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5.

A metamorfose de Caliban

Há muita diferença entre a crisálida e a borboleta, mas a borboleta já foi


crisálida.
Coriolano
Ato V.

Neste capítulo, daremos enfoque ao personagem Shakespeareano e à algumas de suas


versões, posteriores. Dando protagonismo ao antagonista de A Tempestade, demonstraremos
como, por si só, Caliban preconizou uma jornada heroica, sofrendo provações, expiando por
suas culpas, redimindo-se ao ganhar corpo próprio, voz e vez; seu legado é a geração de
“calibaneses”, de filhos que se identificam orgulhosamente com ele, e não com Próspero ou
com Miranda. Os capítulos anteriores, as obras relacionadas, a teoria empregada, pensamos,
foi importante para demonstrar quais os movimentos e como foi possível a viagem de
Caliban. A esquemática da literatura fundante demonstra como o personagem nasce de
alegorias e desde o nascimento tem a marca do canibal que é e deve ser. Por sua vez, o
deslocar do mito, como teoria geral, explica o espectro do refazer literário, o qual se incluem
o pastiche, a bricolagem, a homenagem, o plágio. Com o capítulo dedicado à literatura como
propaganda, objetivou-se demonstrar, especificamente, três momentos históricos em que a
literatura foi apologética do racismo, foi títere de vontades políticas abjetas. Analisados tais
momentos, condensando-se o pensamento vigente em três obras, vê-se melhor como as novas
interpretações de A tempestade e do personagem Caliban nascem como em movimentos
anticíclicos; lutam não só contra o passado férreo e as infâmias imputadas ao personagem,
mas, sobretudo, com o presente; e, se a luta contra o passado se passa na teoria, a luta, no
presente, contra o presente, é pragmática, real: é na ressignificação de Caliban que se
encontrará a semente para a construção da identidade africana ou americana, após a
colonização (e que floresceu na política externa e interna da Gana de Nkrumah, no Haiti de
Toussaint L’Ouverture ou na Africa de Mandela; no entendimento novel que se faz desse
personagem, há a bobina que impulsionou movimentos, que contestou valores, que se fez ver
e ser escutada, como cidadãos, como nações, com direitos humanos, com soberania, com
anseios próprios. A viagem de Caliban, que começaremos a seguir, é a viagem de um
escravo que não se conformou com seu destino e refez sua história. É a viagem protagonizada
por Luiz Gama ou por Juan Francisco Manzano, o “poeta-escravo” cubano, amarrado no
corpo, mas de alma incapaz de ser capturada. É a odisseia de Frantz Fanon, pan-africanista,
membro da Frente de Libertação Nacional da Argélia, influenciador de outros tantos
movimentos de libertação da Palestina à Africa do Sul. É a viagem de lideranças políticas que
deram a vida para cambiar seus países e a História do mundo, como Mandela, Gandhi, Marti.
É a luta de Angela Davis, o testemunho do oprimido nas vozes de Anne Frank e Malala
Yousafzai, a capacidade inventiva de Chimamanda, de Ngũgĩ wa Thiong'o, de Paulina
Chiziane, de Achebe. É a história de um personagem, mas pode ser lida como metáfora de
uma luta. Uma luta ainda em curso. Uma luta de toda a humanidade.

5.1. A invenção do humano: fortuna crítica inicial e primeiro uso político.

"É excelente ter a força de um gigante, mas é tirânico usá-la como um


gigante."

Bloom (2000) relembra que A Tempestade “é uma comédia altamente experimental” incitada
pelo Doutor Fausto de Marlowe. Para justificar a tese, lembra ainda que Próspero, o mago da
peça, é a tradução italiana de Faustus (O favorecido), pseudônimo latino usado por Simão
Mago, o Gnóstico. Ariel, o serviçal do mago, por sua vez, em hebraico, significa “leão de
Deus” Dessa forma, em contraste com Mefistófeles, Próspero é o Anti-Fausto shakespereano.

Próspero, o anti-Fausto, tendo a seu serviço o anjo Ariel, fez um pacto


apenas com o saber hermético mais profundo. Uma vez que o Fausto
de Marlowe, comparado a Próspero, é um estudioso fracassado,
Shakespeare diverte-se pondo em evidência um contraste irônico
entre o protagonista criado pelo rival morto há anos e o Mago de A
Tempestade. Simão Mago, como o Mago Jesus, foi discípulo de João
Batista, e, evidentemente, ressentia-se por não ser um dos preferidos
de Jesus,- vale lembrar, novamente, que, a esse respeito, dispomos
somente de fontes cristãs. O mago Próspero, com certeza, não
compete com Jesus,- Shakespeare tem o máximo de cuidado no
sentido de excluir da peça quaisquer referências cristãs (Bloom, 2000,
p. 808)

A primeira adaptação de A Tempestade é do poeta e crítico John Dryden. (BLOOM). Estreou


no Duke’s Theatre em Linconln’s Inn Fields em novembro de 1667; em 1674, foi adaptada
para ópera por Thomas Shadwell e, por muito tempo, foi a versão mais popular da peça.
(NICOLL, 1922).

A versão de Dryden é responsável por desenvolver um contraponto ao enredo original, com a


criação de uma irmã gêmea para Miranda, que desposa o também inventado Hipólito.
Também Dryden cria Milcha, duende feminino, amor de Ariel. Para Caliban, despido de fala
e de razão, foi criada uma irmã, que leva o nome de sua mãe, Sycorax0 (NICOLL, 1922).
Para Bloom (2018), Dryden foi correto ao observar que o escravo disforme era uma criação
inexistente na natureza. Por isso, não possui a natureza humana: “não pode ser o "homem
natural", seja negro, índio ou berbere, como sua mãe. (BLOOM, 2008, p. 804)

Samuel Johnson, em seu prefácio a Shakespeare (2004), ao analisar a erudição e as


influências do Bardo, analisa possíveis raízes do personagem:

“Disseram-me que quando Calibã, depois de um sonho agradável, diz


“Implorei para dormir novamente”, o autor imita Anacreonte, que
havia, como qualquer outro homem, desejado o mesmo em ocasião
idêntica” (JOHNSON, 2004, P. 23)

O autor levanta a hipótese da ascendência helênica para depois refutá-la.

“eram ou coincidências de pensamento comuns, como as que ocorrem


àqueles que refletem sobre os mesmo assuntos, ou essas observações
sobre a vida ou axiomas morais que surgem nas conversas e são
amplamente transmitidas através de provérbios” (JOHNSON, 2004,
P. 23).

Sobre a natureza do personagem, Bloom ressalta a assertividade de Johnson, quando


desnudou no antagonista seu temperamento maligno e a impossibilidade de dominar um
idioma nativo.

Até então, Caliban, na crítica, não suscita compaixão, nem possui leituras mais aprofundadas
sobre sua natureza e vontade. Mesmo no poema Caliban entre Setebos, incluído no volume
Dramatis Personae (1864) de Robert Browning – que investiga a crença do personagem em
Setebos, deus de Sycorax – o ilhéu nativo é associado ao mal, enquanto Próspero representa
as luzes da razão. Caliban, no poema, mostra infantilidade e não supera o fato de ter perdido a
proteção paradisíaca de Próspero. Por isso, sente deleite em enganá-lo. (BLOOM, 2000). E,
aqui, mais uma vez uma leitura arquetípica pode ser invocada: para investigar as nuances da
fé, Browning lembra do término da proteção paradisíaca e do momento em que a criatura se
volve contra seu Senhor. Caliban, para Browning, serve como espelho do que há de mais vil e
pecaminoso no homem:

E resmunga para si mesmo, como quiser.


Tocando naquele outro, a quem sua mãe chamou de Deus.
Porque falar sobre Ele, irrita — ha.
Se Ele pudesse saber! E o tempo para irritar é agora,
Quando falar é mais seguro do que no inverno.
Além disso, Prospero e Miranda dormem
Com confiança de que ele trabalha em sua tarefa,
E é bom enganar o casal e zombar.
Deixando a língua rasteira florescer em discurso
(BROWNING, 1864, p. 124)

A rebeldia de Caliban não se volta apenas contra Próspero. Também pensa que Deus, o deus
Setebos de Sycorax, criou, muitas coisas, mas não todas.
Setebos, Setebos e Setebos! 'Pensa, Ele mora no frio da lua. 'Pensa
que Ele fez isso, com o sol combinando, Mas não as estrelas; as
estrelas vieram de outra forma; Só fez nuvens, ventos, meteoros,
como este: Também esta ilha, o que nela vive e cresce, E o mar
serpenteante que circunda e termina na mesma.
(BROWNING, 1864, p.124)

Em seguida, olha um peixe gelado que deseja escapar do riacho rochoso e se esquentar em
uma salmoura morna. O desejo do peixe conflui no próprio desejo de mudança, e, talvez, o
Deus que não abarque todas as coisas seja uma esperança que exista algo além do domínio de
Próspero. A Criação de Próspero é mais uma vez confrontada com o Deus de Caliban, que,
segundo Browning, mora na lua:

Ele mesmo espiou tarde, olhou Próspero para seus livros Descuidado
e altivo, agora senhor da ilha: Vexado, 'costurado um livro de folhas
largas, em forma de flecha. Escreveu ali, sabe-se lá o quê, palavras
prodigiosas; Descascou uma varinha e a chamou por um nome;
(BROWNING, 1864, p.129)

O Próspero de Shakespeare possui vestes cerimoniais e usa a comunicação para externar seu
domínio. Browning enfatiza situações em que o personagem usará da comunicação para
dominar e criar. Também, neste sentido, destacamos o excerto em que Caliban pensa na
própria captura:

Também uma fera marinha, corpulenta, que ele capturou,


Cegou os olhos e trouxe algo domesticado,
E partiu as teias dos dedos dos pés, e agora encurrala o escravo
Em um buraco na rocha e o chama de Caliban;
Um coração amargo, que espera a hora e morde.
'Brinca assim de ser Próspero de certa forma,
Tira sua alegria com acreditar em fábulas: então Ele.
(BROWNING, 1864, p.130)
A cena merece cautela. Por um lado, ao muni-lo de um “coração amargo” e adjetivá-lo como
sempre à espreita para morder, apenas pavimenta a conhecida estrada da vilania do
personagem. E, em outro ponto, anuncia que Caliban brinca de ser Próspero, da mesma forma
que este, orgulhoso de sua linguagem, brinca de ser Deus. A vetor exposto da cena é
ressaltado com a música de Caliban pensando na inutilidade da fala de seu mestre e que sua
mãe o ensinava que o silêncio fazia todas as coisas”. (BROWNING, 1864)

O poema, assim, usa a pequenez do escravo disforme frente a Próspero para demonstrar como
a racionalidade é inútil perante o Divino. Acareados Próspero e Caliban, temos a dimensão da
pequenez deste perante aquele. Por sua vez, com tal imagem, segundo o autor, teremos a
correta resignação com Deus.

Ao despir-se da economia da linguagem, ao optar pelo uso de alegorias, transmissoras da


relação de hierarquia metafísica entre Caliban e Próspero para explicar a engrenagem da fé,
Browning se utiliza do estranhamento como procedimento – ainda que este termo só tenha se
erigido com o formalismo russo, no começo do século XX, mais especificamente o ensaio
Arte como Procedimento, publicado pela primeira vez em Poetika (1917):

A finalidade da arte é oferecer o objeto como visão e não como


reconhecimento: o procedimento da arte é de ostranênie dos objetos, o
que consiste em complicar a forma, em aumentar a dificuldade e a
duração da percepção. O ato da percepção é, na arte, um fim em si, e
deve ser prolongado. A arte é um meio de viver a feitura do objeto;
aquilo que já foi feito não interessa em arte.

(CHKLÓVSKI, 2019, p. 161)

O termo “estranhamento” (остранение, ostranienie) é um neologismo formado a partir do


adjetivo “странный” (strannyi) (GUERIZOLI-KEMPINSKA, 2010); na tradução acima, o
autor optou pelo termo russo ostranienie; já em outras traduções, decorrentes do francês,
como a da coletânea organizada por Dionísio de Oliveira Toledo (1976), optou-se pela
palavra “singularização”. Por sua vez, o inglês adotou o termo “desfamiliarização” (LEMON
e REIS, 2014). E, se insistimos mostrando as confusões terminológicas, é com o fim de
mostrar como, no conteúdo, o procedimento foi usado para a construção de Calibans.

“As imagens não têm outra função senão permitir agrupar objetos e ações heterogêneas e
explicar o desconhecido pelo conhecido”, assim Chklóvski (1978, p. 55) resume o estudo de
Potebnia, que serviu como base para o estudo formalista. O uso de imagens conhecidas para
explicar o indizível é a raison d’être do panfleto teológico de Johnson, mas também explica o
manifesto político de Renan.

Ernest Renan (1823-1892) foi um escritor, filólogo, filósofo e historiador francês. Entusiasta
(e propulsor) das proposições evolucionistas darwinianas incipientes, transitou na sociologia,
antropologia e religião, como arauto dos preconceitos erigidos em seu tempo, como advogado
da grandeza de seu Espaço (A França). Seu Caliban - suite de La Tempête (1888) integra a
obra Drames philosophiques, sequencial à obra Dialogues philosophiques.
Para o autor, o diálogo seria, no espírito de seu tempo, a forma ideal para a exposição da
filosofia; por sua vez, o drama, para Renan (1888), constituía a imaginação do enredo e a
fantasia do personagem em prol da manifestação de uma ideia filosófica. Mutatis mutandis,
descontado o anacronismo do autor com os conceitos, a visão de Renan guarda correlação
com a ideia do “personagem-conceito” de Deleuze, bem como com o “estranhamento” dos
formalistas russos.

Desta forma, Ernest Renan tomará o antagonista de A Tempestade para justificar o


colonialismo e, sobretudo, para tentar salvar uma aristocracia já em seus estertores.
Alarmado pelo “assalto aos céus’ ocorrido com a Comuna de Paris, em 1878, Renan pensa
em Shakespeare como “historiador da eternidade” (1888, p. 4) e usa Caliban em uma
continuação direta da peça do bardo – objetivando demonstrar como a chegada do ilhéu em
solo europeu fora maléfica para o progresso da humanidade. Logo no começo de seu libelo,
Próspero volta para a Europa e leva consigo seu escravo.

Suponho que depois da tempestade, Próspero, vitorioso por sua arte mágica de
todos os seus inimigos, é restabelecido em seu trono de Milão; Eu carrego com ele
Ariel, seu agente aéreo; Caliban, seu escravo sempre rebelde; Gonzalo, seu antigo
conselheiro; Trinculo, seu bobo. Shakespeare é o historiador da eternidade
(RENAN, 1888, p.)

Caliban, que já aprendera a língua com seu mestre, torna-se ainda mais ingrato e indócil.
Depois de sua primeira aparição bêbado, inflama as massas contra os governantes; destila
ódio contra os livros e contra a aristocracia e reproduz um discurso virulento:.

