, desde Maastricht, no centro do debate
sobre a integração europeia em Portugal. Trata-se, efectivamente, da
questão crucial da nova fase do processo de integração europeia.
Numa Europa caracterizada por uma interdependência que abrange todos
os aspectos da vida moderna, a melhor salvaguarda da independência
nacional consiste na possibilidade de participar nos órgãos que gerem essa
interdependência: no caso vertente a União Europeia. Para um país como
Portugal, com uma economia aberta e sem capacidade de se afirmar
autonomamente, seja no plano geográfico, demográfico, económico ou
militar, a alternativa seria, na prática, a de ter de cumprir as decisões da
União sem ter a oportunidade de as influenciar através da sua participação
no processo decisório. A efectiva preservação da soberania passa, assim,
pela participação na União e não por uma autonomia aparente mas ineficaz.
Não é contudo indiferente a definição das regras que regem a gestão da
soberania comum. Desde logo é necessário determinar de modo claro a
“qualidade e a quantidade” de soberania que se pretende colocar e gerir em
comum, a nível plurinacional, e a que deve ser mantida a nível nacional.
Depois há que estabelecer regras claras que assegurem, ao exercício da
soberania gerida a nível europeu, uma transparência equiparável à que
existe a nível nacional.
No plano do Tratado de Roma a soberania que se partilhava cingia-se ao
domínio económico e comercial; a partir de Maastricht, num movimento
que a presente CIG poderá acentuar, pretende-se gerir em comum atributos
essenciais de soberania, designadamente no plano fiscal e monetário e,
embora ainda numa perspectiva intergovernamental, mas numa base
convencional, áreas de política externa e da segurança interna.
Nesse contexto, julgo que foi contraproducente que no processo de
Maastricht os Estados-membros não tenham conferido às alterações de
soberania determinantes, introduzidas no processo de integração europeia, a
solenidade que, a meu ver, Ihes deveria corresponder. Efectivamente, muito
embora parecesse claro desde o início da preparação das Conferências da
UEM e da União Política que as alterações que se propunham implicariam
uma revisão das constituições da maioria dos Estados-membros, a verdade é
que, de um modo geral, esses processos de revisão surgiram como
“acessórios” ao processo de ratificação do Tratado. Independentemente de
interpretações estritamente jurídicas, há que reconhecer que a decisão
política de vir a transferir parte do poder de decisão, em matérias essenciais
de soberania, do plano nacional para o supranacional, mereceria ter sido
rodeada de um processo tão exigente como o de uma revisão da
Constituição e ter sido alvo de uma intervenção mais activa por parte da
opinião pública.
De qualquer forma, definidas as áreas de soberania exercidas em comum,
seria essencial que a CIG estabelecesse para o seu exercício regras claras
que assegurassem uma ligação tão transparente entre os órgãos que exercem
essa soberania e os cidadãos de quem ela emana, como a que existe a nível
nacional. Só assim se garantirá que o processo de integração europeia não
consista numa alienação da soberania, mas na sua transferência para uma
instância supranacional onde seja gerida em comum.
O que está principalmente em causa no processo de integração europeia
não será tanto o nível (nacional ou supranacional) em que a soberania é
exercida, mas a democraticidade e a transparência das regras que
estabelecem a legitimidade desse exercício, quer ele se situe a um ou outro
nível. Ou seja, o cidadão eleitor, ao exercer a sua soberania através do voto,
tem de ter a consciência clara de quais os poderes que está a transferir para
cada um dos órgãos que elege, e tem de poder saber quem deve
responsabilizar pela forma como esses poderes serão exercidos.
Ora creio que é justamente clareza o que falta no Tratado de Maastricht e
que o assunto deveria merecer a devida atenção na Conferência em curso. A
raiz do problema reside talvez em que se está a tentar adaptar, para uma
União a que se pretende atribuir poderes essenciais de soberania, o quadro
institucional comunitário que servia competências de “soberania derivada”,
cujo controlo político pelo Conselho era suficiente para assegurar a sua
conformidade democrática.
Creio que alguma confusão de conceitos, propositada ou acidental, não
tem ajudado a clarificar este debate. Ela resulta de, por uma similitude de
designações, se transpor a divisão de poderes em que assentam os Estados
democráticos para o plano comunitário, confundindo o Parlamento Europeu
com o poder legislativo e a Comissão com o poder executivo.
Ora o Parlamento Europeu não é o órgão legislativo da União, apenas
detendo nessa área poderes de co-decisão, e não é nele – mas no Conselho –
que reside a legitimidade democrática da União. A legitimidade
democrática de um órgão não resulta apenas do modo de selecção dos seus
membros, mas também da sua responsabilidade perante o eleitorado. Os
membros do Parlamento Europeu têm a representatividade que lhes advém
de terem sido directamente eleitos mas, não sendo responsabilizáveis
perante o eleitorado pelas políticas da União (que não definem nem
decidem), não têm uma legitimidade democrática equiparável à dos
parlamentares nacionais.
Do mesmo modo, a assimilação do carácter “executivo” da Comissão –
que deriva da delegação de poderes que o Conselho lhe confere para
executar, sob controlo, as suas decisões – com os “executivos” nacionais, dá
constantemente lugar a interpretações equívocas. Sendo um órgão nomeado
pelos Governos dos Estados-membros, sem qualquer vínculo democrático
directo e com poderes de iniciativa, mas sem poderes decisórios, a
Comissão não pode exercer quaisquer funções políticas que extravasem as
que o Tratado e, nos termos deste, o Conselho, lhe confia.
O Parlamento Europeu não é um órgão legislativo de que emane um
poder executivo responsável perante ele. É uma mera assembleia censitária,
que não pode ser dissolvida. A Comissão não é um Governo responsável
perante o Parlamento que a pode livremente destituir. Não tem poderes de
decisão e não responde perante o eleitorado. A sua actuação no plano
político deveria circunscrever-se a esses limites.
Não está em causa o papel que deva, ou possa, no futuro, ser reservado ao
Parlamento Europeu, ou a função essencial da Comissão que, como
promotora do interesse comunitário, constitui a chave do êxito do processo
de integração europeia. O que sucede é que, ao atribuir-se à União Europeia
competências acrescidas em áreas centrais de soberania, há que dotá-la de
um quadro institucional em que a legitimidade democrática dos órgãos que
exercem este poder fique estabelecida de modo claro e transparente. Esse
poder tem de ser exercido por um órgão(s) representativo e responsável
perante o eleitorado, ou seja, dotado de legitimidade democrática. Só assim
se assegurará que a gestão da soberania em comum não se traduza,
sobretudo para os países mais pequenos, numa alienação de soberania. O
exercício desse poder soberano não pode estar repartido ou ser assumido
sem mandato por órgãos não democráticos. Não é pensável que se construa
uma Europa que não obedeça aos princípios fundadores das democracias
dos Estados que a compõem. E em nenhum deles se aceitaria que uma
instituição com as características da Comissão condicionasse, tão
abertamente como esta o faz ao nível europeu, a definição de orientações
políticas nacionais.
A transferência de soberania de Lisboa para Bruxelas não constitui em si
um risco para a nossa independência. Esta só estará em causa se o eleitor
português não tiver os poderes para determinar por quem e como essa
soberania deverá ser exercida. E para um país com quase nove séculos de
independência, como o nosso, esta é de tal modo intrínseca à identidade
nacional, que uma não pode sobreviver sem a outra.
O que há que assegurar é um sistema, em que os parlamentos nacionais
não podem deixar de ter um papel fulcral, que permita ao povo de cada
Estado-membro reconhecer-se no nível supranacional em que será gerida a
sua soberania.
Se a Europa continuar a ser construída como uma amálgama de modelos
resultante da soma de elementos inerentes à estrutura estadual, comunitária
e federal, polvilhada de concessões conjunturais à opinião pública, o
resultado será um sistema indefinido, permeável aos jogos de influência de
que só os mais poderosos podem beneficiar, favorecendo assim a criação de
“directórios” hegemónicos.
Nessa perspectiva, um sistema federal com regras democráticas
claramente estabelecidas, em que os poderes federais e estaduais fossem
definidos por consenso e com ampla auscultação do eleitorado e não por
conveniências tácticas ou pressões ideológicas, em que fosse respeitada a
igualdade e a paridade das partes constituintes em todas as questões centrais
da soberania, poderia ser um garante mais eficaz da preservação da
soberania dos Estados-membros, sobretudo dos mais pequenos, do que a
amálgama de modelos em que assenta o sistema híbrido que se vem
desenhando.
A tarefa básica da CIG, que, ocorrendo antes do “grande” alargamento,
talvez constitua a última oportunidade para evitar correr o risco de que
soluções precipitadas ou equívocas, como as que prevaleceram em
Maastricht, transformem a questão da soberania e das nacionalidades num
factor de fricções e divisões no contexto europeu, deveria ser a de traçar um
quadro institucional claro, coerente e consensualmente assumido.
Tal implicaria desde logo uma definição clara das matérias que poderão
ser decididas por maioria e as que continuarão a requerer unanimidade.
Permitiu-se infelizmente que se criasse a convicção de que o alargamento
das decisões tomadas por maioria qualificada, com base na ponderação dos
votos, é um fenómeno que se inscreve natural e linearmente na progressão
da integração europeia e que o contrário constitui um retrocesso.
Julgo que é não só falaciosa mas mesmo perigosa esta atitude. A União é
composta por 15 Estados soberanos, cuja igualdade não pode ser posta em
causa. A consagração do princípio da igualdade entre Estados soberanos
pelo Direito Internacional é, sem dúvida, uma das conquistas da História
que mais tem contribuído para a Paz. Seria irónico que fosse a União
Europeia, o mais conseguido exemplo de cooperação entre Estados
soberanos de que há conhecimento, a pôr em causa esse princípio, no
próprio plano doutrinário e institucional.
Assim, e desde logo, é a todos os Estados soberanos que compõem a
União que caberá soberanamente decidir quais as decisões que querem
tomar por maioria e as que pensam que devem continuar a exigir
unanimidade: ou seja, a ter a garantia de que a soberania de cada Estado não
poderá, em matérias cruciais, ser forçada por uma maioria de outros
Estados.
Se a ponderação de votos é aceitável em áreas económicas, onde é
possível conceber uma quantificação do peso relativo dos Estados, como
ora sucede no plano comunitário, já assim não é quando estejam em causa
matérias essenciais de soberania ou da identidade de cada Estado. Aí, ou
prevalece a regra da unanimidade, que em áreas como a política externa, a
defesa, eventualmente a cultura me parece ser o único processo defensável,
ou as decisões por maioria (qualificada ou simples) só serão aceitáveis se
tomadas com base no princípio da paridade, ou seja, de um Estado um voto.
Recorde-se que mesmo numa Federação como os EUA é esse o princípio a
que obedece a tomada de decisão no Senado, cuja competência abrange
justamente as áreas centrais de soberania.
Utilizar o peso demográfico dos Estados em tomadas de decisão capazes
de afectar o cerne da soberania (e eventualmente da identidade) de outros
Estados, constituiria uma ultrapassagem da legitimidade democrática, que
só os Estados-membros detêm. E constituiria, para os países pequenos, uma
alienação gratuita e virtualmente irreversível da sua soberania.
Não se quer com isto dizer que não seja possível, num estádio ulterior de
integração, conceber uma solução, de tipo federal ou outro, que
contemplasse a soberania do povo europeu como tal. Mas uma tal solução,
para ser democrática, implicaria alargar as bases de uma constituição
europeia e não parece que estejam reunidas as condições para dar um passo
dessa dimensão, sobretudo nas vésperas de um alargamento a países de
culturas e tradições tão díspares. E é verosímil pensar que uma eventual
constituição europeia, mesmo, senão sobretudo, federal, assumisse uma
forma que respeitasse, nas áreas essenciais, a paridade dos Estados
constituintes. Nas condições actuais, transpor o processo de decisão por
maioria qualificada com base na ponderação de votos, utilizado no plano
comunitário, para o processo de decisão em áreas centrais de soberania,
seria consagrar o princípio da “desigualdade” entre os Estados-membros e
encorajar a constituição de “directórios” dos Estados grandes. E não é de
excluir que a subalternização dos Estados pequenos que daí resultasse
gerasse indesejáveis tensões nacionalistas, capazes de pôr em causa o ideal
europeu.
Para Portugal a preservação do princípio da igualdade entre Estados
soberanos é naturalmente crucial, particularmente no domínio da PESC.
O intercâmbio cultural, étnico e afectivo com os povos e raças com que
nos cruzámos no período da expansão e do império, constituem, aos nossos
próprios olhos, e para o nosso imaginário colectivo, a marca mais
característica da nossa identidade nacional e a que mais nos distingue dos
restantes parceiros europeus. Ora a diferença cultural assumirá, na
perspectiva de uma Europa mais unida, um significado decisivo e
determinante na preservação e na expressão moderna da independência e da
identidade dos Estados.
A política externa portuguesa não poderá deixar de reflectir a realidades
de uma Nação com oito séculos de História, cuja identidade se forjou numa
projecção ecuménica que levou a sua marca a todas as partidas do Mundo e
cuja independência assentou na rede de alianças e relações que a partir daí
teceu.
Hoje, a preservação dessa identidade e dessa independência continua a
passar, em meu entender, por uma actuação no campo externo capaz de
conjugar o desempenho do papel activo que nos cabe ocupar na gestão da
rede complexa de relações que caracteriza a área europeia e ocidental em
que nos integramos, com a intensificação da nossa presença no mundo de
língua portuguesa, a afirmação da nossa imagem nas áreas onde deixámos
profundos vestígios culturais, e a promoção das comunidades portuguesas,
em simultâneo com a abertura de novos horizontes à nossa actividade
económica externa.
A prossecução desses objectivos implica, naturalmente, a preservação de
um espaço de autonomia da nossa actuação externa, que não se compadece
com processos de decisão onde Portugal possa ser minorado, em questões
que possam afectar os nossos interesses em áreas exteriores à União.
A posição que Portugal assumir sobre a PESC na CIG constituirá, assim,
um elemento da maior importância, mesmo para a preservação da nossa
identidade. Portugal não pode deixar de manter a defesa intransigente da
intergovernamentalidade da PESC e do processo de decisão por consenso,
com a possível admissão da abstenção positiva em casos definidos. O voto
por maioria, qualificada ou não, só pode ser admissível na PESC em
decisões derivadas e com base na paridade entre os Estados. A utilização da
ponderação de votos aplicada na área comunitária só poderia, quando
muito, ser considerada em decisões de carácter executivo com implicações
financeiras evidentes. Como se poderia justificar e explicar à opinião
pública portuguesa que, no contexto de uma decisão de política externa da
União Europeia, sobre Angola ou Timor Leste, Portugal tivesse 5 votos e a
Itália 10?!
E não nos devemos deixar impressionar por argumentos de eficácia, ou de
desejabilidade de conferir à União uma maior expressão política mundial.
O argumento da eficácia não colhe quando estão em causa, na área da
PESC como da estrutura institucional europeia em geral, princípios básicos
da democracia e do seu exercício. Não posso deixar de trazer à memória o
argumento de Mussolini sobre o cumprimento do horário dos comboios na
Itália fascista... O perigo que o argumento da eficácia encerra tem de ser
denunciado sem contemplações.
Quanto às insuficiências que se possam apontar à PESC como
impeditivas de conferir à imagem externa da UE a expressão que se
consideraria adequada, não decorrem da sua estrutura institucional, mas da
realidade objectiva que lhe está subjacente: a política externa é, talvez, a
afirmação mais forte e a expressão mais singular da soberania de cada
Estado. Decorre de um conjunto de condições geográficas e económicas e
de um acervo histórico único e próprio a cada um. Por isso, não existe, em
relação à política externa, o substrato de interesses confluentes em que
assentam as políticas comunitárias. No plano da política externa, os
interesses muitas vezes não só não são coincidentes ou conciliáveis, como
podem ser mesmo conflituais.
Não se pode esquecer que mais PESC significa menos França, menos
Itália, menos Portugal... Na fase actual da integração europeia não é
pensável que os laços históricos do Reino Unido com a Commonwealth, os
da França com o mundo francófono, ou de qualquer Estado-membro com os
EUA, sejam sacrificados a um interesse comum indefinido e aleatório,
quando contraposto aos interesses nacionais permanentes e quando não se
pode excluir uma eventual involução da integração europeia, por
improvável que seja ou possa parecer.
É possível que com o funcionamento do Mercado Único e da Moeda
Única, o aprofundar da integração a diversos níveis da vida económica e
social europeia, as exigências da globalização imposta pela revolução
tecnológica, se vão agregando factores de conjugação dos interesses
externos dos Estados-membros capazes de criar uma sólida base objectiva
para uma política externa comum. Mas não é essa a situação actual.
O alegado “falhanço” da PESC, mais do que revelador das suas
insuficiências institucionais é, a meu ver, resultado de falsas expectativas
voluntaristas que pensavam possível sacrificar à coesão europeia políticas
nacionais assentes numa longa experiência histórica.
O que neste momento deveria estar em causa não é uma política comum
exaustiva e global, que nas circunstâncias actuais só poderia existir pela
imposição dos interesses de alguns ao de todos, mas a tentativa de, em
casos concretos, onde tal for um objectivo comum, consensualmente
definido, procurar projectar uma expressão política da União Europeia
equivalente ao peso que detém na economia mundial. Nesse aspecto tem
aliás havido uma evolução positiva.
E se é verdade que a União Europeia nem sempre conseguirá, na sua
acção política externa, a visibilidade correspondente ao seu peso económico
e aos esforços que desenvolve, designadamente no plano da ajuda externa,
isso resulta de os Estados-membros, mesmo quando sinceros no desejo de
reforçar a PESC, prosseguirem na sua acção externa fins nacionais, e
estarem mais interessados em valorizar, em relação a terceiros e à sua
opinião pública, a sua capacidade de influenciar a acção da União, como
meio de amplificação da sua política externa, do que o papel da União
como um todo.
A PESC é a expressão do que os Estados soberanos estão dispostos a
fazer em comum, na área da política externa, na actual fase de integração.
Uma integração mais profunda da política externa só será desejável e
saudável quando, e se, o interesse europeu se sobrepuser aos interesses
nacionais e tal resulte claramente da vontade dos Estados democraticamente
expressa. De outro modo, forçar artificialmente a integração nesta área,
como alguns países pretendem, só poderá levar a reacender estratégias de
equilíbrios, a subalternizar os interesses dos países pequenos e, por essa via,
a cavar novos fossos de divisão na Europa.
De qualquer forma a integração na área externa, que constitui um atributo
essencial da soberania, seja qual for o nível a que se exerça, exigiria, a
ocorrer, uma estrutura institucional mais democrática da União. A hipótese
de entregar, a uma instituição não representativa e “tecnicamente apátrida”,
como a Comissão, competências na área da política externa equiparáveis às
que detém no plano comunitário, como advogam os defensores da
comunitarização da PESC, seria, não só uma verdadeira amputação da
identidade e da soberania dos Estados e dos povos europeus, como um
golpe no ideal de uma Europa assente na diversidade dos Estados-membros.
A própria associação da Comissão à PESC deveria ser equacionada pela
CIG no sentido de uma maior clareza. Essa associação é indispensável para
a coerência e eficácia da política externa da União. Mas talvez tenha sido
excessiva a ideia de “associar plenamente” um órgão como a Comissão a
uma esfera intergovernamental. A prática tem demonstrado que muitas
vezes a Comissão tem utilizado essa posição para tomar iniciativas e
assumir, em nome da União – ou de forma que é percebida como tal, quer
por países terceiros, quer pela própria opinião pública europeia –
protagonismos que não lhe competem e que são susceptíveis de embaraçar
ou condicionar a liberdade de acção dos Estados-membros.
No campo da política externa, Portugal deverá salvaguardar os seus
interesses como um país com tradições e ligações particulares no domínio
das relações internacionais, que se confundem com a sua identidade. Não
será assim de estranhar que as nossas posições se afastem nessas matérias
das de outros países da nossa dimensão e se aproximem dos que detêm mais
responsabilidades históricas na esfera internacional, designadamente dos
que privilegiam a preservação dos laços atlânticos, como historicamente
sempre sucedeu.
Toda esta questão se prende também com o modelo de integração
europeia, que foi profundamente afectado pela desagregação da ordem
soviética e o fim da Guerra Fria.
Até aí, o método de integração gradual gizado por Jean Monnet,
consistente na valorização de interesses objectivamente comuns
congregadores de consensos, permitiu estabelecer um ritmo capaz de
consolidar as diversas etapas e de tornar evidente a necessidade da
continuidade do processo.
A queda do Muro de Berlim veio perturbar e alterar esse estado de coisas.
O fim da Guerra Fria emancipou a Europa da tutela partilhada em que vivia
e ressuscitou perspectivas e fantasmas que se julgavam para sempre
afastados. O desequilíbrio de Maastricht resulta talvez de que o salto
qualitativo que o avanço para a união política constituiu terá correspondido
mais a um avanço táctico e voluntarista, induzido pela reacção de Paris e
Bona a essa evolução, do que a uma necessidade commumente sentida de
aprofundar o processo de integração.
O mundo atravessa hoje profundas mutações, aos mais diversos níveis e
por múltiplas causas, desde as alterações geopolíticas, aos vertiginosos
avanços da ciência e tecnologia, que põem em causa referências basilares
da moral e do conhecimento, à globalização da sociedade – e não apenas da
economia – e a mudanças significativas dos sistemas de produção e da
redistribuição da riqueza, que perfilam a ameaça de uma aguda crise social
e de valores, capaz mesmo de criar riscos de subversão das relações de
poder. É nesta fase que a União Europeia se encontra perante uma nova
“revisão constitucional”, num ambiente de indefinição que a multiplicação
de iniciativas de diplomacia mediática não consegue esconder e muito
menos superar.
Neste contexto, seria desejável que os diversos modelos de integração em
confronto fossem abertamente debatidos pela CIG. Não se afigura contudo
que a evolução da Conferência se encaminhe nesse sentido. O que tem
sobressaído é a determinação de um núcleo de países, em que se destaca a
Alemanha, de avançar com um modelo que terá como principais objectivos,
por um lado alargar a União a Leste e por outro aprofundar a integração
política europeia, reforçando o poder da União em relação aos Estados-
membros, abrindo caminho a perspectivas federalistas. Este modelo afirma-
se como o mais susceptível de influenciar o quadro das negociações, não
apenas por beneficiar de uma certa inércia desencadeada por Maastricht,
como pela ausência de alternativas claras.
Este modelo, que visa reforçar o poder supranacional europeu e o poder
regional em detrimento do Estado-nação, poderia ter a virtualidade de diluir
as tensões que sempre caracterizaram a composição multi-étnica da Europa
Central e talvez da própria questão alemã, que tão tragicamente marcou o
nosso século. Porque num contexto em que os poderes da União e das
regiões fossem reforçados em relação aos dos Estados, a questão da
cidadania seria relativizada, não só para os membros da Nação alemã, como
das diversas etnias que se entrecruzam na Europa Central.
Adequar-se-ia ainda à tradição nacional germânica e de outras nações
como a italiana, cuja identidade assenta em laços étnicos, linguísticos e
culturais e não na unidade do Estado. E é normal que a Alemanha, apoiada
pelos países que têm interesses coincidentes com os seus, proponha um
modelo que projecte na Europa a sua matriz nacional, a sua actual estrutura
federal que tanto êxito tem tido.
As legitímas preocupações subjacentes a este projecto merecem aliás
atenta consideração. Se, nas circunstâncias actuais, se quer ancorar
firmemente a Alemanha na União Europeia, não se lhe pode pedir que opte
entre a Europa Ocidental e a Europa de Leste. Ela tem de escolher as duas.
E é natural que a Alemanha defenda um projecto que corresponda à sua
tradição histórica e aos seus interesses actuais. Mas seria da maior utilidade
que a CIG constituísse a ocasião para debater aberta e construtivamente os
diversos modelos possíveis de integração, de forma a definir um projecto
comum, compatível com os interesses e a natureza de todos os Estados-
membros.
O alargamento, parece, e deve, ser irreversível. Mas embora desejável e
necessário, pela sua expressão e pela heterogeneidade dos novos aderentes
– em particular pela fragilidade das economias em transição dos países da
Europa Central – terá um custo muito elevado, não só para os Estados-
membros, com particular incidência para os menos desenvolvidos, como
para a própria União, na medida em que não será de excluir um risco de
diluição cujas consequências serão difíceis de prever.
Além disso, se, como se disse, é legítimo e até natural que a Alemanha
proponha para a Europa uma estrutura institucional que projecte a sua
experiência histórica, é previsível que os restantes Estados-membros não
possam aceitar soluções que não correspondam, ou sejam mesmo
incompatíveis, com a sua natureza e identidade.
Efectivamente, para países como Portugal ou a Dinamarca, em que a
Nação e o Estado coincidem, o Reino Unido ou a Espanha, que são Estados
plurinacionais e, talvez sobretudo, a França, que é verdadeiramente uma
Nação criada pelo Estado, o reforço da união política, e por consequência
do poder comunitário, por um lado, e do poder regional por outro, em
detrimento dos Estados, poderia constituir uma verdadeira reversão de toda
a sua experiência histórica e um risco de descaracterização das respectivas
identidades nacionais.
O alargamento da União e o aprofundamento da integração terão de se
fazer, mas com base num projecto europeu e não apenas de alguns dos seus
membros. Um projecto que tem de respeitar a diversidade e englobar os
interesses de todos e que, ao menos até que os cidadãos se pronunciem livre
e informadamente em sentido contrário, deve continuar a assentar na
soberania dos Estados, cuja “morte anunciada” me parece prematura. O
Estado-nação é ainda o garante da democracia na Europa e a eventual
transição para estruturas supranacionais terá de ser feita com, e não contra,
ele. Se não for consentida e construída em comum, se não for democrática
mas imposta, a integração não será um factor de união mas de divisão.
Para um país como Portugal, o importante é que a integração prossiga o
seu método gradual, consolidando etapas sem acelerações assimétricas nem
“núcleos duros”, ou directórios com pretensões hegemónicas. Que progrida
não em função dos projectos voluntaristas e hegemónicos de alguns, mas da
projecção de interesses assumidos por todos. E que assente em regras
jurídicas claras e transparentes, cujo respeito constitui a melhor, senão a
única, defesa dos Estados pequenos.
Só um modelo que assente numa base consensual, que respeite e
reconheça a diversidade e identidade de cada Estado, pode servir a Portugal
e assegurar a preservação da nossa soberania. A construção europeia tem de
ser feita a um ritmo que todos os Estados possam e queiram acompanhar e
não no ambiente de “quem não é por nós é contra nós” que tem
lamentavelmente caracterizado, em certos quadrantes, o debate sobre a
integração europeia. Caso contrário será, por definição, um factor de
desunião.
Certamente que a ideia de um grande espaço de liberdade europeu, que
maximize as oportunidades de bem-estar para todos, reforçando e
multiplicando os laços de solidariedade entre os europeus e criando entre
eles o sentimento de pertença comum a uma entidade europeia, banindo
definitivamente as tensões que durante séculos marcaram a Europa, deve
ser o ideal que deveremos promover. Portugal deve activamente participar
na construção dessa Europa. Mas deve garantir que ela continue a assentar
na igualdade e paridade dos Estados soberanos que constituem a União. E
que a eventual passagem a fases ulteriores de integração assente na vontade
soberana dos povos europeus, democraticamente expressa, e no respeito da
sua identidade, e não de uma imposição ideológica e hegemónica. Só assim
a integração europeia alcançará os fins últimos que prossegue: a paz, a
estabilidade, a segurança e a prosperidade na Europa.
6 Intervenção no Seminário “A Defesa Militar de Portugal no Virar do Século”, Instituto de Altos
Estudos Militares, Lisboa, Novembro 1996.
O Pedido de Adesão de Portugal
às Comunidades Europeias7
Em Março de 1977 fui encarregado de levar a Bruxelas as três cartas
assinadas pelo Primeiro-Ministro Mário Soares, pedindo a adesão de
Portugal à Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), à
Comunidade Europeia de Energia Atómica (EURATOM) e à Comunidade
Económica Europeia (CEE).
A 28 desse mês, o Embaixador António de Siqueira Freire, acompanhado
de uma pequena comitiva composta por três outros funcionários da Missão
portuguesa, em que teve a amabilidade de me incluir, fez a entrega ao
Representante Permanente do Reino Unido, país que então exercia a
Presidência das Comunidades, Donald Maytland, do pedido de adesão de
Portugal às Comunidades Europeias que essas três cartas
consubstanciavam.
Essa cerimónia, discreta e afastada da atenção dos meios da comunicação
social, concretizava o que Medeiros Ferreira, em recente artigo publicado
no Diário de Notícias, classificava como «a decisão estratégica de maior
alcance assumida por Portugal na segunda metade deste século».
Mas a entrega destas cartas culminava, também, o que não hesito em
classificar como um dos mais exemplares, definidos e exaustivos processos
político/diplomáticos em que Portugal terá estado envolvido. E creio não
ser de mais assinalar o sentido de Estado e a perspectiva histórica com que
foi orientado, bem como a firmeza de propósitos e a clara percepção da
conjuntura política internacional e europeia com que foi conduzido.
E se hoje pode parecer que o pedido de adesão surgiu como consequência
natural e incontroversa da normalização do regime democrático em
Portugal após o 25 de Abril, tal não foi o que sucedeu. Deparou não só com
um cepticismo bastante alargado na opinião pública portuguesa, sobretudo a
mais informada, como com reticências, reservas ou mesmo a oposição, quer
de forças políticas internas, quer de alguns dos então nove Estados-
membros da União Europeia (UE). Estes tinham como fonte de
preocupação a fragilidade da democracia em Portugal e o esforço
necessário para integrar nas Comunidades uma economia no estádio de
desenvolvimento da portuguesa, que o peso das reformas de 1974 e 1975
mais afastava do modelo comunitário. E é curioso constatar o esforço
considerável que então foi necessário desenvolver para afirmar e defender,
quer a nível nacional, quer europeu, não só a decisão de proceder à
apresentação imediata do pedido de adesão, como a própria «opção
europeia» de Portugal, que hoje pode parecer óbvia, e para justificar e
estabelecer as razões dessa opção.
Uma apreciação do processo que levou à decisão de pedir a adesão de
Portugal às Comunidades Europeias não pode deixar de ter em conta a
conjuntura política internacional e nacional em que ocorreu. Vivia-se então
uma fase crucial no confronto entre blocos que caracterizava a Guerra Fria.
A derrota no Vietname, o processo de Watergate, o ascendente das
ideologias de esquerda nos meios intelectuais e na informação ocidental,
acentuado pelos movimentos estudantis e sociais da década de 60, criaram
uma fragilização da liderança norte-americana, e por consequência da
posição ocidental, que só foi verdadeiramente revertida com a eleição de
Reagan, em 1980.
Conjugada com este estado de coisas, a revolução, e talvez sobretudo a
descolonização portuguesa, constituíram uma verdadeira viragem no
equilíbrio entre os dois blocos, ao pôr em causa a delimitação das esferas de
influência tradicionais, com a consequente alteração das coordenadas
políticas que definiam o statu quo.
A União Soviética, confortada para mais com a ausência de reacção à
repressão de Praga na Primavera de 1968, ganhou a confiança necessária
para assumir uma atitude ofensiva, que pôs em causa as premissas da
política de «containment» em que assentava a estratégia ocidental: estende
a sua influência aberta não só no Sueste Asiático, como em África (ex-
colónias portuguesas, Etiópia) e vai mesmo ao ponto de tentar a sua sorte
no interior do território da própria NATO, ao ensaiar a tomada de poder por
forças que lhe eram próximas em Portugal, perante o que chegou a ser a
resignação de Kissinger, traduzida na sua teoria de que a instauração do
comunismo em Portugal constituiria uma vacina para a Europa. Não
estranha, neste contexto, o amplo movimento de solidariedade que se gerou,
por parte dos países europeus ocidentais, a favor da luta e da consolidação
da vitória das forças democráticas em Portugal.
Perante a evolução negativa noutras zonas do globo, era essencial ao
Ocidente estabilizar solidamente os espaços geoestratégicos que lhe
estavam afectos. E, em particular, para a Comunidade Europeia, como pólo
mobilizador de um projecto democrático na Europa, era fulcral a
consolidação da democracia num país europeu ocidental saído de um longo
regime autoritário e duma tentativa de tomada de poder por forças afectas
ao bloco soviético.
Para assegurar a consolidação da democracia em Portugal era, contudo,
indispensável criar as adequadas condições de estabilidade social e de
prosperidade económica, que só o acesso ao espaço económico europeu
poderia conceder. Na prática, pelo volume das trocas comerciais, pelo peso
das relações económicas, pela relevância da emigração maciça para os
países comunitários durante a década de 60, Portugal já dependia
fortemente do espaço comunitário sem dele ser sujeito, dependência que se
acentuara visivelmente após a descolonização.
Efectivamente, pese embora o papel discreto ou reduzido a que o regime
político e os constrangimentos económicos decorrentes das ligações e da
guerra colonial lhe impuseram, Portugal esteve desde o início ligado ao
movimento de liberalização de trocas e de reforço da cooperação que, por
impulso do Plano Marshall, caracterizou a reconstrução da Europa no pós-
guerra, desde logo como membro fundador da OECE.
O movimento de integração europeia que teve origem nessa cooperação
dividiu os países da Europa, como é sabido, em dois grupos. Os chamados
Seis, todos países membros da NATO, com estruturas políticas e graus de
desenvolvimento económico aproximados, ricos da experiência da CECA e
apesar do falhanço da Comunidade de Defesa, optaram pela constituição de
uma União Aduaneira com vista à instauração de um Mercado Comum,
criando a CEE – e o EURATOM –, para a qual transferiram os poderes
necessários para resolver problemas que não poderiam encontrar solução
adequada a nível nacional.
Os restantes países da Europa Ocidental (com excepção da Espanha e da
Irlanda) escolheram o estabelecimento de uma zona de comércio livre,
criando a EFTA, organismo com menores ambições no campo da
integração, tendo constituído base para a sua escolha razões de defesa, de
regime político, de desenvolvimento económico ou até o apego a fórmulas
de desenvolvimento autónomo em relação ao resto da Europa, que a
História veio a inviabilizar.
Portugal foi um dos países fundadores da EFTA, onde mereceu um
tratamento beneficiado devido ao seu grau de desenvolvimento, tendo a sua
opção sido determinada por condicionantes de índole política e económica
que o afastavam da CEE: o regime político então vigente; a opção pela
manutenção das colónias e a política económica daí derivada; o atraso do
seu desenvolvimento económico e diferença de estruturas económicas entre
Portugal e os Seis; e a especial relação política e económica com o Reino
Unido, que constituía então o nosso principal parceiro económico.
O facto de Portugal ter ficado afastado da CEE não significa, porém, que
as suas relações com a Comunidade não tenham tido sempre um grande
relevo. Para além dos laços históricos e culturais que ligam Portugal aos
seis países fundadores das Comunidades Europeias, da pertença comum à
Aliança Atlântica, as relações comerciais do nosso país com a CEE
assumiram sempre uma posição de grande e crescente importância e, como
acima se referiu, foi para os países do Mercado Comum que se encaminhou
o grande fluxo emigratório português da década de 60.
Entretanto, quando em 1961 o Reino Unido apresentou a sua primeira
candidatura às Comunidades Europeias, Portugal manifestou junto destas o
seu interesse em encetar conversações, diligência que, a exemplo do que
sucedeu com os restantes países da EFTA, não teve sequência, dada a
ruptura das negociações entre o Reino Unido e a CEE. No fim da década de
60, o Reino Unido reabre as negociações para a sua adesão às
Comunidades, enquanto mais dois países da EFTA – a Dinamarca e a
Noruega –, bem como a Irlanda, apresentam a sua candidatura, dando
origem ao primeiro alargamento das Comunidades. A saída da EFTA do
então principal parceiro comercial português, o Reino Unido, e as
perspectivas criadas pela declaração das Comunidades feita em Haia em
1969, que constituiu um convite à abertura de negociações com os restantes
países da Europa, levou Portugal, como aliás sucedeu com os outros países
que se mantiveram na EFTA, a manifestar junto das Comunidades o seu
interesse em encetar contactos para o estabelecimento de relações
adequadas aos interesses das duas partes.
As conversações para esse fim abriram, a nível ministerial, em Novembro
de 1970, enquanto em 26 de Junho de 1971 o Conselho de Ministros da
CEE adoptou o estabelecimento de acordos de comércio livre com os países
da EFTA não candidatos, como fórmula mais apropriada para resolver os
problemas postos pelo alargamento e como melhor meio de esses países
contribuírem para a integração europeia, de acordo com o espírito da
declaração de Haia.
Em 17 de Dezembro de 1971 iniciaram-se as negociações entre Portugal e
a CEE para o estabelecimento de um tal acordo, concluído em Bruxelas em
22 de Julho de 1972. Para gestão do Acordo foi criado um comité misto
Portugal/CEE, cujas reuniões periódicas e regulares contribuíram para
reforçar a ligação e o conhecimento entre as partes.
Do Acordo constava ainda uma cláusula evolutiva, que permitia a
qualquer das partes propor a extensão das relações a domínios por ele não
cobertos. A instauração em Portugal de um regime democrático
representativo veio abrir novas perspectivas às relações entre o nosso país e
as Comunidades Europeias. Desaparecidos os factores que no âmbito
político impediam um aprofundamento dessas relações, o interesse dos
Nove pela evolução dos acontecimentos em Portugal depois do 25 de Abril
conferiram-lhe um significativo impulso, traduzido, para além das
manifestações assíduas de solidariedade com as forças democráticas
portuguesas, por um reforço significativo do auxílio prestado pelas
Comunidades à economia portuguesa, recomendando a Comissão ao
Conselho, em Maio de 1975, que “o apoio da Europa à democracia
portuguesa deve manifestar-se de forma espectacular”.
O Conselho Europeu seguiu a recomendação da Comissão, sublinhando
que “de acordo com as suas tradições políticas e históricas, a Comunidade
Europeia só poderia prestar o seu auxílio a uma democracia de carácter
pluralista”.
Estabelecido o princípio do auxílio a Portugal, foi acordado, na reunião
do Conselho de 7 de Outubro de 1975, no Luxemburgo, a outorga a
Portugal, através do Banco Europeu de Investimentos (BEI), de uma ajuda
excepcional de urgência, no montante de cento e cinquenta milhões de
Ecus, com uma bonificação de 3 por cento para os anos de 1976/1977. O
carácter verdadeiramente excepcional, naquela época, de concessão de um
crédito pelo BEI a um país terceiro, reflecte a prioridade que a CEE atribuía
à evolução portuguesa e o empenho em apoiar a democratização do país. E
a relevância deste empréstimo na percepção da opinião pública portuguesa
sobre a CEE na conjuntura então vigente merece ser assinalada.
Os projectos financiados pela ajuda excepcional de urgência foram
seleccionados por uma comissão paritária Portugal/BEI, tendo o auxílio
sido totalmente utilizado no prazo previsto.
Por outro lado, em 20 de Janeiro de 1976 o Conselho de Ministros das
Comunidades autorizou a Comissão a entabular negociações com Portugal
para, no âmbito da cláusula evolutiva, alargar o Acordo de 1972 a novos
domínios.
Essas negociações decorreram de 13 de Fevereiro a 9 de Junho desse
mesmo ano, tendo sido, em 20 de Setembro, assinados em Bruxelas, entre
Portugal e a CEE, um Protocolo Adicional ao Acordo de 1972 e um
Protocolo Financeiro.
O Primeiro Governo Constitucional incluiu no seu programa a intenção
de apresentar a candidatura de Portugal a membro das Comunidades
Europeias, opção que encontrou o apoio dos três partidos com maior
representação na Assembleia da República. A ofensiva diplomática
desencadeada em conformidade com esse desígnio teve a sua primeira
prova internacional nas intervenções do Ministro dos Negócios Estrangeiros
português na cerimónia de assinatura dos Protocolos Adicional e
Financeiro, em 20 de Setembro de 1976, em que pela primeira vez foi
anunciado oficialmente, perante a Comunidade, a intenção do nosso país de
apresentar o pedido de adesão.
Se a pretensão portuguesa encontrou por parte dos Governos dos Nove
uma posição política de princípio que lhe era favorável, ela não deixou
também de deparar com obstáculos quanto ao processo preconizado para a
sua efectivação, que foi preciso ir vencendo ao longo do caminho que
conduziu à apresentação do pedido de adesão. Justamente no decorrer das
cerimónias de assinatura dos Protocolos acima referidos, em Bruxelas, fui
abordado por David Owen, então Minister of State encarregado dos
Assuntos Europeus no Foreign Office, que me reiterou o grande apreço do
seu país pela situação política em Portugal e o apoio britânico às pretensões
portuguesas de adesão às Comunidades, posições aliás já tornadas públicas
pelo Foreign Secretary, o malogrado Anthony Crossland, na altura tido
como o mais promissor político do Partido Trabalhista. E solicitou-me que
transmitisse o agrado com que o seu país veria a apresentação da
candidatura portuguesa durante a Presidência britânica, como aliás veio a
suceder.
Mas se, além do Reino Unido, a República Federal da Alemanha e a
Dinamarca manifestaram desde o início o seu claro apoio à adesão do nosso
país, a Itália e a Irlanda só mais tarde se inclinaram nessa direcção,
enquanto a França e os países do Benelux defenderam, durante um certo
período, a atribuição a Portugal de um estatuto, aliás mal definido, de pré-
adesão, durante o qual o nosso país se adaptaria à realidade comunitária.
Assim, e não obstante os circunstancialismos políticos e económicos atrás
expostos, e do reforço real da nossa interdependência com a CEE, que
apontavam para um estreitamento de relações que só parecia poder ter como
desfecho lógico, na conjuntura prevalecente, a apresentação imediata do
pedido de adesão às Comunidades, essa opção não foi pacífica, nem interna,
nem externamente.
As cautelas dos Estados-membros mais renitentes em passar da aceitação
do princípio da adesão à prática têm de ser enquadradas no contexto geral
da apresentação, então já efectuada, da candidatura grega e da perspectiva
certa da candidatura espanhola, que se veio a concretizar escassos meses
após a apresentação do nosso pedido de adesão. Se a imperiosidade de
conceder apoio político a três frágeis democracias europeias, que emergiam
de longos regimes autoritários, não suscitava dúvidas, o chamado
alargamento para sul, a países com graus de desenvolvimento e por isso
com problemas económicos e sociais tão diversos do comunitário, torna
compreensível as preocupações de alguns Estados-membros.
Efectivamente, o primeiro alargamento das Comunidades fora feito a
países com estruturas produtivas e níveis de desenvolvimento económico
aproximados dos da Comunidade. Apesar disso, a integração dos três novos
membros revelou-se um processo complexo e moroso e pôs mesmo em
causa o funcionamento das instituições comunitárias, como no caso da
conturbada e controversa questão da contribuição orçamental britânica, que
demonstrou as dificuldades de adaptação das regras comunitárias a
realidades que não tinham sido previstas.
A homogeneidade do grau de desenvolvimento dos então membros das
Comunidades eram um garante da sua coesão. O novo alargamento
colocava múltiplas preocupações:
• a preservação do chamado acervo comunitário;
• a necessidade de adaptação das instituições comunitárias à Comunidade
alargada, designadamente no que respeita ao processo de decisão;
• a afectação dos Fundos comunitários e a política de desenvolvimento
regional;
• a revisão da política agrícola comum, particularmente no que respeita
aos produtos mediterrânicos;
• a revisão do desnível económico entre os países mais desenvolvidos
das Comunidades e os países candidatos.
Em Portugal, mesmo o PSD e o CDS, que partilhavam o objectivo da
integração Europeia, exprimiam dúvidas quanto ao calendário a prosseguir,
defendendo que deveria haver «um passo intermédio» de Associação antes
de proceder ao pedido de adesão. Assentavam o seu raciocínio no
pressuposto de que a economia portuguesa não estava em condições de
aderir imediatamente às Comunidades, necessitando de um período de
transição que permitisse uma adaptação suave das estruturas nacionais à
integração. Talvez temessem, também, que esse atraso da nossa economia
em relação à das Comunidades, conjugado com a vulnerabilidade da nossa
democracia, levassem os Estados-membros a reagir negativamente à
apresentação imediata do pedido de adesão, e procurassem assim preservar
um espaço de manobra político interno e externo.
Não se pode deixar de assinalar que na altura por um lado não haveria em
Portugal consciência plena do impulso que por si própria a adesão daria à
restruturação e recuperação da nossa economia e, por outro, a coesão
económica e social não fazia parte das políticas comunitárias, só vindo a ser
adoptada dois anos após a nossa adesão, aquando da aprovação do Pacote
Delors I em Fevereiro de 1988, para o que Portugal contribuiu de forma
determinante.
Portugal, porém, reconfortado para mais pelo exemplo grego, manteve
firme a intenção de avançar com o pedido de adesão e de não aceitar
nenhum estatuto que não fosse o de membro de pleno direito das
Comunidades, único previsto no Tratado de Roma e único que servia os
interesses portugueses no longo prazo.
Efectivamente, e desde logo no campo institucional, as experiências com
o estatuto de Associação, como a grega, tinham demonstrado, o que a
própria Comissão não deixou de fazer ver a quem o defendia, que nada
acrescia de relevante em relação ao quadro de relações então já existentes
entre Portugal e as Comunidades. A fórmula de «pré-adesão», avançada
com variantes imaginativas por alguns Estados-membros, constituiria
sempre, no plano político e no plano das realidades, uma «diminutio
capitis» que Portugal não podia, nem tinha de aceitar, face a uma conjuntura
que se apresentava favorável às suas pretensões mais ambiciosas e que
podia não se repetir.
Desde logo, porque os estreitos laços económicos que ligavam já Portugal
às Comunidades não permitiam antever outro futuro para o
desenvolvimento económico e a melhoria do bem-estar do povo português,
que não fosse a participação plena no processo de integração europeia. Por
outro lado, numa Europa caracterizada por uma crescente interdependência
que se estendia a todos os domínios da vida, comercial, económico, social,
tecnológico, a única forma de preservação da nossa independência passava,
sem margem para dúvidas, pela participação no centro de decisão da
instituição capaz de gerir essa interdependência, que pela sua dimensão e
vocação só podia ser a Comunidade Europeia. Fora dela, para mais na
perspectiva da adesão próxima dos outros países do Sul, Portugal ficaria na
dependência das decisões de Bruxelas e sem capacidade de intervenção.
Além disso, face à conjuntura política interna e externa, a adesão às
Comunidades Europeias surgia então, não só como a melhor garantia de
irreversibilidade do processo democrático, como também de estabilização
do flanco sul da Europa Ocidental e da Aliança Atlântica. E este argumento
não terá sido dos que menos contribuíram para determinar a reacção final
dos Estados-membros, favorável à apresentação imediata do nosso pedido
de adesão.
Finalmente, não se pode esquecer que Portugal acabava de fechar um
ciclo da sua História, em que uma rede de alianças europeias, atlânticas e
ultramarinas lhe asseguravam, ao menos desde a Idade Moderna, a
independência e garantiam a capacidade de manobra internacional. Pela
primeira vez, desde então, Portugal estava confrontado sem «retaguarda
ultramarina», ao peso do Continente Europeu. A adaptação às realidades do
Mundo moderno, do equilíbrio em que assentavam as nossas relações
internacionais e a nossa independência, passava pela adesão às
Comunidades Europeias como institucionalização das nossas alianças
europeias, complemento da pertença à NATO e base para o relançamento de
novos laços com os parceiros de outros Continentes.
Foi esse conjunto de factores que determinou a visão estratégica e a
firmeza de propósitos que Portugal assumiu, consagrada na fórmula então
celebrizada do «ou tudo ou nada», retirada de uma frase proferida pelo
Ministro dos Negócios Estrangeiros, Medeiros Ferreira, à partida de Lisboa
para uma reunião do Conselho da Europa, em declarações à imprensa sobre
a possibilidade de Portugal aceitar um dos estatutos transitórios que então
se ventilavam.
Portugal manteve a sua determinação de apresentar o pedido de adesão e
nada menos do que isso. Mas mostrou também flexibilidade para discutir o
calendário das negociações e compreensão pelas dificuldades que
certamente suscitariam.
O desígnio nacional não podia, e não devia, ser outro que não a
participação integral e de pleno direito no projecto europeu de prosperidade,
liberdade e civilização que a integração europeia consubstanciava, de que
Portugal não podia ficar ausente e que não estaria completo sem a presença
portuguesa.
Após uma aturada campanha diplomática, que culminou na visita do
Primeiro-Ministro Mário Soares às capitais dos Nove e às sedes das
instituições comunitárias, a justeza e inevitabilidade política da opção
portuguesa foram reconhecidas por todos os Estados-membros, o que
permitiu que o nosso pedido fosse recebido favoravelmente no Conselho de
Ministros de 5 de Abril de 1977, o qual, nos termos institucionais, solicitou
à Comissão a elaboração do respectivo parecer.
Se o longo e difícil processo negocial que se seguiu reflecte as
dificuldades que havia a vencer para concretizar a adesão de forma
adequada – dificuldades colocadas aliás mais pela adesão espanhola do que
pela nossa –, o que é sobretudo necessário sublinhar é que, pela convicção e
clarividência com que o processo foi conduzido, Portugal desde logo obteve
o princípio político da aceitação da adesão, fulcral não só para os seus
interesses na conjuntura política interna e externa que então se vivia, como
na perspectiva do seu futuro. A História confirmou já a certeza e o alcance
da nossa estratégia.
7 Artigo em Política Internacional, n.º 14, 1997.
Europa ou Democracia8
Há tempos li num jornal português o título: “Voto como a minha tia vai à
missa, por dever”. O título tem implícita a ideia de que cumprir um dever,
ou fazer qualquer coisa por dever, é negativo. Ou, no mínimo, antiquado.
Este título é revelador da escala de valores que rege a sociedade actual e da
alteração de mentalidades que ocorreu no meio século que tenho de vida.
Fui, como julgo que toda a minha geração, educado a valorizar
positivamente o cumprimento do dever, e a pautar por esse valor o meu
comportamento social, em relação à família, à sociedade e ao país.
Vem isto a propósito de outros conceitos que, ao longo deste período,
sofreram evoluções análogas e dizem também respeito à forma como o
indivíduo se relaciona com a comunidade onde se insere, designadamente
os conceitos de Pátria, Nação, País e Soberania.
A palavra Pátria perdeu definitivamente a carga sagrada que tinha. Não
está ainda totalmente postergada do léxico do politicamente correcto, mas
encontra-se num limbo, entre o ainda se ter reservas em a rejeitar, mas ter já
reticências de a enunciar. Na idade da gratificação imediata e da felicidade
obrigatória, a noção de uma Pátria, em relação à qual se tem deveres e pela
qual se devem fazer sacrifícios, aparece como um anacronismo e a própria
ligação à comunidade nacional só se aceita contextualizada com outros
valores de satisfação mais individual ou imediata.
Neste quadro, a noção de soberania não poderia deixar de adquirir
conotações diversas, perdendo o carácter quase absoluto que se lhe atribuía.