Esses livros infernais, ah! Eu odeio eles ; eles foram os instrumentos da


minha escravidão. Você tem que pegá-los, queimá-los. Outro poderia usá-
lo. Guerra aos livros! ( RENAN, 1888, p.)

Na visão de Renan, é o colonizado que se recusa a obter o conhecimento do colonizador; é


este o impedimento para o progresso, o germe dos movimentos insurgentes, como o que fora
a Comuna de Paris. Na peça, Caliban dá um golpe e se torna, ele próprio, um comandante
despótico. Ao analisar a metamorfose do personagem, um clérigo (que, inclusive, apoiara a
mudança) possui uma fala, que nada mais é que uma ode à decadente aristocracia:

Caliban é o povo. Toda civilização é de origem aristocrática. Civilizado pelos


nobres, o povo costuma se voltar contra eles. Quando olhamos muito de perto os
detalhes do progresso da natureza, corremos o risco de ver coisas feias. (RENAN,
1888, p.)

Há, também, os lamentos de Próspero sobre seu humanismo. Neste solilóquio, confunde as
próprias origens e diz que, na ilha, simplesmente aceitou Caliban como serviçal, mas nunca o
forçou a trabalhar.

Este desgraçado me deve tudo. Quando o aceitei ao meu serviço, ensinei-lhe a


palavra criada por Deus; ele nunca o usava, exceto para me insultar. A palavra
ariana é para ele apenas um instrumento de fraude e falsos princípios. Ele odiava
meus livros. (RENAN, 1888, p.)

O drama filosófico, assim conceituado o enredo que tem como conflito o “povo”,
representado por Caliban e a “Aristocracia”, corporificada em “Próspero”, pode ser colocado
como como o uso de um “personagem-conceito” (DELEUZE, XXX) em prol de uma
ideologia. Em outras palavras, o enredo, os personagens e o tempo-espaço da obra traduzem
o que Renan pensa do funcionamento de uma Nação. Em seu livro mais famoso, Qu’est-ce
qu’ une nation?, o filósofo francês advoga na crença de um homem que é livre, moral e
universal. Ato seguinte, o autor constrói a concepção de um “nacionalismo humanitário”
(OLIVIERI-GODET, 2005)

Tal nacionalismo é afirmado por um livre arbítrio (TODOROV, 1989). Não é a raça, a
religião ou fronteiras que fundam uma nação. Estes parâmetros são determinantes dos
Estados; a Nação é formada por um “princípio espiritual, uma consciência moral, uma
herança histórica compartilhada acrescidas de uma vontade comum no presente. (OLIVIERI-
GODET, 2005).

Aqui, as terminologias merecem uma análise detalhada, não só porque camuflam de ciência
alguns postulados do racismo vulgar, mas também porque se conectam ao Caliban reniano.
Gobineau advogou pela tese de três raças principais: negra, amarela e branca, identificadas
por marcas físicas, como tez, formato do crânio e características faciais. Não apenas são
marcadas por uma eterna separação, como também, para ele, são hierárquicas. Para o citado
autor, faltava à raça amarela força, e, aos negros, inteligência. Sua conclusão: “a raça branca
possuía originalmente o monopólio da beleza, da inteligência e da força” (GOBINEAU, p.
209, 1915), segundo Todorov (1989) não seria nada além de uma variante do senso comum,
se não houvesse introduzido o termo “civilização” na fórmula. O componente, histórico,
junta-se ao preconceito e o faz concluir que as “raças inferiores” não criaram a prensa nem a
máquina à vapor; não produziram “Homeros nem Galenos” (GOBINEAU, p. 37 e 38, 1915).
Ao dizer ‘nossa ciência’, ‘nossas descobertas’, não está sendo um arauto do progresso
científico, apenas exclui da civilização os não-europeus. Da apresentação, o autor chega a
duas conclusões: considerando-se a hierarquia proposta, a mistura é necessária para eliminar
o fosso entre as civilizações. No entanto, para a raça, a miscigenação não passa de
enfraquecimento.

On mesure maintenant le caractère paradoxal de la thèse de Gobineau. « Race


» et « civilisation » sont, selon lui, deux entités liées entre elles aussi
étroitement que possible ; ce ne sont peut-être que deux aspects d’une seule et
même entité, la société
Agora, percebemos o caráter paradoxal da tese de Gobineau. "Raça" e
"civilização" são, segundo ele, duas entidades estreitamente ligadas entre si,
possivelmente apenas dois aspectos de uma única entidade, a sociedade.
Contudo, quando considerada como civilização, a sociedade é tanto mais
forte quanto foi capaz de assimilar outras sociedades diferentes dela;
enquanto, na perspectiva da raça, quanto mais misturada, mais fraca ela se
torna. Lembremo-nos: aqueles que conseguem superar a aversão às misturas
constituem o que é civilizável em nossa espécie; mas, para a raça, toda
mistura é considerada uma mancha, uma degeneração. Não se trata de uma
contradição em Gobineau, mas sim de um paradoxo trágico que paira sobre a
humanidade. Assim que uma sociedade se torna suficientemente forte, ela
tende a subjugar as outras; no entanto, assim que o faz, ela é ameaçada em
sua identidade e deixa de ser forte.
(TODOROV, 1989, 161 e 162)
Renan não se distancia do racialismo vulgar ao encampar a subdivisão da humanidade em
três raças, bem como o caráter hierárquico entre elas. No entanto, quando se debruça
especificamente sobre o que acreditar ser a “raça superior”, o autor embarca por outro
caminho. Compreende que “os países mais nobres, Inglaterra, França, Itália são aqueles onde
o sangue é mais misturado” e, deste fato, conclui que a miscigenação leva a uma
neutralização completa das raças; se se aproxima de Gobineau ao pensar na inevitabilidade da
miscigenação, não pensa no resultado como uma ‘degeneração’, mas na “libertação da
humanidade do determinismo material” (TODOROV, 1989, p. 168). Neste ponto, Renan
evoca a distinção entre nação e Estado: A raça, assim como as fronteiras, pertence ao Estado.
A nação se forma por um intangível espírito, por sua cultura. E aí reside o paradoxo de seu
estudo: ao minimizar a questão racial, submete o conceito a um novo exame, que só
reafirmará a sua relevância: “de um lado está a raça física, do outro, a raça cultural, tendo a
linguagem um papel dominante na formação de uma cultura.” (TODOROV, 1989, p. 169).

Substitui, assim, o termo “raça” por “língua” e o usa para afirmar a incontornável
superioridade europeia. E, ao fazê-lo, toma cuidado para que as divisões raciais fiquem
subterrâneas.

“O espírito de cada povo e sua língua estão em estreita ligação: o espírito faz a língua, e a
língua, por sua vez, serve de fórmula e de limite ao espírito” (RENAN, 1858, p. 96 ). E
“Sendo a língua para uma raça a própria forma de pensamento, o uso da mesma língua,
continuado durante séculos, torna-se, para a família que nela está confinada, um molde, um
espartilho, em um caminho” (RENAN, 1858, p 32).

Dessa forma, ao mesmo tempo que advoga pelo romper dos grilhões da divisão racial de
Gobineau, Renan contrabalanceia sua fórmula com um determinismo linguístico, cultural.
Trata-se, também, de “uma relação entre língua e raça, que atesta, em primeiro lugar, a não
coincidência das duas e, em segundo lugar, a sua solidariedade”. (TODOROV, 1989). Dessa
forma, não elimina os conceitos de raça, só o dá um novo rumo; serve de alicerce para que
termos como ‘ariano’ e ‘semítico’ deixem de ser designações de famílias linguísticas e
passem a ser aplicados como divisores dos seres humanos (TODOROV, 1989). E, dessa
forma, apenas reformula a questão de Gobineau ao ligar com pronomes possessivos
invenções e pensadores com a ração: Para Renan, Kant e Goethe tinham, em si, o espírito
cultural e a linguagem que herdaram dos primitivos teutões; por sua vez, pela ausência deste
elemento, os africanos nunca atingirão o ápice da humanidade (TODOROV, 1989), Mas ao
separar a humanidade em culturas mutuamente impermeáveis, ao afirmar que os valores
fazem parte da cultura, Renan chega a um relativismo paradoxal: se a ciência é um labor
exclusivamente de indo-europeus, não deveria ter valor somente a eles? “Como pode uma
cultura específica produzir algo verdadeiramente universal, como a ciência?” (TODOROV,
1989).

O relativismo só realoca seus preconceitos, além de criar, para si e para os seus, uma visão
particular; para os outros, sua doutrina é geral e inflexível. E, colocadas estas posições,
compreendido o arco que levou o racismo a uma roupagem científica, alinhando-se à
civilização (Gobineau) e à linguagem (Renan), o seguinte excerto do Caliban reniano
(quando Próspero diz ao seu escravo domesticado) ganha uma nova dimensão: “Próspero lhe
ensinou a língua dos Aryas. Com esta linguagem divina, a quantidade de razão que dela é
inseparável entrou em você” (p. 382, RENAN).

A salvação das civilizações, para Renan, consiste no ensino do francês, que não passa de um
componente do colonialismo. O ensino da língua constitui um espírito particular, que se
sobrepõe às intenções daquele que o fala. Sobre o assunto, trazemos ao estudo um trecho de
um discurso do autor feito em razão da Conferência da Aliança Francesa para a propagação
da língua:

Essa linguagem melhora; é uma escola; ela é natural, bem-humorada,


sabe rir, carrega consigo um ceticismo amável misturado com gentileza
(...). O fanatismo é impossível em francês. (...) Nunca um muçulmano
que saiba francês será um muçulmano perigoso”

(RENAN, 1888, p. 170 e 171)


Fonte: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k4333008

O "drama filosófico” de Renan é, assim, um enredo em prol de uma ideia: a de que existe
raças culturais e que nada se cria a não ser aquilo contido nos moldes europeus, mais
especificamente o francês. Em outra ponta, ao afirmar que Caliban recebe e recusa a língua
de Próspero, Renan identifica o ovo da serpente que, no seu orgulho seio europeu, está por
nascer e romper com os antigos dogmas aristocráticos.

Significa dizer: a pureza, o progresso, as virtudes todas são europeias, são aristocráticas. O
que está fora disso pode ser resumido a uma palavra que, por si só, reúna todas as
ignorâncias, todos os vícios: Caliban.

5.2. Caliban: eurocentrista ou europessimista? A versão de Jean Guéhenno.

O semelhante só pelo semelhante é compensado


Medida por medida
Ato V.

Dois pontos podem ser colocados como parâmetros para compreendermos a ligação entre o
Caliban de Renan e o de Guéhenno: A História e a Cultura. Com relação a esta, percebe-se o
mesmo entusiasmo no arcabouço imaterial do saber, como justificador de um humano
melhor, o mesmo remontar de edifícios intelectuais que terão como primitivo elemento
topológico o iluminismo. No entanto, aquela, a História, separa o mestre, Renan, de seu
discípulo, Guéhenno. Como já dito, Enest Renan escreveu seus dramas Filosóficos sob o
influxo do ocorrido na Comuna de Paris, primeira experiência de um governo socialista, do
povo (que, para o autor, era representado por Caliban). Se retrocedermos, encontraremos, em
1870, a Guerra Franco Prussiana, que resultou não apenas da demonstração do poderio
militar francês, não apenas na conclusão do processo de unificação da Alemanha (o Segundo
Reich), mas na vergonha francesa de ver o Salão dos Espelhos do Palácio de Versalhes como
local da coroação de Guilherme I, como imperador alemão.

A v Werner - Kaiserproklamation am 18 Januar 1871 (3. Fassung 1885).jpg

Se retrocedermos ainda mais, não vendo o ocaso do imperador Napoleão III com seu
sequestro e a derrota francesa na Guerra Franco-Prussiana, mas sua origem, veremos a
ebulição que, em 1848, mexia com o país. Tocqueville comparou o momento com dormir em
um vulcão, a terra a tremer, os ventos e as tempestades revolucionárias soprando no
horizonte. (Hobsbawm, 2015). O Zeitgeist, então, mostrava sua força centrípeta: naquele ano,
Marx e Engels divulgavam os princípios da revolução proletária “contra a qual Tocqueville
alertava seus colegas”.(Hobsbawm, 2015a, p. 25). Revoluções, que, em seu todo, foram
conceituadas como s “Primavera dos povos” floresciam na Bavária, Berlim, Viena, Hungria,
Milão, bem como a Revolução Praieira, ocorrida em Pernambuco. O marco iniciador da
Primavera de 1848 foi, no entanto, a insurreição que, na França, derrubou a monarquia e
instituiu a Segunda República. Se retrocedermos pela derradeira vez, compreenderemos,
entre 1789 e 1848 o período que Eric Hobsbawm (2015b) denominou como a “Era das
Revoluções”. Neste lapso temporal, a França se livrou da monarquia com a Revolução
Francesa, passou por momentos de terror jacobino, conheceu o auge e a queda nas guerras
Napoleônicas, experimentou o vigor revolucionário e seu arrefecimento, com o processo
restaurador que emanava do Congresso de Viena, de 1815. Após conhecer um segundo (e
breve) governo de Napoleão, o país retornou para as mãos dos Bourbon – desta vez Luis
XVIII, irmão de Luis XVI, que fora guilhotinado em 1793.
Quando Renan escreve seu Caliban, portanto, não tem em vista apenas a insurreição popular
da Comuna de Paris - já que este evento, por si só, era a ponta de lança de uma série de
altercações buscando o poder. A França de Renan era a da opulência aristocrática, no período
anterior à revolução, e o orgulho conquistador, que se seguiu após o golpe do 18 Brumário.
Se Renan se apoia na aristocracia, como salvação dos eflúvios malignos que vinham das
camadas populares, é porque sabia que a luta entre classes seria cada vez maior (e, neste
ponto, pode-se considerar o quanto foi profético com as revoluções que assolariam o Século
XX. Diria Renan, se tivesse ainda vida, que em 1918 Caliban era um bolchevique?); se o
autor pensa na língua como última instância, ainda sem máculas, da grandeza francesa, talvez
seja por despeito de ver o nascimento da Alemanha no local símbolo da aristocracia de seu
país. Vale lembrar, é o momento em que até a geografia é aprisionada por vontades políticas,
é quando Ratzel postula que o homem é fruto de seu meio e o Estado precisa de um “Espaço
vital” (Lebensrau) - doutrina que foi útil não apenas à unificação alemã, mas que serviria
também para o expansionismo nazista (xxxx) Cada pensador age com as armas que (seu
Estado) tem: A Alemanha necessitava de um arcabouço justificador para a unificação. A
França dó queria salvar a própria honra. E Renan é arauto desta empreitada.
Por sua vez, Jean Guehenno não quer salvar nada, a não ser a si mesmo. Filho de sapateiro,
aos quatorze anos foi obrigado a abandonar a escola para trabalhar como operário. Estudou
sozinho, obteve o bacharelato, serviu durante a guerra como oficial de infantaria e se tornou
professor do ensino médio. Assim, se pensa na Cultura como conditio sine qua non do
desenvolvimento, não a encapsula no conceito de “raça linguística” de Renan. Seu passado
não é aristocrático, e pouco importa, para ele, que a aristocracia já seja uma lembrança
longínqua dos áureos tempos franceses, tal qual as navegações são uma doce reminiscência
para os portugueses. Renan fala de cultura e do mau cheiro do povo, Guéhenno fala de
cultura e é do povo. Neste contexto, antes de dirigir a Revista Europa, de 1929 a 1936,
escreve Caliban Parle, em 1928; dedica-o, como era de se esperar, ao seu mestre Renan.
Mas Guéhenno quer mais: além de se apropriar do mote renaniano, usa Caliban abraçado
com uma ideologia, que Renan expressou em seu "L'Avenir de la science" (O Futuro da
Ciência) escrito em 1848 e publicado em 1890. Nesta obra, lê-se uma defesa apaixonada da
curiosidade, que, por sua vez, regula a própria ciência. Diz Renan:

O conhecimento é de todos os atos da vida o menos profano, pois é o


mais desinteressado, o mais independente do prazer, o mais objetivo,
para usar a linguagem da escola. É em vão que se tenta provar sua
santidade, pois somente aqueles para os quais nada é sagrado podem
pensar em negá-la.
Aqueles que se apegam aos fatos da natureza humana, sem fazer
julgamentos sobre o valor das coisas, pelo menos não podem negar que
a ciência seja a primeira necessidade da humanidade.
RENAN, P. 18, 1890.

E com esta motivação que Guéhenno municia seu Caliban:

Roubei os livros de Próspero e os li com prazer. Eu fui o mais atencioso dos


discípulos. Seguindo você, Próspero, cheguei àquelas solidões congeladas
para onde sua ciência o levou, e mal percebi.
Caliban parle. Guehenno.

Mas, para Renan, o conhecimento, a língua e o passado eram garantidores da grandeza de sua
nação, para Guéhenno, era o futuro que estava em questão: Renan afirmara que Caliban teve
a oportunidade de conhecer a língua francesa, mas a desprezou. O Caliban de Guehenno não
esnobará os livros, a língua, a cultura eurocêntrica. Com tais armas, o personagem deixará de
ser escravo. E, então, uma conclusão se torna inevitável: Guehénno acreditava-se humanista
ao recuperar os bons momentos de Renan, corrigindo-o de seus preconceitos. No entanto, ao
focar o conhecimento como combustível para a mudança, não deixa de ver o personagem (o
outro, o não europeu) como alguém menor. A única diferença é que, aqui, o escravo aceita a
mão amiga de Próspero enquanto, com Renan, rechaçava. Em Caliban Parle, Caliban falará.
Em francês, mas falará.
Então se inicia a Segunda Guerra, e Guéhenno se junta à resistência. Por um breve momento,
a História reaproxima mestre e pupilo> assim como Renan vira, consternado, a coroação de
Guilherme I no Salão de Versalhes, Guéhenno testemunha a ocupação nazista na Cidade Luz.

Albert Speer, Adolf Hitler, and Arno Breker on Trocadéro in front of the Eiffel Tower. A
crouching cameraman films Hitler for the cinema newsreel. Paris, 23 June 1940.
Photo collection: National Archives and Records Administration, USA

Mais, vê novamente Versalles ser usada como humilhação nacional. Em 22 de junho de 1940,
França e Alemanha acertaram um cessar-fogo, e o local escolhido para tanto não podia ser
mais simbólico: Hitler exigiu que o acordo de paz ocorresse na Floresta de Compiègne,
próxima a Paris; mais ordenou que soldados alemães arrombassem um museu e empurrassem
um vagão de trem, 24 19 D, até a floresta. Naquele vagão, naquela floresta, décadas antes,
fora assinada a rendição alemã na Primeira Guerra, que ocasionou no Tratado de Versalhes
(que, pelo seu artigo 231 e 232, estipulava a culpa alemã pela Primeira Guerra e a
necessidade de reparação de todos os prejuízos). (GERSTANBERG, online)

Mas se Renan se equilibrava, ébrio, no passado, Guéhenno e seus contemporâneos não viam
futuro. Com o término da Segunda Guerra, a libertação da França, originou um momento
tenso, nos campos político e filosófico. Se a Cultura já não representava um passado glorioso
para Guéhenno, agora também de nada servia ao berço do iluminismo. Reduzida a
escombros, em seu âmago, o país precisava se reconstruir do zero, em todos os aspectos.
Neste contexto, em 1947, surge uma revista literária, de nome Caliban. Com o objetivo de
promover a paz e destacar os valores universais contidos nas obras primas, a revista buscou
como inspiração o personagem Shakespeariano e a versão que Guehenno havia feito em
1928. (REYNES-DELOBEL, 2021). Já em seu primeiro número, o periódico apresentou uma
entrevista com Guéhenno, em que o autor relembra o conceito de seu Caliban e a importância
da Cultura e da educação, como motor propulsor das camadas mais baixas. No entanto, agora,
o próprio Caliban de Guéhenno havia se transformado: para ele e para os idealizadores da
revista, o personagem agora era, estranhamente, um símbolo do... europeísmo!
Vale lembrar, a Europa do pós-guerra fora destroçada intelectual, moral e fisicamente. Os
edifícios seculares das luzes, lembrados por Renan para erigir o conceito de “raça
linguística”, não passavam de escombros, assim como o Lebensrau de Ratzel e o possibilismo
de La Blache (VALENÇA, 2021).
Atores equilibristas, não das alturas, mas de vales sombrios, deviam compreender que não
passavam de atores secundários, equilibrando-se entre a necessidade de aceitar a ajuda do
Plano Marshal do polo americano, ou encampar a ideologia do bloco soviético. Ainda assim,
franceses e ingleses dividiam-se entre os que preferiam padecer sozinhos, e o que aceitavam
que as nações deviam se apoiar umas nas outras. A discussão destas duas frentes permeia os
avanços e retrocessos das primeiras comunidades europeias, desde a assinatura do primeiro
tratado supranacional, o CECA (Comunidade Europeia do Carvão e do Aço) em 1951, até a o
Tratado de Lisboa de 2009, que deu corpo à União Europeia. Pela amplitude da questão,
pelas particularidades, pelos tantos eventos que opuseram a cisão e a reunião, limitamo-nos,
aqui, a expor suas linhas gerais. No entanto, uma diatribe merece um comentário mais
extendido: anos antes da criação da revista Caliban, Jean Guéhenno e André Gide travaram
uma rusga que tinha exatamente esse componente: europeísmo versus euroceticismo. Nas
páginas do jornal Europe, com o tema da ‘Europeização da cultura’, Guéhenno tomou o lado
de Roman Rolland, um internacionalista pacifista. Gide, por sua vez, advogava pela tese de
que o interesse geral seria melhor servido com o crescimento das particularidades. Em outras
palavras, para Gide, não era preciso renunciar à cultura nacional para buscar algo maior.
Assim, Caliban não era mais apenas o símbolo do escravo que tem a oportunidade de
desfrutar do conhecimento iluminista. Tinha agora, também, a oportunidade de ter o
passaporte europeu, de transitar pelos países sem passar por averiguações ou alfandegas.

‘‘Caliban est chacun d’entre nous. J’insiste. Le problème n’est pas de


faire accéder Caliban à des notions qui lui sont et qui pourraient lui
demeurer étrangères. Il s’agit bien de lui donner le moyen de posséder
la totalité de celles qu’il porte déjà en lui.’ ‘Jean Guéhenno parle à
“Caliban”’, Caliban, no. 1 (February 1947),
Caliban é cada um de nós. Esse ponto não pode ser enfatizado o
suficiente. O problema não é dar a Caliban acesso a noções que são e
podem permanecer estranhas a ele. É uma questão de dar a ele a
capacidade de apropriar-se plenamente de todas aquelas que já fazem
parte de sua inteligência nativa.’ ‘
Jean Guéhenno parle à “Caliban”’, Caliban, no. 1 (February 1947), v.
Apud. REYNES-DELOBEL, 2021.

Neste excerto de Guéhenno publicado pela edição número um, percebe-se não apenas a
reiteração do europeísmo do autor, mas a vocação supra nacionalista de Caliban – do
personagem e da revista.
Corine Renou (1993) rastreou as raízes do suplemento: sua origem internacionalista
remontava o leitmotiv de um jornal clandestino bimestral com o nome “Le Français” que
circulou entre 1941 e 1942. Após o Armistício, em 1947, alguns dos fundadores deste jornal
ganharam permissão do Ministério da Informação para a criação de Caliban. Na revista
augural, os editores publicaram um manifesto enfatizado que a insularidade das nações era
coisa do passado – mas, de maneira estranha, decidiram assinar coletivamente o J’accuse
com o nome “Ariel”, na mesma oportunidade em que Guéhenno bradava que Caliban somos
todos nós.
Como dito, o eurocentrismo antagonizará com o “europessimismo” e a valorização pela
individualidade das nações. Como também exposto, a diatribe se dá em diversos planos: em
construções filosóficas e em políticas externas dos países europeus; está presente na
Declaração Schuman, de 1950, no vaticínio de que “A Europa não se construirá de uma só
vez, nem de acordo com um plano único. Construir-se-á através de realizações concretas que
criarão, antes de mais, uma solidariedade de facto”. (UE, online, 2023) e também nas
motivações que levaram ao Brexit, em 2018. (ESTADÃO. Online, 2023)

No entanto, a questão não se cinge a uma disputa regional, que opõe supranacionalismo e
individualismo. Isso porque o eurocentrismo, em si, ao ser escolhido como modelo de
conduta, em outros períodos históricos, foi o desencadeador de imperialismo, de espoliações
e teorias discriminatórias. Por exemplo, antes do Congresso de Berlim, que definiu a partilha
colonial, era comum encontra descrições europeias sobre formas políticas africanas
complexas, aperfeiçoadas. Após tal Congresso, que congregou uma vontade supranacional
expansionista, as imagens africanas começaram a se deteriorar. (VIEIRA, 2006). Em outras
palavras, o eurocentrismo, ao articular e inscrever em seu bojo a posse de referências
clássicas, como a grega e a romana, quer revestir-se de um universalismo. E, ao se colocar
como umbigo do universo, exclui o outro de qualquer humanidade. Portanto, o eurocentrismo
não pode ser visto como um etnocentrismo qualquer. Por ser um projeto de poder, não é
equivalente ao panafricanismo de Willians, Du Bois e Garvey (CASTRO, SEIXAS, 2013)
Em síntese, o eurocentrismo leva ao afro pessimismo. (VIEIRA, 2006).
E, voltando a Guéhenno, seu erro, agora, fica nítido. Tal autor usou Caliban apenas quando
foi conveniente: em um primeiro momento, prega um humanismo ao alçar o conhecimento
como forma de progressão social, mas, implicitamente, não deixa de enxergar o outro como
um bárbaro. Depois das atrocidades da Segunda guerra, afirma que somos todos Calibans
para demonstrar que o ilhéu deixou sua ilha e abraçou o continente de seus algozes. Assim,
queria dizer: não somos insulares, somos universais, porque Caliban nos mostra que é
possível renegar a ilha, em nome de algo maior. Sem pensar que a colonização fora um
resultado do eurocentrismo, constrói um edifício de fachada humanista, e coloca o escravo
colonizado como símbolo de uma União Europeia.

5.3. Groussac, Dario e Rodó: o Arielismo

O sangue jovem não obedece um velho mandato. ?

Se há um eixo que une Montaigne com as Tempestades de Shakespeare, Renan e Guéhenno,


é a voz que fala do outro. Nestes citados casos, os europeus usam o personagem como molde
de seus próprios vícios e virtudes.
As primeiras vozes na América sobre Caliban são as de Groussac e de Rubem Dario.
(FERNÁNDEZ RETAMAR, 2006. P. 28) E, da mesma forma que seus antecessores
europeus, para tais autores, o contexto histórico será importante para a interpretação do
personagem.
Em 1898, os Estados Unidos participaram da Guerra de Cuba contra a Espanha. A
“invencível armada” espanhola foi abatida na costa de Manila, e a intervenção americana se
transformou em tutela. Em 02 de maio deste mesmo ano, o Clube Espanhol de Buenos Aires
organizou um ato no Teatro La Victoria, simpatizando-se com a antiga metrópole. Na data,
Paul Groussac, franco-argentino, escritor, historiador, diretor da Biblioteca Nacional (posto
que, depois, seria ocupado por Borges e Alberto Manguel), associou os EUA com Caliban:
“se desprendeu livremente o espírito yankee do corpo informe e ‘calibanesco’ – e o velho
mundo contemplou com inquietude e terror a nova civilização que vinha a suplantar a
antiga”. (GROUSSAC, 1898. p. 50)
A associação fica mais visível se tomarmos a velha interpretação de Renan. Caliban não é
apenas o escravo disforme de Shakespeare, mas o desleal homem que, após aprender a língua
e a ciência, insurge-se contra seu mestre. Trata-se, portanto, de uma visão europeia, e não
uma defesa à América (RICUPERO, 2016)
A versão é corroborada por Rubem Dario. Em seu relato sobre o ato do teatro Victoria,
aparecido em El Tiempo de Buenos Aires de 20 de maio de 1898, o fantasma de Renan
aparece mais uma vez: “estes calibaneses (...) comem, comem, calculam, bebem whisky e
fazem milhões”. DARIO. 1998. P. 451)
Dario associa o personagem ao apetite voraz norte-americano e não enxerga a afronta óbvia
aos não-europeus que está no anagrama Caliban/Canibal/Caribe; estranhamente, no entanto, o
poeta nicaraguense se verá no espelho do colonizador Próspero. Junto com Groussac,
evocará José Marti – revolucionário e poeta, morto ainda no começo da sublevação cubana,
em 1895 - ao chamar o imperialista norte-americano de mamute No entanto, a
intertextualidade é apenas aparente. O discurso “anti-imperialista” se presta, na verdade, à
política exterior espanhola.

E eu, que tenho sido um defensor de Cuba livre, nem que seja por
acompanhar tantos agricultores nos seus sonhos e tantos mártires no seu
heroísmo, sou amigo da Espanha no momento em que a vejo atacada
por um inimigo brutal
DARIO,1998. p. 455.