«Soberanistas» e «Federalistas» É, contudo, ainda em torno da


soberania, entre «soberanistas» e «federalistas», como dizia há tempos um
jornal francês, que se travam as mais apaixonadas discussões sobre a
evolução da integração europeia. A relação soberania nacional/integração
europeia não tem, porém, de ser necessariamente antagónica e talvez nem
sempre esta discussão esteja a ser equacionada na perspectiva devida.
Os “federalistas” consideram que já não existe verdadeira soberania ao
nível individual de cada país, que no quadro da integração europeia a
soberania não se aliena, transfere-se para ser gerida em comum, e que essa é
a única forma de cada país preservar a sua identidade e capacidade de
influência no mundo e na Europa moderna. Utilizam como exemplo o
conhecido argumento do Primeiro-Ministro holandês Lubbers, o qual, em
defesa da União Monetária, dizia que quando o Marco se desvalorizava, a
sua soberania durava 48 horas. Os que entre nós perfilham esta tese
acrescentam que no caso português a nossa identidade é tão forte que nada a
poderá afectar.
Embora cada um destes argumentos tenha algum fundo de verdade, não
me parecem por si suficientes. O argumento de que a soberania é limitada
não traz nada de novo. A soberania é um conceito abstracto e jurídico, e
sempre teve por limites a soberania dos outros e a correlação de forças entre
os diversos Estados. O argumento adequado, nesta perspectiva, será o de
salientar que o mérito do processo de integração europeia deriva justamente
de estabelecer um exercício conjunto da soberania, com regras consensuais,
o que beneficia, em princípio, os países mais pequenos.
Também me não parece convincente, no caso português, o argumento de
que a nossa identidade é tão antiga e tão forte, que nada a pode pôr em
causa. Desde logo porque a independência é um dos mais marcantes
factores da nossa identidade, e é a sua preservação que os “soberanistas”
temem que esteja em causa no processo de integração. Depois, porque a
verdadeira obsessão que entre nós constitui a reflexão sobre a identidade
nacional, revela a sua força, mas também a noção da sua vulnerabilidade.
Ainda recentemente o Economist, num quadro que pretendia ilustrar a
relação de cada um dos quinze com a UE, inseria na coluna «o que pensam
deles próprios», o seguinte em relação a Portugal: «por favor não nos
confundam com os espanhóis».
Aqueles que defendem a preservação da soberania a nível nacional vêem
no processo de integração europeia uma pura alienação da soberania, que
transferirá para centros de decisão estrangeiros a governação e a definição
do futuro do país, pondo em causa a independência e a identidade nacional.
Que a integração europeia implica uma transferência de soberania da
esfera nacional para a esfera comunitária é irrefutável, mas é neutro, não é
em si negativo nem positivo.
Se a transferência de soberania para órgãos comuns se salda por uma
alienação dessa soberania, ou por uma sua utilização mais consentânea com
a realidade do mundo presente, depende das regras que se adoptarem para a
sua gestão em comum. Na definição dessas regras, todos e cada um dos
Estados-membros têm o poder de não fazer qualquer concessão que
considerem ponha em causa a sua soberania. Se o processo for conduzido
com as devidas salvaguardas, poderá constituir mesmo a única forma de
preservação efectiva da soberania e da identidade nacional, no contexto da
interdependência crescente que caracteriza a transformação que a revolução
tecnológica implicou para a economia e as relações internacionais.
A realidade é que qualquer país europeu, membro da União Europeia ou
não, tem hoje de se sujeitar à maior parte das regras que ela define e, por
isso, é certamente melhor participar no processo de decisão, tendo
capacidade de o influenciar e defender os interesses nacionais, do que ser
mero objecto dessas decisões.

Integração e democracia A integração europeia consiste, essencialmente,


num processo de transferência de soberania para uma instância
supranacional que gere essa soberania em comum. O segredo do êxito, sem
precedentes no plano internacional, do processo de integração comunitária,
residiu em ter sabido fazer sobressair e sobrepor ao interesse nacional
imediato, o interesse comum e estratégico dos Estados-membros, na gestão
conjunta da interdependência das economias europeias, como único modo
de erradicar as causas dos conflitos que devastaram a Europa na primeira
metade do século XX. O Tratado de Roma criou as instituições adequadas a
essa fase da integração europeia, num equilíbrio que garantia a todos os
Estados, grandes e pequenos, a capacidade de interferir, exercendo a sua
soberania, de forma efectiva, nas decisões conjuntas, como sujeitos e não
como objecto.
O aprofundamento da integração europeia, a extensão da competência
comunitária a zonas inerentes à identidade nacional, como a cultura, e,
sobretudo, a evolução para a União Europeia, com o alargamento da
integração a áreas cruciais da soberania, como a política monetária e,
embora de modo mais mitigado, a política externa e de segurança comum e
agora a própria defesa, veio contudo revelar a inadequação da mera
transferência do quadro institucional das Comunidades para a União, como
meio de dar resposta a estas novas competências.
Se o Tratado de Roma definiu um quadro institucional adequado à gestão
das competências que atribuiu às Comunidades Europeias, as alterações
institucionais introduzidas em Maastricht, Amesterdão e Nice não foram
capazes de dar resposta ao salto qualitativo das competências da União. O
método que tem vindo a ser seguido no processo de revisão institucional
não respeita devidamente os princípios democráticos em que assenta a
própria União Europeia e isto coloca um risco, não só e não tanto para a
soberania de cada Estado em relação aos outros, mas, mais grave, para a
detenção da soberania pelo povo, na medida em que põe em causa o elo
democrático que legitima a soberania dos Estados.
A democracia assenta na relação entre o eleitor e o eleito e no princípio
da responsabilidade deste perante aquele, aquilo que em inglês se designa
como “accountability”. Na prática, e nos Estados nacionais, essa relação
traduz-se na possibilidade que o eleitor tem de, se não estiver satisfeito com
a política do Governo, expressar a sua opinião através do voto nos partidos
da oposição. Enquanto as políticas comuns da Europa se situavam no plano
sobretudo comercial e económico, e a maioria das decisões noutras esferas
eram tomadas por unanimidade, essa relação não era afectada no essencial.
Mas a partir do momento em que a competência da União se alargou a áreas
centrais da soberania e que um número crescente de decisões é formado por
maioria, coloca-se o problema limite de o cidadão, perante a condução pela
União de políticas com que o seu Governo não concorda, mas em que a
posição nacional sai derrotada, não ter meios para expressar a sua posição,
ou de dar sequência à sua vontade. Por outras palavras, um país pode ser
obrigado a conduzir uma política contrária àquela que o Governo
democraticamente eleito advoga, vendo o eleitorado drasticamente reduzida
a sua capacidade de influir na política do país.
Quando se refere com preocupação que a Europa está distante dos
cidadãos e que eles não se reconhecem nas suas instituições, não é de um
deficit afectivo ou volitivo que se fala. Sucede é que os cidadãos têm
consciência de que não existe nenhum modo em que possam ter, como
indivíduos, uma participação cívica efectiva no processo de decisão
comunitário. Essa participação esgota-se no acto eleitoral do seu Governo
nacional, único que está vinculado pelo laço de responsabilidade oriundo do
voto, único portanto que goza de uma efectiva legitimidade democrática.
A democracia assenta, pois, na representatividade e responsabilidade do
poder político perante o eleitorado e na transparência dos processos de
decisão. Os Estados soberanos membros da União Europeia decidiram
conferir-lhe poderes e competências alargadas, gerir em conjunto
determinadas áreas centrais da soberania. Se não definirem para esse efeito
um quadro constitucional baseado nos mesmos princípios, será a própria
democracia que será posta em causa.
E não se argumente que, do ponto vista jurídico, os Tratados contêm
todos os elementos que permitem aos Estados salvaguardar a sua soberania
e a democraticidade dos processos de decisão, designadamente através da
legitimidade democrática de que goza o Conselho, que continua a ser o
principal órgão de decisão da União. Tudo isso é verdade. Mas do ponto de
vista político não é relevante, como o debate sobre a Europa prova à
saciedade.
O que queremos construir é um espaço comum europeu, livre e estável,
onde seja racionalizada e equilibrada a condução das políticas comuns e
nacionais. Isso não se compadece com recursos jurídicos redutores que
impliquem rupturas para afirmação das soberanias de cada um. Há que criar
uma estrutura institucional sólida e duradoura, que corresponda ao estado
avançado de evolução da integração em que nos encontramos e que respeite
os princípios básicos da democracia. Tal não é viável através de reformas
constantes, limitadas a temas pré-estabelecidos, visando responder a
pressões quantitativas derivadas dos sucessivos alargamentos, ou a
problemas de eficácia do processo de decisão. A democracia é por definição
um processo complexo de “checks and balances”. Sobrepor-lhe a celeridade
da eficácia do processo de decisão é o fundamento da tirania.

Uma revisão constitucional A questão crucial que se deve colocar é pois


a de saber como gizar um quadro institucional que preserve, para as
políticas definidas a nível europeu, o grau de legitimidade democrática e de
transparência inerente aos sistemas dos Estados-membros. E isso só será
possível se se assumir que a reforma a que se vai proceder é uma reforma
com carácter constitucional, a que deve ser conferida o mesmo grau de
solenidade e exigência que a nível nacional se atribui à definição das
normas constitucionais. A solução correcta seria a de convocar uma
Conferência Intergovernamental com carácter verdadeiramente
constitucional, com uma agenda aberta que permitisse considerar e debater
todas as variáveis que estão em causa neste exercício.
Só assim se poderá definir um quadro institucional pragmático e estável,
capaz de responder às necessidades previsíveis da integração europeia, que
estabeleça regras equitativas de responsabilidade democrática e de divisão
de poderes e que não fique prisioneiro de modelos ideológicos ou de
estruturas pré-estabelecidas, de modo a corresponder aos desígnios de um
conjunto de Estados soberanos, que entendem usufruir das vantagens que
para todos advêm de gerir certas áreas da sua soberania em comum,
preservando a condução, a nível nacional, das restantes áreas de soberania e
a sua identidade própria.
Tal sistema não poderá ser simples e unívoco, como decorre da
enunciação da própria situação a que pretende fazer face. Terá
provavelmente de ser um sistema assimétrico, que integre elementos
intergovernamentais, plurinacionais e federalistas com componentes
diversos, conforme a natureza das áreas de soberania que se decida ou não
gerir em comum.
O aludido processo condicionado de reforma das instituições europeias
não tem permitido que se proceda a uma reflexão ponderada e profunda dos
fins últimos da integração europeia e das implicações que a estrutura
institucional europeia tem na forma como os povos gerem a sua soberania.
Esta situação beneficiará os Estados grandes, cujo peso específico lhes
permite tirar vantagem da ambiguidade que assim se cria – tem permitido,
por exemplo, que se aceite pacificamente o eixo Paris-Bona/Berlim, ao
mesmo tempo que se recusa qualquer tipo de directório... –, mas não serve
os Estados mais pequenos, cujos interesses só serão defendidos pelo
estabelecimento de um processo de decisão assente em regras jurídicas
definidas.
Disto é exemplo flagrante a concessão, feita pelos Estados pequenos,
aquando do último alargamento, ao aceitar que a rotação das Presidências,
até então feita por ordem alfabética, fosse alterada, de forma a garantir que
na Troika estivesse sempre presente um Estado “grande”: na prática, o
reconhecimento da “desigualdade” entre Estados soberanos e do princípio
implícito do “Directório”.
Para poder constituir a fundação de uma Europa sólida e democrática,
onde todos os europeus se possam reconhecer, a reforma das instituições
europeias tem de ter em consideração o alcance histórico do que está em
causa e os múltiplos, complexos e sensíveis elementos que encerra. Não
pode ser pressionada por objectivos imediatistas ou por pressupostos de
“pensamento único”, do tipo que o alargamento das competências da União
e o aumento das decisões por maioria é um movimento fatal e irreversível.
A definição de um quadro efectivamente democrático para uma instância
supranacional, que decide acima dos processos de decisão já de si
democraticamente legitimados dos Estados-membros, não é fácil. Não se
compadece com soluções de facilidade, que obriguem a revisões constantes,
geradoras de instabilidade e de um distanciamento crescente entre os
cidadãos e a União. Tal implica desde logo reconhecer que o quadro
institucional do Tratado de Roma não é necessariamente adaptável aos
poderes acrescidos de que a Europa se dotou. A solução que se encontrar,
tem de resultar de um exame profundo de todas as implicações deste
processo, de assentar numa visão clara da base histórica de partida, e de pôr
termo à confusão, que no debate sobre este assunto muitas vezes se faz, ao
equiparar-se a relação de competências entre as instituições comunitárias à
divisão de poderes em que assenta a ordem democrática nos Estados.
Haverá, assim, a meu ver, que ter em conta os seguintes elementos:
a) uma perspectiva do percurso histórico dos diversos países e a sua
projecção no futuro da integração europeia;
b) um entendimento claro sobre a natureza das actuais instituições
comunitárias e os limites da sua adaptação para a condução de poderes
alargados;
c) a distinção dos processos de decisão em função da natureza das
matérias em causa;
d) o cuidado em garantir um quadro institucional que preserve o grau de
legitimidade democrática que constitui a essência da organização política
que consubstancia a civilização europeia.