Assim Caliban aporta na América. Uma figura complexa, assim como o continente. Um
personagem colonizado que, no entanto, será utilizado para chacotear um império americano.
Este é o ‘J’acuse’ de Groussac: ao apontar e acusar, reveste seu discurso do sentimento da
formação da identidade latino-americana e da autodeterminação dos povos, assim portando-
se como um homem que se recusa a obedecer Próspero; ao proferir sua acusação em sua
língua materna, no entanto, mostra-nos que sua rebeldia é apenas nostalgia. Seu
inconformismo são apenas elegias do passado glorioso europeu.
Neste contexto, José Enrique Rodó escreverá seu Ariel. Lançado em 1900, o opúsculo do
uruguaio é considerado por Scliar (2000) como um ensaio fundador do pensamento
americano; um livro latino-americano que não encontra pares na repercussão
alcançada. Dentre os temas abordados, destacam-se o afluxo de emigrantes na América
latina e o caráter utilitarista do pensamento da América do Norte. Rodó critica o pragmatismo
norte-americano, uma atitude aristocrática, como a de Renan. “Aristocracia intelectual, mas
aristocracia” (SCLIAR, 2000).
O pensador francês, inclusive, parece ser uma constante no leitmotiv do uruguaio.
"Racionalmente concebida, a democracia admite sempre um imprescritível elemento
aristocrático, que consiste em estabelecer a superioridade dos melhores." (RODÓ, 2003, p.
70). A frase nasceu de um pensador sul-americano e, sem meias palavras, exemplifica a
diatribe da política externa dos países sul-americanos no começo do Século XX: de um lado,
o Brasil se inclinava a uma simpatia com os Estados Unidos, de outro, Argentina e Uruguai
acenavam que optariam pela velha Europa.
(procurar aqui a citação do Brasil: entre a america e a eruopa.
Não se sabe se Rodó conhecia os textos de Dario e Groussac. (RICUPERO, 2016). No
entanto, é certo que Renan foi influência para o uruguaio. O francês é citado onze vezes em
Ariel; em uma das mais emblemáticas, Rodó evoca Renan e seu desprezo pela democracia.

"Sobre a democracia pesa a acusação de guiar a humanidade,


tornando-a medíocre, em direção a um Sacro Império do utilitarismo.
A acusação é refletida com intensidade vibrante nas páginas sempre
cheias de um charme sugestivo ou entre os mais amáveis dos mestres
do espírito moderno: nas páginas sedutoras de Renan."
(RODÓ, 2003, p. 54)

Continua o uruguaio, mesclando o texto com elegias para Renan e demonstrando como o
francês encontrou a metáfora perfeita nos personagens de A Tempestade.

Piensa, pues, el maestro, que una alta preocupación por los intereses
ideales de la especie es opuesta del todo al espritu de la democracia.
Piensa que la concepción de la vida, en una sociedad donde ese
espÌritu domine, se ajustar· progresivamente a la exclusiva
persecución del bienestar material como beneficio propagable al
mayor número de personas. Según él, siendo la democracia la
entronización de Caliban, Ariel no puede menos que ser el vencido de
ese triunfo
O mestre (Renan) acredita, portanto, que uma preocupação elevada
com os interesses ideais da espécie é completamente oposta ao
espírito da democracia. Ele acredita que a concepção de vida em uma
sociedade onde esse espírito prevaleça se ajustará progressivamente à
busca exclusiva do bem-estar material como um benefício que possa
ser compartilhado com o maior número de pessoas. Segundo ele, uma
vez que a democracia é a entronização de Caliban, Ariel não pode
deixar de ser derrotado por essa vitória..
(RODÓ, 2006, p. 55)

Renan, diz-nos Rodó, pensa que os interesses ideais da espécie só podem ser buscados sob a
batuta da aristocracia no poder. Vaticina a derrota de Ariel frente ao utilitarismo de Caliban –
e, daí, Rodó busca o título de seu opúsculo - que dará voz a uma corrente de pensamento
denominada “arielismo.”
Renan, como insistentemente expusemos, é homem de seu tempo, advoga pelos interesses de
sua nação, que não passa uma estátua de passado glorioso, ainda que tenha barro em seus pés,
pieds-noirs1.
Por sua vez, Rodó não tem passado glorioso, seu país não possui História, a origem da
República Oriental do Uruguai não é nada além de um fruto do confronto de interesses de
caudilhos e de ingleses, e que tomou corpo em uma guerra entre brasileiros e argentinos.
A crítica aos Estados Unidos é feita com argumentos aparentemente preocupados com o
destino da raça humana: o conhecimento vertical, especifista e que serve apenas ao aumento
da produção é sua preocupação - e, neste ponto, algumas das páginas de Rodó antecipam as
discussões que seriam recorrentes no Século XX sobre o progresso vertiginoso e sua
correlação com a alienação humana.
O professor pensa, portanto, que uma grande preocupação com os interesses ideais da espécie
se opõe completamente ao espírito da democracia. Ele pensa que a concepção de vida, numa
sociedade onde este espírito domina, ajustar-se-á progressivamente à procura exclusiva do
bem-estar material como um benefício que pode ser difundido ao maior número de pessoas.
Segundo ele, como a democracia é a entronização de Caliban, Ariel não pode deixar de ser o
perdedor desse triunfo. Afirmações semelhantes a estas de Renan abundam nas palavras de
muitos dos mais ilustres representantes que os interesses da cultura estética e a seleção do
espírito têm no pensamento contemporâneo. Assim, Bourget tende a acreditar que o triunfo
universal das instituições democráticas fará com que a civilização perca em profundidade o
que a faz ganhar em extensão.

1
A expressão é oportuna, além do dito popular. Pied-noir é o termo usado para classificar
cidadãos franceses que viveram na Argélia, no Marrocos e na Tunísia e foram responsáveis
pela administração destes (então) protetorados.

Tirado de
https://www.algeria.com/blog/the-history-of-the-pied-noirs/
Benjamin, décadas mais tarde, fará a célebre comparação do progresso com um quadro de
Paul Klee. O anjo da História mira o passado, que é, simultaneamente, o paraíso. Algo o
impede seu retorno, algo impele para que siga caminhando, para frente e para frente. Algo o
que?

”Há um quadro de Paul Klee que se chama Angelus Novus. Representa


um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente.
Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O
anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o
passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma
catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as
dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e
juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se
em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa
tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as
costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa
tempestade é o que chamamos progresso.” (BENJAMIN, Walter, p.
226, 1994)

E o curioso, pensamos, não é o fato de que Rodó e Benjamim pensassem na metáfora da


Tempestade para demonstrar a preocupação com os efeitos arrasadores do capital nos
humanos. O inusitado é visão antitética que os citados autores possuem sobre os criadores das
tempestades. Benjamin não deixa dúvidas: a tempestade é o progresso, seu vetor é para
frente, sem que exista a possibilidade de parar, pensar, refletir. O progresso, por sua vez, é a
razão de existir dos nossos tempos, de um sistema voltado para a produção. Se conectarmos
com o mito fáustico, pela ótica de Berman (TUDO O QUE É SÓLIDO), chegaremos à
conclusão de que este humano, proponente do progresso, é o que pactua com Mefisto. É o
portador da magia, é o contratante que, em nome do futuro, renegou seus próprios princípios
espirituais. Acrescendo a interpretação de Bloom, este Fausto e este Mefisto são também
Próspero e Ariel. Eles são culpados.
No entanto, para Rodó, o culpado continua a ser o escravo disforme. Importa o conceito
renaniano de que Caliban é o povo e de que a democracia dará um tiro nos próprios pés. A
democracia, para Rodó, ocasionará sim ganhos em extensão, mas perdas em profundidade. A
democracia é o povo, mas Rodó não se interessa em simbologias, quando se trata de
descobrir quem foi o proponente da Tempestade. É Caliban quem se interessa pelo fordismo,
pela produção em massa? É Caliban quem se interessa pela divisão internacional do trabalho,
aumentando as distâncias entre espaços de poder e de produção, ou é apenas integrante dessa
massa informe de mão de obra?
O Arielismo surge na América do Sul em um vácuo, que pode ser explicado pela máxima de
Gramsci (2014, p. 187): "[...] o velho está morrendo e o novo não pode nascer". Rodó já
consegue compreender a alienação como decorrência natural dos modelos de produção norte-
americanos (e, então, olha para frente: para Benjamin, que, à época, tinha 8 anos; para
Adorno, que sequer tinha nascido). No entanto, ao advogar por déspotas esclarecidos e
princípios iluministas, o uruguaio mira Renan, o passado, e só evoca saudade daquilo que
nem viveu,
Assim, temos uma síntese do que foi o Arielismo: se é para ser colonizado, se é para orbitar
como satélite de uma potência, Rodó opta pelo jugo com pompa e circunstância europeu, e
não pelo domínio utilitarista da América do Norte.
Paul Klee: Angelus Novus, 1920

Rodó se opõe a Sarmiento e a sua máxima de que a Argentina deveria ser mais ‘americana’
do que latina. Meio século após a publicação de Facundo, o uruguaio revisitará o tema da
contraposição dos conceitos de ‘civilização’ e ‘barbárie’. A fuga da barbárie proposta por
Sarmiento é transformada em elementos simbólicos: o espiritualismo de Ariel e o
materialismo utilitarista de Caliban. (RICÚPERO, 2016) O fim do libelo de Rodó segue à
regra: se há uma mediação entre Caliban e Ariel, esta só pode ser executada pelo intelecto,
por Próspero. Da alegoria, o autor funda a figura da ‘democracia nobre’, que nada mais é do
que a união do materialista Caliban e do espiritualista (e aristocrático) Ariel (RICÚPERO,
2016). É, aliás, Próspero quem diz: “a multidão, a massa anônima, não é nada por si mesma.
A multidão será um instrumento de barbárie ou de civilização se careça ou não de uma alta
direção moral” (RODÓ, 2003, p. 220).
A última cena de Ariel não foge da simbologia que o erigiu. Em um livro marcado pelo
diálogo entre Próspero e alunos, no fim, os discípulos se despedem de seu mestre, ainda
pensativos: “Sob o abrigo de uma reflexão unânime, todos experimentavam essa destilação
sutil da meditação, absortos em assuntos graves”. Retornam para a realidade com o contato
com a multidão, que enche as ruas – e o “contato áspero” é visto como como um desarranjo
aos elevados pensamentos que, até então, tinham: “A única coisa que perturbava o êxtase era
a presença da multidão. Um sopro morno fazia o ambiente estremecer com languidez e
deleite, como o cálice trêmulo na mão de uma bacante.”
Escorregam, então, seus olhos para os céus, e percebem que “as grandes estrelas cintilavam
no meio de um séquito infinito.” Admiram Aldebarã, Sirius e o Cruzeiro do Sul. Neste ponto,
o mais jovem dos alunos talvez tenha pensado em Renan (e na construção de Caliban como
um assaltante do céu) para falar: "Enquanto a multidão passa, observo que, embora ela não
olhe para o céu, o céu a observa”
Não é Caliban que olha para Ariel. É o céu que precisa vigiar a multidão. E assim o
Arielismo se finca de vez na formação da identidade do pensamento latino-americano no
Século XX.

Caliban no Divã: A psicologia da Colonização de Mannoni e a resposta de Frantz


Fanon.

“Há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã
filosofia.”
Mais uma vez, é preciso pensar no contexto do mundo que se iniciava após a Segunda
Guerra: um mundo que tentava se erguer após a experiência do holocausto, a falência dos
mandatos coloniais, a nascente bipolarização. Neste período, Octave Mannoni escreverá a
Psicologia da colonização (1950). À luz da psicanálise, e utilizando-se das figuras da
literatura do europeu que se refugia a um local insular e aí se depara com o Outro (Próspero
& Caliban, Crusoé & Sexta-Feira) o autor pretendeu demonstrar a relação entre colonizados e
colonizadores.
Em um primeiro momento, a teoria não é mais que uma releitura da visão iluminista:
O colonizador, diz Mannoni (1990), oscila constantemente no pêndulo entre ‘corrigir’ os
‘erros’ do selvagem e o desejo de identificação - o retorno a um paraíso perdido.
(MANONNI, 1990).
Até então, a proposta não é nova: o caráter ambivalente do contato entre europeus e outros
povos já fora estudado por Montesquieu: os selvagens eram rudes e irracionais; no entanto,
sua pureza devia servir de parâmetro para recuperar o velho e viciado continente. a figura
ambivalente se cindirá, E suas partes serão lembradas quando a conveniência for oportuna: o
“Bom selvagem” lembrará que o homem é puro, mas a civilização o corrompe; por isso, o
conceito será evocado como suporte dos contratos sociais, necessários para coibir os abusos.
De outro lado, o Leviatã e A utopia mostrarão a maldade original, que pode ser balizada
pelo Estado, pela civilização - e estarão, tais obras, na carga genética das ideologias
expansionistas, no “fardo do homem branco” em sua missão de levar aos bárbaros a
civilização.
Assim, uma primeira conclusão se mostra: ao pensar em estágios diferentes, Mannoni foi
influenciado pelo evolucionismo e pela corrente da antropologia cultural. Não é tributário,
portanto, da linhagem poligenista e do darwinismo social. Tal afirmação pode ser encontrada
no prefácio da edição americana de seu estudo:

“...O que nos é apresentado é, sob uma fina nova roupagem, muito a
visão "recebida" da evolução social que foi aceita na primeira parte do
século XX, através da gradual osmose das teorias de antropólogos e
cientistas sociais do século XIX. Como foi o caso de muitos desses
escritores iniciais, o argumento de Mannoni combina história europeia,
ontogenia e antropologia evolutiva.” (BLOCH, 1990)
A seguir, o autor dá cores psicanalíticas à diatribe – e, aqui, outra consideração merece ser
feita. Embora formulada com problemas (que o próprio Mannoni obervará posteriormente), a
Psicologia da colonização será a pedra fundamental para a leitura psicanalítica de A
Tempestade. Desta linhagem, segundo Alden T. Vaughan & Virginia Mason Vaughan (2014)
colacionam-se os seguintes livros ou ensaios:

 Shakespeare: New Psychoanalytic Essays, ed. by Murray Schwartz and Coppélia


Kahn (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1980),.
 Ensaio The providential Tempest and the Shakespearean Family do livro Man's
Estate: Masculine Identity in Shakespeare. Coppélia Kahn - 1983
 Prospero’s Wife de Stephen Orgel – 1984
 Discourse and the Individual: The Case of Colonialism in "The Tempest" de Meredith
Anne Skura – 1989
 Suffocating Mothers: Fantasies of Maternal Origin in Shakespeare's Plays, Hamlet to
the Tempest – Janet Adelman – 1992
 David Sundelson, ‘So Rare a Wonder’d Father: Prospero’s Tempest’, in Representing

O estudo de Mannoni não é só o primeiro - é também o que teve mais ecos nos estudos pós-
coloniais – para o bem e o para o mal. Por isso, justificamos o olhar mais detalhado sobre tal
obra, e a crítica que se originou desta.
Duas são as figuras psicanalíticas principais na obra de Mannoni: A supercompensação de
Adler (FANON, 2020) e o complexo paterno. Em síntese, este originariamente foi concebido
por Freud como um aspecto do complexo de Édipo (VAUGHAN & VAUGHAN). Aquele,
um estímulo no indivíduo que se sente inferiorizado em um nicho para buscar uma
compensação em outra senda. Nas palavras de Adler:

Quando o senso de inferioridade se avoluma ao ponto de [o indivíduo]


recear jamais ser capaz de compensar sua fraqueza, surge o perigo de
que, em sua luta pela compensação, [não se] satisfaça com uma
simples realização do equilíbrio das forças; exigirá uma
supercompensação, procurará o superequilíbrio das conchas da
balança!
ADLER. P. 83, 1957).

Em verdade, a extensão do senso de inferioridade fora, já por Adler, estendida para uma
‘sobrecarga social ou econômica.

Isto que afirmamos para quem tem uma inferioridade orgânica,


também se aplica a quem quer que esteja sobrecarregado, social ou
economicamente, com algum peso adicional capaz de produzir uma
atitude hostil para com o mundo. O rumo decisivo de suas vidas fica,
desde os primeiros tempos da existência, fixado. Essas crianças,
muitas vezes, sentem desde o segundo ano de vida que não são tão
aptas para a luta como as suas companheirinhas e por isso não se
atrevem a entregar-se aos brinquedos em comum. Em resultado de
privações anteriores, adquiriram a impressão de serem abandonadas, o
que se lhes revela na permanente atitude de ansiosa expectativa.
(ADLER, P. 77, 1957)

Mannoni, por sua vez, acrescentará a divisão étnica naquilo que Adler denomina como
“inferioridade orgânica”. O complexo de inferioridade gera a supercompensação. Tal fato,
aliado do complexo paterno, possibilitará uma interpretação nova (e polêmica) sobre o
colonizador e o colonizado.
Para o europeu, as diretrizes psicanalíticas acima demonstradas aponta que sua vida é iniciada
com a dependência de seus pais. Ao crescer, o vínculo de dependência é rompido e há um
‘abandono’ por seus genitores. Tal ‘abandono’ pode resultar em crescimento pessoal ou
incubar um “complexo de inferioridade” que o levará a querer dominar outros povos.
(BLOCH, 1990). Aqui, como na gênese do selvagem de Montesquieu, há uma evidente
ambivalência: inconscientemente, diz Mannoni, há, de um lado, o desejo de correção, que
pode ser ligado ao país natal (e ao projeto imperialista que o norteia); do outro canto, não há
como subtrair desta identificação as memórias que o colonizador tem da própria infância (e
da sua própria culpa inconsciente por ter abandonado seus pais) (BLOCH, 1990)
Dessa forma, formulará o seu “Complexo de Próspero”: não só as memórias de um paraíso
perdido são afloradas no colonizador, mas também o desejo de conquistar é mostrado como
algo ancestral. Assumindo-os como um complexo, Manonni entende que estes desejos estão
presentes de forma latente e reprimida na psique do europeu. A experiência colonial, segundo
o autor, simplesmente os trouxe à tona.

What the colonial in common with Prospero lacks, is awareness of the


world of Others, a world in which Others have to be respected. This is the
world from which the colonial has fled because he cannot accept men as
they are. Rejection of that world is combined with na urge to dominate, an
urge which is infantile in origin and which social adaptation has failed to
discipline. The reason the colonial himself gives for his flight—whether he
says it was the desire to travel, or the desire to escape from the cradle or
from the ‘ancient parapets’, or whether he says that he simply wanted a
freer life—is of no consequence, for whatever the variant offered, the real
reason is still what I have called very loosely the colonial vocation. It is
always a question of compromising with the desire for a world without
men. As for the man who chooses a colonial career by chance and without
specific vocation, there is nevertheless every possibility that he too has a
‘Prospero complex’, more fully repressed, but still ready to emerge to view
in favourable conditions.

O que falta ao colonial em comum com Prospero é a consciência do mundo


dos Outros, um mundo no qual os Outros precisam ser respeitados. Este é o
mundo do qual o colonial fugiu porque não pode aceitar os homens como
são. A rejeição desse mundo é combinada com um desejo de dominar, um
impulso de origem infantil que a adaptação social falhou em disciplinar. A
razão que o colonial dá para sua fuga - seja dizendo que foi o desejo de
viajar, ou o desejo de escapar do berço ou dos 'antigos parapeitos', ou
simplesmente queria uma vida mais livre - não tem importância, pois,
qualquer que seja a variante oferecida, a razão real ainda é o que eu chamei
de forma bastante solta de vocação colonial. É sempre uma questão de fazer
concessões ao desejo por um mundo sem homens. Quanto ao homem que
escolhe uma carreira colonial por acaso e sem uma vocação específica, há,
no entanto, toda possibilidade de que ele também tenha um 'complexo de
Prospero', mais completamente reprimido, mas ainda pronto para surgir em
condições favoráveis. (MANNONI, P. 109, 1990)

O autor relembra que a conceituação do selvagem existia antes de Defoe – e cita ‘As histórias
das viagens ao Brasil’ de Jean de Léry (1572). Outrossim, menciona a inconsciente tendência
que leva milhares de europeus a procurarem ilhas oceânicas, habitadas por Calibans ou
Sextas-Feiras; a insularidade destes locais é cotejada com ilhas remotas da geografia mental
humana; nestas ilhas, prossegue o psicanalista, os europeus acreditam que podem usar da
força bruta contra seus habitantes (contra as criaturas aterrorizantes de seus inconscientes).

Mais problemática ainda é a análise que Mannoni faz do colonizado.

Caliban is the unruly and incorrigible son who is disowned. Prospero says
he was 'got by the devil himself'. At the same time he is the useful slave
who is ruthlessly exploited. But Caliban does not complain of being
exploited; he complains rather of being betrayed,

Caliban é o filho indisciplinado e incorrigível que foi rejeitado. Próspero


diz que foi "conquistado pelo próprio diabo". Ao mesmo tempo, ele é o
escravo útil que é explorado implacavelmente. Mas Caliban não se queixa
de ser explorado; ele reclama de ter sido traído.

O fim do excerto sintetiza o pensamento de autor: Caliban, arquétipo de povos menos


evoluídos, não se queixa ser explorado, mas de ter sido traído.
Algumas considerações: 1. se, no europeu, o complexo de dependência pode gerar a
inferioridade que é causa do jugo, nos povos africanos, o complexo de dependência é a razão
por que aceitam o jugo - e aqui se explica a primeira parte da sentença: Caliban não se
queixa de ser explorado. 2. Tanto no europeu quanto no africano, as raízes são iluministas.
Para os europeus, há a seguinte explicação:

A história do indivíduo também é a história da Europa. Havia, há


muito tempo, na Europa, um estado primitivo de sociedade em que a
"dependência" de alguma forma se combinava com o igualitarismo.
Então, durante o período feudal, a dependência apagou todos os
vestígios de igualitarismo, e a dependência reinou supremamente.
Depois, com a revolução (francesa), veio a democracia e a república, o
que significou que a sociedade como um todo virou as costas para a
dependência e passou a valorizar o igualitarismo e o individualismo.
Essa rejeição da dependência às vezes levou ao desenvolvimento de
um complexo de inferioridade nacional, mas também continha em si o
potencial para a "liberdade", uma "liberdade" que, como Mannoni a
imagina, parece dever muito ao existencialismo francês do pós-guerra.
Essa fase final na história da Europa produziu, entre outras coisas, os
colonizadores franceses. Eles são um exemplo de pessoas que sofrem
da variante de "complexo de inferioridade" da modernidade e tentam
compensar isso dominando os povos colonizados.
(BLOCH, 1990)

Já para os povos de matriz africana (e que, de forma extensiva, poderia ser utilizado aos
americanos e asiáticos), há o rótulo de “primitivos”, pressuposto quase imediato para
chegarmos ao conceito de evolução:

Esta história da Europa também explica os diferentes tipos de culturas


encontradas em diferentes partes do mundo. Os povos mais primitivos,
como os africanos, estão em um estado de dependência, mas ainda
retêm certo grau de igualitarismo primitivo. Outros povos mais
evoluídos e semicivilizados estão em um estado de feudalismo, e,
assim, sofrem do complexo de dependência sem traços de
igualitarismo primitivo ou da liberdade republicana moderna.
Mannoni assegura-nos, no entanto, que não pretende implicar, com
essa fusão do desenvolvimento individual e histórico, que os povos
sujeitos das colônias são crianças retardadas. Eles são adultos, mas
retêm o estado de dependência ao inventar pseudo-pais ao longo da
vida na forma de anciãos e ancestrais aos quais prestam culto.
(BLOCH, 1990)

O prefaciador então sublinha que Mannoni não quis comparar a população das colônias com
“crianças retardadas.” Ao contrário, “ Eles são adultos, mas retêm o estado de dependência ao
inventar pseudo-pais ao longo da vida na forma de anciãos e ancestrais aos quais prestam
culto”. (BLOCH, 1990)
Adiante, ao mostrar que Mannoni fez seu estudo com a população costeira de Madagascar,
“primitivos como os africanos”. Deixa claro que o autor, descontente com o adjetivo, usou-o
entre aspas. E, dessa forma, conclui que os “primitivos’ malgaxes, devido o seu “complexo
de dependência”, precisam ter figuras parentais para não enlouquecerem.
No entanto, munidos das vestimentas, da linguagem e dos livros do colonizador, em
determinado momento, o colonizado postulará a mesma existência do colonizador (uma
figura que a crítica pós-colonialista denominará como evolué). Ao migrar para a Europa, ou
ao postular o mesmo reconhecimento e os mesmos direitos do colonizador, o colonizado
perceberá como seu projeto foi inútil. Foi chamado para a civilização e descobriu sua
identidade projetada pelo que o Outro edificou. No entanto, ao postular sua existência, foi
traído: o chamado civilizatório era falso. Desta constatação, nasce o seu complexo de
inferioridade. E, enfim, conseguimos ler com maior clareza a segunda parte da sentença que
acima sublinhamos: Caliban não se queixa de ser explorado; ele reclama de ter sido traído.
Uma incisiva resposta não demorou para ser dada. Frantz Fanon (1925-1961) nasceu na
Martinica, então colônia francesa. Voluntariou-se para lutar contra o nazismo em 1944 e, em
1948, chegou à Lyon para estudar psiquiatria. Lá, tem aulas de Jean Lacroix, Merleau-Ponty,
além do contato com ideias de Freud, Jung, Adler, Sartre, Jaspers, Lacan, Marx, Hegel,
Nietzsche. (FAUSTINO, 2015); outrossim, aproximou-se de grupos universitários, inclusive
fundadores da Negritude. (BARBOSA, 2020).
Pele Negra, Máscaras brancas é, além de outras coisas, a resposta que Fanon dá a Mannoni.
Mas a crítica ao método adleriano não é só uma resposta a este autor, mas um grito que já há
algum tempo ameaçava romper. Para compreender o contexto, retrocederemos uma casa para
mirar a gênese da obra fanoniana. Aos 27 anos, compôs sua dissertação para a conclusão de
Medicina, “Essai sur la désalienation du Noir” (Ensaio para a desalienação do Negro) mas o
texto, que confrontava problemas sócio-psiquícos do colonialismo, foi rejeitado por seu
supervisor, Jean Dechaume. O motivo era que o mainstrean da psiquiatria adotava, já, uma
abordagem positivista capaz de explicar o psicológico através do fisiológico. (FAUSTINO,
2015). Em seu lugar, propôs um trabalho sobre a doença de Friedreich, mas não se escusou
de apontar questões socioculturais, além de postulados teóricos. Sobre tal fato, um resumo é
dado por Patrick Ehlen,
No contexto do desenvolvimento de teoria da psicologia humana de
Fanon, a sua atenção para a lei de Levy-Bruhl [a coexistência de
pensamento lógico pré-lógico] revela um entendimento de simpatia
para com visão de mundo cultural do paciente acima e além de
qualquer teoria médica. A tarefa do psiquiatra, então, não se torna
simplesmente para entrevistar o paciente e, em seguida folhear um
livro para descobrir o diagnóstico e solução, mas fazer um esforço
para "alcançar" o paciente através de símbolos próprios do paciente e
sistemas de crença (EHLEM apud GORDON, 2015)
Em 1955, revisitou a antiga dissertação, que já continha suas reservas com a Negritude, sua
decepção com o prefácio de Sartre e sua concepção positiva e revolucionária da identidade
negra: assim, nascia Pele Negra, Máscaras brancas. (GORDON, 2015). Após esta
observação, fica mais nítida a resposta que Fanon dá a Mannoni
.

(...)não podemos aderir à parte do trabalho de Mannoni que tende a


patologizar o conflito, isto é, a demonstrar que o branco colonizador tem
por única motivação o desejo de pôr fim a uma insatisfação, no plano da
supercompensação adleriana.

A utilidade deve balizar a formação desta renascença africana, alerta Fanon. Buscar passados
ideais, encontrar estruturas inatas ou superegos não mudará a geografia africana, dividida de
acordo com os interesses dos dominadores, nunca respeitando as subdivisões etnicas. De nada
adianta que um estudioso como Martin Bernal (BERNAL, 1987) afirme que Atena, figura
central do panteão helênico, seja uma continuação da deusa egípcia Neith. A existência
universal do inconsciente freudiano não muda a demagogia e os assassinatos no consciente:

(...) as descobertas de Freud não nos são de nenhuma utilidade. É preciso


recolocar estes sonhos no seu tempo, e este tempo é o período em que
oitenta mil nativos foram assassinados, isto é, um habitante para cada
cinqüenta; e colocá-los no seu lugar, e esse lugar é uma ilha de quatro
milhões de habitantes, no seio da qual nenhuma verdadeira relação pode ser
iniciada, onde as dissensões pipocam aqui e além, onde mentira e
demagogia são os únicos senhores. (FANON, p. 98, 2020)

O touro negro, diz Fanon, não é o phallus, os dois homens negros não são dois pais, um o
real, o outro o ancestral. A arma do soldado senegalês não é um pênis, e sim um fuzil Lebel
1916.

As escolas psicanalíticas estudaram as reações neuróticas que nascem em


certos meios, em certos setores da civilização. Obedecendo a uma exigência
dialética, deveríamos nos perguntar até que ponto as conclusões de Freud
ou de Adler podem ser utilizadas em uma tentativa de explicação da visão
de mundo do homem de cor.
(...)
Muito se falou da aplicação da psicanálise ao preto. Desconfiando do uso
que dela poderia ser feito, preferimos intitular este capítulo: “O preto e a
psicopatologia”, uma vez que, nem Freud, nem Adler, nem mesmo o
cósmico Jung em suas pesquisas pensaram nos negros. No que bem tinham
razão. As pessoas esquecem constantemente que a neurose não é
constitutiva da realidade humana. Quer queira quer não, o complexo de
Édipo longe está de surgir entre os negros (FANON, p. 134, 2020)

Fanon critica os dois polos da conceituação. Sobre o ‘complexo de Próspero’. afirma tratar-se
de um conjunto de disposições neuróticas que desenham ao mesmo tempo ‘a figura do
paternalismo colonial’ e o ‘retrato do racista cuja filha foi objeto de uma tentativa de estupro
(imaginário) por parte de um ser inferior’.
Com relação a explicação psicanalítica do colonizado, algumas respostas de Fanon merecem
destaque. Primeiro, pela falta de fundamentos da noção que o malgaxe possuía complexo de
dependência antes da chegada do europeu. Sobre tal fato, lembramos as palavras de xxx,
prefaciadora da edição americana.