a) Uma perspectiva do percurso histórico dos diversos países


e a sua projecção no futuro da integração europeia
A abordagem da temática da integração europeia deve partir de uma
perspectiva histórica correcta não só da Europa, como de cada país, bem
como das condições próprias em que cada um caminhou para a integração
no último século.
Não se pode deixar de considerar a noção e o sentimento que os diversos
países têm em relação a si próprios. Há que ter em conta que na União
Europeia coexistem países onde Nação e Estado coincidem, como Portugal,
a Grécia ou a Holanda, com uma forte homogeneidade étnica, religiosa e
cultural; Estados plurinacionais, como o Reino Unido e a Espanha; e o que,
por contraste, se poderá designar como “nações pluri-estaduais”, ou seja,
cuja organização política raras vezes coincidiu com os limites da Nação,
como ocorre com a Alemanha e a Itália; e ainda um caso único, a França,
que não obstante certas reminiscências regionalistas, julgo se pode
considerar como uma Nação construída pelo Estado.
A Alemanha tem multiplicado iniciativas para promover um projecto
cujas coordenadas básicas consistirão no reforço dos poderes europeus e
regionais em detrimento do Estado nacional.
Dada a nossa forte identidade Nação-Estado, tal projecto poderá não ser
necessariamente negativo para Portugal, muito embora relegue o país ao
nível de uma região, situação que historicamente sempre tentou e conseguiu
evitar. Mas outros países poderão considerar essa perspectiva como
atentatória da sua identidade nacional.
Trata-se, no caso da Alemanha, da projecção natural e legítima da
experiência histórica de uma Nação que sempre esteve organizada em
diversas instâncias e círculos de estruturas políticas, e em que só
brevemente, e no mais trágico momento da sua História, a Nação coincidiu
com o Estado. Bastará recordar a composição da Confederação Germânica,
de que só a parte germânica da Áustria fazia parte, ou o lema do Imperador
Francisco José, a quem a Mãe recomendava que, todos os dias, ao acordar,
devia recordar que era, antes de mais, um príncipe alemão, para ver que a
coincidência Nação-Estado não é inerente à identidade alemã.
A História das duas guerras que assolaram a Europa no século passado
ensina-nos também que é prudente ter em conta as consequências e
repercussões dos conflitos, das quais, embora possam parecer muito
esbatidas, há ainda vestígios na Europa moderna. Convém ter presente a
forma diversa como se organizou a paz após a derrota alemã em 1945. Se
aquilo que se poderia designar como a “Pax americana’’, aplicada à Europa
Ocidental, é a mais inteligente e justa solução que se poderia ter encontrado
para a organização da Europa do pós-guerra, criando aliás, através do plano
Marshall e das sinergias que libertou, as condições objectivas que
permitiram o desencadear do processo de integração europeia, a “Pax
Soviética’’, imposta a Leste, é talvez mais brutal e injusta que a originada
pelo Tratado de Versalhes.
O projecto alemão terá, com o alargamento a Leste, potencialidades para
diluir de vez o que nos fins do século XIX e inícios do XX se designava como
o “problema alemão”, pela inserção de antigos territórios e populações, não
só germânicas mas de todos os países da Europa Central, no grande espaço
democrático e jurídico europeu.
Mas a procura de uma evolução consensual para o avanço da integração,
ou tem em devida conta as diversas sensibilidades ou, se se pretender impor
uma a outras arrisca conter em si o embrião de uma involução do próprio
processo que pretende prosseguir.

b) Um entendimento claro sobre a natureza das actuais instituições


comunitárias e os limites da sua adaptação para a condução de poderes
alargados

O debate, e as próprias negociações sobre a reforma das instituições têm,


em larga medida, sido feitas tendo como base as actuais instituições
europeias. Daí têm resultado associações pouco claras entre os conceitos-
base da constituição dos Estados democráticos, assente na separação de
poderes (legislativo, executivo e judicial), e a divisão de competências entre
as actuais e futuras instituições europeias, o que só pode gerar equívocos
que urge a todo o custo evitar.
Efectivamente, existe a tendência para elaborar sobre as competências do
Parlamento Europeu como se este fosse o órgão democrático e legislativo
por excelência da União e da Comissão como se fosse um órgão executivo
no sentido em que o são os Governos dos Estados-membros.
Ora sucede que na UE, quem ainda detém o centro do poder é o
Conselho, como principal órgão de decisão da União e única instituição que
goza de uma verdadeira legitimidade democrática.
O Parlamento Europeu
O PE é um órgão democrático na medida em que, por ser eleito por
sufrágio universal e directo, representa o eleitorado europeu. Porém, a
legitimidade democrática, como já se disse, não advém apenas da
representatividade, mas sobretudo do vínculo de responsabilização
estabelecido entre o eleitorado e os eleitos. Na orgânica das democracias
europeias o Parlamento é o cerne da legitimidade democrática, não apenas
por ser eleito e representativo mas, sobretudo, pelo elo de responsabilidade
estabelecido face ao eleitorado.
Nos Estados-nação os Governos – o Executivo – emanam do Parlamento,
sendo função das maiorias que nele se formam. O Governo é responsável
perante o Parlamento – e, assim, indirectamente, perante o eleitorado – pela
sua actuação. O Parlamento pode destituí-lo se assim entender e, por sua
vez, o Parlamento, se não estiver em condições de assegurar o governo da
Nação, pode ser dissolvido, convocando-se novas eleições. Nada disso
sucede no caso do PE. O processo de decisão da União não é assegurado
por um órgão emanado do PE em função das maiorias aí formadas, que são
aliás largamente irrelevantes, mas sobretudo pelo Conselho. O PE apenas
participa nesse processo através dos poderes limitados, embora cada vez
mais alargados, da co-decisão. Nesse contexto, a atribuição ao Parlamento
de poderes para aprovar ou destituir a Comissão – nomeada pelos Governos
democráticos dos Estados-membros – foi um passo que a meu ver
aumentou, em vez de reduzir, o “défice democrático”, ao conceder a esse
acto um artificial foro de democraticidade, como se a Comissão emanasse
do PE e não do Conselho, e reforçando a ideia, errada, de que a Comissão é
o Governo executivo da União.
Poder-se-á dizer que a solução para assegurar a democraticidade do
processo comunitário seria a de atribuir ao PE poderes equiparados aos dos
parlamentos nacionais. Mas aí não estaríamos já no federalismo, mas no
Estado unitário europeu, que julgo nem mesmo os mais radicais adeptos da
integração advogam.
No contexto de uma revisão “constitucional”, a própria posição do PE, tal
como ele hoje existe, deveria ser equacionada em função do equilíbrio
institucional e dos graus de legitimidade democrática que forem sendo
definidos.
A Comissão
É depois fundamental erradicar o conceito, larga e perigosamente
difundido na opinião pública europeia e internacional, de que a Comissão é
o “executivo” da União. A Comissão, como órgão nomeado e sem
legitimidade democrática própria, tem de se limitar estritamente às
competências que os Tratados lhe atribuem. No plano executivo apenas lhe
cabe a execução de poderes delegados pelo Conselho, sob fiscalização dos
Estados-membros.
A concepção da Comissão, com as competências e poderes de que goza,
que lhe confere o efectivo carácter de representante do interesse comum,
constitui o fulcro de toda a construção europeia. É essencial preservar essa
função. Mas é também necessário reflectir na natureza das competências da
Comissão e nos seus necessários limites. Não se pode atribuir a um órgão,
sem legitimidade democrática própria, competências em áreas centrais da
soberania. Os poderes da Comissão, tal como foram concebidos, são os
adequados para áreas económicas e comerciais, que não atinjam o cerne da
soberania dos povos, e não podem por isso ser automaticamente estendidos
a actos de outra natureza. Por outro lado, se é essencial que a Comissão
detenha poderes executivos para melhor garantia da aplicação das decisões
do Conselho, esses poderes devem continuar a ser fiscalizados pelo
Conselho.
Isto significa que se deve manter o papel que a Comissão detém na área
comunitária, mas que não lhe devem ser estendidos poderes análogos para
os outros pilares do Tratado. Julgo mesmo que, para reforçar a
democraticidade da União, seria necessário rever e regulamentar as
competências e a actuação da Comissão nas áreas não-comunitárias. Por
exemplo, não é compreensível que a Comissão enuncie posições sobre
questões de política externa, não só sem prévia concertação com os
Estados-membros, mas por vezes contrários à política destes, quando não
abertamente hostis, como tantas e repetidas vezes sucedeu com Timor.
Nas áreas não-comunitárias, a participação da Comissão dever-se-á
restringir à sua competência própria. Este problema poderá parecer
anacrónico e meramente formal. Mas não julgo que o seja. A ideia de que a
Europa é governada por uma clique de burocratas anónimos sediados em
Bruxelas é certamente um grosso exagero. Mas não se deve deixar, como
agora sucede, que essa ideia se consolide.
Num mundo onde a condução da política é crescentemente mediática, não
se pode permitir que se continue a divulgar a ideia de que o Presidente da
Comissão é o Presidente da UE, que se confundam propostas da Comissão
ao Conselho com decisões da União, ou que se considere a Comissão como
um “mestre-escola” dos Estados, de que estes devem procurar ser bons
alunos.
Merece também reflexão o conceito generalizado de que a Comissão,
como intérprete do interesse comum, defende os interesses dos Estados
pequenos. Essa percepção deve ser tida em devida consideração no
processo negocial.
A Comissão é uma formidável máquina burocrática, servida por
funcionários altamente habilitados, com uma inevitável apetência para
aumentar o seu poder e influência. Ora, como qualquer instituição humana,
ela reflecte as posições daqueles que nela detém os poderes de decisão.
Sendo a maioria dos lugares de direcção da Comissão ocupados por
nacionais de países grandes, é normal que tenham tendência para se
identificarem com os interesses dos seus países, pois estes serão em larga
medida os seus.
A Comissão só reflectirá os interesses dos países pequenos na medida em
que necessite do voto desses países, para fazer passar as suas propostas, o
que sucederá cada vez menos, à medida que se estendem as decisões por
maioria qualificada e se reforça o peso dos países grandes na ponderação
dos votos, situação que se agravará após o alargamento aos países de Leste.
Para uma abordagem clara de um debate sobre o futuro da integração
europeia, é essencial ter em devida conta a natureza e especificidade
próprias do processo comunitário, não se confundindo as instituições
comunitárias com os órgãos dos Estados soberanos.

c) A distinção dos processos de decisão em função da natureza das


matérias em causa

Um aspecto crucial do processo de revisão institucional da UE é, como se


verificou em Nice, o do processo de decisão no Conselho. Na dinâmica das
revisões institucionais parcelares, criou-se a convicção de que o
alargamento das áreas de decisão por maioria qualificada e ponderada é
inerente ao avanço da integração europeia, pois só assim se pode aumentar
a eficácia do processo de decisão numa Europa a 15 e, por maioria de razão,
numa Europa alargada a cerca de 30 Estados.
Este pressuposto é falacioso, pois atende apenas a um aspecto do
problema, o aumento da eficácia da decisão, e ignora o essencial do
processo de integração, a criação de um espaço democrático onde todos os
Estados se revejam e considerem que têm salvaguardada a sua soberania.
Mais uma vez, o problema será a extrapolação do modelo comunitário
para “uma união cada vez mais forte’’, pois se o inovador processo de
decisão comunitário se revelou adequado às competências que foram
atribuídas às Comunidades, já o mesmo não sucede com as novas áreas de
soberania para onde a União se estendeu.
A divisão que o Tratado de Roma previa, entre decisões tomadas por
unanimidade ou maioria qualificada, reflectia a relevância da natureza dos
assuntos em função dos interesses dos Estados signatários. A unanimidade,
conferindo na prática direito de veto a todos os Estados-membros, constitui
uma cláusula de segurança para preservação dos interesses vitais dos
Estados, cuja necessidade e sensatez o Compromisso do Luxemburgo, por
controverso que seja, acaba por consagrar, mesmo para o caso das decisões
tomadas por maioria.
As decisões por maioria qualificada, por sua vez, estavam previstas para
matérias cuja natureza não afectava as questões centrais da soberania. E a
ponderação de votos, estabelecida como critério para a determinação da
maioria qualificada, reflectia o carácter “quantificável” de decisões no
plano económico e comercial, em que se justifica ter em conta a dimensão
das economias dos diversos países, em função do diferente impacto
económico-financeiro que elas terão em cada um. Dir-se-á que já aqui se
estabelece alguma diferenciação entre a soberania de cada Estado. Mas esse
é justamente o carácter supranacional da União, que as próprias
Comunidades já detinham e que é a essência do processo de integração. E o
sistema de ponderação de votos encontrado reflectia, de forma equilibrada,
o conceito da igualdade da soberania e a diferença de dimensão entre os
diversos Estados.
Já não se justifica, contudo, que se transfira esse método para questões de
natureza totalmente diversa, onde estão em causa elementos não
quantificáveis da soberania dos Estados e da sua própria identidade
nacional. É o caso da utilização da ponderação de votos para determinar
maiorias em áreas como a cultura ou a política externa, mesmo em decisões
derivadas.
A ideia dominante, e “politicamente correcta”, de que a tendência para
aumentar as decisões por maioria qualificada é inevitável, pretende impor
um movimento irreversível no sentido da integração, que se afigura
irreflectido e que vai mesmo para além do federalismo. Efectivamente,
mesmo no caso das federações, as decisões sobre questões de soberania são
tomadas na base da paridade de votos, como sucede no caso do Senado
americano. As recentes eleições presidenciais americanas que,
contrariamente às críticas que despertaram, constituíram um caso exemplar
de funcionamento de instituições democráticas e do Estado de Direito em
situações limite, provaram que nos Estados Unidos o respeito pela
soberania dos Estados federados é um princípio intocável.
É na definição do processo de decisão da União a este nível que terá de se
encontrar uma solução equilibrada, que reflicta a realidade do processo de
integração europeia: um processo que junta Estados-Nação com um forte
sentido de identidade e independência, dispostos a transferir para órgãos
europeus a gestão em comum da parte da sua soberania que se revele
vantajosa para todos e para cada um, mas que querem preservar a
legitimidade democrática em que assenta a sua organização política.
Uma solução adequada implica ter em conta a natureza diferente das
diversas áreas de competência da União, combinando, em função delas,
soluções de natureza intergovernamental, comunitária – preservando o
processo inovador do Tratado de Roma onde se continue a revelar aplicável
– e federal, nas áreas centrais de soberania que se decida gerir em comum.
O método intergovernamental deverá ser utilizado em áreas onde se
considere que se pode actuar em conjunto ou em concertação, mas onde se
repute essencial que os interesses soberanos de cada Estado não fiquem
submetidos aos dos restantes. Disso seria exemplo a Cultura, onde reputo
impensável, por exemplo, que uma decisão sobre as corridas de touros seja
tomada pelo voto maioritário dos países onde essa tradição não existe, ou a
Política Externa, onde não parece concebível que Portugal possa estar
sujeito a perder uma votação que afecte os laços que o unem ao Brasil ou a
Timor.
O método comunitário deverá ficar reservado para as áreas onde é
tradicionalmente utilizado e para eventuais competências alargadas de áreas
predominantemente económicas, não essenciais à soberania, que se
decidam atribuir às Comunidades, sendo as decisões tomadas por maioria
qualificada com base numa ponderação que deveria ser mais próxima da
existente antes de Nice.
O método federal deveria ser aplicado para as áreas fulcrais de soberania
que se entendam partilhar integralmente. O federalismo, ao pressupor a
paridade entre os Estados e um processo de decisão baseado em regras
claras e definidas, é aquele que confere maiores garantias de controlo sobre
a utilização da soberania por cada Estado, sobretudo para os mais pequenos.
No sistema actual da União, a tomada de decisão por maioria qualificada e
ponderada, em algumas dessas áreas, confere aos Estados mais pequenos
menos salvaguarda da utilização da sua soberania do que o sistema federal,
e releva já mais de uma soberania europeia superestatal, do que de uma
soberania partilhada. Em qualquer caso, as decisões em matérias centrais de
soberania, que se entenda tomar por maioria, qualificada ou não – embora
pareça prudente manter aqui o conceito de maioria qualificada – deverá sê-
lo, como sucede nos próprios Estados federais, com base na paridade – um
Estado um voto – e não por ponderação de votos.

d) O cuidado em garantir um quadro institucional que preserve o grau


de legitimidade democrática que constitui a essência da organização
política que consubstancia a civilização europeia

As instituições europeias terão de reflectir estes três patamares. E aqui


reside talvez a parte mais complexa das reformas. Julgo que neste contexto
a Comissão deveria preservar inteiramente a sua competência no domínio
comunitário, mas deveria ter uma intervenção estritamente limitada à sua
competência comunitária nas áreas intergovernamental e federal, só
intervindo na negociação enquanto proponente e guardiã dos Tratados, visto
não ter soberania própria.
A dificuldade maior surge contudo na articulação entre o Parlamento e o
Conselho, ou nos órgãos que sejam encontrados para lhes suceder.
A definição das instituições parlamentares da União é um pouco o
calcanhar de Aquiles de todo este processo, na medida em que interferem
com o elo de legitimidade democrática dos Estados. Um Parlamento eleito
por sufrágio universal e directo, com a sua representatividade baseada
largamente na dimensão demográfica dos Estados, releva mais do Estado
unitário do que do federalismo. Nos Estados Unidos, a Câmara dos
Representantes representa a soberania indiferenciada do povo e é o Senado
que representa a soberania dos Estados federados numa base paritária. Mas
os Estados Unidos são um Estado plenamente federal, o que me parece ir
para além do que a maioria dos europeus estão dispostos a aceitar, pelo
menos nesta fase do processo de integração, e como aconselha a mais
elementar prudência, enquanto estiver em aberto a dimensão geográfica da
União.
O que está em causa, julgo, é uma União formada por Estados soberanos
que continuam a ser os garantes da legitimidade democrática. Numa
construção como esta, um Parlamento eleito directamente, como
actualmente existe, ou não tem efectivos poderes parlamentares, como é o
caso, ou, se o tem, entra em conflito com a legitimidade democrática dos
parlamentos nacionais. A criação de uma Câmara Alta, onde estejam
representados os parlamentos nacionais de onde emana essa legitimidade,
como vem sendo crescentemente aventado, poderia ter um efeito corrector.
O simples facto de se sentir a necessidade de se avançar com essas
propostas reflectirá aliás a inadequação do PE na fase de integração em que
nos encontramos.
Talvez fosse mais curial que a única instituição parlamentar europeia
emanasse, directa ou indirectamente, dos parlamentos nacionais, e para
além de poderes legislativos na área comunitária, tivesse a responsabilidade
de fiscalizar o exercício dos poderes do Conselho Europeu e do Conselho
de Ministros, em sincronia com a acção paralela dos parlamentos nacionais.
De outro modo, uma segunda Câmara irá provavelmente colidir com a
acção do Conselho e criar menos transparência e maior ambiguidade.

Europa e democracia
Tudo na História evolui e nada é imutável. O Estado-nação, tal como o
conhecemos e concebemos hoje, é um produto do século XIX, que não ficará
cristalizado no tempo. É aliás manifesto que deu uma resposta insatisfatória
a muitos dos anseios dos povos europeus e os mais de 50 anos de paz e
prosperidade que as Comunidades Europeias trouxeram à Europa são a
prova de que era tempo de avançar para novas instâncias e patamares de
organização política. Mas o Estado-nação não surgiu de geração
espontânea, antes resultou de um processo histórico secular e evolutivo e
foi nele que pela primeira vez se consagraram e solidificaram os princípios
de liberdade, democracia e respeito pelos direitos humanos que constituem
os valores básicos que informam a Civilização europeia, pelos quais durante
séculos tantas gerações aspiraram e lutaram. Alguns dos povos europeus só
muito recentemente alcançaram essa situação. O Estado-nação não é
sagrado e certamente evoluirá segundo o porvir da História e os interesses
dos povos. Mas é mister que essa evolução seja livre, desejada e assumida.
A Europa, nesta fase, não se pode fazer contra o Estado-nação, nem de uma
forma precipitada que ponha em causa o sistema democrático. Tem de se
fazer com os Estados-nação e basear-se e ampliar os valores da democracia.
Em Portugal, a génese do Estado-nação remontará à crise de 1385. A
nossa situação geográfica, a nossa expansão universal, a língua, a
homogeneidade étnica e religiosa, tudo contribuiu para consolidar um
Estado que coincide com a Nação. A nossa identidade nacional não se
distingue da organização num Estado independente. Mas seria suicida não
compreender que a preservação da soberania no mundo interdependente em
que vivemos não passa por nos isolarmos, mas por assegurar a participação
nos centros de decisão que gerem essa interdependência. Por outro lado, há
que entender que a salvaguarda da defesa dos interesses e da capacidade de
intervenção dos países pequenos passa pelo respeito de regras que rejam de
forma clara os processos de decisão. Nessa perspectiva, a inserção em
instituições que obedecem a um quadro jurídico estabelecido é em si uma
garantia com que nunca pudemos contar no passado. E nesse contexto, não
devemos temer a introdução de elementos federais na condução dos
destinos da União, pois para a prossecução de questões centrais de
soberania, que se revele mais proveitoso gerir em comum, constituirão uma
salvaguarda da nossa independência e da defesa dos nossos interesses,
muito mais eficaz do que a presente amálgama processual que o híbrido
institucional europeu gerou, que só pode beneficiar os países mais
poderosos.
8 Artigo em Negócio Estrangeiros n.º 3, 2002.
Alargamento e Constituição da União Europeia:
De Monnet a Metternich9
Agir primeiro, pensar depois, é uma fórmula que por vezes me ocorre
quando penso sobre a evolução da União Europeia (UE) ao longo dos
últimos anos. É uma fórmula caricatural e provocatória. Contudo, se se
recordar, por um lado, a passagem do ritmo inicial da integração, feito de
pequenos passos concretos e sólidos, para os saltos voluntaristas «de cima
para baixo», iniciados na década de 80 e, por outro, o processo quase
contínuo de reforma institucional em que a Europa enveredou desde o Acto
Único, em simultâneo com dois alargamentos, o último dos quais o maior e
qualitativamente mais relevante, terá de se reconhecer que esta imagem
possui alguma razão de ser. Bastará recordar que o Acto Único entrou em
vigor em 1987, os tratados de Maastricht e de Amesterdão em 1993 e 1999,
respectivamente, e o de Nice, negociado, assinado e solenemente ratificado
para adaptar as instituições ao alargamento, começou a ser revisto
praticamente logo após a sua aprovação, tudo se inclinando para que o
Tratado que o substitui seja assinado antes que tenha entrado em vigor a
totalidade das suas disposições.
É verdade que diversos factores justificam esta sucessão de reformas
institucionais e que não merece contestação o fundamento político do
alargamento. Há, desde logo, que reconhecer o considerável
aprofundamento simultâneo do processo de integração a áreas cruciais,
desde a Moeda Única e da criação do Euro, até domínios que há duas
décadas se considerariam impensáveis, como a Justiça e Assuntos Internos,
a Política Externa e de Segurança e, mesmo, a Defesa. Por outro lado, o
alargamento reflecte as repercussões inevitáveis da alteração radical do
enquadramento político mundial em que a Europa se insere após o derrube
do comunismo. Mas também por vezes se terá cedido à tentação de
corresponder à sede de sensacionalismo da cada vez mais dominante e
poderosa comunicação social, ávida de um movimento constante, que nem
sempre se coaduna com o ritmo próprio das transformações das sociedades.
Tal terá talvez relegado para segundo plano a oportunidade de uma reflexão
mais profunda sobre as reformas mais adequadas para adaptar a União às
novas realidades.
A integração europeia nasceu, cresceu e prosperou no ambiente favorável
criado pela admirável Pax Americana que os EUA souberam instalar na
Europa do pós-guerra.
Inspirados em modelos de cooperação desenvolvidos pelo esforço de
guerra, os «Pais Fundadores» das Comunidades Europeias conseguiram
fazer sobressair que a gestão conjunta de certos recursos económicos, até aí
objecto de contestação, era objectivamente a que melhor servia o interesse
de cada Estado e podia constituir o fundamento para finalmente se alcançar
uma paz estável na Europa. A criação de um interesse comum objectivo,
cuja prossecução conjunta servia melhor os interesses de cada Estado do
que a sua procura individual, foi o cimento fundador que assegurou o êxito
sem precedentes das Comunidades Europeias no plano da cooperação entre
Estados soberanos. Por seu lado, o clima politicamente «pasteurizado» que
a Guerra Fria impôs à Europa, forneceu as condições ideais para a
consolidação desse interesse comum e o fortalecimento e alargamento do
processo de integração europeia.
Desde então, a competência da União estendeu-se a novas áreas, de
natureza diversa das que tinham estado na sua origem. A conjuntura política
internacional alterou-se profundamente e a Europa teve que reiniciar a
procura do seu lugar num Mundo por sua vez ainda à procura de um ponto
de equilíbrio. Neste contexto, o alargamento e a definição de um quadro
institucional mais claro e adaptado às novas circunstâncias impuseram-se
como objectivos naturais para a UE.

Tudo ao molho e fé em quem?


«Deus morreu, Nietzsche também e eu próprio não me sinto muito bem»,
disse, no seu característico e algo cabotino estilo, Bernard-Henri Levy.
Veremos se os dirigentes europeus, que não se revêem na primeira
afirmação deste aforismo, conseguem introduzir no preâmbulo da
Constituição Europeia uma referência ao papel do cristianismo na formação
da Europa. Mas o debate já havido a este respeito revela que muitos deles
nela se revêem e que não terá portanto sido em Deus que confiaram quanto
ao alargamento.
A adesão à UE dos países da Europa dita de Leste, que se libertaram do
jugo da União Soviética, insere-se na lógica subjacente ao quadro político
instalado na Europa Ocidental no pós-guerra – e portanto também da
integração europeia. Representa o triunfo dos valores de liberdade,
democracia e respeito pelos direitos humanos que o Ocidente arvorou como
estandarte libertador e a vitória da estratégia, de que a integração europeia
também era parte, adoptada para enfrentar a Guerra Fria. A adesão desses
países à UE, como já sucedeu com a NATO, decorre naturalmente da
evolução dos acontecimentos subsequentes ao desmantelamento da União
Soviética. Não faria pois sentido pô-la sequer em causa. Para mais, pela sua
posição geográfica e pelos laços históricos e culturais que os ligam a tantos
Estados-membros da União, o seu lugar, uma vez aí implantada a
democracia, objectivo por que a UE tanto lutou, é necessariamente no
interior da União. O contrário seria iludir as expectativas que o Ocidente
tanto e tão bem alimentou nos povos desses países e negar os princípios e
valores que enformam a UE. Este alargamento vem levantar de vez a
Cortina de Ferro que separava a Europa histórica e, de algum modo, poderá
dizer-se que com ele se cumpre o destino da UE, mesmo que tal implique
uma alteração na sua natureza e desde que se preserve a capacidade de
prosseguir o seu fim último, uma Europa estável, próspera e em Paz.
Justificar-se-ia contudo uma reflexão, profunda e livre das pressões do
quotidiano político, sobre os efeitos internos e externos deste alargamento e
do que se poderá designar como o «alargamento anunciado» aos restantes
Estados saídos dos antigos «satélites» da União Soviética. Desde logo, há
que procurar assegurar que as sequelas do desmembramento dos antigos
regimes comunistas de Leste não afectem a estabilidade da União. Muitos
são os problemas que já assumirá com este alargamento, desde o enclave de
Kaliningrado, que encerra um potencial foco de tensão, a problemas de
minorias envolvidas num contexto histórico hostil, ao risco de a UE ser
indevidamente instrumentalizada em disputas derivadas do passado
histórico dos seus novos membros, às condições e circunstâncias que
moldarão o relacionamento da União com o novo, e um tanto bizantino,
rosto do resto da Europa. Está-se perante um alargamento diferente
quantitativa e qualitativamente dos anteriores, pelo número sem precedentes
de Estados aderentes, pelo percurso próprio desses Estados e pelas
características que rodearam a criação de alguns deles, com ajustamentos
ainda mal sedimentados na nova geografia política europeia. Com este
alargamento e o que o completará e se enquadra na mesma lógica, as
fronteiras da União, embora ainda interiores à Europa, estender-se-ão a
regiões onde não é evidente que prevaleça a comunhão de valores,
experiências e cultura que aos novos aderentes e candidatos se reconhece.
A chegada da União às suas novas fronteiras de Leste constituirá a
ocasião propícia para lançar uma reflexão, reconhecidamente difícil,
complexa e com risco de levar a conclusões impopulares e capazes de
desencadear susceptibilidades dentro e fora da União, sobre os seus limites
geográficos. O que está em causa não é tanto a extensão geográfica
propriamente dita da União, mas a efectiva possibilidade de, a quarenta ou
cinquenta Estados, ser possível manter o nível de integração e coesão sem o
qual se corre o risco de a União perder significado e relevância e de se
desarticular em pólos sectoriais que agrupem os países que queiram impedir
a reversão da integração.
A partir daqui não é possível continuar a estender a União de uma forma
quase mecânica. A avaliação dos pedidos de adesão apresentados até agora
cingiu-se formalmente à sua compatibilidade com as disposições do
Tratado, baseadas no princípio de que pode ser aceite na União todo e
qualquer Estado europeu e democrático – requisito qualificado mais
recentemente com os critérios de Copenhaga. Mas atingido o que será
defensável considerar como as fronteiras naturais da União, a apreciação de
futuros alargamentos não pode ficar espartilhada por normas jurídicas, ou
por regras de aplicação quase automática. Trata-se de uma questão
eminentemente política e nessa óptica deve ser tratada. Foi aliás nessa
perspectiva que foram até agora encaradas as candidaturas mais
controversas.
Quando se determinou a possibilidade de qualquer país aderir às então
Comunidades Europeias, desde que se situasse no continente europeu e
obedecesse aos requisitos políticos estabelecidos, quem adivinharia que,
entre as então repúblicas-satélites de Moscovo e a Rússia, iria surgir uma
pluralidade de países potenciais candidatos? A quem passaria nessa altura
pela cabeça que um dia poderia ser encarada, como não totalmente
implausível, a eventualidade de uma candidatura da Rússia? A participação
no clima de estabilidade, prosperidade e prestígio internacional que a
adesão à UE conferia era acenada como um estandarte para atrair os
europeus do outro lado da Cortina de Ferro e um prémio para os regimes
autoritários remanescentes do lado de cá, que evoluíssem para a
democracia. A expectativa assim criada, que o próprio decorrer do tempo
ajudava a reforçar, contribuiu para fundamentar e legitimar as candidaturas
desses Estados. Seria pois da maior conveniência que não se alimentasse,
nos países saídos da União Soviética, a doce ilusão de que têm «vocação»
para aderir à UE, facultando-lhes uma perspectiva a esgrimir no
relacionamento com terceiros e acabando por retirar campo de manobra à
UE, sem que previamente se decida se é isso que se pretende e se tal
eventualidade é consentânea com a sobrevivência da União. Serão esses os
dados que será conveniente equacionar numa perspectiva prática e realista.
Há que reflectir sobre se se devem ou não estabelecer limites ao número de
Estados que a União pode comportar sem desvirtuar os seus fins. Se é ou
não necessário, para a manutenção da coesão e do nível de integração de
que a União agora usufrui, garantir a existência entre todos os Estados-
membros de uma identidade que reflicta um denominador comum de
valores, sentimentos e comportamentos, para além do qual a União tenderia
a transformar-se numa banal organização multilateral. Em suma, se é
possível, alargando a União para além de certos limites, preservar um
interesse comum que, pelas vantagens acrescidas que acarreta num
equilíbrio global, acabe por se sobrepor ao interesse individual e se
imponha como parte essencial do verdadeiro interesse nacional de cada
Estado. Ou se, estendendo a União para além do razoável, não se corre o
risco de a diluir numa pluralidade de interesses e prioridades contraditórios,
de a fragmentar em patamares múltiplos de integração, de comprometer a
experiência ímpar de cooperação entre Estados soberanos que representa.
Por outro lado, os limites do alargamento da União não devem também
ignorar o meio internacional em que decorre. As expectativas de adesão,
que algumas antigas repúblicas da União Soviética alimentam, não serão
inocentes no forjar de uma nova ordem mundial onde o papel da Rússia está
longe de se encontrar esclarecido. É verdade que essa aspiração não estará
em contradição com o Tratado, se e quando esses países respeitarem os
requisitos estabelecidos. Mas há que encarar quaisquer passos nesse sentido
com a devida perspectiva histórica e uma visão estratégica dos interesses,
quer da União, quer do equilíbrio mundial. Deve-se ter em consideração,
neste contexto, a situação da Rússia. Não se afigura sério contemplar sequer
uma sua eventual adesão à União, que plausivelmente tornaria esta
redundante. Não se pode ignorar que a Rússia terá um lugar de peso a
preencher e um papel a desempenhar na ordem internacional que se está
agora a desenhar. O peso histórico, interesses e preocupações da Rússia não
podem ser ignorados. Pesem embora as insuficiências que persistem, nunca
na História a Rússia teve um regime tão livre como o actual. À UE cabe a
responsabilidade de ajudar a criar um clima exterior tão favorável quanto
possível ao reforço e consolidação da democracia na Rússia e evitar atitudes
que sejam percebidas em Moscovo como hostis, ou como inserindo-se
numa estratégia de contenção, reflexo ainda de uma lógica de Guerra Fria.
A fraqueza conjuntural da Rússia não deve iludir a definição de uma
estratégia da UE em relação a esse país e às antigas repúblicas soviéticas
tornadas (vulneráveis) Estados independentes. Forjar com a Rússia um
novo quadro de estabilidade a Leste terá de constituir uma das mais
importantes missões da nova UE. Caso contrário seria, no mínimo, irónico
que uma visão mecanicista ou redentora da vocação da União para abarcar
todos os países europeus acabasse por surgir como um factor de perturbação
da paz, estabilidade e prosperidade na Europa, justamente a sua principal
realização e o seu maior atractivo.