The settler mentality is not, then, created by the colonial situation.


Shakespeare knew that it was there in human nature and drew the
colonial type in Prospero, the escapist deeply reluctant to give up his
magic, to leave his desert island and to return to the society of people
who would argue with him.
A mentalidade do colonizador não é, então, criada pela situação
colonial. Shakespeare sabia que ela existia na natureza humana e
retratou o tipo colonial em Prospero, o escapista profundamente
relutante em abrir mão de sua magia, deixar sua ilha deserta e voltar à
sociedade de pessoas que discordariam dele.
(MANNONI, p. 12, 1950)

O autor de Pele Negra Mascaras brancas compara a situação com um exemplo cirúrgico: o
aparecimento de varizes em um indivíduo não deriva de ter ficado muitas horas em pé, mas
de uma “fragilidade constitutiva da parede venosa,” Trata-se, portanto, de uma tentativa de
explicar o colonialismo responsabilizando o colonizado por formas latentes de seu
pensamento. E, para o postulado, dá uma resposta enfática: “A inferiorização é o correlato
nativo da superiorização europeia. Tenhamos a coragem de dizer: é o racista que cria o
inferiorizado.” (FANON, 2020)
Também refuta a ideia de que a exploração colonial se diferencie de outros racismos. Neste
ponto, sugere que conceitos da fenomenologia e da psicanálise apenas mascaram o problema
central: “Ao querer considerar no plano da abstração a estrutura desta ou daquela exploração,
mascara-se o problema capital, fundamental, que é o de restituir o homem a seu devido lugar.
O racismo colonial não se diferencia de outros racismos” (FANON, 2020)

Já quando Mannoni afirma que nem todos os povos foram colonizados, somente os que
tinham essa ‘necessidade’ (através de um desejo inconsciente de domínio nos nativos). Fanon
assim responde: “Como se vê, o branco obedece a um complexo de autoridade, a um
complexo de chefe, enquanto o malgaxe obedece a um complexo de dependência. Todo
mundo fica satisfeito.” (FANON, 2020)
Kafka, que desdenhava da psicologia (BLOOM, 2013), cunhou a frase: “há esperança, mas
não para nós”. Em outro continente, em outras condições, Fanon interpretou assim a
desesperança da redução do colonizado: Há um complexo de dependência e, por isso, o
colonizado não se importa de submeter-se ao jugo. Se o aceita, o complexo de dependência
de um e o complexo de chefe do outro se harmonizam. Já se o malgaxe pleitear a altura de
um europeu, sofrerá do complexo de inferioridade ao perceber que tal porta está fechada. “De
fato, ele concede ao malgaxe a escolha entre a inferioridade e a dependência. Fora dessas
duas soluções, não há salvação”.
Em outras palavras, se aceitar a dependência, tudo ocorrerá bem. Se desejar um voo maior,
“então o dito europeu se irrita e rejeita o insolente”. Ao viver um fracasso, terá aflorado seu
complexo de inferioridade.
A linha de raciocínio se relaciona com o conceito de évolue, o produto final da política de
assimilação francesa nas colônias.

The évolué signified any African who had fully assimilated French
law, language, and customs. The évolué was the quintessential elite.
He received wider political and economic opportunities than the
indigenous masses. Consequently, the évolué was expected to admire
French life style and denigrate local mores

O évolué significava qualquer africano que tivesse assimilado


totalmente a lei, a língua e os costumes franceses. O évolué era a elite
sentimental por excelência. Ele recebeu oportunidades políticas e
econômicas mais amplas do que as massas indígenas.
Consequentemente, esperava-se que o évolué admirasse o estilo de
vida francês e repudiasse os costumes locais

DELANCEY, MBUH, p.160, 2010)

Trata-se desta figura que é chamada para ser assimilada e que, segundo Mannoni, gerará o
complexo de inferioridade.
Por fim, Fanon critica o conceito da inferioridade, que, para Mannoni, só existirá “entre os
indivíduos que vivem em minoria em um meio que predomina outra cor”. (xxx)

Mais uma vez, pedimos ao autor certa circunspecção. Um branco nas


colônias nunca se sentiu inferior no que quer que fosse; como tão bem
afirma Mannoni: “Ou será endeusado ou devorado”. O colonizador, embora
esteja “em minoria”, não se sente inferiorizado. Há na Martinica duzentos
brancos que se consideram superiores a 300 mil indivíduos de cor. Na
África Austral, há 2 milhões de brancos para cerca de 13 milhões de
nativos, e a nenhum nativo ocorreu a ideia de se sentir superior a um branco
minoritário.
(FANON, 2020, X)

A falácia de Manonni, acima exposta, torna-se mais nítida com a conceituação do hibridismo
de Bhabha. Para tal autor, a resposta está além das conveniências do universalismo ou da
busca homogeneizante da História. Seu tertium genus é, portanto, o que denomina como
hibridismo cultural, figura que não pode ser explicada tão somente pela antropologia ou pela
História, e está mais afeita à ‘diferença cultural’ do que à ‘diversidade cultural’ (xxxxx).
Tal locus não pode ser explicado por processos binários Eu/Outro ou Negro/Branco; seu
teatro é um ‘terceiro espaço de enunciação’ - e trata do Outro, cindido pela imagem que lhe
foi construída; trata, outrossim do Eu, que insere (que impõe) universalismos em troca do
antigo fardo humanizador. Neste contexto, e com tais premissas, relembramos a diatribe de
Césaire/Fanon e de Manonni.

Se a psiquiatria é a técnica médica que tem como meta permitir que o


homem não se sinta mais um estranho em seu ambiente, devo a mim
mesmo a afirmação de que o árabe, permanentemente estrangeiro em
seu próprio país, vive em um estado de absoluta despersonalização... A
estrutura social existente na Argélia era hostil a qualquer tentativa de
conduzir o indivíduo de volta ao seu devido lugar.
FANON – ACHAR

Ao negar o processo alienador de Freud (e de Manonni), Fanon nega que a História conflua
nos mesmos moldes na mente de um argelino e de um austriaco.

Ele (Fanon) não está levantando a questão do homem colonial nos


termos universalistas do humanista-liberal (De que forma o
colonialismo nega os Direitos do Homem?), nem levanta uma questão
ontológica sobre o ser do Homem (Quem é o homem colonial
alienado?). A pergunta de Fanon é endereçada não a uma noção
unificada de história nem a um conceito unitário de homem. Uma das
qualidades originais e perturbadoras de Pele Negra, Máscaras Brancas é
historicizar raramente a experiência colonial. Não há narrativa mestra
ou perspectiva realista que forneça um repertório de fatos sociais e
históricos contra os quais emergiriam os problemas da psique individual
ou coletiva
(BHABHA p. 73, 1998)

Fanon não nos revela iluminação alguma, mas expõe o declive nu, do qual nasce a autêntica
sublevação. Não se trata, aqui, da questão do homem colonial nos termos universalistas, nem
de questões ontológicas sobre o ser do homem. A luta contra a opressão colonial muda não
apenas o curso da História ocidental, mas contesta o próprio historicismo fundado no
progresso e na ordem. Tais constatações, diz Bhabha, mostram como Fanon evocou a
condição colonial de forma mais profunda – e que é relevante no presente tópico sobre
Caliban: o sujeito colonial, para o autor de Pele negra, máscaras brancas, é determinado de
fora, através da imagem e da fantasia - e, neste sentido, compreende-se como Fanon esnobou
a psicanálise de Freud e as releituras de Manonni. Seus trabalhos, ao contrário, foram no
sentido de articular o problema da alienação cultural colonial na linguagem psicanalítica da
demanda e do desejo.
A transição entre interesses individuais à autoridade social – o mito do Homem e da
Sociedade - não pode ser reproduzido na situação colonial, diz Fanon. As virtudes civis,
nestes casos, possuem núcleos de violência política e psíquica e alienam a identidade:

não o Eu e o Outro, mas a alteridade do Eu inscrita no palimpsesto


perverso da identidade colonial. E e aquela figura bizarra do desejo, que
se fende ao longo do eixo em torno do qual gira(...)
(BHABHA p. 75, 1998)

O palimpsesto, terreno da construção da identidade, a que Bhabha se refere, é metáfora da


atualização do mundo. Etimologicamente, do grego, palin significa várias vezes e psestos,
raspado. Tal qual um escriba que reescreve no mesmo receptáculo, o cartógrafo consegue
apagar a estrutura anterior do mundo, reescrevendo seus mapas “com outros nomes, outros
acidentes geográficos e outros conhecimentos. Através deste trabalho palimpséstico, o espaço
vazio torna-se lugar habitado, sob o domínio do colonizador.” (BONNICI. 2005).

Despite its tabula rasa appearance, the map was, from the beginning,
designed to record particular informa¬ tion. As the spaces of its grid
were written over, there was revealed a palimpsest of the explorer’s
experience, a criss-cross of routes gradually thickening and congealing
into fixed seas and lands
Apesar da aparência de tabula rasa, o mapa foi, desde o início, pensado
para registrar informações específicas. À medida que os espaços de
suas grades eram escritos, revelava-se um palimpsesto da experiência
do explorador, um cruzamento de rotas que gradualmente se
adensavam e congelavam em mares e terras fixas.
CARTER. P. 23, 1987

Dois lócus aqui se entrecruzam: o lugar geográfico, compreendido como um discurso em


desenvolvimento, um palimpsesto (BONICCI, 2005). E a construção da identidade nas
condições coloniais. Da interseção de tais espaços, quais sejam, o limite geográfico de um
estado-nação destituído de sua soberania e a cartografia dos valores, das crenças e dos vícios
de uma mente, a noção de tábula rasa é duplamente aplicada. O que é frequentemente
chamado de alma negra é um artefato do homem branco (FANON, 2020), assim como os
mandatos coloniais eram sustentados pelo direito internacional e pela Liga das nações. Se, na
ponta do iceberg, as mesmas justificativas são consideradas (o conceito de nação atrasada, o
conceito de cultura menos desenvolvida, se comparada com a matriz eurocentrica), na outra
ponto, submerso, para Fanon e Bhabha, está o desejo, como força motriz do jugo (territorial,
cultural).
E, desta forma, analisando as premissas de Pele negra, máscaras brancas, Bhabha (1998)
arrola três condições implícitas para a compreensão do processo de identificação na analítica
do desejo:

1. Existir tem correlação necessária com a alteridade. De um lado. o desejo colonial depende
do outro; o ideário da posse não se concretizaria se não houvesse Calibans; O vetor oposto
também é verdadeiro, a chancela da existência depende do olhar para o colonizador. Neste
sentido, diz Fanon (2020): “...não há um nativo que não sonhe pelo menos uma vez por dia se
ver no lugar do colono." Desta afirmação, bem como do ideário de posse, permite-se
concluir: é sempre em relação ao Outro que o desejo colonial é articulado. Seja pela posse ou
pela inversão de valores.

2. “o próprio lugar da identificação, retido na tensão da demanda e do desejo, é um espaço de


cisão”. Com isso, Bhabha sugestiona que Pele Negra, Máscaras brancas não propõe uma
divisão clara, mas uma visão duplicadora, “dissimuladora de ser em pelo menos dois lugares
ao mesmo tempo.”

Aqui, voltamos ao conceito de évolué. O europeu não apenas enxerga o outro através da
edificação que fez, mas chama o colonizado para ingressar em seu mundo. Através do
discurso colonial historicista faz-se um chamamento à civilização. No colonizado,
inescapável a cisão no constructo de sua identidade: é um diferente do europeu e, ao mesmo
tempo, pretende-se que seja diferente, entre seu povo.

"Você e um médico, um escritor, um estudante, você e diferente, você


e um de nos." E precisamente naquele uso ambivalente de "diferente" -
ser diferente daqueles que são diferentes faz de você o mesmo - que o
Inconsciente fala da forma da alteridade, a sombra amarrada do
adiamento e do deslocamento. Não é o Eu colonialista nem a Outro
colonizado, mas a perturbadora distância entre as dois que constitui a
figura da alteridade colonial - o artificio do homem branco inscrito no
carpo do homem negro (BHABHA, p. 76, 1998)

3. Por fim, o entendimento de que a identidade nunca é uma profecia pré-estabelecida, nunca
se trata da afirmação de uma identidade já dada, mas produção de uma imagem de identidade
e a transformação (e a fissura) de um sujeito para alcançar tal imagem. Tal cisão não apenas
desnudará a demanda do desejo do colonizador e a impossibilidade do colonizado de alcançar
este ideário (que Mannoni chamará de ‘complexo de inferioridade’). Na sociedade, também
causará uma fratura delicada.

The policy of direct rule recognized and absorbed trained African


personnel, the citoyens or évolués, to serve in administrative positions
over the sujets. Such a system of administrative control created a gulf
between the educated, French-assimilated elite and the common man
A política de governo direto reconheceu e absorveu pessoal africano
treinado, os citoyens ou évolués, para servir em cargos administrativos
nos sujets. Tal sistema de controle administrativo criou um abismo
entre a elite educada e assimilada pela França e o homem comum.
DELANCEY, MBUH, p. 131, 2010)

Ecos: o problema da fala.

A língua é um assunto central nos debates pós-colonialistas. Para compreender sua


relevância, no entanto, retrocedemos alguns passos e, novamente, abrimos a discussão com a
Tempestade de Shakespeare. Em uma das cenas mais famosas da peça, Caliban amaldiçoa
Próspero pelo ensino da língua desta.

You taught me language; and my profit on’t Is, I know how to curse.
The red plague rid you For learning me your language.
A resposta de Caliban será usada como parâmetro da reinterpretação da peça e dos valores
históricos presentes em sua edificação. Césaire concentrará seus esforços na resposta que o
personagem dá ao colonizador e, na crítica anglófona, Ngugi também recorrerá a Caliban
para pontuar a língua como ponta de lança da resistência. Ashcroft, em um livro destinado ao
personagem shakespeariano e à fala, resume a ‘superioridade moral’ de Próspero na
linguagem, instrumento que usa para nomear e controlar a ilha. (xxx)

Vale lembrar, o arcabouço formal das teorias raciais não havia sido formulado à época da
escrita de A Tempestade. Por isso, a categorização racial não é elemento explícito para
distinguir as posições de Caliban e Próspero. Dessa forma, a régua de julgamentos do Outro
era feita de outras formas, a mais visível a sua animalização. Caliban nasce sob o anagrama
de canibal e a ausência da fala sublinhará a caracterização que o europeu o faz, como um
animal irracional.
A representação ambígua de Caliban ocorre porque as noções de raça
ainda não haviam se consolidado quando Shakespeare escreveu, e não o
fariam por um século e meio. As direções, insinuações e descrições
ambíguas de Caliban na peça surgem porque, embora o conceito de
"canibal" já estivesse enraizado na psique europeia como o sinal
absoluto do outro, ainda não estava conectado à categoria de raça. O
que descobrimos aqui são as origens do racismo em uma distinção mais
radical - entre humanos e animais - e a conexão subsequente entre raça
e escravidão. Miranda chama Caliban de "escravo" além de "monstro",
e de fato ele foi escravizado.
Ashcroft. Calibans voice.