O Rapto da Convenção Europeia


Se vivessem hoje, os pintores que seguiam a tradição clássica de
representar na tela cenas mitológicas poderiam substituir o tão retratado
rapto da Europa pelo rapto da Convenção Europeia, em que o Presidente
desta certamente não se faria rogado em assumir o papel de Júpiter. Há
cerca de dois anos publiquei um artigo no qual, a propósito da necessidade
de adaptar as instituições e o processo de decisão da UE à extensão da sua
competência a áreas de natureza diversa das tradicionais áreas comunitárias,
referi que:
«a questão crucial que se deve colocar é pois a de saber como gizar um
quadro institucional que preserve, para as políticas definidas a nível
europeu, o grau de legitimidade democrática e de transparência inerente aos
sistemas (democráticos) dos Estados-membros. E isso só será possível se se
assumir que a reforma a que se vai proceder é uma reforma com carácter
constitucional, a que deve ser conferido o mesmo grau de solenidade e
exigência que a nível nacional se atribui à definição das normas
constitucionais. A solução correcta seria a de convocar uma Conferência
com carácter verdadeiramente constitucional, com uma agenda aberta que
permita considerar e debater todas as variáveis que estão em causa neste
exercício.»
À primeira vista poderá parecer que a minha aspiração se concretizou.
Nada mais longe da realidade. É verdade que a convocação da Convenção
Europeia correspondeu ao sentir da necessidade de reflectir, com alguma
distância em relação à gestão quotidiana da União e às pressões mediáticas
a que os políticos estão sujeitos, sobre o modo de simplificar e tornar mais
coerentes os anteriores tratados, de adaptar as instituições europeias ao
aprofundamento da integração e à extensão das suas competências a áreas
centrais de soberania, bem como ao futuro alargamento. Nessa perspectiva é
compreensível que se tenha encarregado uma assembleia de notáveis, em
cuja composição se procurou um equilíbrio entre personagens com
experiências diversificadas, mas conhecedoras do processo europeu,
incluindo representantes dos parlamentos, europeu e nacionais, de modo a
torná-la próxima das populações, de proceder a uma análise aberta e
profunda sobre as linhas de orientação a que deveria obedecer essa reforma.
Mas a Convenção foi «raptada», talvez pelo prestígio e influência do seu
Presidente, e transformou-se num órgão legislativo ou, se se quiser, «pré-
legislativo», cuja legitimidade só poderia ser obtida a posteriori se, e
quando, o resultado do seu trabalho viesse a ser apreciado e aprovado pelos
representantes legais dos Estados-membros. Para mais, pretendeu a
Convenção atribuir-se poderes constituintes, como decorre, quer da
pretensão de designar o novo tratado como Constituição, quer da analogia
que pretendeu estabelecer com a Convenção de Filadélfia, posando os seus
membros com a dignidade imortal de «Pais Fundadores» da nova Europa.
Como se fosse equiparável uma Convenção promovida por treze colónias
para legitimarem a sua nova condição de Estados independentes, fundar um
Estado Federal e estabelecer a respectiva base jurídica e a revisão de um
tratado entre quinze Estados soberanos de indisputável legitimidade
democrática. Para negociar directamente um novo tratado e, sobretudo, se
se lhe pretendia atribuir a importância e dignidade de um tratado
constitucional, era desde o início a representantes legais e devidamente
mandatados dos Estados-membros que se deveria ter incumbido a
realização dessa tarefa, como sucedeu em anteriores conferências
intergovernamentais.
É verdade que não coube à Convenção a negociação final do projecto de
tratado e será a CIG que o aprovará ou não. Mas não se pode iludir que o
projecto saído da Convenção, fruto aliás de um consenso mais que
controverso, condicionou determinantemente a margem de manobra da
CIG, tendo-se ido ao extremo de pretender que, onde não existisse acordo
para modificar as propostas da Convenção, estas prevaleceriam sobre o
direito vigente.
Além disso, a decisão da Convenção de enveredar desde logo pela
redacção de um projecto de tratado, terá impedido, ou contribuído para
impedir, uma reflexão mais livre e distante dos desafios que à Europa se
colocam e a elaboração de um diagnóstico mais isento dos problemas que
enfrenta.
Conviria, em primeiro lugar, ter feito uma avaliação da evolução da
integração europeia e da adequação e capacidade de adaptação do
respectivo quadro institucional ao actual leque de competências. Depois,
reflectir sobre o melhor modo de assegurar que a dinâmica que tem
caracterizado a vida da União, em si um salutar sinal da sua vitalidade, não
ponha em risco a prevalência de um interesse comum, que represente para
cada Estado-membro uma mais-valia na prossecução dos seus interesses
nacionais. Ponderar ainda as implicações políticas decorrentes da extensão
de competências da União a novas áreas e o modo como a gestão da União
pode ser afectada pelo alargamento.
Teria também sido uma boa ocasião para equacionar melhor o que talvez
seja o maior desafio com que os Estados-membros da União terão de lidar,
se quiserem assegurar a continuidade do carácter supranacional da União:
garantir que as decisões tomadas ao nível da União gozem do mesmo grau
de transparência democrática que as decisões tomadas ao nível nacional. Ou
seja, que os cidadãos sejam governados, de Bruxelas ou das suas capitais,
com o mesmo grau de democraticidade.
Este, que poderá ser o nó górdio da integração europeia, nunca a meu ver
foi abordado com a devida profundidade e abertura. Reconhece-se de um
modo geral que a União representa um sistema híbrido, diverso dos Estados
tradicionais, unitários ou federais, ou das organizações multilaterais. É de
facto o primeiro e mais conseguido caso da gestão de soberania em
conjunto, por livre vontade de 15, agora 25, Estados soberanos. No entanto,
as diversas reformas institucionais têm, em considerável extensão,
projectado nas instituições comunitárias a divisão de poderes que constitui a
base do Estado de Direito, distorcendo assim o equilíbrio previsto para as
instituições europeias, que nela não assentava. Por isso, o problema que se
convencionou designar por «défice democrático» tem vindo a ter como
resposta o reforço dos poderes do Parlamento Europeu, como se, a exemplo
do que sucede nos Estados nacionais, ele fosse o órgão legislativo por
excelência e nele residisse e dele emanasse a legitimidade democrática da
União. É verdade que desde o Acto Único se reforçaram as funções do
Parlamento, mas é justamente a essa evolução que pretendo referir-me.
O verdadeiro elo que confere legitimidade democrática aos órgãos de
poder advém, não apenas da representatividade desses órgãos, como da sua
responsabilização perante o eleitorado – a relação de responsabilidade do
eleito perante o eleitor, que constitui o elo base da democracia. Esse elo não
existe entre os eleitores e o Parlamento Europeu, pois o centro efectivo de
decisão da União não emana dele, nem responde perante ele, nem por
consequência o Parlamento Europeu pode por sua vez responder perante o
eleitorado pelas políticas da União. Não espantam, assim, as reservas das
opiniões públicas dos Estados com maiores e mais arreigadas tradições
democráticas ao reforço dos poderes da União.
Nas presentes circunstâncias, são apenas os Estados que detêm uma
efectiva legitimidade democrática, e a legitimidade de que a União usufrui
neste plano deles deriva em exclusivo. Por isso, é o Conselho, onde estão
representados os Governos responsáveis perante os parlamentos nacionais,
a sede da genuína legitimidade democrática da União. O Parlamento usufrui
da legitimidade que lhe confere o seu carácter representativo, mas falta-lhe,
como se disse, o elo de responsabilização perante o eleitorado. A linha de
reforço consecutivo dos poderes do Parlamento Europeu que se tem
seguido, permite pensar que se visa, ao menos no plano teórico, caminhar
no sentido de lhe atribuir crescente legitimidade democrática. Mas, como
foi sentido pela Convenção e está reflectido no acréscimo de intervenção
dos parlamentos nacionais proposto no projecto de tratado, existe aí a
semente de uma dupla legitimidade que, se não for equacionada com a
devida clareza, poderá vir a ser fruto de futuras contradições e dificuldades.
Seria ousado, mas talvez mais consentâneo com a realidade que, mantendo
a hibridez do sistema da União, se propusesse que o Parlamento Europeu
emanasse dos parlamentos nacionais. A alta abstenção que caracteriza as
eleições europeias mostra que o eleitorado não detecta a relevância do
Parlamento Europeu para a sua vida quotidiana e sabe que só nas eleições
nacionais se pode pronunciar com efectividade sobre o modo como
pretende ser governado. A decisão de um conjunto de Estados soberanos
gerirem em comum certas áreas de soberania não pode afectar a soberania
dos cidadãos.
O projecto de tratado saído da Convenção procura cumprir o mandato de
simplificar os diversos e sucessivos tratados e de os reduzir a um texto
único, tornando-o mais compreensível e acessível ao cidadão comum, bem
como de tornar mais eficaz o funcionamento da União, face ao alargamento.
A simplificação do modo de funcionamento da União é um objectivo
desejável, mas tem de se reconhecer os seus limites.
Há que ter em conta que a UE é uma entidade complexa, que envolve
grande diversidade de interesses, sensibilidades e equilíbrios. Qualquer
simplificação do seu funcionamento tem que respeitar esses equilíbrios, sob
pena de a vulnerabilizar. Se, em nome da simplificação, se criar uma
estrutura que os Estados, ou pelo menos alguns Estados, considerem que
não lhes permite prosseguir os seus interesses, procurarão alternativas. Os
grandes espaços políticos com sucesso nunca tiveram estruturas orgânicas
lineares. Muito haveria que aprender, por exemplo, com as experiências,
negativas e positivas, do Império Austro-Húngaro. E muito há a aprender
neste domínio com os Estados Unidos. É verdade que aí existe um Estado,
federal mas único, centros e uma hierarquia de poder incontestados. Mas
basta acompanhar o processo legislativo no Congresso, ou apreciar os pesos
e contra-pesos do processo de decisão em matéria de política externa, quer
entre o Executivo e o Congresso, quer mesmo no seio da própria
Administração, para se ter consciência da sua enorme complexidade. O
reforço da eficácia do processo de decisão europeu não pode pôr em causa a
sua transparência e democraticidade. Já Mussolini contrapunha, aos que
criticavam a falta de democracia do seu regime, que tinha posto os
comboios a andar a horas.
Não é, nessa perspectiva, totalmente tranquilizador constatar que a
redacção do projecto de tratado acentua mais a supranacionalidade da
União, do que o facto de esta só deter os poderes que lhe são delegados
pelos Estados signatários. Mesmo o princípio basilar e fundador do direito
internacional moderno, da igualdade entre os Estados soberanos, só
aparecerá no Tratado graças à persistência de Portugal – e que Portugal
tenha sido o paladino desse princípio é aliás revelador da nossa identidade e
do significado que nela tem a independência.
Seria ainda conveniente que, justamente em nome da eficácia e celeridade
dos procedimentos, se procurasse ultrapassar a ambiguidade de algumas
disposições mais relevantes. Não creio, por exemplo, que contribua para
esse fim determinar que o Conselho Europeu delibera por «consenso», não
se definindo os contornos precisos dessa figura, por contraposição aos dois
outros métodos de tomada de decisão previstos e tradicionais, a
unanimidade e a maioria qualificada. A única interpretação possível daqui
derivada é que o consenso é diferente da unanimidade. O «consenso» com
que se concluiu a Convenção Europeia surge aqui como um exemplo
perturbador e não clarificar até à aprovação do Tratado este termo
indefinido pode dar lugar a desnecessários equívocos.

Requiem pelas comunidades europeias


Nas sucessivas revisões das instituições a que se tem procedido,
considerou-se apenas, como métodos de decisão do Conselho, a
unanimidade e a maioria qualificada ponderada, excluindo o recurso, que
em muitos casos seria mais justo e democrático, da votação por maioria,
qualificada ou não, na base um Estado um voto. Essa é talvez a mais grave
imperfeição da arquitectura institucional da União. A prática de aplicar
exclusivamente os dois referidos métodos de decisão às decisões do
Conselho, independentemente da sua natureza, que este projecto mantém –
alterando para mais a aferição da maioria qualificada para um método que
reduz na ponderação o factor igualdade entre os Estados –, é, não só
negativa em termos do equilíbrio de poder no interior da União, como
pouco transparente e até susceptível de constituir um travão – útil ou
inútil... – ao aprofundamento da integração, que os defensores deste sistema
tanto proclamam.
O processo baseado na tomada de decisão por maioria qualificada com
ponderação de voto, nos casos em que se previa a gestão da soberania em
comum, constituiu, porventura, a mais marcante inovação institucional do
Tratado de Roma. Era perfeitamente adequado para as competências
atribuídas pelo Tratado de Roma às Comunidades Europeias, que visava
matérias que, por facilidade, se poderão designar como «quantificáveis».
Quando se começou a estender a competência das Comunidades a matérias
de natureza diversa, atinentes à identidade nacional, ou a áreas centrais de
soberania, teria sido curial que se tivesse reflectido se a maioria qualificada
com ponderação era o método correcto para essas novas áreas de
competência. Porque justamente a referida complexidade de uma estrutura
como as Comunidades/União exigiria processos diversificados em função
do grau de integração pretendido e da natureza diversa das matérias em
apreço.
Teria sido mais consentâneo estabelecer uma distinção clara, por um lado,
entre as áreas em que os Estados-membros entendessem útil uma
concertação, mas pretendessem exercer individualmente a sua soberania e
aqueles em que quisessem gerir a soberania em comum. No primeiro caso
continuaria a aplicar-se a unanimidade (método intergovernamental). No
segundo, e em função da natureza das matérias, decidir-se-ia por maioria
qualificada nas questões «quantificáveis» (método comunitário) e por
maioria, qualificada ou não, na base um Estado um voto (método federal),
nas questões centrais de soberania. Tal solução seria mais transparente e
equitativa. Permitiria rever com maior latitude a ponderação de voto nos
casos de aplicação do método comunitário, de modo a reflectir o impacto
diferente das decisões nos diferentes Estados-membros, aplanar resistências
à extensão da decisão por maioria a áreas em que os Estados-membros
tivessem relutância em ver diminuída a expressão da soberania e talvez até
tirar do horizonte o fantasma de que a extensão a todas as áreas de
actividade do voto por maioria qualificada, tal como actualmente previsto, é
uma fatalidade inelutável.
A actual indiferenciação do método de decisão, independentemente das
matérias em apreço, terá porventura contribuído para que, perante o
alargamento, sobretudo os Estados maiores, tenham sentido a necessidade –
ou a oportunidade – de rever o processo de votação do Conselho, pela
alteração da definição da maioria qualificada, não já através de um mero
reequilíbrio dos coeficientes de ponderação, mas modificando
integralmente os pressupostos em que assentava. A ponderação concebida
pelos fundadores das Comunidades para determinar a maioria qualificada
entre os Estados-membros constituiu, pelo subtil equilíbrio entre o princípio
da igualdade entre os Estados e a projecção real do seu peso, a chave do
êxito da integração europeia, como o mais conseguido processo de
cooperação entre Estados soberanos da História. A erupção da demografia
como factor determinante da ponderação da maioria qualificada, que o
método da dupla maioria contido na proposta da Convenção estabelece,
vem subverter totalmente esse equilíbrio e os princípios em que assentava.
A distribuição do poder, que é o que aqui está em causa, tornou-se, como
era inevitável, na questão central do processo de revisão do Tratado de
Nice, e será ela que estará até ao fim sobre a mesa dos chefes de Estado e
de Governo, na próxima sessão da Conferência Intergovernamental em
Bruxelas. O método comunitário morreu, e com ele as Comunidades
Europeias. O novo equilíbrio de poder derivado do proposto processo de
dupla maioria, porventura consequência das mudanças introduzidas na
União pelos movimentos simultâneos de extensão das suas competências e
do seu alargamento, aproxima-se mais do da Conferência de Viena, do que
do gizado por Jean Monnet: reconhece-se, por um lado, a dignidade igual
de cada Estado, ao exigir uma maioria de Estados para se poder tomar uma
decisão. Mas, por outro lado, coloca-se na mão de um pequeno grupo de
grandes Estados, com o seu esmagador peso demográfico, o verdadeiro
centro do poder.
O projecto de tratado agora em apreço reflecte o salto enorme do
processo de integração, cujo êxito levou à extensão de competências da
União a áreas que num passado não muito distante seriam impensáveis e a
um alargamento ainda não completo, que abarca já vinte e cinco Estados.
Com o alargamento e o novo Tratado a UE constitui uma realidade
diferente. Mas é essencial manter a coesão que garanta a irreversibilidade
da integração económica e dos seus inegáveis benefícios para os cidadãos
europeus. As alterações introduzidas ao processo de decisão não devem
modificar a tradição de preferir sempre soluções consensuais. A
flexibilização de procedimentos deve permitir abranger a nova diversidade
da União e evitar rupturas. O alargamento e a reforma das instituições são
prova do dinamismo e da capacidade de adaptação da União. Mas é preciso
estar alerta para garantir que não se perderá de vista o fim último do
processo de integração europeia, que o tornou atraente a todos os Estados
europeus e que justifica a abdicação de egoísmos nacionais e impedir que
excessos de zelo, integracionistas ou expansionistas, ponham em risco o
muito que já se conseguiu.
9 Artigo em Relações Internacionais, n.º 2, 2004.
Rússia e Portugal no Contexto Europeu10
Felicito a Fundação Mário Soares pelo tema escolhido para este
Colóquio.Trata-se de um tema essencial no quadro das relações
internacionais e das relações externas da União Europeia.
Uma parceria efectiva, inteligente e pragmática entre a União Europeia e
a Rússia é fundamental para a estabilidade e a prosperidade dos seus
protagonistas; é-o também a nível global.
A forma pacífica, que não ignorou as dificuldades próprias de um
processo extremamente complexo, como a Rússia tem vivido uma transição
sem precedentes para a democracia e a economia de mercado, representa o
mais admirável contributo que este país pode dar para a prossecução
daqueles objectivos. Importa prosseguir nessa direcção, sem hesitações nem
derivas.
Cabe à União Europeia colaborar activamente na criação das melhores
condições para apoiar a Rússia na consolidação das instituições e das
práticas democráticas, bem corno da economia de mercado, com os
menores custos políticos e sociais possíveis.
A parceria entre a União Europeia e a Rússia desempenha, e deve
continuar a desempenhar, um papel determinante na estabilização das
regiões vizinhas: o “near abroad” da Rússia é também o da União Europeia.
Cabe portanto à União reconhecer as especificidades e as dificuldades
próprias dos espaços geográficos particularmente complexos com que a
Rússia tem de lidar. A sedimentação nestas regiões de regimes
democráticos, abertos e tolerantes, que saibam e possam dar um contributo
significativo para a paz e a segurança, é um desígnio comum à União
Europeia e à Rússia – subscrito, aliás, pelo Conselho da Europa, a Aliança
Atlântica e a OSCE.
Tal reconhecimento das circunstâncias próprias que envolvem a Rússia
necessita de ser efectuado por todos os Estados-membros da União
Europeia, actuais e futuros. Um fenómeno semelhante verificou-se com os
alargamentos da NATO.
Importa não esquecer o significado e o alcance do derrube do comunismo
na então União Soviética. “Glasnost” e “perestroika” foram conceitos que
entraram quase de imediato no nosso léxico e que, a par das respostas
avançadas a partir do “mundo ocidental” das décadas de 80 e 90, moldaram
a realidade europeia contemporânea. Preservar a memória histórica e
articular uma visão de futuro serão os maiores desafios com que nos
deparamos.
Esses desafios colocam-se, desde já, num momento em que se abre um
debate sobre os limites geográficos da União Europeia. Escrevi, há não
muito tempo, que se poderia aplicar à evolução da União a fórmula “agir
primeiro, pensar depois”. Noutro registo, comentei que a chegada da União
às suas novas fronteiras a Leste constituiria, de facto, uma ocasião soberana
para lançar essa reflexão, em si mesma difícil, e que poderia desembocar
em conclusões capazes de despertar fortes susceptibilidades.
Na verdade, chegou a altura de deixar de encarar o alargamento da União
através de simples automatismos. Estão em causa questões geoestratégicas
e de funcionamento e eficácia da própria União – entendida nos seus
presentes moldes. E uma constatação se impõe pela sua simplicidade: não
poderemos ignorar, daqui para a frente, a perspectiva histórica e a visão
estratégica dos nossos interesses. Os próximos passos, por mais distantes
que sejam, não serão alheios à determinação de uma nova ordem mundial
onde a Rússia terá um papel fulcral. É também a essa luz, a par das
eventuais aspirações de aproximação à União de vários Estados, entre os
quais antigas Repúblicas da União Soviética, que deveremos determinar o
rumo a seguir. Mas há um intenso trabalho a levar a cabo, na União e
naqueles países, sob pena de chegarmos a soluções impraticáveis e
contraproducentes.
Em qualquer caso, as bases da relação existente entre a União Europeia e
a Rússia permitem-nos dispor de um quadro de diálogo abrangente. Em
2003, ano do tricentenário de São Petersburgo, teve lugar uma marcante
Cimeira bilateral que, na sequência do Acordo de Parceria e Cooperação,
lançou a negociação dos 4 grandes espaços comuns:

– um espaço económico;
– um espaço de liberdade, segurança e justiça;
– um espaço de segurança externa; e
– um espaço de investigação e educação (com uma componente cultural).

Mais recentemente, na Cimeira realizada em Moscovo a 10 de Maio,


acordámos um roteiro para a conclusão destes espaços. Tais mecanismos
fornecem meios para debater pontos delicados – desde os direitos humanos
ao combate ao terrorismo e ao crime organizado. A agenda comum é
extensa e deverá abarcar, ainda, temas tão relevantes como os dossiers
comerciais, energéticos e ambientais, aprofundando contactos e explorando
pontos de encontro.
No plano estritamente bilateral, as relações entre a Rússia e Portugal têm
conhecido grandes saltos qualitativos, espelhados na Declaração Conjunta
assinada aquando da visita do Presidente Putin ao nosso país, em Novembro
de 2004. Em preparação encontram-se outras deslocações de alto nível de
inegável significado, começando pela visita do Primeiro-Ministro Fradkov a
Portugal no segundo semestre deste ano.
Lembro, a propósito da perspectiva da relevância das relações com a
Rússia que desde cedo tivemos, que a Presidência portuguesa da União
Europeia em 2000 lançou uma iniciativa pioneira: um encontro ministerial
entre a União, a Rússia e os Estados Unidos, em que participaram os
Ministros Jaime Gama, Igor Ivanov e Madeleine Albright, a par de Javier
Solana (Secretário-Geral do Conselho da UE). Não podemos menosprezar o
contributo que a Europa pode dar para a estruturação do hemisfério norte e
de uma verdadeira comunidade transatlântica, facilitando os laços entre
Washington e Moscovo.
Em síntese, será através da cooperação e da articulação de posições que a
União Europeia e a Rússia terão de enfrentar as incógnitas de um mundo
em permanente evolução. O grau de exigência é elevado. O diálogo deve
ser transparente, franco e sem reservas. Não são admissíveis zonas
cinzentas num relacionamento adulto – todos os assuntos, todas as
preocupações, devem ser abordados com naturalidade e rigor. Assim se
evitam mal-entendidos que correm, a prazo, o risco de degenerar. Mas
apesar dos desvios históricos em que o século XX foi fértil, a reunificação da
Europa livre e democrática abriu novas perspectivas e recuperou uma
poderosa herança e uma matriz cultural que partilhamos. A Rússia deixou
de ser um imenso e inquietante desconhecido: é um parceiro de pleno
direito. Esta é uma conquista de vulto, seguramente das mais relevantes
deste tempo.
Aqui ficam assim algumas reflexões que, espero, contribuam para a troca
de opiniões que, tão oportunamente, agora iniciamos.
10 Conferência na Fundação Mário Soares, Lisboa, 2005.
A Europa Social e o Tratado Constitucional11
Recordo que a UGT organizou, em Outubro do ano passado, uma
Conferência dedicada a esta temática. Tive ocasião de revisitar os discursos
então proferidos e de verificar que todas as vertentes da vida europeia ali
abordadas conheceram desenvolvimentos significativos. E sublinho que,
apesar de serem frequentes e recorrentes as referências à “crise europeia” –
que somos especialistas em diagnosticar – a verdade é que não seria
correcto ignorar o alcance de tais avanços.
Em seis meses foi possível, com efeito, concretizar a assinatura do
Tratado de Adesão da Bulgária e da Roménia, que se tornarão membros de
pleno direito em 2007. No Conselho Europeu de Março, foi aprovada a
revisão da Estratégia de Lisboa, actualizando-a e conferindo-lhe um novo
impulso, e alcançou-se um acordo sobre a revisão do Pacto de Estabilidade
e Crescimento (PEC), adaptando este importante instrumento à realidade
económica e financeira do espaço europeu.
Não deveremos menosprezar a relevância da Estratégia de Lisboa – em
cuja génese Portugal desempenhou um papel preponderante, e que é hoje na
Europa sinónimo de energia e de vitalidade – e do PEC para o relançamento
de uma União voltada para a competitividade e o emprego, capaz de fazer
face aos imensos desafios de uma economia globalizada. Os pilares da
Estratégia correspondem efectivamente às necessidades e fornecem um
roteiro para a modernização do tecido produtivo da União, salvaguardando
os traços essenciais daquilo que se designa por “modelo social europeu”.
Trata-se, no fundo, de preservar e de melhorar a qualidade de vida dos
europeus, colocando a economia ao serviço dos cidadãos. É por isso que o
Governo, desde o início, apostou nas reformas económicas, mas também no
reforço do ensino e da formação, da inovação e da sociedade do
conhecimento.
Estas notas de optimismo não pretendem, contudo, ocultar as dificuldades
reais que a União Europeia atravessa. Vivemos uma etapa negativa do ciclo
económico e deparamo-nos, entre outros obstáculos, com a fortíssima
concorrência de mercados emergentes e elevadíssimos custos energéticos.
As projecções de crescimento económico são moderadas e as taxas mais
altas na Europa referem-se, por via de regra, a novos Estados-membros que
beneficiam de apoios comunitários e representam alternativas apetecíveis
aos empresários e ao investimento estrangeiro.
Mas os ciclos económicos existem – e as quebras de crescimento e as
recessões não são, ao contrário do que alguns aparentam pensar, eternas. É
por essa razão que devemos acreditar nos efeitos dos ajustamentos
estruturais em curso, bem como no potencial que a Estratégia de Lisboa
possui. São meios, insisto, para encarar o futuro com mais confiança.
A União Europeia encontra-se ainda marcada pelos resultados dos
referendos sobre o Tratado Constitucional realizados em França e na
Holanda. Muito se falou nisso e nas causas que motivaram a vitória do
NÃO em dois Estados fundadores. As circunstâncias actuais devem
provocar uma reflexão serena e cuidada sobre as origens deste inegável
fenómeno de contestação e sobre o rumo a seguir. Como sabem, o Conselho
Europeu de Junho introduziu uma pausa para reflexão, que se prolongará
até ao primeiro semestre do próximo ano. É, concordo, altura de pensar.
Enquanto não forem cabalmente clarificadas as intenções dos Estados-
membros em causa e daí não se retirarem as devidas conclusões, o destino
do Tratado Constitucional permanecerá em aberto. Importa, assim sendo,
prosseguir e aprofundar o debate europeu, identificando prioridades mas
recordando os inúmeros êxitos que a União averbou ao longo da sua
existência. O facto de o Tratado Constitucional não poder entrar em vigor,
como previsto, em 2007, não significa que a União fique privada de um
quadro legal – dispomos de Tratados vigentes e de um vasto acervo
comunitário em constante aperfeiçoamento.
Dito isto, acrescentaria que os equilíbrios a que chegou a negociação do
Tratado Constitucional – naturalmente criticáveis – seriam aceitáveis e,
tomados no seu conjunto, benéficos para a União. Esta avaliação vale para
o quadro institucional ali previsto e para o conjunto das políticas que
pretende regular; e vale, também, para a defesa dos princípios fundamentais
da Europa social, como foi de resto reconhecido, em números expressivos,
nos meios empresariais e laborais.
A par do Tratado, a União continuou a negociar as suas Perspectivas
Financeiras para o período 2007-2013. Sendo um exercício determinante
para os próximos anos, e tendo a Presidência luxemburguesa levado a cabo
um trabalho muito meritório, a ausência de acordo no Conselho Europeu de
Junho agravou o sentimento de crise de que há pouco falava. É certo que
teria sido preferível lograr um compromisso e que pelo menos 20 Estados-
membros se encontravam prontos a subscrever a última proposta
apresentada pelo Primeiro-Ministro Jean-Claude Juncker. Para Portugal,
esse pacote ia sem dúvida ao encontro das nossas expectativas e dos nossos
interesses, preservando as políticas de coesão e distribuindo com
razoabilidade os custos inerentes ao alargamento da União. E é de
importância fulcral que as conclusões do Conselho Europeu tenham
explicitamente ressalvado que as negociações prosseguirão, e cito, “com
base nos resultados obtidos até à data”. Dito de outro modo, qualquer
acordo futuro não poderá ignorar o ponto de definição que atingimos em
Junho.
A não existência de acordo não é, para já, motivo para fazer soar os
alarmes. Na complexa História da União, fechar as negociações sobre
Perspectivas Financeiras com semelhante antecedência não teria
precedente. Daqui para a frente, agora sob Presidência britânica, e com um
indispensável envolvimento da Comissão Europeia, teremos de procurar
plataformas de entendimento. Julgo detectar sinais encorajadores. Se, por
um lado, é pertinente assinalar a necessidade de reformar políticas como a
PAC, é igualmente relevante reter que o próprio Primeiro-Ministro Blair
facilitou um desfecho positivo, ao admitir que o “cheque britânico”
constitui uma “anomalia” a corrigir.
Neste contexto, porém, frisemos dois aspectos complementares a que
atribuo a maior importância. Em primeiro lugar, a revisão da estrutura de
receitas e de despesas da União, bem como o estabelecimento de áreas
prioritárias de actuação, não poderá de modo algum ser feito à custa das
políticas expressamente consagradas pelos Tratados. Isso seria
incompreensível e inadmissível, uma vez que essa solução violaria a
essência da União sem qualquer espécie de base legal. Em segundo,
continuaremos a sustentar a actualidade das políticas de coesão económica
e social.
Esta asserção justifica um comentário mais detalhado. Não é por acaso
que, na negociação em curso, a rubrica destinada à coesão se designa
“coesão para a competitividade e o emprego”. Vemos a coesão como uma
verdadeira política de futuro, destinada a valorizar e qualificar o espaço
económico europeu, a consolidar as suas capacidades produtivas e a
reforçar as suas redes de infra-estruturas. Perante uma economia
internacional globalizada, a melhor resposta que a União pode dar passa
incontornavelmente pela diminuição das suas vulnerabilidades estratégicas,
aproveitando ao máximo um mercado integrado composto por 450 milhões
de pessoas. Não esqueçamos, por último, que a Coesão e a Estratégia de
Lisboa não são incompatíveis. É justamente o oposto. Se há política
comunitária que tenha contribuído para o crescimento e o emprego, e
consequentemente para o bem-estar dos cidadãos na União, ela tem sido a
Coesão.
A terminar, diria que em cada crise há uma oportunidade. Talvez a União
tenha sofrido as consequências de uma ambição desajustada e de sucessivos
Tratados que não tiveram tempo de se sedimentar; talvez as preocupações
dos Governos com os modelos institucionais e os saldos das contribuições
para o orçamento comunitário tenham sido exageradas; talvez o peso da
recessão e do equilíbrio das contas públicas tenha induzido o presente mal-
estar.
Mas o debate europeu generalizou-se e poucos lhe serão indiferentes.
Espero vivamente que cheguemos a conclusões e que nos seja possível
aproveitar os recursos da União – ou seja, as suas estratégias, as suas
políticas, as suas instituições e as suas disponibilidades financeiras – para ir,
precisamente, ao encontro dos anseios dos europeus. E mais que lamentar a
crise, é preciso identificar soluções, pela positiva e num espírito
construtivo.
Estou seguro de que esta Conferência dará o seu contributo neste sentido.
11 Conferência na UGT, Lisboa, Julho de 2005.
Portugal e Espanha na União Europeia12
É para mim um prazer e uma honra estar hoje convosco, entre velhos
amigos e tantas caras conhecidas. Agradeço a Alberto Navarro (Secretário
de Estado dos Assuntos Europeus de Espanha), ele também um
companheiro de muitos anos e cúmplice e colega leal em inúmeras e
difíceis negociações europeias, o convite que me dirigiu para vos deixar
algumas reflexões. O meu espanhol vem de há muito tempo, aprendido em
pequeno, em Montevideu, onde estive com o meu Pai. Já o português de
Alberto, refrescado por uma recente estada em Brasília, é seguramente mais
fluente e dá-lhe uma invejável vantagem sobre mim...
Aproveitei a breve trégua do Verão para mergulhar na excelente biografia
de Napoleão de Max Gallo. E relembrei que o Imperador, com todos os seus
defeitos, teve contudo o condão de unir Espanha e Portugal na luta contra
um inimigo comum; terá sido um dos primeiros a lograr esse feito.
Napoleão, entre muitos outros aforismos, deixou-nos um que me
impressionou particularmente: «Il n’y a que le pouvoir de la glaive et de
l’esprit et, dans le long terme, c’est l’esprit qui l’emporte…».
É esse espírito, o espírito que inspirou a construção europeia, que não
podemos perder de vista. Como as campanhas napoléonicas e todos os
conflitos que as antecederam e se lhes seguiram facilmente comprovam, a
guerra, como realidade ou como ameaça, foi a normalidade europeia até
1945. Desde então, alcançámos a paz e a estabilidade. Quando alguns se
queixam dos «custos» da União Europeia, talvez fosse útil regressar aos
compêndios de História para contemplar as alternativas. Em momentos
como o actual, uma visão mais relativa dos acontecimentos é algo a não
menosprezar.
Vivemos rodeados de comentários sobre a «crise europeia». Temo que se
tenha perdido a noção das vantagens da União, e importaria parar para
pensar que a integração europeia representa, afinal, o mais notável exercício
de cooperação entre Estados soberanos de que há memória. E é a partir
dessa constatação que deveríamos encarar o futuro.
Não podemos, no entanto, descansar à sombra do inegável sucesso
europeu. A Terra move-se... Temos, isso sim, de nos adaptar às novas
realidades. E noto, a propósito, que o espírito reformista tem sido uma
constante da actuação de Espanha e de Portugal que, com o Reino Unido,
deram o mote à modernização da União Europeia, ao lançar as bases da
Agenda de Lisboa, apostando no reforço da competitividade e da inovação,
na sociedade do conhecimento. Mas as mudanças a que assistimos serão
porventura mais profundas, ao ponto de atravessarmos uma era
marcadamente ideológica, caracterizada por um enfrentamento entre
correntes liberais e perspectivas assentes na defesa do Estado, enquanto
entidade reguladora por excelência.
Se não houver cuidado, as consequências deste debate poderão ser graves.
Penso, por exemplo, nas questões suscitadas pelo comércio livre. A OMC e
o seu conjunto de regras são em si mesmas positivas. Mas certos fenómenos
emergentes são qualitativamente distintos – se a abertura de mercados
favorece as trocas comerciais e a própria estabilização e consolidação
democráticas, é igualmente verdade que a aparição de potências como a
China – e outros países se poderiam citar – se traduz num problema
concreto, derivado da ausência de padrões internos comparáveis aos que
aplicamos. A União deve ponderar o assunto com cuidado, tendo até
presentes as reacções que o tema despertou nos Estados Unidos. Noto, aliás,
que a recente iniciativa de um grupo de Estados-membros da União sobre o
quadro negocial com a China representa uma grave fissura a nível europeu;
melhor seria evitar este tipo de práticas. Impõem-se aqui o realismo e a
necessidade de proteger a economia europeia, identificando os nossos
verdadeiros parceiros e combatendo os efeitos nocivos das deslocalizações
e do «unfair trade».
O «mal-estar europeu» resulta também, claro, do debate suscitado pelo
Tratado Constitucional europeu e do «não» dos eleitorados francês e
holandês. As causas do fenómeno, como bem sabemos, são complexas.
Diria apenas que a União tem de ser coerente com os seus valores e
princípios. Não podemos dissociar as inquietações despertadas pelo
Tratado, da sobrevivência do modelo social europeu e pela incerteza em
torno do alargamento da União e dos seus limites geográficos. A coerência
tem de se aplicar na avaliação das candidaturas de Estados como a Croácia
e a Turquia. As nossas reservas quanto à pretensão croata, motivadas por
um caso singular, devem levar-nos a ser exigentes perante a candidatura
turca; e são uma condição de seriedade para a integração dos países
balcânicos.
A verdade é que as opiniões públicas europeias esperam que a União
assuma posições consistentes e que os dirigentes políticos definam uma
abordagem, insisto, coerente para a ponderação de futuros alargamentos.
Não basta uma verificação burocrática dos critérios definidos em
Copenhaga; exige-se uma avaliação cuidada e, sobretudo, política, que
pondere, não só a viabilidade económica e institucional de novas adesões,
mas também os efeitos que daí advenham para o nosso relacionamento
global com potências tão importantes como a Rússia, cuja transição para
uma democracia plena e sedimentada temos sem dúvida de apoiar.
Quanto ao Tratado Constitucional, à luz das decisões tomadas no último
Conselho Europeu, o Governo português adiou – contra a sua vontade
inicial, diga-se – o referendo que se comprometera a realizar. Fê-lo por
solidariedade para com os parceiros que consideraram ser mais prudente
agir dessa forma, promovendo debates internos sobre este ambicioso
projecto. Aguardamos evoluções subsequentes, sabendo de antemão que
não poderemos aceitar que se ceda à tentação de aplicar provisoriamente
partes isoladas do Tratado. Esse «cherry-picking» desvirtuaria a
Constituição e alhearia ainda mais os eleitorados europeus da União e dos
seus objectivos. E quero deixar uma palavra de agradecimento pela
disponibilidade que sempre encontrámos em Madrid para partilhar as lições
do bem sucedido referendo europeu espanhol.
Antes de terminar, gostaria de vos referir que o reencontro dos europeus
com a União passa por compromissos, sólidos e rápidos, quanta à
negociação das Perspectivas Financeiras para 2007-2013. Não se
compreenderia que os Estados-membros não pudessem alcançar um acordo
nos próximos meses – uma nova frustração contribuiria, seguramente, para
o desalento e a descrença. O entendimento é possível, com base no
excelente trabalho realizado pela Presidência luxemburguesa, e faço votos
de que o Primeiro-Ministro Blair e a sua equipa saibam dar, com o
indispensável envolvimento da Comissão, o impulso que falta. A
negociação tem de ser pragmática e liberta de contaminações ideológicas.
Há que revisitar, a médio prazo, a estrutura das receitas e das despesas da
União. Mas para Estados-membros como Espanha e Portugal – que
colaboram intensa e activamente nesta negociação – é absolutamente
indispensável salvaguardar as políticas de coesão, apresentando-as como
aquilo que afinal são: instrumentos capazes de potenciar o desenvolvimento
social e económico da União, cimentando um mercado único competitivo
capaz de fazer frente à economia globalizada. A coesão é, já que lidamos
com uma Presidência anglófona, «forward-looking». Este reparo vale
também para a Política Agrícola Comum, que não pode ser diabolizada de
forma injusta por consumir uma parcela excessiva do orçamento
comunitário. Bastará relembrar que se trata da única política
verdadeiramente comum e, por isso, financiada na sua totalidade a partir de
Bruxelas. Outra coisa será reponderar a sua incidência e adaptá-la às
produções e estruturas agrícolas de todo o território da União. Valerá a
pena, neste domínio, contemplar a inclusão de medidas destinadas, não só a
promover um desenvolvimento rural sustentado, mas também a combater
fenómenos tão prementes, e que muito afectam os nossos dois países, como
a desertificação, a seca e os incêndios florestais. Aqui fica, a propósito e
uma vez mais, a nossa gratidão pela valiosa colaboração que as autoridades
espanholas nos deram ao longo deste Verão.
Queridos Amigos,
As relações entre Portugal e Espanha são, e nunca será demais que o
repitamos, excelentes. Longe vão, numa conhecida imagem, os dois povos
que viveram de costas voltadas um para o outro. O crescente conhecimento
mútuo, a aproximação dinâmica entre as duas sociedades civis, a intensa e
frequentemente pioneira integração económica, a institucionalização dos
contactos políticos em todas as áreas, de que as Cimeiras anuais são o mais
proveitoso exemplo, provam-no. Temos todas as condições para que assim
continue, nos planos bilateral e europeu e no estabelecimento das nossas
prioridades no Mediterrâneo, na América Latina, em África e na Ásia. À
Espanha e Portugal cabem papéis desejavelmente preponderantes no
diálogo e na aliança entre civilizações.
Falei, a começar, no espírito. Acabo citando Jaime Cortesão, figura
incontornável do pensamento português do século XX e, a certa altura,
exilado em Espanha. Escrevendo sobre os nossos dois países, que segundo
ele seguiram “trajectórias paralelas”, Cortesão sustentava que “na
fisionomia espiritual de cada um dos povos, divisam-se traços que, ainda
quando diferentes, espelham a mesma alma mater”. Sem deixar de ser
portugueses, permanecemos peninsulares: somos como irmãos que,
alcançada a maioridade, partiram separadamente ao seu destino, mas
guardando na memória as recordações do velho lar da Hispânia, onde nos
criámos”. Por isso me sinto, aqui, em casa.
Muito obrigado.
12 Intervenção no Seminário dos Embaixadores de Espanha na Europa (Madrid, Setembro de 2005).
A Europa sem Constituição13
É para mim um prazer e uma honra estar hoje convosco para encerrar este
Seminário sobre “A Europa sem Constituição: Temas para um novo debate
europeu”.
Trata-se, como podem imaginar, de um tema que tem ocupado o meu
pensamento ao longo dos últimos meses. Desde já esclareço que não me
revejo nas leituras mais pessimistas que têm vindo a ser feitas sobre o actual
momento de “crise” que a União Europeia atravessaria, na sequência dos
resultados negativos dos referendos realizados em França e nos Países
Baixos e da impossibilidade de se chegar a acordo sobre o quadro das
Perspectivas Financeiras para 2007-2013. Temo que se tenha perdido a
noção das vantagens da União, e importaria parar para pensar que a
integração europeia representa, afinal, o mais notável exercício de
cooperação entre Estados soberanos de que há memória. E é a partir dessa
constatação que deveríamos encarar o futuro.
Não podemos, no entanto, descansar à sombra do inegável sucesso
europeu. A Terra move-se... Temos, isso sim, de nos adaptar às novas
realidades e de ter perfeita noção de que atravessamos uma era
marcadamente ideológica, caracterizada por um enfrentamento entre
correntes liberais e perspectivas assentes na defesa do Estado enquanto
entidade reguladora por excelência.
Se não houver cuidado, as consequências deste debate poderão ser graves.
Penso, por exemplo, nas questões suscitadas pelo comércio livre. A OMC e
o seu conjunto de regras são em si mesmas positivas. Mas certos fenómenos
emergentes são qualitativamente distintos – se a abertura de mercados
favorece as trocas comerciais e a própria estabilização e consolidação
democráticas, é igualmente verdade que a aparição de potências como a
China – e outros países se poderiam citar – se traduz num problema
concreto, derivado da ausência de padrões internos comparáveis aos que
aplicamos. A União deve ponderar o assunto com cuidado, tendo até
presentes as reacções que o tema despertou nos Estados Unidos. Noto, aliás,
que a recente iniciativa de um grupo de Estados-membros da União sobre o
quadro negocial com a China representa uma grave fissura a nível europeu;
melhor seria evitar este tipo de práticas. Impõem-se aqui o realismo e a
necessidade de proteger a economia europeia, identificando os nossos
verdadeiros parceiros e combatendo os efeitos nocivos das deslocalizações
e do “unfair trade”.
O “mal-estar europeu” resulta também, claro, do debate suscitado pelo
Tratado Constitucional europeu e do “não” dos eleitorados francês e
holandês. As causas do fenómeno, como bem sabemos, são complexas.
Diria apenas que a União tem de ser coerente com os seus valores e
princípios. Não podemos dissociar as inquietações despertadas pelo Tratado
da sobrevivência do modelo social europeu e da incerteza em torno do
alargamento da União e dos seus limites geográficos. A coerência tem de se
aplicar na avaliação das candidaturas de Estados como a Croácia e a
Turquia. As nossas reservas quanto à pretensão croata, motivadas por um
caso singular, devem levar-nos a ser exigentes perante a candidatura turca; e
são uma condição de seriedade para a integração dos países balcânicos.
A verdade é que as opiniões públicas europeias esperam que a União
assuma posições consistentes e que os dirigentes políticos definam uma
abordagem, insisto, coerente, para a ponderação de futuros alargamentos.
Não basta uma verificação burocrática dos critérios definidos em
Copenhaga. Exige-se uma avaliação cuidada e, sobretudo, política, que
pondere não só a viabilidade económica e institucional de novas adesões,
mas também os efeitos que daí advenham para o nosso relacionamento
global com potências tão importantes como a Rússia – cuja transição para
uma democracia plena e sedimentada temos sem dúvida de apoiar.
Quanto ao Tratado Constitucional, à luz das decisões tomadas no último
Conselho Europeu, o Governo português adiou – contra a sua vontade
inicial, diga-se – o referendo que se comprometera a realizar. Fê-lo por
solidariedade para com os parceiros que consideraram ser mais prudente
agir dessa forma, promovendo debates internos sobre este ambicioso
projecto. Aguardamos evoluções subsequentes, sabendo de antemão que
não poderemos aceitar que se ceda à tentação de aplicar provisoriamente
partes isoladas do Tratado. Esse “cherry-picking” desvirtuaria a
Constituição e alhearia ainda mais os eleitorados europeus da União e dos
seus objectivos. Antes de terminar, gostaria de vos referir que o reencontro
dos europeus com a União passa, por outro lado, por compromissos sólidos
e rápidos quanto à negociação das Perspectivas Financeiras para 2007-
2013. Não se compreenderia que os Estados-membros não pudessem
alcançar um acordo nos próximos meses – uma nova frustração contribuiria,
seguramente, para o desalento e a descrença. O entendimento é possível,
com base no excelente trabalho realizado pela Presidência luxemburguesa, e
faço votos de que o Primeiro-Ministro Blair e a sua equipa saibam dar, com
o indispensável envolvimento da Comissão, o impulso que falta. A
negociação tem de ser pragmática e liberta de contaminações ideológicas.
Há que revisitar, a médio prazo, a estrutura das receitas e das despesas da
União. Mas é absolutamente indispensável salvaguardar as políticas de
coesão, apresentando-as como aquilo que afinal são: instrumentos capazes
de potenciar o desenvolvimento social e económico da União, cimentando
um mercado único competitivo capaz de fazer frente à economia
globalizada. A coesão é, já que lidamos com uma Presidência anglófona,
“forward-looking”. Este reparo vale também para a Política Agrícola
Comum, que não pode ser diabolizada de forma injusta por consumir uma
parcela excessiva do orçamento comunitário. Bastará relembrar que se trata
da única política verdadeiramente comum e, por isso, financiada na sua
totalidade a partir de Bruxelas. Outra coisa será reponderar a sua incidência
e adaptá-la às produções e estruturas agrícolas de todo o território da União.
Valerá a pena, neste domínio, contemplar a inclusão de medidas destinadas
não só a promover um desenvolvimento rural sustentado, mas também a
combater fenómenos tão prementes como a desertificação, a seca e os
incêndios florestais.
Como última nota, importa ter em conta que todo este processo de
reflexão sobre o novo debate europeu deve ser realizado em consonância
com a opinião pública, razão pela qual iniciativas como este Seminário se
revestem da maior relevância. Por esse motivo, mais uma vez agradeço o
convite que me foi dirigido para partilhar algumas reflexões convosco.
13 Intervenção no Seminário Luso-Francês, organizado pela Embaixada de França, IEEI, e revista
Esprit, Lisboa, Setembro de 2005.
À Procura da Europa Perdida14
Os resultados dos referendos sobre o Tratado Constitucional em França e
na Holanda lançaram a União Europeia numa crise que a impossibilidade de
chegar a acordo sobre as Perspectivas Financeiras para 2007-2013 adensou,
levando o então Presidente do Conselho Europeu a classificá-la de crise
profunda. Muitas e variadas explicações se têm aventado para essa crise,
mas o que mais valerá a pena será identificar os seus sintomas e colocá-los
no contexto da evolução histórica da Europa.
Desde logo há que constatar que a situação económica e social daqueles
dois países condicionou o desfecho dos referendos e que ali se vive um
certo mal-estar, que se reflecte numa frustração mais ou menos difusa face à
forma como a União enfrenta os desafios europeus. Esse sentimento
repercute-se na opinião pública dos restantes Estados-membros, como as
sondagens demonstram, criando um clima de rejeição que o “sim” do
Luxemburgo apenas aliviou. O abrandamento da economia europeia e a
demora na sua recuperação, fazem pairar uma nuvem de compreensível
ansiedade sobre a viabilidade do sistema social que está na base do bem-
estar em que assenta a estabilidade sem precedentes em que a Europa viveu
nas últimas décadas. Por outro lado, os efeitos do maior, e porventura ainda
não totalmente digerido, alargamento da União, e sobretudo a perspectiva
de um alargamento futuro a países menos desenvolvidos e com maior peso
demográfico, geram o temor de uma invasão de mão-de-obra difícil de
absorver. Surgem, aliás, movimentos defensivos e nacionalistas, e até
xenófobos, que ameaçam a tolerância e a abertura que caracterizam o
espaço europeu.
Além disso, a definição das Perspectivas Financeiras da União para 2007-
2013 – o orçamento da União para esse período – foi prejudicada por uma
visão distorcida e redutora da integração europeia, partilhada por quantos a
pretendem resumir a uma mera soma de deve e haver. Visão distorcida
porque esquece que, mesmo em termos financeiros, são os países ricos que
mais recebem do orçamento comunitário (54% dos fundos estruturais e
75% das verbas da PAC) e sobretudo que o quadro orçamental é apenas um
instrumento das opções políticas do processo de integração. Mesmo ainda
numa perspectiva material, os maiores benefícios da integração para todos
os Estados-membros, mas em especial para os mais ricos, advêm do
Mercado Único e não da redistribuição operada pelo modesto orçamento da
União. A afirmação desta abordagem contabilística é um sinal, e um sinal
sério, de crise, pois significa que se perdeu de vista que o verdadeiro e mais
valioso triunfo da integração europeia é a paz, a estabilidade e a
prosperidade que a Europa conheceu no último meio século. O modelo
comunitário logrou criar um interesse comum que integra os interesses
nacionais. São a solidariedade e a força da interdependência que daí resulta
que constituem o cimento que nos liga e que atrai os países candidatos.
O presente desafio da globalização vem aliás realçar a mais valia que a
União representa. Por si só, cada um dos Estados-membros estaria numa
posição muito mais frágil para o encarar. Temos de combater as
vulnerabilidades da economia europeia. Eliminar os constrangimentos que a
imobilizam e impedem a sua modernização. Adaptar o modelo social ao
modelo de produção da nova economia e à globalização, mas também a um
tecido social muito mais sofisticado e menos necessitado de protecção do
que há 50 anos. Flexibilizar o modelo laboral, adaptando-o ao novo modelo
de produção. Há que ter uma abordagem não espartilhada por baias
ideológicas, pragmática e realista, para que a Europa recupere o dinamismo
que a caracterizou na segunda metade do século passado. A economia de
mercado constitui naturalmente o caminho a seguir e, convém não esquecer,
a matriz da integração europeia. A aplicação dogmática de receitas
doutrinárias pode revelar-se, por via de regra, contraproducente.
A liberalização do comércio mundial será também um factor de
enriquecimento dos países menos desenvolvidos e da própria economia
europeia. Mas a emergência de novos pólos económicos tem de ser
encarada pela Europa como a alteração radical da economia mundial que
efectivamente é. Para que o comércio internacional possa ser deveras livre é
indispensável estabelecer normas e critérios respeitados por todos. Caso
contrário, poderemos correr o risco de uma desastrosa regressão
proteccionista.
A crise tem pois diversas dimensões. É altura de invocar os valores e os
objectivos, plenamente conseguidos, que guiaram os fundadores das
Comunidades Europeias – democracia, liberdade, solidariedade, paz,
estabilidade e prosperidade na Europa. A integração europeia não é um
projecto falhado: é o mais conseguido exemplo histórico de cooperação
entre Estados soberanos. E àqueles que, sem perspectiva histórica, julguem
elevado o custo deste projecto, aconselha-se que comparem o custo da
Europa na primeira e na segunda metade do século XX. É que o mérito do
processo de integração europeia não se cinge a aspectos materiais. Consiste
antes em criar e consolidar interesses convergentes onde antes havia focos
de conflito. A integração, recorde-se, trouxe óbvias vantagens para todos os
europeus – bastará pensar no mercado interno e na liberdade de circulação,
na moeda única, na harmonização de legislações, na protecção do ambiente,
na aposta no intercâmbio de investigadores e estudantes, no reconhecimento
de diplomas, no acesso aos sistemas de saúde nacionais...
A insatisfação de largos sectores da opinião pública representará um aviso
de que, abandonado o método dos pequenos passos que caracterizou a
génese do processo de integração europeia, se terá avançado rápido e longe
demais, com excesso de voluntarismo nuns casos e de condescendência
noutros. A pausa de reflexão que nos impusemos no Conselho Europeu de
Junho tem de ser bem aproveitada. A chave para uma solução poderá residir
no regresso, com humildade, a práticas que asseguraram o êxito do processo
de integração, definindo objectivos claros e consistentes para o devir da
União, consolidando as sucessivas etapas e imprimindo-lhes um ritmo mais
consentâneo com o sentir das populações. Há, sobretudo, que respeitar as
regras de funcionamento estabelecidas pelos Tratados e garantir que o
processo de decisão preserve o equilíbrio entre os Estados-membros e
dissuada tentações dirigistas.
Só reforçando o espírito congregador que é a essência da integração, mas
também evitando fugas em frente, ou soluções de facilitismo, que ponham
em causa a coerência e a credibilidade do projecto europeu, se poderá
contrariar o divórcio entre a cidadania europeia e a União.
14 Artigo no jornal Público, 25 de Setembro de 2005.
A Europa Que Futuro?15
Falar da Europa é, antes de mais, falar dos valores que moldam a
civilização europeia, do desígnio de viver em paz, segurança e liberdade
numa sociedade justa, estável e próspera. Mas é sobretudo falar da vida dos
cidadãos europeus, do seu quotidiano, dos seus problemas, do emprego, da
educação, da saúde, do bem-estar, da solidariedade social. Como já o havia
dito Jean Monnet, em relação ao projecto europeu “não congregamos
Estados, unimos pessoas”. Num momento em que a Europa atravessa um
período de estagnação económica, em que pairam dúvidas e ambiguidades
sobre o seu sistema social, o que preocupa os cidadãos europeus é,
justamente, a sustentabilidade do modelo económico e o desemprego. A
“crise da Europa”, que tanto se comenta, será, antes de tudo, uma crise de
expectativas na União Europeia. Compreensivelmente, a União acaba por
ser muitas vezes apontada como “bode expiatório” desta situação.
Mas não se poderá compreender um debate sobre a situação da Europa e
o seu futuro, se não tivermos presente a perspectiva histórica em que a
União Europeia se edificou e se continua a desenvolver.
O processo de integração europeia emergiu da maior catástrofe da
História da Europa e representou uma resposta visionária e ambiciosa para a
etapa mais cruel e violenta da longa sucessão de guerras do nosso
continente, ocorrido na primeira metade do século passado. Algumas das
páginas mais tirânicas e sanguinárias da História da Humanidade tiveram
lugar na Europa. Ignorar esses factos é não ter consciência do significado da
paz, da segurança e da solidariedade, que o projecto europeu permitiu
consolidar. Na verdade, não podemos discutir a Europa ignorando que, num
passado ainda recente, se viveu o culminar daquilo que vem sendo
qualificado como a “guerra civil europeia”. Temos uma inegável tendência
para dar por garantida a estabilidade, o bem-estar e o emprego, ou seja, tudo
o que conhecemos desde a segunda metade do século xx, esquecendo porém
que esses cinquenta anos foram, sem paralelo, o mais longo período de paz
e prosperidade que a Europa ocidental conheceu. É algo que todos sabemos,
mas é também algo que se esbate na agitação do quotidiano. Meio século de
liberdade e democracia não são, seja qual for o critério, conquistas de
somenos importância. A remoção de tantas barreiras – económicas,
políticas, culturais e, até, psicológicas – e a construção de um edifício tão
sólido não eram dados adquiridos à partida.
O projecto de integração europeia conseguiu unir, numa causa comum,
povos que antes se enfrentaram entre si. A chave do processo de integração
comunitário residiu em sobrepor ao interesse nacional imediato, o interesse
comum objectivo dos Estados-membros na gestão conjunta da
interdependência das economias europeias. Este foi o cimento fundador do
processo de integração, que o tornou atraente, e que inscreveu o interesse
colectivo europeu nos interesses nacionais.
Os 25 Estados que actualmente compõem a União Europeia respeitam os
valores da Liberdade, da Democracia, dos Direitos Humanos. A União
continua a ser um pólo de atracção para povos vizinhos que aspiram à
constituição de sociedades estáveis, seguras e prósperas.
A União Europeia é o mais notável e conseguido exemplo de cooperação
e de gestão conjunta de soberanias. Constitui um modelo para outras
organizações e regiões do globo.
Este é o cerne do projecto europeu. Perder de vista esta abordagem
histórica é perder a noção de que os sucessos da Europa se vão
sedimentando a cada dia, e de que, para os preservar para gerações futuras,
devemos continuar a trabalhar em conjunto. E há que recordá-lo no início
deste debate.
Temos, por outro lado, de ter em conta as recentes transformações
ocorridas na cena internacional, na geografia política da Europa e no
paradigma da economia – evoluções essas por vezes surpreendentemente
rápidas e radicais que modificaram de forma substancial o quadro em que o
processo de integração europeia se move:
– No plano político, a implosão da União Soviética e o fim da Guerra Fria
abalaram o mundo e os equilíbrios políticos, levando a Europa, principal
palco destes acontecimentos, a reencontrar-se com a sua matriz humanista
e, sobretudo, a ir ao encontro das aspirações das jovens democracias que
então despontavam. A esses desígnios vieram somar-se, em particular após
o “11 de Setembro”, preocupações resultantes da agudização das ameaças
terroristas e da necessidade de aproximar povos e civilizações.
– Num prisma económico, a alteração dos modelos produtivos, o
envelhecimento da população, a emergência de novas potências económicas
dotadas de vastíssimos recursos, os problemas energéticos e os fenómenos
da globalização, vieram trazer desafios acrescidos a uma Europa em perda
de competitividade, mas que não deve acomodar-se.
A União Europeia precisou de tempo para se adaptar. Surgiram em
diversos quadrantes nuvens de incerteza sobre a sustentabilidade do modelo
social europeu e do próprio projecto de construção europeia. Porém, a
União delineou uma estratégia de resposta ao adoptar, por ocasião da
Presidência portuguesa em 2000, a Estratégia de Lisboa, destinada a
melhorar a competitividade europeia. A Estratégia identifica as políticas e
os meios para colmatar o relativo atraso para que a Europa resvalou face
aos seus parceiros internacionais.
Na verdade, e como se veio a comprovar, a Estratégia de Lisboa
constituiu e constitui uma reacção lúcida e criativa a uma situação difícil e
complexa, estabelecendo metas concretas para a redução do desemprego, o
incremento da produtividade e o aumento do crescimento económico. Estes
desígnios, como a Cimeira de Hampton Court e o Conselho Europeu deste
mês reiteraram, continuam a ser os objectivos prioritários da União.
É apostando com decisão na economia do conhecimento, na inovação, na
qualificação da educação, e no desenvolvimento da ciência e tecnologia,
que a Europa deverá avançar, preservando simultaneamente as
características centrais do seu modelo social. Apenas por esta via
poderemos garantir que a Europa manterá um lugar de vanguarda social e
económica no mundo e que os europeus continuarão a usufruir dos elevados
padrões de vida a que estão habituados.
Se muitos Estados europeus vivem situações económicas e sociais
delicadas, não será por falta de resposta da União a esses desafios. A União
Europeia e cada um dos seus Estados-membros tem, pois, de ultrapassar
esta conjuntura, pondo em prática as linhas de acção consensualmente
definidas pela Estratégia de Lisboa.
O último alargamento marcou a História da União Europeia. Foi o maior
de todos e reflectiu o quadro internacional resultante dos acontecimentos
marcantes do final da década de 80. Por essa razão, este alargamento
encerra em si mesmo uma incontornável legitimação histórico-política.
Perfilam-se agora novas candidaturas à adesão, de natureza qualitativa
diversa, motivadas por razões de ordem política, económica e social. A
União Europeia continua a ser um forte pólo de atracção para Estados do
continente europeu, ansiosos por aderir a um espaço de estabilidade e de
bem-estar.
Naturalmente, não questionamos as aspirações de qualquer um desses
países, nem a necessidade de conferir uma perspectiva europeia aos Estados
dos Balcãs Ocidentais.
Importará, no entanto, reflectir com ponderação sobre a extensão do
projecto europeu e os seus limites geográficos. Essa reflexão sobre as
fronteiras da União Europeia deve ter em consideração factores internos e
externos.
Ao equacionar a extensão geográfica da União Europeia, deveremos
nortear-nos pela preservação dos níveis de integração e de coesão
alcançados – e que são, afinal, a essência do projecto europeu. Haverá
limites reais à eficácia da União, à sua capacidade de cumprir os propósitos,
objectivos e finalidades para que foi criada. A coerência do projecto de
integração europeia deve ser – sob pena de diluição – salvaguardada.
Levantam-se também, a este propósito, importantes questões de índole
geoestratégica. Futuros alargamentos da União não poderão ignorar o meio
internacional em que decorram nem a visão global dos interesses europeus.
A consolidação do projecto europeu passa também por um reforço da
acção externa da União. A União alargada, com 25 Estados-membros, mais
de 450 milhões de cidadãos e responsável por um quarto da produção
mundial, é inevitavelmente um actor global e deve estar pronta a assumir a
sua quota-parte de responsabilidade pelos destinos da comunidade
internacional.
Mas não é correcto escamotear a realidade, uma vez que subsistem sérias
debilidades. É necessário reforçar os mecanismos que permitam à União
projectar-se no exterior, prosseguindo com eficácia os objectivos comuns
que queira identificar tomando por referência o quadro de valores europeu.
A chave de uma acção externa assenta em valores comuns e à altura das
interrogações do nosso tempo. Reside, como em tantas outras áreas de
actuação da União, na igualdade e na confiança entre todos os seus Estados-
membros. A vontade política comum deve ter por base valores e interesses
partilhados, a par das realidades históricas próprias de cada Estado-
membro.
O que se pretende é instituir uma política externa “comum”, e não “una”.
A criação de um consenso europeu, de uma verdadeira política externa da
União Europeia, ir-se-á construindo à medida que os interesses e objectivos
dos Estados-membros forem convergindo. Esse fenómeno resultará gradual
e naturalmente do aprofundamento e da consolidação do processo de
integração europeia.
Para finalizar, queria retomar as minhas palavras iniciais e recordar que o
que nos une, a nós, cidadãos e Estados-membros da União Europeia, é um
projecto assumido em comum, traçado ao longo de cinco décadas seguindo
a “política dos pequenos passos” preconizada por Monnet e paulatinamente
orientado no sentido de uma integração mais profunda. Os ganhos são
imensos – percorremos um longo caminho desde as confrontações que
assolaram o nosso continente à prática diária da negociação em Bruxelas.
Espero que este conjunto de ideias possa servir de ponto de partida para
uma reflexão serena, aproveitando o debate nacional que hoje se inicia para
fazer um balanço da nossa pertença ao projecto europeu.
A avaliação a fazer sobre a Europa deve ter presentes três elementos.
Primeiro, o valor ímpar que representa a solidariedade entre Estados
soberanos, que criou o maior período de paz, estabilidade e prosperidade
alguma vez registado no continente europeu. Segundo, a necessidade de
adaptação do projecto europeu, quer à sua extensão, quer aos decisivos
desafios económicos que a globalização implica. Terceiro, que este projecto
não pode ser dado como garantido se não lutarmos por ele todos os dias.
É em torno desta equação que se perspectiva o debate sobre o Futuro da
Europa, e é nesse contexto que deve ser encarado o Tratado Constitucional.
O Tratado procurou simplificar os edifícios jurídicos da União, agilizar o
processo de tomada de decisão e habilitar as Instituições Comunitárias a
lidar com a dinâmica de uma União alargada. Não obstante, as bem
conhecidas vicissitudes que afectaram o Tratado travaram os processos de
ratificação. Daqui nasceu, precisamente, a “pausa para reflexão” em que
nos situamos.
Devemos assim incluir no nosso debate o futuro do Tratado
Constitucional, associando-nos plenamente a um enriquecedor exercício a
nível europeu. Sublinho no entanto que esta reflexão conjunta não deve dar
ensejo a que se multipliquem iniciativas sobre o Tratado – o que nos deve
mover é a busca de uma solução e de um rumo por todos aceitáveis. Por
esse motivo discordamos de qualquer tentativa de aplicação parcelar de
disposições isoladas do Tratado – documento que foi pensado, negociado e
subscrito como uma unidade e não como uma mera amálgama de
disposições.
É neste espírito que se deve estimular o debate nacional, destinado a
promover o conhecimento das questões em discussão no contexto europeu e
a colher o sentimento dos portugueses a respeito das grandes opções com
que a União se depara ao traçar as suas políticas voltadas para o futuro.
15 Intervenção no Fórum de Debate do Futuro da Europa (Assembleia da República, Lisboa, 31 de
Março de 2006).
O 20º Aniversário da Adesão de Portugal e Espanha16
Foi com grande alegria que aceitei o convite para, com Alberto Navarro
(Secretário de Estado dos Assuntos Europeus de Espanha), abordar o 20°
aniversário da adesão de Espanha e Portugal às então Comunidades
Europeias. Essa alegria é redobrada por se tratar deste prestigiado Fórum e
por encontrar, aqui, tantos amigos e rostos conhecidos.
Prometo ser breve.
Vivemos rodeados de comentários sobre a “crise europeia”. É certo que a
União Europeia atravessa um período de indefinição quanto ao futuro do
Tratado Constitucional. Mas é igualmente verdade que a União foi, e
continua a ser, o mais bem sucedido exemplo de cooperação e integração
entre Estados soberanos que a História regista.
Falamos de meio século de paz, de estabilidade e de prosperidade.
Falamos de um exemplo de entendimento e de definição de interesses e
objectivos comuns que se sobrepõem a interesses meramente nacionais.
Falamos de um projecto aglutinador que, por força de sucessivos
alargamentos, contribui de forma decisiva para a estruturação da própria
Europa e para a projecção do seu papel no mundo. Celebramos em 2006 os
20 anos da adesão de Portugal e Espanha às então Comunidades Europeias.
Foram duas décadas de progresso, de afirmação no espaço europeu e de
reencontro, num clima de consolidação das nossas democracias, com as
nossas melhores tradições e com a matriz política, social e cultural do nosso
continente. Como o meu querido amigo Alberto Navarro gosta de assinalar,
e tal como bem lembrou na sua mais recente visita a Lisboa, estes foram os
melhores vinte anos da nossa História. Acrescento que ambos temos vindo a
dizer a mesma coisa sem que, por uma vez, nos tenhamos antes articulado...
De países periféricos passámos a países centrais na União. As nossas
adesões enriqueceram a União, graças às nossas relações privilegiadas com
outros espaços – do Mediterrâneo a África, da América Latina à Ásia. O
Português e o Espanhol são línguas vivas e em constante expansão. Ambos
soubemos ter a noção exacta do alcance do alargamento da União à Europa
de Leste, ainda que por um prisma estritamente económico os riscos dessa
evolução – incontornável e guiada por valores de natureza política – fossem
evidentes para Portugal e Espanha. Por mérito próprio, lográmos afirmar-
nos nas Instituições comunitárias, quer na defesa de posições nacionais em
matérias tão delicadas como a programação orçamental da União – de que
os bons resultados obtidos nas Perspectivas Financeiras para 2007-2013 são
um testemunho vivo –, quer através do reconhecimento obtido junto dos
nossos parceiros. Penso, aqui, no singular e significativo facto de um
português, José Manuel Durão Barroso, presidir à Comissão Europeia e de
dois espanhóis, Javier Solana e Josep Borrell, ocuparem os relevantíssimos
cargos de Secretário-Geral do Conselho e Alto Representante para a PESC e
de Presidente do Parlamento Europeu.
Por outro lado, a adesão simultânea de Espanha e Portugal aproximou os
dois Estados e estreitou, de forma nunca antes vista, os laços que os unem.
Não me refiro apenas às francas e profícuas relações entre Governos e
entidades públicas – essa cumplicidade é patente a todos os níveis e o
quadro institucional em que se desdobra é ágil e capaz de dar resposta aos
desafios com que nos deparamos. O que impressiona é a intimidade que se
gerou entre as duas sociedades civis, o crescimento exponencial dos
intercâmbios bilaterais na área económica, o grau de conhecimento das
culturas de ambos os países. Esta profunda afinidade, para mais assente
num mercado que ultrapassa os 50 milhões de habitantes, permite-nos até
ser pioneiros, a nível europeu, em sectores tão complexos como o da
energia. Os dados do comércio bilateral disponíveis confirmam também
estas afirmações – Espanha é o principal cliente e fornecedor de Portugal;
Portugal é o 3° maior destinatário das exportações espanholas,
ultrapassando a totalidade do continente americano...
Por estes motivos, os nossos Governos apostam no reforço das
interconexões físicas, com projectos ambiciosos no tocante às ligações rodo
e ferroviárias e à cooperação marítimo-portuária; por estes motivos
pretendemos valorizar a por vezes esquecida dimensão da cooperação
transfronteiriça, como ficou espelhado na reunião que na segunda-feira
reuniu os dois Ministros dos Negócios Estrangeiros em Zamora, no quadro
do Tratado de Valência, com o propósito de dinamizar o desenvolvimento
das regiões contíguas dos dois países, trazendo ao nosso “hinterland” os
padrões de bem-estar que caracterizam o resto do espaço peninsular. Por
estes motivos mantemos um diálogo permanente sobre as questões
europeias e trabalhamos em conjunto em sectores tão distintos como a
preservação dos recursos hídricos e florestais, a imigração ilegal ou a
ciência e tecnologia.
Não ouso, aqui, alongar-me sobre o caso espanhol. Limito-me a
confessar-vos que, como estrangeiro e visitante assíduo – mas não tanto
como desejaria –, a vitalidade de Espanha e o modo sereno e visionário com
que traçaram o vosso rumo desde a época da transição, são marcantes.
Em Portugal, as duas últimas décadas terão sido, também elas,
determinantes. Como diplomata profissional que sou, em cada regresso ao
meu país ao longo destes anos pude verificar o ritmo acelerado de
desenvolvimento e os avanços palpáveis em todos os indicadores sociais.
Estou consciente de que a economia portuguesa – especialmente aberta –
sofre ainda as consequências de uma recessão que ditou uma fase de
afastamento das médias europeias. Contudo, os sinais de recuperação
começam a surgir e a realidade não dá lugar a dúvidas. O Portugal de 1986
pouco tem a ver com o Portugal de hoje – nos níveis de protecção social, na
saúde, na esperança de vida, na escolarização e na aprendizagem de idiomas
estrangeiros, na extensão da rede rodoviária (que cresceu cerca de 10 vezes
em vinte anos), no aproveitamento e na generalização do acesso às novas
tecnologias, dos simples telemóveis à utilização doméstica da Internet. No
campo económico, as realizações vão da adesão ao euro – que implicou um
enorme esforço de saneamento das finanças públicas, o controle da inflação
e a descida das taxas de juro – a uma modificação radical e estrutural da
própria economia, agora capaz de gerar e de absorver investimento
estrangeiro e voltada para os serviços – que representam quase 70% do PIB
– em detrimento dos sectores primário e secundário. E, a propósito de PIB,
os números valem por si – o rendimento per capita ficava-se em 1986 pelos
54% da média comunitária e situa-se agora, mesmo numa conjuntura
negativa, nos 70%. Em qualquer caso, o PIB português quase triplicou em
20 anos.