Da oposição entre humano e animal, bem como do uso da fala, algumas considerações
precisam ser feitas. A primeira é de como a língua, antes da caracterização racial, serviu para
edificar o conceito moderno de nação. Appia (xxx) coloca Herder, autor de On the New
German Literature: fragments, de 1767, como um marco desta conceituação teórica. É deste
autor o conceito de Sprachgeist, o ‘espírito da língua’, a síntese de que a comunhão do idioma
é mais que um meio de comunicação; a língua, para Harder, era o meio sagrado de pensar e
criar; ao mesmo tempo em que era comungada, tratava-se de um muro natural para separação
de outras civilizações. Era, em outras palavras, um identificador da nação. Importante
ressalvar, ainda, nesta época, buscava-se dar identidade aos conceitos de Estado e Nação.
O moderno nacionalismo europeu, que produziu, por exemplo, os
Estados alemão e italiano, foi uma tentativa de criar Estados que
correspondessem às nacionalidades, nacionalidades estas concebidas
como o compartilhar de uma civilização e, mais particularmente, de
uma língua e uma literatura. Exatamente pelo fato de a geografia
política não corresponder às nacionalidades de Herder, ele foi
obrigado a estabelecer uma distinção entre a nação como entidade
natural e o Estado como produto da cultura, como um artifício
humano. Página 111. Casa de meu pai
Neste contexto, é possível compreender não apenas como a língua se tornou ferramenta
importante na edificação de Estados contemporâneos, mas também o uso da literatura serviu
como instrumento aglutinador. A ressalva é importante e ecoará em pontos nevrálgicos na
formação da literatura de nações que passaram por processos coloniais. Outro ponto relevante
observado por Appiah é que, ao aproximar a ‘língua’ e a ‘literatura’ da ‘civilização’, Herder
distinguiu Estado e Nação: este era uma entidade natural, aquele, um produto da cultura, um
artifício humano.

A distinção do que é natural e cultural balizou a formação do nacional, do Estado, dos


elementos identificados com o ‘nosso’ e o ‘vosso’. Com o crescimento da influência das
ciências naturais, ampliou-se, outrossim, o objeto de estudo. Neste movimento, cada vez mais
o conceito de nação foi transformado em uma unidade biológica, antropológica. Ainda são as
antessalas das teorias racistas, mas trata-se de um movimento importante para entender como
a linguagem foi a ponte entre a antiga animalização e a edificação do racismo, como teoria.

Até então, a indeterminação do personagem era identificada com uma indeterminação da


natureza. Sua natureza animalesca e o não uso da linguagem, segundo Ashcroft, caracterizam
o que Singer (2003) chamará de especismo – e que pode ser simplificado como um tertium
genum entre o humano e o animal. Dessa forma, justifica-se a missão civilizadora, como
instrumento de resgate do outro, este ser naturalmente inferior.

A missão 'civilizadora' baseia-se na suposição profundamente especista


de que as línguas 'bárbaras' colocaram outros homens no nível dos
animais, colocando-os na necessidade de redenção cultural. Permanece
como certo que os animais são irreparáveis, eles permanecem a
binariedade final - não humanos. Uma das atitudes mais comuns dos
colonizadores era a constituição dos habitantes indígenas como parte da
natureza e, portanto, por implicação, não humanos, mas apenas uma
característica de um ambiente que precisava ser domado.
Calibans voice

Com Georges Cuvier, o termo raça é introduzido na literatura, e dá novo empuxo à disputa
entre poligenistas e monogenistas, no Século XIX (Schwarcz, 2005). Neste contexto,
Gobineau adota um elemento histórico, a ‘civilização’, ao parâmetro raça e, com isso, propõe
uma divisão hierárquica entre brancos, negros e amarelos. Renan, por sua vez, afastar-se-á da
ideia da degeneração, como resultado da miscigenação, como proposto por Gobineau. Da
mesma forma que Herder, Renan pensará na língua como instrumento da nação, sendo as
raças e as fronteiras delimitações próprias do Estado. No entanto, de forma diametralmente
oposta a Herder, Renan pensará na Nação como um constructo cultural, não natural.

A linguagem que permitiu a Caliban "nomear a luz maior e a menor"


(I.ii.337) e que, portanto, se torna compatível com a realidade em si, é
uma linguagem na qual a subsequente assunção de autoridade não
pode tolerar qualquer pensamento de mistura racial (nem linguística).
Em sua peça "Caliban", Renan faz Ariel dizer: "Prospero te ensinou a
língua ariana, e com essa língua divina o canal da razão tornou-se
inseparável de ti" (Renan 1896: 18). Havia um investimento muito
profundo na ligação entre linguagem e cultura no pensamento do
século XIX (quando Renan escreveu sua peça); de fato, é a força
dessa ligação que persiste nas suposições sobre a linguagem hoje. A
hibridez representa não apenas uma impureza racial, mas, mais
profundamente, ameaça perturbar a ligação entre linguagem e raça tão
importante para o pensamento racialista e, portanto, para a missão
civilizadora do imperialismo.

Renan é, assim, o arauto que deu nova roupagem à velha missão civilizatória. Se antes, o
especismo era a justificativa para a invasão e colonização, a hierarquia cultural, resultado da
edificação do seu conceito de ‘raça cultural’, será a engrenagem que permitirá ao humanismo
europeu sojigar e possuir sem ter peso na consciência. Renan é hábil ao deslocar o foco do
que liga o Nós e os Outros. É homem de seu tempo ao compreender que a raça é um elemento
natural, mas visionário ao dar castas a cultura – e, portanto, dar ao europeu novos motivos
para ver o outro. Mais, Renan é bom conhecedor do passado. Sabe que a linguagem e os
livros foram as armas letais no tempo de Próspero, e o continuarão a ser também em seu
tempo. E, ao mesclar a relevância Herderiana da linguagem com o racismo científico de
Gobineau, é este autor o pioneiro a levar Caliban da natureza para a cultura. Tal movimento,
pensamos, pode ser sintetizado por este excerto:

Dizes sem cessação que a ilha te pertencia. Em verdade, pertencia a ti, assim
como o deserto pertence à gazela, a selva ao tigre, e nada mais. Não conhecias
o nome de nada lá. Eras estranho à razão, e tua linguagem inarticulada se
assemelhava ao mugido de um camelo irritado mais do que a qualquer fala
humana.
(Renan 1896: 17)

A versão de Renan aprofunda, neste sentido, a física e a metafísica de Próspero, na


Tempestade augural. Na peça shakesperiana, a magia, decorrente do conhecimento dos livros,
e a fala, fim último da razão, coexistem, imbricados por uma teia invisível. O ‘fiat lux’, fala
que produz magia, é excluído da peça de Renan, mas não a ideia de que linguagem é poder.
Apenas por isso o Caliban de Renan exorta:

Esses livros do inferno - ah, como eu os odeio. Eles foram os


instrumentos da minha escravidão. Devemos arrancá-los e queimá-los
imediatamente. Nenhum outro método servirá a não ser este. Guerra
aos livros! Eles são nossos piores inimigos, e aqueles que os possuem
terão poder sobre todos os seus semelhantes. O homem que conhece
latim pode controlar e comandar as pessoas ao seu serviço. Abaixo
com o latim! Portanto, antes de tudo, apreendam seus livros, pois aí
está o segredo de seu poder.
Ashcroft associa a inarticulação dos povos indígenas com a conclusão de que há ali ‘espaços
vazios’. Para tal autor, o próprio conceito espacial aqui carece de delimitação precisa: trata-se
da formação da identidade do outro, “um papel no qual Miranda funciona ao fornecer os
termos pelos quais Caliban pode conhecer a si mesmo. Foi ela quem, ao ensinar a Caliban a
linguagem, o ensinou a "conhecer o próprio significado" (I.ii.358)” e também o uso do
renomear para possuir.

O ato de nomear e renomear lugares é uma demonstração potente das


maneiras pelas quais o poder de um discurso pode operar. O renomear
opera como se fosse o ato original e autoritário de nomear o lugar, ou
qualquer outro conceito, e é essa autoridade para descrever o mundo
que a linguagem de Prospero adquire. Pois nomear a realidade é, de
alguma maneira misteriosa, assumir o controle sobre ela, encaixando-
a em um esquema no qual todas as coisas têm sua relação porque
estão relacionadas na linguagem.

Não por outro motivo, Renan será o principal difusor da língua francesa como instrumento de
dominação. E aqui, frisa-se novamente os sutis ergos que possibilitam a propagação do
racismo que se alastrou no Século XIX. Nação e literatura se unem, assim como raças
culturais e nações. Superpondo-se tais conceitos, é possível explicar o florescimento da
“compreensão racial da literatura” da segunda metade do século XIX. Assim como Renan foi
para o imperialismo francófono, é possível destacar alguns marcos na ideologia anglófona.
Appia cita como exemplo o History of English Literature [História da literatura inglesa], de
Hippolyte Taine, que identifica a literatura nacional ao ‘estado moral’ de sua respectiva raça.
Para unificar ‘raça’ e ‘nação’ inglesa, colocando-as como centro do mundo, o autor busca as
origens anglo-saxônicas da literatura, excluindo as matrizes latinas e gregas.
É a concepção do núcleo unificador da nação inglesa como sendo a
raça anglo-saxônica que explica a decisão de Taine de identificar as
origens da literatura inglesa, não em seus antecedentes nos clássicos
gregos e romanos que forneceram os modelos e os temas de grande
parte das mais afamadas obras da “arte poética” *25 inglesa, nem nos
modelos italianos que infleunciaram a arte dramática de Marlowe e
Shakespeare, mas em Beowulf, um poema em língua anglo-saxônica,
poema este que era desconhecido de Spenser e Shakespeare, os
primeiros poetas a escreverem numa versão da língua inglesa que
ainda quase conseguimos entender.

A apologia ao passado heroico ganha mais relevância se entendermos a evolução do ensino


do inglês nas colônias. Neste ponto, Ashcroft lembra da carta de Lord Macaulay, de 1835,
para o parlamento britânico, defendendo o ensino da língua europeia. Neste momento, os
anglicistas vencem os orientalistas, e a Lei da Carta de 1813, que transferia a
responsabilidade pela educação indiana para a administração colonial, é revogada. Assim
como para Renan "A preservação e a propagação da língua francesa são importantes para a
ordem geral da civilização" (Todorov 1993: 146), Macaulay se apoiará na universalidade da
língua para justificar a expansão de seu ensino. Claro, retirando-se as fontes latinas e gregas
do orgulhoso cânone inglês. Para Ashcroft, a confusão entre o patrimônio histórico-cultural
de uma determinada nação (‘cultura linguística’) e a língua em si é exatamente o que a
confere poder. Se não fosse o ensino da língua inglesa, justificado por seu universalismo, as
administrações coloniais não teriam sido tão exitosas em seu projeto dominador (Said, 1993).
Nos lados franceses, a política acima descrita foi conceituada como assimilation. Sobre ela,
Appiah ilustra o inusitado quadro da administração colonial ensinando a crianças africanas
que os gauleses eram “nos ancêtres” (nossos ancestrais).

Naturalmente, só em sentido figurado uma criança senegalesa podia


afirmar descender de Asterix; e, como mostrou Camara Laye em E
Enfant noir, a escolarização colonial fracassou, tão notavelmente na
África francófona quanto na anglófona, em seu propósito de “libertar”
seus objetos de suas raízes culturais. Não importa em que sentido os
gauleses fossem seus ancestrais, eles sabiam que eram — e que se
esperava que continuassem a ser — “diferentes”. Para dar conta dessa
diferença, também eles foram remetidos a teorias raciais.

Casa de meu pai. P. 33.

A exposição, até o presente momento, tangenciou pontos já vistos em capítulos anteriores,


como as correlações de Renan com Caliban e o surgimento do racismo científico. No entanto,
pensamos, tal exposição é necessária para demonstrar como a questão da lingua esteve
presente em todos os projetos, desde os primitivos modelos de subjugar as populações
ancestrais, à época das grandes navegações até a edificação do cinetificismo do século XX.
Segundo Appia, é possível que todo grupo linguístico acredite na primazia de seu próprio
léxico. No entanto, poucos grupos aliaram a ideologia chauvinista com poder - político,
econômico, militar- necessário para dar marcha ao domínio cultural. Ao sublinhar os pontos
‘raça’, ‘nação’ e ‘literatura’, e a proximidade destes conceitos, debruçamo-nos sobre nações
que colocaram em prática o projeto expansionista, notadamente a língua inglesa, tendo
Macaulay como um dos principais fomentadores, e a língua francesa, que, por sua encontra,
tem Renan como patriarca ideológico. A seguir, mostraremos a outra face da moeda: como a
língua foi importante como elemento de resistência ao colonialismo e instrumento de
formação de identidade. Para tanto, usaremos a mesma divisão acima apresentada, mostrando
as particularidades e convergências do pensamento pós-colonial oriundo de países
francófonos e de países anglófonos. Também outro passo dado se faz necessário: se raça e
língua/literatura se tornam umbilicalmente ligadas no século XIX, para compreender a
defesa linguística das matrizes africanas, é preciso compreender como a questão racial foi
introduzida no pensamento dos nacionalistas africanos.
Appiah coloca Crummell como elemento topológico primitivo dos pensamentos nacionalistas
e panafricanistas. “(...) afro-americano de nascimento, liberiano por adoção e padre episcopal
com formação na Universidade de Cambridge” Alexander Crummel se debruçou sobre a
religião, educação e diplomacia e condensou muito de seus pensamentos no trabalho “The
future os Africa”. Neste futuro, Appia continua, havia um conceito norteador: a raça.

A “África” de Crummell é a pátria da raça negra, e seu direito de agir


dentro dela, falar por ela e arquitetar seu futuro decorria — na
concepção do autor — do fato de ele também ser negro. Mais do que
isso, Crummell sustentava que havia um destino comum para os
povos da África — pelo que devemos sempre entender o povo negro
4 —, não porque eles partilhassem de uma ecologia comum, nem
porque tivessem uma experiência histórica comum ou enfrentassem
uma ameaça comum da Europa imperial, mas por pertencerem a essa
única raça. Para ele, o que tornava a África unitária era ela ser a pátria
dos negros, assim como a Inglaterra era a pátria dos anglo-saxões, ou
a Alemanha, a dos teutões. Crummell foi uma das primeiras pessoas a
falar como negro na África, e seus textos efetivamente inauguraram o
discurso do pan-africanismo. É que ele pensava no povo da África
(em termos que o nacionalismo do século XIX tornava naturais) como
sendo um único povo, a ser concebido, à semelhança dos italianos ou
anglo-saxões, em certo sentido, como uma unidade política natural.
Esse é o pressuposto fundamental do pan-africanismo.