Queridos Amigos,
A terminar, gostaria de partilhar convosco algumas reflexões orientadas
para o futuro. Falei, quase por reflexo, da “crise europeia”. Mas esse
sentimento não é realmente dominante nem por ele nos poderemos deixar
dominar. A União Europeia soube dotar-se dos instrumentos e das políticas
para ultrapassar dificuldades e encontrar novos rumos. Não quero contornar
a questão do Tratado Constitucional, que o meu Governo continua a apoiar
e cujo conteúdo considera equilibrado e globalmente ajustado; haverá
tempo para se dirimir o problema, sabendo-se de antemão que a União tem
provado poder funcionar com o quadro jurídico estabelecido em Nice. As
chaves para o futuro existem e começaram a ser delineadas na Estratégia de
Lisboa, adoptada em 2000 e actualizada em 2005. Um passo importante foi
dado o ano passado, em Hampton Court, onde se esboçaram as novas
prioridades que nos cabe agora concretizar e às quais devotaremos toda a
atenção quando assumirmos a Presidência da União, na segunda metade de
2007. A União precisa de saber como se adaptar e de mostrar o caminho na
preservação do modelo social e económico, na qualificação e na inovação,
nas interrogações suscitadas pelos problemas demográficos e pelas
migrações, no lançamento e na consolidação de uma estratégia energética,
no âmbito da segurança dos cidadãos. Assim se vai ao encontro dos anseios
das opiniões públicas europeias e se criam as condições indispensáveis para
um debate esclarecido sobre o modelo institucional. Por isso investimos, em
Portugal e em Espanha, num debate abrangente sobre os temas europeus, de
que esta ocasião é um exemplo gratificante. Estou seguro de que o
contributo dos nossos dois países será, como sempre, particularmente
valioso.
Ao celebrar os êxitos de duas décadas formulo um voto – que dentro de
vinte anos possamos tornar a dizer, com igual satisfação, que os últimos 40
anos foram os melhores da História de Espanha e de Portugal.
16 Intervenção no Fórum Europa Madrid – Nueva Economia Fórum (Madrid, Maio de 2006).
A Europa e o Alargamento: Que Horizonte?17
Queria antes de mais agradecer o convite que me foi formulado de
presidir à sessão de abertura deste Encontro Internacional dedicado a um
tema tão actual e relevante como o do Alargamento da União Europeia.
Trata-se de uma iniciativa muito oportuna no quadro da “Pausa para
Reflexão” em que a Europa se encontra, na sequência do Conselho Europeu
de Junho do ano transacto. Portugal está empenhado em contribuir para esta
reflexão e por esta razão Sua Excelência o Primeiro-Ministro lançou, no
passado mês de Março, um “Fórum de Debate do Futuro da Europa”. Este
Fórum é composto de personalidades portuguesas dos mais diversos
quadrantes, com experiência reconhecida em assuntos europeus, e destina-
se a promover e a estimular o debate nacional, associando-se igualmente às
iniciativas que outras entidades e a sociedade civil vierem a lançar neste
quadro.
Para Portugal, o projecto europeu é, antes de mais, um projecto de
comunidade com povos que partilham os mesmos valores e que aspiram a
viver em paz, segurança e liberdade, numa sociedade justa, estável,
democrática e próspera. Foi movido por esta convicção que Portugal
sempre apoiou o processo de Alargamento, em particular este último, que
alargou a Europa a 25, e desejavelmente, a breve trecho, 27 Estados-
membros, apesar de ser dos 15 Estados-membros aquele que mais custos
suportará com esse processo.
Este último alargamento marcou a História da União Europeia. Foi o
maior de todos e reflectiu o quadro internacional resultante dos
acontecimentos marcantes do final da década de 80. Por essa razão, este
Alargamento encerra em si mesmo uma incontornável legitimação
histórico-política.
Portugal apoiou igualmente a abertura das negociações com a Turquia e a
Croácia. Mas o mérito destas novas candidaturas e o estado de preparação
de cada Estado terão agora de ser avaliados com um rigor e uma exigência
acrescidos. Disso depende, inclusivamente, a credibilidade da União
Europeia.
Perfilam-se agora novas candidaturas à adesão, de natureza qualitativa
diversa, motivadas por razões de ordem política, económica e social. A
União Europeia continua a ser um forte pólo de atracção para Estados do
continente europeu, ansiosos por aderir a um espaço de estabilidade e de
bem-estar.
Naturalmente, não questionamos as aspirações de qualquer um desses
países, nem a necessidade de conferir uma perspectiva europeia aos Estados
dos Balcãs Ocidentais.

Importará, no entanto, reflectir com ponderação sobre a extensão do


projecto europeu e os seus limites geográficos. Essa reflexão sobre as
fronteiras da União Europeia deve ser vista numa perspectiva política e ter
em conta:
• A coerência do projecto de integração: ao equacionar a extensão
geográfica da União Europeia, deveremos nortear-nos pela preservação
dos níveis de integração e de coesão alcançados, e que são, afinal, a
essência do projecto europeu.
• A governabilidade de uma União alargada: haverá limites reais ao
funcionamento e à eficácia da União, à sua capacidade de cumprir os
propósitos, objectivos e finalidades para que foi criada.
• A capacidade de absorção da União Europeia.

Levantam-se, igualmente, importantes questões de índole geoestratégica.


Futuros alargamentos da União não poderão ignorar o meio internacional
em que decorram, nem a visão global dos interesses europeus. Não deve ser
conferida qualquer tipo de perspectiva de adesão à Ucrânia e às outras
antigas Repúblicas da URSS. Há que ter em conta o relacionamento global
com a Rússia, fundamental para a paz e estabilidade na Europa e no mundo.
Sem me querer alongar em demasia, estas são apenas algumas pistas de
reflexão que queria partilhar convosco, e que vos deixo, sobre um tema tão
complexo e profundo como seja a definição das fronteiras da Europa, ou os
limites do projecto europeu.
Formulo os votos dos maiores sucessos para a continuação dos trabalhos
deste Encontro, e estou certo de que ele representará uma valiosa
contribuição para o debate nacional sobre o Futuro da Europa.
17 Intervenção no Encontro da Casa Europa e Fundação Passos Canavarro, Santarém, Maio de 2006.
20 Anos de Integração Europeia –
O Testemunho Português18
O balanço da adesão
A adesão de Portugal às então Comunidades Europeias foi uma decisão
eminentemente política e estratégica. Portugal assumiu o projecto de
integração europeia com o objectivo de consolidar as suas instituições
democráticas, modernizar as suas estruturas económicas e caminhar para a
abertura da sua sociedade.
Portugal é hoje um caso paradigmático dos benefícios da integração
europeia: duas décadas de estabilidade política, de progresso económico e
social sem precedente na nossa História, uma profunda alteração da
qualidade de vida na habitação, na educação, na saúde, nas acessibilidades,
na cultura, no lazer. Enfrentamos naturalmente muitos problemas, de
desigualdade, de assimetrias, de pobreza, por um lado, de insatisfação com
muitos serviços sociais, por outro. Mas uns e outros são, já não os
problemas do subdesenvolvimento, mas do desenvolvimento, análogos
qualitativamente aos de todos os outros países desenvolvidos, como bem
sabe quem neles viveu. Problemas que derivam sobretudo, e justamente, das
expectativas de melhoria contínua das condições de vida que o progresso
dos últimos anos gerou, bem como de uma salutar elevação do grau de
exigência dos cidadãos.
Esta evolução do nosso país é devida, é verdade, não só à adesão às
Comunidades Europeias, como à implantação da Democracia – sem a qual
aquela não teria sido possível – que permitiu afirmarmo-nos, na Europa e
no Mundo, como um País democrático, respeitador dos valores da
liberdade, dos direitos humanos, do Estado de Direito, que são a marca da
nossa civilização e permitiu-nos também, não o esqueçamos, ascender ao
grupo dos trinta países mais desenvolvidos do mundo.
Hoje somos um país moderno, com elevado potencial, e participamos, de
pleno direito, e em conjunto com os outros europeus, na construção de um
projecto de paz, liberdade e democracia, em prol de uma Europa mais rica,
mais estável, mais solidária e próspera. Por todos estes motivos, a adesão à
Europa comunitária constituiu sem dúvida uma das mais relevantes
decisões estratégicas do século xx português.

Os desafios futuros
Estamos actualmente a viver uma época de enormes transições, tanto a
nível mundial como europeu. Estamos, a Europa e o Mundo, numa
encruzilhada de que não se sabe como vamos sair. O modelo de
crescimento, que permitiu e garantiu meio século de paz e prosperidade sem
paralelo no continente europeu, parece estar esgotado. São vários os
factores que desencadearam este processo:
– A nível mundial, as mutações do paradigma do modelo produtivo, a
emergência de potências com enormes recursos humanos, os problemas
energéticos colocados pela dependência excessiva do exterior, o aumento
do preço do petróleo;
– A nível europeu, a digestão do último alargamento, o qual abalou mais
profundamente a Europa do que se podia esperar; a crise da adesão da
opinião pública ao projecto europeu, traduzida na rejeição do Tratado
constitucional; o desemprego e as incertezas da globalização.
A crise do modelo social e económico europeu está a abalar o fundamento
das sociedades democráticas que se constituíram ao longo destas quatro
décadas. A classe média europeia beneficia de uma vasta rede de benefícios
e garantias sociais, na educação, na saúde, no desemprego, na reforma,
arduamente conquistados ao longo de séculos, que constituem o esteio da
estabilidade política e social das sociedades democráticas e que como tal
devem ser valorizadas.
Mas as alterações da ordem internacional, a aceleração da globalização, a
emergência de potências económicas com características, práticas e valores
que põem em causa as regras do comércio internacional, o aumento da
competitividade, estão a pôr em causa esses equilíbrios e a criar justificada
insegurança e ansiedade entre os europeus.
A estes elementos há a acrescentar a adaptação às novas ameaças à
segurança que se perfilam a nível mundial, ao mesmo tempo que se assiste
à alteração dos princípios e da prática da ordem internacional que
vigoraram desde a última Guerra Mundial, relativizando o papel da aliança
transatlântica que permitiu o processo de integração europeu e a expansão
dos valores em que ela assentou.
Por sobre tudo isto há ainda a ter em conta a crise de valores a que se
assiste a nível mundial e que na Europa gera uma diversidade de
perspectivas sobre o processo de integração europeu, que legitima uma
interrogação sobre a visão – ou as visões... – do futuro para a Europa.
É pois numa verdadeira situação de crise que nos encontramos. Crise da
Europa, num contexto de transição da ordem internacional. Crise de
valores, institucional, de segurança, de liderança, económica, social. A
primeira condição para a vencer será reconhecê-la. Mas reconhecer também
que, se houver vontade política, temos, na União Europeia, instrumentos
aptos para a enfrentar.
Há ainda que afirmar que qualquer solução tem de assentar nos princípios
da democracia, da liberdade e da solidariedade que estiveram na base do
êxito sem par que o último meio século constituiu na História das
sociedades europeias. Não é verdade que não exista um modelo social
europeu: existe o princípio de que há que garantir condições de vida e
garantias de protecção mínimas a todos os cidadãos. Mas existe uma
diversidade de métodos para garantir esses objectivos e naturalmente que é
necessário adaptá-los às circunstâncias do presente e às alterações impostas,
quer por factores endógenos, como os demográficos, quer exógenos, como
os decorrentes da globalização. Mas que ninguém tenha ilusões. Sem esse
modelo social não subsistirá a estabilidade que permite que a economia de
mercado funcione, e aí estão para prová-lo os séculos de contínua guerra,
violência e privações que sem ele a Europa viveu.
Numa visão portuguesa, creio que será correcto considerar que será com
mais Europa, ou pelo menos com ela e não com menos ou sem Europa, que
melhor estaremos preparados para enfrentar os desafios, quer de natureza
política e de segurança, quer económica e social, com que nos defrontamos.
E que a União dispõe de meios para a vencer.

No plano económico e social


Um pouco por toda a Europa os Governos têm procurado pôr em prática
reformas estruturais destinadas a adaptar os países a estas mutações. O
Governo português não tem sido excepção: tem vindo a aplicar reformas
difíceis, nas áreas económica, social e da administração pública, exigindo
sacrifícios por parte dos parceiros sociais. Estas reformas, indo modernizar
o tecido produtivo português, proporcionarão uma melhor racionalização da
utilização dos recursos e tornarão o nosso país mais competitivo. Afiguram-
se essenciais para garantir o crescimento sustentado e permitir ao nosso país
fazer face à concorrência exterior.
Reformas deste tipo são possíveis se, por parte dos Governos nacionais,
houver vontade política e capacidade de liderança para as empreender. Ora,
a nível europeu, a União soube antecipar estes desafios e dotou-se das
políticas e dos instrumentos para ultrapassar as dificuldades actuais:
– Desde logo o Mercado Interno, objectivo consagrado no Tratado de
Roma, cujo potencial não se encontra ainda totalmente concretizado. A
economia europeia necessita de maior dinâmica, menos regulamentação,
maior liberalização dos mercados, flexibilização das leis do trabalho e
criação de empregos, sem que isso implique ou possa implicar, como já se
disse, descurar a preservação da solidariedade social;
– Depois a Política de Coesão, expressão da solidariedade entre os
Estados-membros, mas que constitui uma política de futuro, ao contribuir
para o crescimento sustentado da economia europeia mediante o
enriquecimento das regiões mais pobres, tornando-a assim menos
dependente do exterior;
– A União Europeia dotou-se igualmente de novos instrumentos para
encontrar novos rumos, ao adoptar em 2000 – actualizada em 2005 – a
Estratégia de Lisboa, destinada a melhorar a competitividade europeia. Esta
Agenda contém em si muitas vias que podem ajudar a colmatar o relativo
atraso para que a Europa resvalou nos últimos anos face aos Estados Unidos
e às potências emergentes.
A Cimeira de Hampton Court, no ano passado, representou igualmente
um novo avanço, ao identificar novas prioridades: preservação do modelo
social e económico, aposta na qualificação e na inovação, consolidação de
uma estratégia energética, resposta às preocupações relacionadas com a
segurança dos cidadãos.
Uma referência também à Política Comercial Europeia – não obstante o
marasmo em que se encontram as negociações de Doha. Esta deve estar em
consonância com as demais políticas da União Europeia e como tal
constituir um veículo para a realização dos objectivos da Estratégia de
Lisboa, nomeadamente no que toca à competitividade externa.
É sabido que o comércio livre e a concorrência geram riqueza e
prosperidade. Mas para que todos beneficiem, a União deve ter acesso aos
mercados de exportação, seja na área dos serviços, dos produtos industriais
ou agrícolas. O objectivo estratégico da União não deve ser a protecção do
seu mercado ou de indústrias não competitivas. Devemos abrir o mercado à
concorrência externa. Mas com as devidas contrapartidas e garantindo que
se desenrole num plano equitativo, e no respeito, por parte de todos os
parceiros, das regras do jogo. Não podemos permitir que, em nome de
princípios abstractos, ou da rentabilidade de empresas europeias que
deslocalizam a produção para o exterior, sejam postos em causa empregos
de europeus, que não são meros dados estatísticos. Há que exigir e garantir
contrapartidas que nos garantam o acesso a mercados exteriores nas áreas
onde somos competitivos.
Para que o processo de integração prossiga com o mesmo sucesso que o
caracterizou no passado, todos estes problemas devem ser abordados com
frontalidade. Temos que saber articular o interesse nacional próprio com o
interesse europeu em que, em última análise, também se insere o interesse
nacional, e garantir que uma visão estreita não acabe por ser nociva aos
nossos interesses nacionais.

No plano institucional
A Europa encontra-se hoje perante um impasse resultante do fracasso das
duas últimas reformas institucionais. Em particular com o texto do Tratado
Constitucional que, estou convicto, resultou de um processo infeliz e que,
ao não atender às questões institucionais mais complexas e ao propor regras
controversas, não terá constituído um progresso na construção europeia.
Citarei três exemplos:
– Primeiro, não se abordou a questão da “accountability”: como gizar um
quadro institucional que preserve, no processo de decisão europeu, o grau
de legitimidade democrática e transparência que os cidadãos reconhecem
nos processos de decisão inerentes aos sistemas democráticos dos Estados.
É um problema sensível, para o qual não se encontram respostas simples,
mas que terá cedo ou tarde de ser abordado, se quisermos prosseguir a
integração. Uma via a explorar neste contexto seria a introdução de
elementos federais no projecto europeu, esquecendo fantasmas do passado;
– Segundo, o processo de votação do Conselho: a definição da maioria
qualificada sofreu, com a introdução em Nice do elemento demográfico nu
e cru, uma modificação integral dos pressupostos em que assentava. A
ponderação concebida pelos pais fundadores constituía um equilíbrio subtil
entre o princípio basilar da igualdade entre Estados-membros e a projecção
real do seu peso. Ao eleger a demografia como factor determinante da
ponderação da maioria qualificada, o método da dupla maioria veio
subverter esse frágil equilíbrio. Este novo equilíbrio de poder poderá ter
efeitos nocivos para os próximos alargamentos, ao introduzir um factor de
distorção na partilha do poder entre Estados-membros soberanos;
– Terceiro, a criação da figura do Presidente do Conselho Europeu, que é
susceptível de esbater os poderes da Comissão, garante e motor do interesse
comunitário, e colocar em risco o equilíbrio interinstitucional que assegurou
o bom funcionamento da União. Na nova arquitectura institucional
relativiza-se o papel da Comissão, a instituição vocacionada para a
prossecução do interesse comum, marca do processo comunitário.
Este cenário pouco animador não nos deve fazer perder de vista as
potencialidades da União Europeia. Devemos regressar aos fundamentos do
projecto europeu, recordando os princípios e as práticas que inspiraram a
integração europeia e que fizeram dela o enorme êxito que é.
A União Europeia constitui sem dúvida o mais bem sucedido exemplo de
cooperação e integração entre Estados soberanos que a História regista.
Graças ao método comunitário, a UE representa uma experiência ímpar de
gestão conjunta de recursos, de partilha de soberania, e de definição de
interesses comuns e objectivos que se sobrepõem a interesses meramente
nacionais.
Em meio século, estabelecemos uma área de paz, de estabilidade e
prosperidade no continente. Criámos uma entidade europeia assente em
concretizações e valores. O projecto europeu é um projecto de sociedade,
um projecto aglutinador de povos que partilham os mesmos valores e que
aspiram a viver em segurança e liberdade, numa sociedade justa e
democrática.
Qualquer que seja a solução para saída deste impasse institucional, a
Europa terá de respeitar os princípios que constituem o sustentáculo do
projecto europeu e que são o respeito da igualdade e da soberania de cada
um dos Estados-membros, a rejeição dos directórios, o respeito do princípio
da coesão e da solidariedade, o respeito do método comunitário de decisão,
evitando saltos voluntaristas ou fugas para a frente.

No plano externo
Se mantivermos presente que a UE resultou da visão de uma geração que,
por uma vez na História, soube retirar os ensinamentos do passado,
conseguimos perceber a responsabilidade que lhe cabe a nível mundial.
O sistema estabelecido pelo Ocidente após a Segunda Guerra mundial
representou a pedra de toque das relações internacionais até aos dias de hoje
e proporcionou um equilíbrio capaz de impedir uma confrontação
generalizada num período particularmente tenso das relações internacionais.
A promoção de uma política de inclusão e de diálogo com todas as partes,
incluindo não apenas os que divergiam, mas mesmo os próprios inimigos,
em fora multilaterais como as Nações Unidas ou a OSCE, criou um clima
de co-propriedade e co-responsabilização de todos na preservação da ordem
internacional e criou sanções, ao menos psicológicas, para os que a punham
em causa. Foi esse método que permitiu o desenlace do período da Guerra
Fria.
Hoje, estamos a assistir a um desmantelamento dessa ordem
internacional. Vivemos numa época de alteração dos paradigmas: de uma
matriz inclusiva, do estabelecimento de canais de comunicação com os
diversos actores internacionais, passámos para uma matriz exclusiva, de
corte de pontes e de confronto com os nossos adversários.
Ou seja, perante uma crise internacional, fechámos as portas ao diálogo e
à diplomacia, acabando por estimular os radicalismos e fortalecer a
resistência dos regimes que desrespeitam os princípios da Ordem
Internacional. Perdemos assim a capacidade de influência junto dos nossos
opositores.
À Europa caberá procurar inverter este estado de coisas. É que para além
das tradicionais ameaças estatais, surgiram novas ameaças, mais complexas,
difusas e abstractas. O Terrorismo não se enquadra nos parâmetros clássicos
conhecidos, obrigando-nos a um esforço adicional para encontrar repostas e
conseguirmos reagir.
A Europa não tem contudo revelado capacidade para o fazer. A sua
criticada falta de capacidade de afirmação política no plano externo reflecte
a diversidade de pontos de vista entre os vários parceiros europeus, que são
Estados soberanos. Na política externa, cerne por excelência da soberania
estatal, é natural que a sedimentação das decisões seja mais demorada.
Mas só uma Europa dotada de meios também na área da Defesa poderá
enfrentar as actuais ameaças. Esperemos que prevaleça a visão política
daqueles que já perceberam que, ao actuar no quadro das relações externas,
a Europa deve ter presente a experiência histórica e garantir que os erros
passados não tornem a repetir-se.

Conclusão
Nesta encruzilhada em que se encontra, a União Europeia deve progredir
com passos firmes e seguros, preservando o que de positivo conseguiu ao
longo dos seus 50 anos de existência. Se queremos levar, em conjunto, os
nossos objectivos avante, se queremos garantir que a Europa manterá o
lugar de vanguarda que tem tido e que os europeus continuarão a usufruir
da elevada qualidade de vida a que estão habituados, devemos compreender
que temos de nos unir, ultrapassar as nossas divergências, pôr de lado
preconceitos ideológicos e doutrinários e avançar para um rumo definido.
Mas há que evitar prosseguir com fugas para a frente que infelizmente têm
caracterizado algumas fases recentes do processo europeu. O período de
reflexão que nos impusemos face à crise institucional deveria ser levado às
últimas consequências e, se necessário, começar de novo onde há bloqueios
reais. Remendos cosméticos só os agravarão a longo prazo. Revisitemos o
quadro institucional com um espírito aberto e indo ao cerne dos desafios
que coloca, com a consciência que não há soluções simples para uma
estrutura complexa como a da União Europeia.
Utilizemos entretanto os instrumentos de que já dispomos para responder
aos desafios económicos e políticos que se nos deparam, conferindo mais
apoio à Comissão para acelerar a realização do mercado interno e
reforçando o seu papel na execução da Estratégia de Lisboa. E reforcemos
também a nossa capacidade de agir no plano político internacional.
É costume dizer-se que o cemitério da História está cheio de boas
vontades. Mas está mais cheio ainda de oportunidades perdidas. Temos
perante nós a escolha de duas vias: ou percorremos em conjunto, seguindo a
prática europeia, o caminho das reformas necessárias para revitalizar as
nossas economias e enfrentar a globalização, consolidando a paz e a
estabilidade na Europa, ou regressamos aos egoísmos nacionais, que
durante tantos séculos nos dividiram e destruíram. Entremos na “era da
razão”, e saibamos não desperdiçar a herança que a geração que nos
precedeu nos deixou.
18 Intervenção na Conferência Visões do Futuro: a perspectiva portuguesa, ICS-UL, Lisboa, Outubro
de 2006.
Portugal 20 Anos Depois19
A adesão de Portugal, a 1 de Janeiro de 1986, às Comunidades Europeias,
decisão eminentemente política e estratégica, revelou-se determinante para
ultrapassar as dificuldades então atravessadas pelo nosso País. O Portugal
saído da Revolução de 1974 assumiu o projecto de integração europeia com
o objectivo de consolidar as suas instituições democráticas, usufruindo de
um ambiente de paz e prosperidade sem precedentes, e de caminhar para a
modernização e para a abertura da sua sociedade e das suas estruturas
económicas.
Participamos assim naquele que é comummente considerado como o
melhor exemplo histórico de cooperação e integração entre Estados
soberanos. Os desafios que então se colocaram exigiram do país um
extraordinário esforço, ora de criação, ora de modernização das
envelhecidas estruturas que o caracterizavam, facto este que por vezes não é
devidamente valorizado.
Vinte anos volvidos sobre essa data, importa avaliar e analisar os
benefícios da adesão. O balanço das duas últimas décadas é francamente
positivo: um período ímpar de crescimento e de desenvolvimento que nos
concedeu uma oportunidade única para nos afirmarmos, na Europa e no
mundo, como um País moderno com um elevado potencial.
Tais aptidões foram provadas através da participação em todos os núcleos
pioneiros que visaram o aprofundamento do projecto europeu, da Moeda
Única ao Acordo de Schengen. Portugal assumiu uma atitude construtiva na
vida da União, delineando e promovendo a Agenda de Lisboa e
enriquecendo o relacionamento do espaço europeu com os seus parceiros de
Leste, com África, Ásia e a América Latina. Soubemos também gerir com
visão os benefícios da adesão. A política de coesão económica e social
aproximou-nos significativamente dos padrões comunitários. São inúmeros
os indicadores sociais e macroeconómicos que assim o demonstram – dos
dados sobre as condições de vida, de saúde e da educação, ao PIB per
capita, em que Portugal progrediu visivelmente, aproximando-se da média
comunitária, apesar da recessão global que nos atingiu em anos mais
recentes.
Nada disto teria sido possível sem o acesso aos fundos comunitários e
sem uma notável capacidade de absorção. Os três Quadros Comunitários de
Apoio, traduzidos em vários programas operacionais, foram alicerces de
uma aposta no futuro e de políticas integradas de modernização de sectores
tão importantes como a indústria, o comércio, os transportes e
comunicações, as infra-estruturas básicas e a qualificação dos recursos
humanos. O nosso envolvimento no projecto europeu é um motor em
funcionamento que moldou a nossa realidade contemporânea e que
determinou uma evolução radical face ao que Portugal era em Janeiro de
1986.
Mas o impacto da adesão e das transformações em que fomos, em
simultâneo, actores e testemunhas, não se cinge ao domínio económico e
social. Não podemos esquecer que Portugal se passou a inserir numa
verdadeira comunidade política, solidária e dinâmica, assente na partilha de
valores e de objectivos que consideramos fundamentais e capaz de traduzir
os anseios dos cidadãos europeus num mundo globalizado. Essa pertença, e
a estabilidade que dela decorre, assim como os novos horizontes que se
abriram ao nosso país e aos portugueses, não têm preço.
Não podemos igualmente deixar de referir os anos que antecederam a
adesão, fortemente marcados por vagas de emigração para países europeus
que, a partir dessa data, passaram a pertencer, juntamente com Portugal, a
uma só família. Os portugueses que então partiram, na tentativa de
conseguir melhores condições de vida, passaram também a ser cidadãos
europeus.
A conquista dessa cidadania europeia representa um inestimável valor
acrescentado, de que os portugueses podem beneficiar em todo o território
da União Europeia, pelo quadro de protecção diplomática e consular que
União Europeia proporciona e que tem vindo a revelar-se da maior utilidade
para a defesa dos direitos dos nossos nacionais em países terceiros.
Por todos estes motivos, a adesão à Europa comunitária foi uma opção
vencedora e constitui porventura a mais relevante decisão do século XX
português. Sabemos hoje, e sentimo-lo diariamente, que outro passo não
poderia ter sido dado. Nesta altura de algum pessimismo em torno do
projecto europeu temos de unir esforços para que, como Nação que somos,
possamos dar um novo dinamismo a Portugal e a uma Europa ainda mais
coesa e fortalecida. É com este objectivo, através de uma vontade genuína e
confiante de construir um destino comum, em sociedades justas e
tolerantes, que nos devemos unir enquanto portugueses e cidadãos
europeus.
19 Artigo em Comunidades em Revista, 2006.
As Presidências Portuguesas de 1992 e 200020
Fazendo o balanço das presidências portuguesas da União Europeia não
se pode deixar de abordar o contexto e as condicionantes objectivas dessas
presidências. Há que recordar que Portugal presidiu a uma das Instituições
da União Europeia, e não a toda a União Europeia. E que, embora o
Presidente da Comissão seja um português, as restantes Instituições da
União não estão subordinadas à presidência portuguesa.
Por outro lado, julgo que vale também a pena recordar que uma
presidência do Conselho da União Europeia constitui, sobretudo, um
conjunto de obrigações decorrentes do Tratado que se impõe ao Estado-
membro que a assume, designadamente, convocar e presidir às reuniões do
Conselho de Ministros, do COREPER e dos diversos grupos do Conselho;
estabelecer a agenda do Conselho Europeu; gerir a actividade do Conselho
em todas as suas formações; organizar o calendário e a acção no semestre
correspondente; conduzir as reuniões do Conselho de Ministros e dos
grupos do Conselho.
No respeito pelo enquadramento jurídico estabelecido cabe, ainda, à
Presidência, assegurar as relações entre o Conselho e as restantes
Instituições da União e assumir a representação política da União no
exterior, designadamente em países terceiros.
O Estado-membro que detém a presidência deve exercê-la com
imparcialidade, com espírito comunitário e não procurar usá-la como uma
ocasião para protagonismos de cariz nacional que não se insiram no
processo comunitário. Fazê-lo, diminuiria a credibilidade desse Estado
perante os seus parceiros, o que seria contraproducente e afectaria a sua
capacidade negocial a longo prazo.
Foi esse enquadramento que caracterizou o desempenho por Portugal das
duas presidências da União Europeia que até hoje exerceu. Em 1992 fui
encarregado da organização da presidência em Portugal. Havia, por parte do
Governo, uma consciência muito clara de que Portugal, como um país
pequeno e que tinha entrado há relativamente pouco tempo na União
Europeia, tinha de assegurar uma presidência com uma organização
impecável para, assim, granjear e consolidar credibilidade no quadro da
União Europeia.
Julgo que foi um objectivo inteiramente conseguido e, tendo estado
presente no processo de integração europeia em várias qualidades, antes e
depois dessa presidência, julgo poder afirmar que a boa forma como foi
conduzida a presidência em geral, e naturalmente não apenas a organização
do que teve lugar em Portugal, contribuiu muito para reforçar a nossa
capacidade negocial no quadro da União Europeia.
Recordo, por outro lado, que a agenda da União Europeia, como aliás é
óbvio quando pensamos qual vai ser o principal tema da nossa próxima
presidência – o Tratado –, não é determinada pelo Estado que a exerce. Tem
de ser estabelecida pela vontade de todos os Estados-membros e o Estado
que exerce a presidência tem de dar continuidade a essa agenda,
preservando o ambiente consensual e respeitando um ritmo adequado ao
desenvolvimento da União.
Foi o que Portugal fez em 1992 e em 2000. Geriu, com rigor e eficácia, os
mandatos que lhe foram confiados, indo nalguns casos para além do que
seria expectável e avançando no tratamento de questões que estavam na
ordem do dia da União de forma a estabelecer mandatos claros para as
presidências que nos sucederam. Espero que o mandato que vamos agora
herdar seja tão claro como foram esses! A este propósito devo recordar, ao
contrário do que aqui foi dito várias vezes, sobre “o Tratado que foi
assinado”, que o Tratado ainda não foi assinado, não foi sequer negociado,
apenas temos o mandato para o negociar.
Matérias como o alargamento, a reforma das Instituições, o lançamento e
reforço da Política Europeia Comum de Segurança e Defesa e a revisão da
política económico-social geral da União, foram prioridades das nossas
presidências. Mas Portugal foi além disso, interpretando o que lhe pareceu
corresponder a um sentimento generalizado no seio da União, tomou em
mãos, no plano da política económica e social em 2000, o futuro da
integração europeia com iniciativas inovadoras que, pelo acolhimento que
mereceram, se revelaram acertadas e oportunas: a Estratégia de Lisboa, que
hoje marca a agenda da União Europeia.
Queria, por outro lado, sublinhar a expressão que tiveram nas nossas duas
presidências anteriores, e que vão ter nesta, as relações externas da União
Europeia. Para resumir já o que nesse campo de mais relevante fizemos nas
nossas duas presidências:
Foi durante a presidência portuguesa das Comunidades Europeias, em
1992, que teve lugar a primeira reunião Ministerial União Europeia –
Mercosul, em Guimarães. Foi também durante essa presidência que foi
assinado o Tratado do Espaço Económico Europeu, no qual Portugal, como
anterior país da EFTA, esteve particularmente empenhado.
Em 2000, por iniciativa de Portugal, teve lugar a primeira, e até hoje
julgo que única, reunião Ministerial União Europeia-Rússia-Estados
Unidos, que permitiu um debate de questões de interesse comum às três
entidades num ambiente extremamente positivo e sem tensões bilaterais.
Foi também sob a Presidência portuguesa de 2000, e por iniciativa
portuguesa, que teve lugar a primeira Cimeira União Europeia-Índia e a
primeira Cimeira União Europeia-África. E é também por nossa iniciativa
que, na próxima semana, terá lugar, aqui em Lisboa, a primeira Cimeira
União Europeia-Brasil, que vem conferir ao Brasil, como único dos BRIC
(Brasil, Rússia, Índia, China) que ainda não tinha uma parceria estratégica
com a União Europeia, a projecção que ele merece na Europa, o que
também se reflectirá na sua posição a nível regional e mundial. Vai ainda ter
lugar em Dezembro, como sabem, a segunda Cimeira União Europeia-
África. Se eu chamo a atenção para esta questão é porque creio que há uma
marca diversificante do relacionamento externo da União Europeia muito
acentuada após a adesão de Portugal e Espanha em 1986, marca que
certamente tem persistido pelo nosso lado.
Registando alguns dos principais pontos da nossa presidência em 92,
recordo que foi então assinado o Tratado de Maastricht, ou melhor, foi
efectuada a finalização jurídica do acordo obtido no Tratado de Maastricht
em 7 de Fevereiro. É verdade que depois foi necessário convocar um
Conselho extraordinário porque houve um “não” no referendo a esse
Tratado por parte da Dinamarca e, como aqui já foi assinalado, foi dada
mais tarde oportunidade aos dinamarqueses de “votarem bem”. Voltaram a
votar e dessa vez saiu o “voto correcto”. Foi a primeira vez que tal sucedeu,
repetindo-se depois com o Tratado de Nice por parte da Irlanda. Houve um
referendo negativo sobre o Tratado de Nice, que foi repetido, dando lugar a
um referendo positivo;
Foi também durante a nossa presidência que se intensificaram
negociações de alargamento – desde logo, com dois dos países da EFTA, a
Finlândia e a Noruega, que pediu a adesão mas não veio a aderir; se
consolidou o diálogo com a Turquia, Chipre e Malta; e, como se disse já, se
assinou o Tratado do Espaço Económico Europeu;
Também no plano do Mercado Interno foi uma presidência muito
marcada pela aprovação e o avanço das medidas previstas no Livro Branco,
indispensáveis para cumprir a calendarização da realização do Mercado
Interno, cuja meta, como se recordarão, era justamente o fim do ano de
1992, registando-se avanços em todas as áreas, sobretudo ao nível da
supressão de controlos fronteiriços e da harmonização técnica e legislativa,
tendo sido adoptadas na nossa presidência 90% das medidas necessárias à
realização do Mercado Único sem fronteiras internas.
Também durante a nossa presidência foi apresentado o que veio a ser
conhecido pelo pacote Delors II, ou seja, as perspectivas financeiras, como
se designou no último exercício para os anos 93-97. Iniciou-se o debate
sobre essas propostas e foi criado, nesse contexto, o fundo de coesão, cuja
importância e relevância não valerá a pena aqui agora salientar;
E, finalmente, concretizou-se um dos principais objectivos da Presidência
portuguesa, com a aprovação formal da reforma da PAC, que é,
normalmente, citada como o mais emblemático resultado da presidência
portuguesa de 92.
Em 2000 a Presidência teve outras características e foi, talvez, a mais
marcante das últimas presidências da União Europeia, pela importância que
a partir daí a Agenda de Lisboa tem tido na definição da acção da União
Europeia. Em 2000 a União tinha começado a mudar, embora nos
mantivéssemos ainda com quinze Estados-membros, mas o número de
reuniões a nível de Comités e de Conselhos já se tinha multiplicado
consideravelmente em relação a 1992. Tivemos cerca de duas mil reuniões
(sem contar as da ONU, quer em Nova Iorque, quer em Genebra, que
somaram cerca de mil). Na próxima Presidência, estamos a contar realizar
entre três mil e duzentas e três mil e seiscentas reuniões, ou seja, quase que
duplicou em sete anos, o número de reuniões em que vamos estar
envolvidos.
Julgo que é óbvio que a marca mais saliente da presidência portuguesa de
2000 foi a aprovação da Estratégia de Lisboa, no Conselho Europeu de
Março. Foi, em certa medida, uma revolução no método e no modelo de
funcionamento da União Europeia, desde logo, com a adopção do método
de coordenação aberta. Muito se tem falado sobre a Agenda de Lisboa,
sobre a Estratégia de Lisboa... é um êxito? Não é um êxito? Eu diria que a
Agenda de Lisboa é a resposta adequada aos desafios que se colocam ainda
hoje à Europa. Resposta antecipada até, apresentada antes desses desafios
se nos começarem a impor com maior acutilância. Mas a sua aplicação
enfrentou vários obstáculos, desde logo, o facto de ter havido uma inversão,
ou uma alteração no sentido negativo, da evolução da economia europeia.
Por outro lado, talvez fosse possível encontrar um método mais consistente
para aplicação das medidas da agenda europeia e talvez esta tenha sido um
pouco ambiciosa. Mas penso que desde então as diversas revisões da
Estratégia de Lisboa nos têm colocado num plano mais realista, ao mesmo
tempo que a realidade tem vindo a impô-la aos Estados-membros. Porque a
questão é que a aplicação da Agenda de Lisboa está mais nas mãos dos
Estados-membros do que das Instituições Europeias.
Falei já dos eventos no plano externo da nossa presidência de 2000.
Gostaria também de realçar que no plano da Política Europeia Comum de
Segurança e Defesa, instrumento essencial para o peso internacional da
União, houve iniciativas que deixaram uma marca visível, sendo a primeira
presidência a actuar neste âmbito. Deixámos um legado em duas áreas
essenciais: por um lado, na área que diz respeito aos aspectos militares de
gestão de crises – foi na nossa presidência que entrou em funcionamento a
estrutura institucional provisória – e, por outro, no desenvolvimento da
elaboração do documento sobre o “Objectivo Prioritário e objectivos em
matéria de capacidades colectivas”, cumprindo também alguns dos
primeiros passos nele identificados como metodologia a seguir.
Este documento é uma base sólida para os trabalhos que, desde então, a
União tem vindo a desenvolver e foram também, durante a nossa
presidência, elaborados documentos que permitiram estabelecer arranjos
sobre as modalidades de consulta entre a União Europeia e a NATO e a
União Europeia e países terceiros.
Avançando também na área dos aspectos civis de gestão das crises, a
presidência portuguesa criou o Comité para a Gestão Civil de Crises, que
teve a sua primeira reunião nesse período.
Finalmente foi também durante a presidência portuguesa que se abriu a
Conferência Intergovernamental (CIG) que veio depois dar origem ao
Tratado de Nice.
Não vou agora fazer o enunciado das prioridades da Presidência
portuguesa. Tal foi hoje feito em Lisboa, no local adequado, ou seja, na
Assembleia da República. Gostaria, contudo, de partilhar algumas ideias
pessoais sobre o conteúdo do Tratado, que surge como a principal
prioridade da presidência portuguesa:
Em primeiro lugar, o futuro das presidências rotativas. Não posso ainda
dizer como é que esta questão será tratada no Tratado, cuja negociação se
iniciará no próximo mês. Mas com a criação do Presidente Permanente do
Conselho Europeu e com o reforço do papel do Alto Representante, esbate-
se o papel político dos Estados-membros que assumem a Presidência. Os
quais, contudo, terão de continuar a desenvolver enormes esforços para o
exercício da Presidência, sem a correspondente projecção política
internacional.
A este propósito devo dizer que julgo que havia uma razão muito forte
para que o Alto Representante se chamasse Ministro dos Negócios
Estrangeiros, título que foi “deixado cair”. A minha experiência de muitos
anos de trabalho no quadro das Instituições Europeias e sobretudo de três
anos no Secretariado Geral do Conselho na área da PESC, leva-me a
concluir que é muito difícil conseguir que os Ministros dos Negócios
Estrangeiros europeus estejam presentes em reuniões a nível ministerial
com Estados terceiros. Se eu tivesse aqui a lista das reuniões que vamos ter
no próximo semestre, era imediatamente compreensível porquê. O número
de reuniões ultrapassa de longe a capacidade que os ministros têm para
nelas participar, a menos que deixem de ser ministros ou que sejam
ministros só para estarem presentes naquelas reuniões.
Eu assisti a uma reunião com o Mercosul, no Luxemburgo. Os Ministros
dos Negócios Estrangeiros vieram da América Latina, viajaram até ao
Luxemburgo, chegaram ao Luxemburgo às cinco da tarde, pediu-se-lhes
para esperarem porque nós estávamos reunidos a discutir, julgo que a
questão do nome da Antiga República Jugoslava da Macedónia, discussão
que normalmente se prolongava por muito tempo. Às sete e meia da tarde
os ministros latino-americanos foram finalmente chamados à sala e foi-lhes
pedido que fizessem um só discurso em nome do Mercosul, muito rápido,
para que se pudesse passar ao jantar de trabalho. No início do jantar estava
presente o Ministro de Itália, que presidia, e os Ministros de Portugal e de
Espanha. No fim do jantar só estavam dois ministros. O de Espanha teve de
sair mais cedo porque tinha de apanhar o avião e o jantar começou muito
tarde. Alguns Estados-membros estavam representados por secretários de
Embaixada. Isto já levou recentemente a que países terceiros, ou outras
organizações, tenham cancelado reuniões ministeriais com a União
Europeia, o que não é bom para a União. Leva muitas vezes a situações de
grande melindre e embaraço. A União Europeia, que promove o diálogo
político para se projectar no exterior, acaba por começar as reuniões numa
situação de demandeur... de quem está a pedir desculpa, uma situação de
inferioridade por não estar representada ao nível adequado, o que não é
correcto para os países terceiros ou para as outras organizações e é negativo
para os interesses europeus. Era essa uma das razões pelas quais em
Bruxelas se pensou que se tivéssemos um Alto Representante com o título e
funções de Ministro dos Negócios Estrangeiros da União Europeia este
problema seria atenuado.
Penso, também, como foi aqui muito bem focado, quer na intervenção do
Professor Simon Hix, quer do Professor Weiler, que no Conselho Europeu,
nestes últimos meses, no debate em torno da questão da Constituição
Europeia e agora do Tratado Reformador, se libertaram um pouco os
“demónios da luta pelo poder” que dominaram a Europa em todos os
séculos anteriores ao início do processo de integração europeia a seguir à II
Guerra Mundial.
Assisti a muitos Conselhos Europeus, alguns muito controversos, onde
houve polémicas muito acesas – por exemplo, quando em Estrasburgo a
então RFA pediu uma declaração em favor da unificação da Alemanha –,
mas não me recordo de nenhum em que a luta pelo poder tenha estado tão
ostensivamente aberta e tenha sido travada de forma tão pouco contida
como nestes últimos tempos.
É verdade que, como me dizia o meu colega francês às três da manhã
num Conselho Europeu em Bruxelas que nunca mais acabava: “Sempre é
melhor do que as trincheiras!” Mesmo assim é manifesto que estamos,
desde Nice, e com mais acutilância recentemente, a reabrir a questão do
equilíbrio de poder no seio da União Europeia.
A chave do incomparável êxito do processo de integração europeia
residiu, por um lado, no direito de iniciativa da Comissão e no papel que tal
lhe confere no processo de decisão, por as suas propostas só poderem ser
alteradas por unanimidade, e, por outro, no voto qualificado baseado numa
ponderação não explícita, que equilibrava o princípio da igualdade entre os
Estados e o peso real e relativo de cada um.
Penso que uma solução baseada nesse método, utilizado até ao Tratado de
Nice, poderia ser provavelmente mais equitativo e seria para todos nós mais
fácil de lidar com ele. De qualquer maneira, espero que o mandato saído
deste Conselho Europeu e o êxito da Conferência Intergovernamental que a
presidência portuguesa vai convocar, nos permita pôr de lado o escolho
político-institucional que o Tratado Constitucional tem constituído; escolho
esse que, julgo ficou provado aqui, é muito mais político do que
institucional, mais mediático do que real.
Como referiu o Professor Hix, o Tratado que permitiu dar um maior salto
no sentido da integração e da supranacionalidade foi o Acto Único, até hoje
o menos falado, o menos mediático, o mais fácil de conseguir e o mais
relevante. Porquê? Porque não partiu de cima para baixo, não foram os
governantes que disseram “vamos reforçar as Instituições, vamos chamar
Constituição ao Tratado, vamos dizer que somos os fundadores da Europa”,
foi a necessidade de realizar o Mercado Único que levou às alterações
institucionais necessárias no sentido da integração e no sentido da
supranacionalidade.
Agora, nesta crise de crença no processo de integração europeia, e para
contrariar alguns factores de diluição que derivam de todo este processo,
seria prudente voltar aos princípios básicos da integração europeia: reforçar
a iniciativa da Comissão; reforçar o método comunitário; acelerar a
aplicação da Estratégia de Lisboa com métodos mais eficazes e mais
comunitários; dotar a União das políticas necessárias para aproveitar a
globalização e dos instrumentos adequados para fazer face aos novos
desafios com o da energia e das alterações climatéricas e, sobretudo,
completar o Mercado Único.
Muitas vezes diz-se que a União Europeia não pode ser só o Mercado
Único, que não é isso que desejamos para a União Europeia. Mas o
problema é que o Mercado Único, que não está sequer concluído, é o
verdadeiro cimento da União. É ele que poderá fazer convergir os interesses
dos Estados-membros e permitirá dar os passos que todos nós desejamos
para melhorar as condições de concorrência da União Europeia a nível
mundial e preservar o estatuto económico e o modelo social de que todos
temos vindo a usufruir ao longo destes últimos 60 anos, sem dúvida os
melhores para todos os povos da Europa. Só assim poderemos transmitir
aos nossos filhos aquilo que os nossos pais nos deram: a esperança de que
poderão ter uma vida melhor que a nossa!
20 Intervenção na Conferencia A Europa e os Desafios do Século XXI, Fundação Gulbenkian,
27/06/2007.
Perspectivas Financeiras 2007-2013:
O Processo Negocial21
Desde a assinatura do primeiro Acordo Interinstitucional sobre as
Perspectivas Financeiras 1988-1992 (Pacote Delors I) as negociações dos
quadros financeiros plurianuais têm sido sempre cruciais para a União
Europeia (UE) e as que mais controvérsia suscitam. Está em causa a
definição dos meios financeiros que a União coloca ao seu dispor para
executar as políticas que ela própria adopta.
As posições assumidas pelos diversos Estados-membros e o resultado
final das negociações, constituem, assim, um barómetro, facilmente
perceptível pela opinião pública, do real empenho de cada um no processo
de integração europeu e é visto como o mais forte sintoma da «saúde» da
União. É de facto aí que mais abertamente se manifesta o equilíbrio entre os
egoísmos nacionais e o sentido do interesse comum e também a dimensão
da ambição da Comissão enquanto garante desse interesse comum.
O Acordo Interinstitucional de 1988 veio pôr termo à incerteza e às
querelas intermináveis do exercício anual de aprovação do Orçamento,
criou um quadro de estabilidade financeira plurianual que muito contribuiu
para o êxito das políticas comunitárias na década de 90 e concorreu para
inverter o clima de «europessimismo» que marcou o final da década de 70 e
a primeira metade dos anos 80. Portugal, sobretudo através dos fundos
estruturais, foi dos países mais beneficiados. As Perspectivas Financeiras
constituem uma das mais valiosas heranças da época Delors. O facto de não
estarem ainda institucionalizadas nos Tratados aumenta, contudo, a
complexidade do processo negocial, uma vez que existe a ameaça de
regressar aos orçamentos anuais caso não haja acordo entre as instituições.
É à Comissão que compete apresentar ao Conselho a proposta do quadro
plurianual das Perspectivas Financeiras. Terminada a negociação ao nível
do Conselho, segue-se a negociação do Acordo Interinstitucional entre o
Parlamento Europeu, a Comissão e o Conselho, que garante estabilidade na
aprovação dos orçamentos comunitários por um período de sete anos. O
Parlamento Europeu (PE) e o Conselho constituem os dois ramos da
autoridade orçamental, pelo que a posição do PE assume grande peso nestas
negociações.
Contudo, o exercício das Perspectivas Financeiras 2007-2013 foi a priori
condicionado por factores externos ao que deveria ter sido a sua lógica
própria. Desde logo, há que ter presente que as verbas para a Política
Agrícola Comum (PAC) foram fixadas pelos Quinze, em Outubro de 2002,
não sendo possível pô-las em causa sem inviabilizar a execução daquela
política comum que, entretanto, tinha sido objecto de uma reforma profunda
em Junho de 2003.
A negociação foi também fortemente condicionada – ainda antes da
apresentação da proposta da Comissão – pela carta assinada por alguns
países contribuintes líquidos (Alemanha, Suécia, Áustria, Países Baixos,
Reino Unido e França) em Dezembro de 2003, dirigida ao então Presidente
da Comissão Europeia, Romano Prodi – conhecida pela «Carta dos Seis» –
que pretendia limitar as dotações do orçamento comunitário a 1% do
Rendimento Nacional Bruto (RNB) da UE 25.22
Partindo correctamente do princípio de que as Perspectivas Financeiras
devem reflectir um projecto político, a Comissão entendeu que o quadro
financeiro plurianual 2007-2013 deveria ser desenhado de forma a espelhar
os grandes objectivos que a União tem vindo a estabelecer nos últimos
anos.
A Comissão elegeu a Estratégia de Lisboa como o projecto político
inovador que deveria moldar o orçamento comunitário no período 2007-
2013. A Estratégia de Lisboa assumiu um lugar de destaque na agenda da
União Europeia desde a sua adopção. Ao defini-la, em Março de 2000, o
Conselho Europeu visava dar resposta, à luz dos valores europeus, a uma
nova realidade: a sociedade baseada no conhecimento e na inovação.
Para além do estabelecimento de um objectivo estratégico para a UE, a
Estratégia de Lisboa integrava um horizonte temporal para a sua
concretização (2010), um novo método – o chamado «método aberto de
coordenação»23, medidas concretas em áreas específicas (sociedade da
informação, investigação e desenvolvimento, inovação, empresas, reformas
económicas) e calendários precisos para a sua execução.
Desde então, a Estratégia de Lisboa foi sendo traduzida em actos
regulamentares, programas, planos de acção e recomendações – que
abrangem um vasto leque de domínios – de acordo com as decisões e
calendários estabelecidos pelos sucessivos Conselhos Europeus da
Primavera.
A relevância assumida pela Agenda de Lisboa torna compreensível que a
Comissão a tenha privilegiado ao apresentar as Perspectivas Financeiras em
Fevereiro de 2004. A Comissão assentou a sua comunicação nos objectivos
de crescimento económico e de competitividade e propôs uma alteração da
estrutura do orçamento comunitário, com a criação de uma nova rubrica
orçamental designada «crescimento sustentável». Esta abordagem foi
acompanhada de uma proposta do reforço das dotações a atribuir a algumas
áreas, como, por exemplo, as actividades de investigação e
desenvolvimento, que assumiam uma clara prioridade.
A estrutura do orçamento comunitário sofreu, ao longo dos anos, alguns
ajustamentos, mas as principais rubricas mantiveram-se. Em 2006, a
agricultura (rubrica 1) detinha a maior fatia com 45,9%, secundada pelas
acções estruturais (rubrica 2) com um peso de 32%; seguiam-se as políticas
internas (rubrica 3) e as acções externas (rubrica 4) com 7,3% e 5,8%,
respectivamente.
Na proposta da Comissão, a nova rubrica 1, «crescimento sustentável»,
surgiu com o maior peso no conjunto das despesas, representando cerca de
46% dos recursos orçamentais, integrando, por um lado a antiga rubrica
«acções estruturais» e grande parte das «políticas internas»; o
financiamento da PAC, que antes era assegurado pela rubrica «agricultura»,
passou para uma nova rubrica – «gestão sustentável e protecção dos
recursos naturais», e correspondia a 39,5% do total. A Comissão elegeu
ainda como prioridades, para o período 2007-2013, a cidadania europeia e a
acção externa da União, embora com uma expressão financeira menor,
2,4% e 9%, respectivamente.24
A proposta da Comissão incluía, na rubrica «crescimento sustentável», as
verbas destinadas à política de coesão, reconhecendo-se assim o contributo
daquela política para os objectivos de Lisboa. Tal conduziu, no entanto, a
que as discussões no Conselho se desenrolassem em torno de uma falsa
questão: o apoio a «políticas de futuro», como a investigação e
desenvolvimento, a competitividade e a inovação, versus «políticas do
passado» como a coesão económica e social e a PAC.
Muitas das posições assumidas pelos Estados-membros neste debate
foram determinadas, mais pela sua situação enquanto beneficiários directos
das políticas financiadas pelo orçamento comunitário (numa lógica de juste
retour), do que propriamente por uma visão comunitária inspirada no
interesse colectivo.
A Comissão, ao apresentar a sua proposta, apontava para valores
superiores aos da «Carta dos Seis». Propunha que o quadro financeiro
totalizasse, de 2007 a 2013, 929,7 mil milhões de euros (em dotações para
pagamentos) ou seja, o correspondente a um limite máximo de 1,24% do
RNB da UE 25.25 Não deixa de ser significativo que a Comissão, no texto
da sua proposta, reagisse à «Carta dos Seis», o que apesar de singular revela
bem o peso real daquele grupo de países.
Com efeito, no ponto 11.i. da comunicação sobre as Perspectivas
Financeiras, a Comissão afirmava: «Um tecto de aproximadamente 1% do
RNB não seria suficiente para satisfazer os compromissos assumidos pelo
Conselho Europeu em matéria de pagamentos agrícolas, ameaçaria a
integração progressiva da política de coesão nos dez novos Estados-
membros e comprometeria os níveis existentes nas outras políticas, para não
falar da implementação das novas prioridades.» E concluía que o limiar
proposto «é um compromisso entre as necessidades e a estabilidade
orçamental».26
O alargamento da União a dez novos Estados-membros, com níveis de
desenvolvimento inferiores à média dos Quinze, constituiria, por si só,
razão suficiente para um reforço das dotações orçamentais da UE.
A adesão, em 2004, dos novos Estados representou um aumento de 20%
da população e de 5% do Produto Interno Bruto (PIB) da União Europeia.
Com a conclusão do quinto alargamento – adesão da Roménia e da
Bulgária, em Janeiro de 2007 – o aumento em relação aos Quinze é de 6,4%
do PIB, e de 27% da população, cerca de mais 100 milhões de habitantes. A
UE passa a ter uma população total de 493 milhões de habitantes.
Os últimos alargamentos conduziram a um acentuar dos desníveis de
desenvolvimento económico entre os Estados-membros e a um agravar das
assimetrias regionais.
As chamadas regiões do Objectivo 1, ou regiões da convergência, que são
as regiões menos desenvolvidas, cujo PIB per capita, em Paridades de
Poder de Compra (PPC), é inferior a 75% da média comunitária, tiveram,
com o alargamento de 2004, um aumento da população de 83 para 123
milhões de habitantes; com a adesão da Bulgária e da Roménia a população
das regiões menos desenvolvidas passa para 153 milhões de habitantes, ou
seja, quase que duplica em relação à situação na União a Quinze.
Para se ter uma noção da dimensão do orçamento da União Europeia,
cabe aqui referir que a soma dos orçamentos nacionais dos 25 Estados-
membros correspondia a 48,1% do PIB da UE, em 2004. A percentagem
mais elevada verificava-se na Suécia, 57,2%, e a mais baixa na Irlanda,
34,3%.
Outra comparação elucidativa da reduzida expressão das verbas em causa
pode ser feita com a meta de 0,7% do RNB que foi fixada em Monterrey
para a ajuda ao desenvolvimento.
É um facto que alguns Estados-membros se defrontam hoje em dia com
problemas de desequilíbrio orçamental que os levam a uma atitude
restritiva. No entanto, a dimensão do orçamento da UE é uma questão de
fundo, que não se pode desligar da projecção que se pretende dar ao
projecto europeu, e é nessa perspectiva que deve ser devidamente
ponderada.
Os últimos anos da construção europeia foram marcados por uma
crescente ambição política e económica, reflectida em importantes
acontecimentos, como a introdução do euro, a Política Externa e de
Segurança Comum e a Política Europeia de Segurança e de Defesa, o
alargamento a novos Estados-membros, a assinatura do Tratado
Constitucional, e também, pela definição de exigentes projectos a médio
prazo, de que as estratégias de Lisboa e de desenvolvimento sustentável são
exemplo.
Paradoxalmente, o orçamento comunitário tem vindo a percorrer um
caminho inverso, tendendo a reduzir-se cada vez que se negoceia um novo
quadro financeiro.
As duas condicionantes atrás apontadas, a fixação da verba da PAC e a
«Carta dos Seis», bem como a lógica de juste retour que alguns dos países
mais ricos introduziram no processo, contaminaram de modo muito
negativo todo o processo negocial. Ao longo das negociações o «Grupo dos
Seis» manteve uma pressão constante no sentido da redução do orçamento.
Os países contribuintes líquidos elegeram como alvo principal para a
contracção da despesa a Política de Coesão.
Numa manobra de divisão dos países destinatários da Política de Coesão,
procuraram afirmar a tese de que os financiamentos destinados a promover
a convergência real deveriam ser canalizados apenas para os países menos
prósperos, preferencialmente para os novos Estados-membros, e não para as
regiões menos desenvolvidas, como está estipulado no Tratado. Em termos
meramente financeiros, esta abordagem permitia a «poupança» de verbas
destinadas a regiões menos desenvolvidas, pertencentes a Estados-membros
com níveis de desenvolvimento mais elevado. Esta abordagem permitia
uma redução do orçamento sem hostilizar os novos Estados-membros e,
eventualmente, reforçar as rubricas orçamentais que mais interessavam
àquele conjunto de Estados proponentes.
Portugal foi um dos Estados-membros que apoiou a proposta da
Comissão enquanto base de trabalho e expressão financeira mínima dos
compromissos políticos assumidos. Ao mesmo tempo, recusou
liminarmente a posição defendida na «Carta dos Seis», por não ser ela, mas
a proposta da Comissão, que devia constituir o termo de referência da
negociação, e porque afectaria a Política de Coesão nos seus fundamentos e
resultados, e pôs em causa, tacticamente, o acordo sobre a PAC de 2002,
recordando que ele tinha sido feito no pressuposto de um tecto orçamental
de 1,24% do RNB. Defendemos a globalidade da negociação, ou seja, que
num quadro restritivo todas as despesas deveriam ser reequacionadas. Caso
o tecto orçamental fosse revisto em baixa, a verba destinada à agricultura
deveria acompanhar esse movimento. Nessa mesma linha recusámos
sempre liminarmente que a política de coesão constituísse a «variável de
ajustamento» das Perspectivas Financeiras.
A defesa da política de coesão feita por Portugal assentou na convicção
de que os seus fundamentos e os seus objectivos têm plena justificação no
papel desempenhado no processo de construção europeia. Portugal, pese
embora a desaceleração dos últimos anos, é um bom exemplo do modo
como os instrumentos de coesão têm contribuído para o reforço da
convergência real relativamente à média da UE. Em 20 anos de adesão,
reduzimos em cerca de 18% as nossas disparidades de desenvolvimento
económico. Para tanto contribuiu a capacidade de absorção que
demonstrámos ter dos apoios recebidos da UE.
O forte antagonismo existente entre os Estados-membros que assumiam
uma visão predominantemente financeira do orçamento e os que defendiam
a suficiência de meios para a realização das políticas comunitárias, levou a
que as negociações fossem intensas, se não mesmo tensas, complexas e se
prolongassem por quase dois anos.
A «Carta dos Seis» constituiu, por parte dos países signatários mais
interessados no processo de integração europeia, um grave erro político,
como não deixei de assinalar aos então meus colegas da Alemanha, da
França e dos Países Baixos. Equivaleu a desvalorizar o projecto político de
que esses Estados-membros sempre foram os mais empenhados promotores
e a dar livre curso à alternativa de uma Europa que constituísse um mero
espaço de comércio livre.
Por outro lado, a lógica do juste retour, anátema ao tempo de Delors, foi
um factor prevalecente no decurso das negociações. Trata-se da perspectiva
mais nociva ao processo comunitário. Desde logo por ser uma visão
distorcida da realidade: os países mais ricos, com particular destaque para a
Alemanha, são, de longe, como é regularmente comprovado por relatórios
independentes, os principais beneficiários da integração europeia, mesmo
do ponto de vista meramente economicista. Desde logo auferem, das
próprias verbas da coesão, um retorno imediato que, no caso português,
ronda os 35%, pelas aquisições em equipamento que os países recipientes
efectuam nos seus mercados. E isto para não falar da vantagem maior que a
integração trouxe a todos os europeus: a paz, a estabilidade, a prosperidade,
salientando bem o contraste entre a primeira e a segunda metade do século
XX. Só uma preocupante falta de visão política permitirá qualquer dúvida
sobre qual desses períodos teve um custo mais elevado.
Os Países Baixos na sua Presidência, no segundo semestre de 2004,
utilizaram uma nova metodologia de condução dos trabalhos designada
building block approach, que consistia na elaboração de cenários
financeiros alternativos à proposta da Comissão. Esta metodologia acabou
por se revelar contrária à geração de consensos, na medida em que conduzia
a que os Estados-membros se acantonassem em tantos pequenos grupos
quantas as preferências ou interesses em matérias de financiamentos das
diversas políticas. Em contrapartida, a Presidência luxemburguesa fez um
meritório esforço para procurar compromissos que, por um lado,
atendessem às preocupações e aspirações dos diversos Estados-membros e,
por outro, salvaguardassem o projecto e o espírito comunitário. Contudo, as
negociações decorreram mais entre as Presidências e os diversos Estados-
membros, do que entre estes e a Comissão, pelo que as sucessivas propostas
que iam sendo apresentadas se aproximavam mais das condicionantes
externas à proposta da Comissão, do que a esta, tornando particularmente
difíceis as negociações para os países como Portugal, que nesta se reviam.
No início de 2005, parecia estar a vencer a convicção de que a coesão
deveria ser a «variável de ajustamento» do processo e que as verbas de
coesão deveriam ser canalizadas preferencialmente para os novos Estados-
membros em detrimento dos até então designados países da coesão
(Espanha, Grécia e Portugal).
Foi nesse contexto que iniciei a minha participação no processo negocial,
quando assumi funções como Secretário de Estado dos Assuntos Europeus.
Prevalecia alguma preocupação de que se verificasse uma redução dos
fundos comunitários destinados a Portugal, que não correspondesse à
posição que lhe devia caber em função do seu grau de desenvolvimento,
face aos países do alargamento. Estimava-se que dificilmente
conseguíssemos chegar a uma plataforma superior a 19 mil milhões de
euros, o que correspondia a uma redução de 25% face à Agenda 2000. E,
efectivamente, a primeira proposta da Presidência luxemburguesa
(negotiating box, como se designava) apontava para um montante na ordem
dos 17 mil milhões de euros.
Não nos resignámos contudo a essa situação, que distorcia profundamente
os critérios a que devem obedecer as políticas comunitárias, ao basear-se
numa divisão artificial e política entre Estados-membros novos e velhos, em
vez de se basear em dados objectivos e atender à situação real de cada país
e região. Refutámos ainda o conceito de que a coesão era uma política do
passado, recordando que era justamente a política comunitária que tinha
alcançado maior êxito. Afirmámos que, pelo contrário, era uma política de
futuro, fundamental para criar homogeneidade no mercado europeu,
contribuindo assim para aumentar a competitividade da Europa, sobretudo
face ao acelerar da globalização e à emergência das novas potências
económicas asiáticas, ao reduzir a dependência do exterior da economia
europeia.
A última proposta de compromisso apresentada pela Presidência
luxemburguesa – limite máximo de dotações orçamentais para autorizações
correspondente a 1,06% do RN B da União – embora se situassem abaixo
da proposta da Comissão, era menos penalizadora para a Política de
Coesão, pois estendia os cortes a todas as rubricas, sendo a diminuição nas
despesas da Coesão menor do que a pretendida pelos signatários da «Carta
dos Seis».
Em resultado da nossa posição negocial, os 17 mil milhões de euros
inicialmente avançados pela Presidência luxemburguesa para reforçar a
coesão em Portugal, foram aumentando sucessivamente, primeiro para 19,2
mil milhões, depois para 20,5 mil milhões e, já no Conselho Europeu de
Junho, para 21,3 mil milhões de euros.
O compromisso de Junho foi considerado por Portugal globalmente
satisfatório e equilibrado, quer na perspectiva dos princípios que
defendíamos, quer quanto ao resultado específico para Portugal.
Relativamente às receitas, o principal elemento do compromisso do
Luxemburgo prendia-se com o «cheque» britânico, ou rebate.(6)27 Embora
previsse a sua manutenção, pela primeira vez em 21 anos era proposta uma
alteração da fórmula de cálculo do rebate de forma a evitar o seu
crescimento exponencial. Há que ter presente que a compensação ao Reino
Unido, decidida em Fontainebleau, em 1984, faz parte da Decisão sobre
Recursos Próprios, que só pode ser alterada por unanimidade.
Não obstante ter merecido o apoio de uma maioria de 20 Estados-
membros, o compromisso do Luxemburgo foi recusado, em primeira linha,
pelo Reino Unido que, insatisfeito com a redução da sua compensação,
utilizou como argumento a necessidade de um orçamento mais «moderno».
Opuseram-se àquela proposta de compromisso outros países como os
Países Baixos e a Suécia, por razões ligadas à sua contribuição líquida, a
Finlândia, insatisfeita com a pouca transparência da solução em matéria de
receitas, e a Espanha, que considerava excessiva a quebra no seu saldo
líquido.
De salientar que dois dos signatários da «Carta dos Seis», França e
Alemanha, se juntaram aos apoiantes da Presidência, assim como a
Dinamarca que sempre se tinha mostrado próxima daquele grupo de países.
O momento mais tenso da negociação foi precisamente o Conselho
Europeu de Junho de 2005, onde, de acordo com o calendário previsto, a
negociação no Conselho devia ser concluída. Apesar dos esforços
desenvolvidos pela Presidência luxemburguesa, e do empenho demonstrado
pela maioria dos Estados-membros, não foi possível chegar a acordo. Este
facto veio agravar o ambiente de crise, instalado a partir do «não» ao
Tratado Constitucional dos referendos francês e holandês, realizados em
Maio de 2005.
O Primeiro-Ministro luxemburguês, Jean-Claude Junker, não hesitou
mesmo em afirmar que a Europa se encontrava numa «crise profunda». De
facto, um ano após o maior alargamento da sua História, que assinalava a
sua força e a afirmação dos princípios que lhe davam forma, a Europa
parecia estar a perder o seu atractivo e os seus líderes a não compreender
que a chave do êxito do processo de integração europeia, que deu à Europa
o maior período de paz e prosperidade que alguma vez conheceu, e que
assume maior relevância com o acelerar da globalização e a incerteza
causada pelas alterações geoestratégicas em curso, é a valorização do
interesse comum face aos interesses nacionais e como garante destes.
Para fazer frente à pressão exercida pelo grupo signatário da «Carta dos
Seis», cujas posições assumiam um peso preponderante no Conselho, e
sobretudo para evitar que a Política de Coesão fosse o alvo preferencial
daquela abordagem restritiva, Portugal tomou a iniciativa, ainda em 2004,
de organizar reuniões com um grupo de países que se pretendia o mais
alargado possível.
O chamado «Grupo dos Amigos da Coesão» reuniu inicialmente Portugal,
Espanha e Grécia, sendo depois alargado aos dez novos Estados-membros e
a outros quatro países – Bélgica, Finlândia, Irlanda e Itália – que
participaram como observadores. No segundo semestre de 2005, o
Luxemburgo, já liberto das funções da Presidência, associou-se também a
este grupo.
A perspectiva negocial dos novos Estados-membros estava, no início,
longe de coincidir com a defendida por Portugal, Espanha e Grécia. Com
efeito, a fórmula de repartição dos fundos que era proposta pela Comissão
assegurava-lhes um resultado que não era posto em causa mesmo que o
montante global ficasse limitado a 1% do RNB.
De acordo com as regras de repartição, aqueles Estados, devido aos seus
menores níveis de desenvolvimento, tinham acesso a verbas muito elevadas,
que eram em seguida «niveladas» por uma outra regra (capping), que
limitava as transferências de fundos comunitários a 4% do PIB de cada
Estado-membro. Esta circunstância fazia com que os novos Estados-
membros vissem o seu nível de apoios per capita diminuir, face aos de
regiões dos antigos Estados-membros, situação que consideravam injusta.
Como o PIB destes novos Estados tem uma expressão muito pequena no
conjunto da União, os referidos 4% de transferências não eram afectados
mesmo que a proposta da Comissão sofresse cortes. De uma forma
simplificada, digamos que um orçamento limitado a 1% do RNB da União
era suficiente para assegurar a cada um dos novos Estados o que já lhe era
dado pela proposta da Comissão.
Os efeitos dos cortes na rubrica da coesão incidiam, assim,
exclusivamente nas regiões menos desenvolvidas dos Quinze, o que vinha
agravar ainda mais a situação destas regiões, que tinham visto o seu nível
de desenvolvimento relativo «subir» pela adesão de novos Estados, e
prejudicava gravemente Portugal.
Não foi contudo fácil fazer ver aos novos Estados-membros, sobretudo
aos do Leste, a vantagem de estarmos unidos na preservação de uma
política de coesão baseada em critérios objectivos e não numa divisão
artificial entre «novos» e «velhos» membros. Juntamente com a Espanha e
a Grécia foi necessária persistência para lhes demonstrar o interesse comum
em preservar um montante adequado do bolo global da coesão, antes de
debater a sua distribuição, bem como em recordar-lhes que no final do
período financeiro em negociação se iriam encontrar numa fase próxima
daquela em que então estávamos.
O momento de viragem no sentido de uma maior unidade do Grupo dos
«Amigos da Coesão» deu-se após o Conselho Europeu de Junho. A última
proposta de compromisso apresentada pelo Luxemburgo previa cortes nos
montantes destinados aos novos Estados-membros, através da alteração da
regra do capping, que deixava de estar fixa em 4% do PIB, passando a
diminuir em função inversa do nível de desenvolvimento dos Estados-
membros.
Esta alteração fez com que os novos Estados-membros fossem também
afectados nas verbas que inicialmente lhes eram destinadas, pelo que no
«Grupo dos Amigos da Coesão» se aliaram de forma inequívoca a Portugal,
Espanha e Grécia no sentido de consolidar o apoio ao compromisso do
Luxemburgo. O grupo contava nesta fase das negociações com 18
membros.
O impasse gerado no Conselho Europeu de Junho só começou a ser
ultrapassado na Cimeira Informal de Hampton Court, realizada a 27 de
Outubro de 2005. Apesar da sua natureza informal, Hampton Court
contribuiu para distender o ambiente de crispação que se tinha instalado em
Junho, e abriu caminho para o acordo a que se chegou em Dezembro desse
ano.
A Presidência britânica pretendeu suscitar uma discussão estratégica com
vista a uma redefinição de prioridades da União, que permitisse enfrentar os
desafios colocados pela globalização e pelo envelhecimento da população.
Verificou-se consenso para conferir um novo impulso à agenda europeia, e
foram seleccionados como temas prioritários: a investigação e
desenvolvimento, as universidades, os desafios demográficos, a energia, as
migrações e a segurança.
O tema Perspectivas Financeiras, apesar de não constar da «agenda» de
Hampton Court, não deixou de estar presente. Vários Estados-membros
reiteraram a necessidade de se chegar rapidamente a acordo, conscientes de
que a ausência de um consenso em Dezembro, para além das dificuldades
que criaria ao nível da aprovação e da gestão dos diversos programas
comunitários, abriria uma nova crise na Europa, susceptível de minar, quer
a sua credibilidade política, quer a confiança dos agentes económicos.
O Presidente da Comissão Europeia dirigiu, naquela ocasião, uma carta
aos membros do Conselho Europeu e ao Presidente do Parlamento Europeu,
contendo um conjunto de «propostas» que visavam o desbloquear da
situação de completo imobilismo em que as negociações das Perspectivas
Financeiras se encontravam. Essas propostas ou sugestões iam no sentido
da «modernização» do orçamento, dando prioridade à Estratégia de Lisboa
e resposta às consequências sociais da globalização. Entre elas encontrava-
se a de 60% das verbas da política de coesão serem destinadas a áreas
claramente identificadas com a Estratégia de Lisboa, o que na gíria
comunitária se designou por earmarking.
A afectação de 60% das verbas do Quadro de Referência Estratégico
Nacional (QREN)28 aos objectivos da Estratégia de Lisboa não se revelou
problemática para Portugal. Verificou-se que para o QCA III (2000-2006)29
29, então em execução, essa condição já era preenchida.
O earmarking veio a constituir um elemento negocial chave para o fecho
das negociações em Dezembro. Esta sugestão permitia, por um lado,
acomodar de alguma forma as pretensões dos Estados-membros que
defendiam que o orçamento comunitário deveria ser maioritariamente
dedicado às «políticas de futuro» e, por outro, ir ao encontro dos
beneficiários directos da coesão, e também do «Grupo dos Amigos da
Coesão», ao manter as dotações para a aquela política a um nível que não se
afastava drasticamente da proposta de compromisso de Junho.
Não obstante, os Estados-membros que tinham impedido o acordo em
Junho, principalmente o Reino Unido, continuaram a exigir uma alteração
profunda da estrutura do orçamento de forma a conferir maior relevância
financeira às políticas directamente relacionadas com a Estratégia de
Lisboa, o que, conjugado com uma redução global do orçamento,
significava novamente um corte nas verbas destinadas à coesão económica
e social.
Para além do Reino Unido, as objecções continuaram, sobretudo por parte
dos Países Baixos, assumindo a Suécia e a Áustria posições mais
moderadas. Os debates no Conselho e a ronda de conversações que
precederam o Conselho Europeu de Dezembro de 2005, revelaram que a
maioria dos Estados-membros não estava disposta a abdicar das suas
posições, e que o propósito da Presidência de começar a discussão a partir
do zero era contrário aos interesses da União.
Durante o processo negocial assistiu-se a um gradual «desaparecimento»
da proposta da Comissão, que deixou de constituir o referencial das
negociações, para passarem as sucessivas Presidências a assumir a liderança
da negociação, circunstância particularmente visível na Presidência
britânica ao pretender reabrir o debate com base em premissas totalmente
novas. A sua intenção era lançar uma reflexão aprofundada sobre as
Perspectivas Financeiras, quer em termos de estrutura das despesas – com
as implicações inerentes nas políticas que lhes estão associadas – quer em
termos do sistema de financiamento do orçamento. Tal significava ignorar
completamente a proposta da Comissão que se encontrava na mesa.
A condução das negociações desta forma não era aceitável, porque punha
em causa o processo de decisão previsto no Tratado. Não cabe às
Presidências inflectir a Agenda da União, pelo que a Comissão deveria ser
apoiada de forma a assumir o seu papel como guardiã dos Tratados e
constituir uma força condutora da União.
Um ano e meio depois de a Comissão ter apresentado a sua comunicação,
uma mudança radical do contexto negocial só seria admissível se partisse de
uma nova proposta da Comissão. O debate não podia ser reaberto.
O compromisso do Luxemburgo devia constituir a referência para o
prosseguimento das negociações e não ser posto em causa na sua
substância. A vertente despesa estava consolidada e garantia um limiar
mínimo de credibilidade para a intervenção da UE, em particular no
respeitante à Política de Coesão, cujas verbas deviam ser mantidas, bem
como a sua repartição indicativa por Estado-membro.
Manifestámos disponibilidade para encetar uma reflexão sobre a estrutura
das despesas e o sistema de financiamento da União. Mas visto que se
tratava de um debate necessariamente moroso, essa reflexão não devia ser
feita em relação às Perspectivas Financeiras 2007-2013, sob pena de
paralisar a negociação e inviabilizar a sua conclusão atempada.
A inexistência de acordo sobre as Perspectivas Financeiras afectaria a
eficácia da despesa pública comunitária, visto que impediria a programação
dos investimentos com financiamento comunitário ao nível da União e dos
Estados-membros. Seria a pior forma de gastar o dinheiro dos contribuintes.
Por outro lado, a ausência de um acordo em tempo útil seria mais um
factor de perturbação a acrescer à crise que a UE atravessava, pelo que era
imprescindível chegar a acordo em 2005.
A Presidência britânica encontrava-se cada vez mais isolada, pelo que
abandonou as suas teses de reforma do orçamento e apresentou, já em
Dezembro, as primeiras propostas de compromisso quantificadas.
A proposta de compromisso divulgada na véspera do Conselho Europeu
mostrou que a Presidência, em vez de uma abordagem de reforma global,
optara por contemplar as diversas exigências nacionais com soluções ad
hoc, tanto do lado das despesas como das receitas.
O acordo final a que se chegou, a 16 de Dezembro de 2005, teve por base
(i) o abandono pela Presidência da ideia de reformar a estrutura do
orçamento e o seu sistema de financiamento, (ii) a aceitação, por parte do
Reino Unido, de alterações ao cálculo do rebate, que se traduz
principalmente numa diminuição do «cheque» britânico, (iii) a
contemplação de grande parte das exigências específicas da cada Estado-
membro e (iv) a introdução no texto final de uma cláusula de revisão no
futuro, que constituiu em larga medida a chave que permitiu que se
chegasse a um acordo.
O recuo do Reino Unido relativamente ao rebate foi decisivo para o
acordo. A alteração da fórmula de cálculo leva a uma redução maior do que
aquela que o Reino Unido se propunha inicialmente conceder. (O rebate
passa a ter um valor entre 6 e 7 mil milhões de euros por ano). Do lado das
receitas, houve ainda compensações para os Estados-membros que
consideravam as suas contribuições líquidas excessivas (Alemanha, Países
Baixos, Áustria e Suécia).
A inserção de uma cláusula relativa a uma futura reforma da estrutura do
orçamento, quer na vertente das receitas, quer das despesas, e que deverá
abranger designadamente a PAC e o «cheque» britânico, foi também
decisiva para o acordo final. A Comissão ficou incumbida de desencadear a
reflexão sobre esta reforma, para o que deverá apresentar um Livro Branco
em 2008 ou 2009.
O nível máximo das despesas a que se chegou, 1,045% do RNB, é
inferior à proposta da Comissão, e mesmo à última proposta de
compromisso da Presidência luxemburguesa (1,06% do RNB), mas registou
um acréscimo significativo face às primeiras propostas da Presidência
britânica. Apesar da redução de verbas verificada, quer para a totalidade da
despesa, quer para a coesão, Portugal conseguiu manter inalterado o
montante a que se tinha chegado no compromisso fracassado do
Luxemburgo: 21,3 mil milhões de euros.
Nesta verba inclui-se a política de coesão, 19,1 mil milhões de euros,
mais as transferências para o desenvolvimento rural e pescas, 2,2 mil
milhões de euros, correspondentes ao actual financiamento do FEOGA-
Orientação. Face ao período anterior (Agenda 2000), verifica-se uma
redução de 15% que se fica a dever quase exclusivamente à mudança de
estatuto da Região de Lisboa.
Portugal vai ainda beneficiar de verbas para o desenvolvimento rural no
valor de 1,2 mil milhões de euros, originárias do FEOGA-Garantia. Deste
montante, 300 milhões de euros são financiados a 100%, sem qualquer
contrapartida nacional.
Esta regra aplica-se apenas a Portugal e constitui uma resposta à
especificidade da agricultura portuguesa, que, embora reconhecida, não
tivera até então qualquer tradução prática.
No total, o envelope nacional para o período 2007-2013, incluindo
política de coesão e desenvolvimento rural e pescas, é de cerca de 22,5 mil
milhões de euros.
Para além dos resultados obtidos em termos financeiros, esta negociação
saldou-se também por uma maior flexibilidade nas regras de aplicação dos
fundos estruturais e do fundo de coesão. Portugal conseguiu garantir regras
de maior flexibilidade para a absorção dos fundos estruturais e do fundo de
coesão: (i) a taxa máxima de co-financiamento comunitário passou de 80
para 85%; (ii) a chamada regra do N+2, que obrigava qualquer Estado-
membro a devolver à União Europeia as verbas que não tivessem sido
gastas passados dois anos da sua autorização orçamental, foi alterada
passando aquele período a ser de três anos, nos anos de 2007 a 2010; (iii)
Portugal conseguiu também a inclusão do IVA não dedutível nas despesas
elegíveis para co-financiamento comunitário; (iv) nos projectos de parceria
público-privada passa a ser considerado o custo total do investimento
(público e privado) para efeito do co-financiamento dos fundos estruturais e
do Fundo de Coesão.
Portugal conseguiu garantir que estas regras de flexibilidade, inicialmente
propostas apenas para os novos Estados-membros, fossem aplicadas com
base em critérios objectivos calculados ao nível de desenvolvimento de
todos os Estados, e não numa divisão artificial entre novos e velhos
membros.
No período de programação de sete anos, que agora se inicia, todas as
regiões portuguesas vão beneficiar de apoios dos fundos estruturais, do
fundo de coesão, bem como do novo fundo para o desenvolvimento rural, o
FEADER.
Existem, no entanto, algumas diferenças relativamente ao período 2006-
2007, em que só a Região de Lisboa e Vale do Tejo tinha um PIB per
capita, em PPC, superior a 75% da média comunitária. O panorama actual é
diferente. Por um lado, devido ao alargamento de 2004, todas as regiões
viram o seu nível de desenvolvimento aumentar, pelo simples facto da
média comunitária ter diminuído, e por outro, verificou-se nalguns casos
um crescimento económico efectivo.
As regiões Norte, Centro, Alentejo e Região Autónoma dos Açores
continuam a ter um PIB per capita, em PPC, inferior a 75% da média
comunitária, pelo que beneficiam de apoios mais elevados e em condições
de aplicação mais favoráveis.
A Região de Lisboa, embora passe para o objectivo Competitividade, vai
ainda beneficiar de um financiamento dos fundos estruturais de 435 milhões
de euros.
A Região Autónoma da Madeira ultrapassou largamente o limiar de 75%
da média comunitária, não apenas por força do «efeito estatístico» do
alargamento, mas também pelo crescimento económico registado na
Madeira que elevou o seu PIB per capita, em PPC, em 87,8% da média
comunitária.30 No período 2007-2013, a Madeira, encontra-se «em
transição» (phasing-in) para o objectivo Competitividade. Atendendo às
verbas que lhe foram atribuídas em períodos anteriores, e também à
especificidade ultraperiférica, foi possível obter resultados mais favoráveis
quer em termos do envelope global, quer quanto às regras de aplicação. Na
sua proposta a Comissão previa um regime transitório (phasing-in) para o
acesso das regiões nestas circunstâncias ao seu novo estatuto, ou seja à sua
inclusão no objectivo Competitividade e Emprego, o que, pela aplicação
dos critérios objectivos, tinha dois tipos de consequências: redução do
envelope financeiro e redução do leque de elegibilidades para os projectos a
apoiar.
A Madeira, que tinha beneficiado no período 2000-2006 de um
importante apoio financeiro dos fundos comunitários, iria registar uma
quebra muito acentuada das transferências comunitárias. Além disso
deixaria de poder solicitar apoio dos Fundos Estruturais para projectos em
determinadas áreas, como as infra-estruturas sociais ou para apoio directo
ao investimento.
Efectivamente a situação para a Madeira, que resultava da proposta da
Comissão, era a seguinte: elegibilidade para o regime phasing-in a que
corresponderia um montante de cerca de 220 milhões de euros; apoio
complementar de um instrumento financeiro específico para as regiões
ultraperiféricas, de cerca de 67 milhões de euros, pelo que o apoio total para
a Madeira se situava, à partida, em 287 milhões de euros.
Entre o ponto de partida constituído pela proposta da Comissão e o
compromisso final alcançado no Conselho Europeu de Dezembro de 2005,
conseguimos uma evolução muito favorável à Madeira, em termos de
resultados globais.
Com efeito, a Madeira, embora se encontre em phasing-in, poderá
beneficiar das disposições financeiras do regime transitório phasing-out,
mais generoso, atribuído às regiões que perdem a elegibilidade por efeito
estatístico. Foi igualmente previsto um apoio adicional para as regiões
ultraperiféricas e regiões de baixa densidade populacional no valor de 35
euros por ano, por habitante, o que representa cerca de 59 milhões de euros
para a Madeira. Ao conjunto destas disposições corresponde um montante
para a Madeira de 402 milhões de euros, a que acresce o apoio do Fundo de
Coesão que for decidido internamente. No que se refere ao tipo de projectos
apoiados, a Madeira pode ainda beneficiar das elegibilidades mais alargadas
do objectivo convergência.
Já no que se refere ao Algarve, os resultados obtidos correspondem
estritamente à aplicação das novas regras paras regiões que ultrapassaram o
limiar de 75%, exclusivamente devido ao alargamento. O Algarve passou a
estar em regime de transição (phasing-out) do objectivo convergência, o
que se traduz numa diminuição dos financiamentos em relação ao passado.
Para além do Algarve houve regiões de outros Estados-membros nas
mesmas circunstâncias.
Nos casos, como o da Grécia e da Alemanha, em que a população
abrangida excedia um terço das regiões do antigo Objectivo 1, foi
contemplado um regime de transição mais favorável. Não foi possível, no
entanto, estender essas condições ao Algarve, que apenas representava 5%
da população portuguesa das regiões Objectivo 1. Numa negociação
raramente é possível ganhar em todas as frentes, sendo necessário, por
vezes, abdicar de certas componentes para salvaguardar o resultado global.
A introdução deste critério, de que o Algarve beneficiará menos face a
outras regiões em posição análoga, foi essencial para que certos países
estivessem em condições de aceitar o acordo geral. A compensação para o
Algarve terá agora de ser encontrada na distribuição interna das verbas
comunitárias.
O acordo alcançado no Conselho Europeu de Dezembro de 2005, entre os
25 Estados-membros, sobre a estrutura, a dimensão financeira e as
principais regras que deverão reger as Perspectivas Financeiras 2007-2013,
foi um acordo positivo. Desde logo porque permite dispor de uma
programação financeira plurianual e dos recursos necessários ao
financiamento do alargamento, mas também porque a ausência de acordo
abriria uma nova crise na Europa que minaria quer a sua credibilidade
política, quer a confiança dos agentes económicos.
Foi um bom compromisso para a Europa, que ultrapassou o difícil teste
de concluir um acordo no novo contexto criado, quer pelo alargamento e
pela correspondente multiplicação de sensibilidades e interesses nacionais,
quer pelo novo panorama geoestratégico que se perfila a nível global, no
plano económico e político.
Foi um bom acordo para Portugal, que desmentiu as cassandras que, há
anos, previam o fim dos fundos estruturais – litania que inevitavelmente já
recomeçou, com vista ao horizonte posterior a 2013 – e permitiu
salvaguardar para além das melhores expectativas os interesses que
Portugal prosseguia nesta negociação.
As futuras negociações de um quadro financeiro pós-2013 serão
certamente ainda mais difíceis e complexas, independentemente das saídas
que vierem a ser encontradas para as grandes questões que se colocam à
União Europeia neste momento. Importa, por isso, que se proceda, quanto
antes, a uma reflexão que nos permita identificar os nossos interesses no
plano comunitário e definir o papel a desempenhar no futuro pelas políticas
comunitárias, com destaque para a PAC e a Política de Coesão. É
fundamental que procuremos antecipar-nos e partilhar com a Comissão as
nossas preocupações nestas matérias.
21 Artigo em Política Internacional, nº 31, 2008.
22 O limite de 1% correspondia a dotações para autorizações; para efeitos de comparação com o
limite de 1,24% do RNB, proposto pela Comissão para dotações para pagamentos, a proposta dos
«Seis» correspondia a 0,9% do RNB.
23 Mais flexível que o método comunitário, permite a fixação de metas específicas adequadas às
necessidades e às capacidades dos Estados-membros e destina-se sobretudo a possibilitar uma
actuação conjunta e a convergência em áreas onde não existe competência comunitária como, por
exemplo, a educação ou certas matérias sociais.
24 No acordo de Dezembro de 2005, o peso das referidas rubricas orçamentais passou a ser o
seguinte: «crescimento sustentável», 44%; «gestão sustentável e protecção dos recursos naturais»,
onde se incluem as verbas da PAC, 43%; «cidadania, liberdade, segurança e justiça», 1,2%;«a UE
enquanto parceiro global», 5,8%.
25 As dotações para pagamentos correspondiam a 1,14% do RNB, o que acrescido de uma «margem
disponível» de 0,10%, totaliza 1, 24% do RNB.
26 Comissão das Comunidades Europeias, «Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento
Europeu: Construir o nosso futuro em comum – desafios políticos e recursos orçamentais da União
alargada, 2007-2013» (COM(2004) 100 final, 10 de Fevereiro de 2004 [http://eur-lex.europa.
eu/LexUriServ/site/pt/com/2004/ com2004_ololptol.pdf]).
27 Concessão ao Reino Unido de uma compensação equivalente a 66% do seu saldo líquido
negativo.
28 Os QREN substituíram os QCA.
29 Quadro Comunitário de Apoio.
30 Os últimos dados então conhecidos (média 2000-2002) revelavam que o PIB per capita da
Madeira, medido em PPC, era de 87,8% da média comunitária da UE 25, bastante superior ao limiar
de elegibilidade fixado (75%). A nova situação da Madeira não decorre do chamado efeito estatístico,
já que mesmo em relação à média da UE 15 o seu nível de prosperidade relativa era, no período
referido, de 80,2%.

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