Segundo Appiah, duas são as principais correntes para explicar as diferenças e semlehanças
entre os povos. A grega, baseada em Hipócrates, explica a superioridade helênica por uma
conjuntura espacial: a aridez do solo forçou o povo grego a evoluir. Já a tradição judaico-
cristã se volta ao patriarca Abraão e sua linhagem. Seus descendentes se tornam “o povo de
Israel”, título sanguíneo que não guarda correlato com naturalizações ou universalismos.
Appiah se debruça sobre tais explicações para demonstrar como Crummel formou um
conceito distinto de “raça”.

nem o ambientalismo dos gregos nem a compreensão hebraica


teocêntrica da importância de ser um povo são idéias que devamos
naturalmente aplicar para entender o uso que Crummell faz da idéia
de raça. Na medida em que pensarmos na ideologia racial de
Crummell como moderna, como implicando idéias que nós
entendemos, deveremos supor que ele acreditava que as “propensões
estabelecidas e determinadas” refletiam as capacidades hereditárias de
uma raça. Em nossa época, a raça tornou-se, por definição, uma
questão de herança.

A edificação do conceito de raça de Crummel coexistiu com o alvorecer de uma “nova


concepção cientifica da hereditariedade biológica” que também se entrelaçava com a
revalorização da cultura na vida das nações. Assim, para o citado autor, não se trata de uma
concepção pura de raça: Crummell também tinha em mente as noções de civilização e
progresso – e sua ausência no continente africano.

Tal divisão é útil para entendermos alguns pontos desta doutrina. Em primeiro lugar, a ideia
de civilização como um corpus moral, religioso, político em que se fia uma sociedade, tem
analogia com a concepção cultural histórica que aparece com Renan. No entanto,
diferentemente do francês, Crummell não usará a língua como patrimônio edificante da
nação. Sendo a compleição de sua doutrina o todo, a unificação continental, a multiplicidade
de línguas africanas se mostrava como óbice, não como solução.

O envolvimento de Crummell com a questão da transferência da


língua inglesa para o negro africano contraria uma vigorosa tradição
da filosofia nacionalista europeia. Para Herder, profeta do
nacionalismo alemão e filósofo fundador da moderna ideologia da
nacionalidade, o espírito de uma nação expressava-se sobretudo em
seu Sprachgeist, o espírito da língua; e uma vez que, como observou
Wilson Moses, há muito de Herder em Crummell, seria esperável
vermos Crummell debatendo-se com a tentativa de descobrir nas
línguas tradicionais da África uma fonte de identidade. 19 Contudo, a
adoção desse princípio herderiano por Crummell enfrentou obstáculos
insuperáveis, entre eles seu conhecimento da variedade das línguas
africanas. É que, na época de Crummell, a nação fora inteiramente
racializada: admitindo-se seu pressuposto de que o negro era uma
única raça, ele não poderia buscar na língua o princípio da identidade
negra, simplesmente por haver línguas demais. Casa de meu pai.

O segundo ponto que se aproxima e se distende do modelo europeu está na própria forma de
enxergar a raça. Como as doutrinas nascentes europeias, Crummell usava a raça como
elemento de distinção entre povos – um elemento de unificação do que delimitava como o
seu povo. Era, portanto, uma teoria racialista. No entanto, não usava o elemento racial como
“base para fazer mal a alguém” (casa de meu pai, 48). Não era, então, um racismo extrínseco.
Sobre tais conceitos, julgamos necessárias algumas considerações. O racialismo foi atividade
nuclear do século XIX para moldar teorias de diferenciação, mas também se trata de conceito
que, advindo de Hegel, não pretende ser científico; sem postular hierarquia, tem como objeto
de estudo possíveis distinções entre as pessoas. Appiah, apesar de pensar que se trata de base
falaciosa, não a enxerga, a príncipio, como discriminatória. No entanto, é assertivo ao afirmar
que “o racialismo (...) é um pressuposto de outras doutrinas que foram chamadas de
‘racismo’. Neste ponto, o citado filósofo divide o racismo em intrínseco e extrínseco, o
primeiro sendo um distintivo que o faz reconhecer seus pares, o segundo, o uso da
particularidade para o domínio, em nome da hierarquia.

A lenta evolução (especismo, que se transforma em racialismo, que gera racismo/ Racismo,
que, ao passar do natural para o cultural, vincula-se com nação e com a literatura/ Racialismo
e tradição judaico-cristã que originam a base do pan-africanismo) é importante para
compreender a anatomia da gênese do pensamento pós-colonial. Crummel pensa em
cristianismo e racialismo quando pensa no futuro da Africa. De um lado, o todo racial não
admitiria a variação linguística - e, por isso, o inglês, tal como pensado por Macaulay,
continua para Crummell um instrumento importante. Por outro lado, a identidade que almeja
construir, a africanidade, é tecida por fios de racismo intrínseco. E, segundo Appiah, é tal
modelo que origina a retórica do discurso da solidariedade racial.

Embora a raça realmente esteja no cerne do nacionalismo pan-


africanista, entretanto, parece que é a realidade de uma raça comum, e
não a de um caráter racial comum, que proporciona a base para a
solidariedade

Em verdade, O panafricanismo nasce como pan-negrismo. Para Crummell, assim como para
Blyden, a África era a pátria do negro, e o afro-americano não seria nada além de um exilado
(casa de meu pai). É este o bastão que Du bois, sociólogo e ativista norte americano, pega, e
prega, em 1987. Seu pan-negrismo, no entanto, tinha falhas estruturais. Ao tomar o modelo
crummeliiano de raça, não se desvia da concepção de psicologia racial (que estará presente,
meio século depois, na Psicologia da Colonização de Mannoni). Tal modelo, ao eleger uma
forma de pensamento peculiar africana, cai na armadilha de pensar no continente como um
produto cultural homogêneo - característica que o beninense Paulin Houtondji denominou
como unanimismo (casa de meu pai, xxx). A partir de 1911, Du Bois caminha para o
panafricanismo, rejeitando o conceito científico de raça. Para tanto, percorre um trajeto já
conhecido. Ao tirar o foco em modelos hierárquicos biológicos, ao pensar na ancestralidade
para buscar a unidade, trilha uma vereda desgastada:

Mesmo na passagem que se segue à sua renegação explícita da


concepção científica, as referências à “história comum” — a “uma
mesma extensa memória”, à “herança social de escravidão” — só
fazem reconduzir-nos ao movimento já familiar de substituir a
concepção biológica da raça por uma concepção sócio-histórica; e
isso, como vimos, é simplesmente sepultar a concepção biológica sob
a superfície, e não transcendê-la.

O pan-africanismo do pós-segunda Guerra herda de Crummell e do mainstrean ocidental as


bases de um racialismo que afirma a diferença para postular a união. e estão presentes nas
falas de Nkrumah no contexto pós-guerra. Deste ponto, a reafirmação da raça (celebrar e
pautar-se em suas virtudes, e não depreciar e substituir seus vícios”) terá ecos tanto na
corrente francófona (Negritude) como em manifestações anglófonas, como por exemplo, o
culto à “personalidade africana” do já citado presidente ganês. Ainda que mitigado, o pan-
africanismo tem ecos atuais, bem como é usado para pautar políticas programáticas do
continente. É o que pode se obervar, por exemplo, na Agenda 2063, plano que tem DNA da
ideologia de Du Bois bem como da Organização da Unidade Africana (LIMA, Renan.
Agenda 2063 da União Africana: o que significa?. Publicado em:

19/03/2020.

Retirado de https://www.politize.com.br/agenda-2063-da-uniao-africana/
A exposição dos conceitos tangencia o problema da fala, objeto central do presente capítulo.
A edificação do termo ‘raça’, conforme demonstrado, ganhou contornos distintos nos
continentes europeu e africano. Com Renan, raça e língua iniciam uma aproximação,
duradoura e perigosa. Já no solidarismo africano, a imposição de uma língua seria apenas um
óbice a mais. Disso, fica mais nítido compreender como os movimentos da Negritude e da
Personalidade africana elegeram o particularismo e o historicismo, mas não colocaram
especificamente a língua dentre suas armas. É certo que Césaire se preocupou com o romper
do silêncio, imposto pelo jugo colonial. Então, primando pela diferenciação técnica, é certo
afirmar que a Negritude teve como enfoque a linguagem, e não a língua. Tal fato está
demonstrado quando, ao propor a releitura de A Tempestade, Césaire não deixa passar a
famosa cena em que o escravo e o senhor tratam do aprendizado da linguagem:

calibán: ¡Uhuru!

próspero: ¿Qué decís?

Calibán: ¡Dije Uhuru!

próspero: Otra vez una oleada de tu lenguaje bárbaro. Ya te dije que


eso no me gusta. Además, podrías ser amable, ¡unos buenos días no te
matarían!

calibán: ¡Ah! Me olvidaba… Buen día. Pero un buen día dentro de lo


posible lleno de avispas, sapos, pústulas y excremento. Ojalá pueda el
día de hoy apurar diez años el día en que los pájaros del cielo y las
bestias de la tierra se sacien con tu carroña
Para Césaire, a Negritude, antes de ser filosofia ou metafísica, era um produto da poesia.
Através das palavras de um poema, para o autor, a consciência negra emergiria, “ não mais
como fato mas bem como ato de linguagem.”
“O negro e a linguagem” - Fanon e Césaire1 Dominique Combe2 Tradução por Osmar Soares
da Silva Filho.

A poesia é forma de romper com o silêncio. E o uso do verbo, como atitude disruptiva, como
visto na resposta de Caliban, também ecoa em outro libelo de Césaire, o poema 109 do Diário
de um retorno ao país natal, quando o Negro, ao se desalienar, chega ao status do sujeito de
fala. (o negro e a linguagem

Je te livre mes paroles abruptes


“Eu te reservo minhas palavras abruptas”

O poema prossegue, não só postulando a potência da fala, mas ligando-a umbilicamente com
figuras eróticas:

eu te reservo minhas palavras abruptas


te devoro e te enrosco
e ao te enroscar tu me beijas com emoção maior
me beija até que fiquemos furiosos

Para, ato contínuo, usar duas figuras que tem valor metafísico: a argila e a pomba.

ata-me dos teus vastos braços à argila luminosa


ata minha negra vibração ao próprio umbigo do mundo
ata-me, liga-me, fraternidade áspera,
depois, estrangulando-me com teu laço de estrelas,
sobe, Pomba,
sobe,
sobe,
sobe...
lie-moi de tes vastes bras à l’argile lumineuse lie ma noire vibration
au nombril même du monde lie, lie-moi, fraternité âpre puis,
m’étrangulant de ton lasso d’etoiles monte, Colombe

O uso da argila como matéria bruta criativa, sua correlação com o verbo, e o uso da pomba
como ligação entre o físico e o metafísico são figuras desgastadas na dogmática judaico-
cristã, desnecessário tecer comentários explicativos. No entanto, Combe pontua outro modelo
pensado por Césaire para este poema: a cosmogonia dogon, que o autor toma emprestado dos
antropólogos Marcel Griaule e Georges Dieterlen. (O NEGRO E A LINGUAGEM).
Aqui é preciso ressaltar, a postura de Césaire com a linguagem sofreu críticas, algumas mais
veladas, outras mais diretas. Fanon, por exemplo, que tinha respeito e reservas à Negritude,
não atacará frontalmente o poema, mas a interpretação que Sartre fez dele, evocando-o como
uma “cosmogonia erótica da Negritude” e sublinhando a tensão entre as oposições “Preto-
branco” edificadas pelo martinicano. Em Pele Negra, Máscaras brancas, Fanon assim
responde: “O Negro continua a ser o grande macho da terra, o esperma do mundo. Sua
existência é a grande paciência vegetal; seu trabalho é a repetição ano após ano do coito
sagrado” (p.32)
Outra resposta indireta de Fanon se dá contra a mensagem do “grito negro”. Em 1946, no
livro Les armes miraculeuses, Césaire anunciou: et je pousserai d’une telle raideur le grand
cri nègre que les assises du monde en seront ébranlées. “Quero soltar do peito o grande grito
negro que sacudirá os alicerces do mundo”. A frase foi recuperada por Sartre, no ensio Orfeu
Negro, sem indicação à fonte original.
Estancará a fonte da Poesia? Ou, apesar de tudo, tingirá o grande rio
negro o mar em que se lança? Não importa: a cada época sua poesia;
em cada época, as circunstâncias da história elegem uma nação, uma
raça, uma classe para retomar o facho, criando situações que só
podem exprimir-se ou superar-se pela Poesia; e ora o ímpeto poético
coincide com o ímpeto revolucionário, ora divergem. Saudemos hoje
a oportunidade histórica que permitirá aos negros com tal vigor gritar
o grande grito negro que os alicerces do mundo sejam abalados

“Orfeu negro”, em Reflexões sobre o racismo, op. cit., p. 145

Fanon modula seu ataque ao francês, lembrando das palavras iniciais de Orfeu Negro: “O que
esperáveis que acontecesse, quando tirastes a mordaça que tapava estas bocas negras?” para,
em seguida, dizer: se solto um grande grito, de modo algum ele será negro. Não, da
perspectiva adotada aqui, não existe questão negra.”
Assim como o inglês era instrumento para Du Bois, a língua francesa foi trunfo de Césaire. A
postura, se de um lado denotava a apropriação cultural, bem como desnudava o teatro da zona
de contato, “região fronteiriça cuja divisa é extremamente porosa e indeterminada e onde a
transculturação e as mudanças acontecem”. (Bonicci, p 69 e 70), de outro ponto, lembrava a
assimilation francesa e ao conceito de évolué. Neste ponto, citamos Geismar, biógrafo de
Fanon, que, ao expor as reservas deste para com o martinicano, cita uma tensão ligada ao uso
da língua:
(Fanon) deixou claro que a virilidade, o poder, o prestígio intelectual
e a posição social do nativo dependiam de seu conhecimento e
habilidade com as línguas europeias. Aime Cesaire, nesse sentido, era
o rei negro da Martinica; sua maestria no francês superava a de
muitos dos escritores contemporâneos no território metropolitano.
(Geismar, p. 18)
Ainda segundo Geismar, Fanon não tardou a reconhecer conhecimento linguístico com
estrutura de classe. “Os Ilhéus mais pobres falam o patois; a burguesia assimilada usa o
francês, exceto para dar ordens a seus inferiores.” (p.18). Outrossim:

“na Europa e nas Colônias sempre se pensou que o nativo não


poderia governar a si próprio, porque não fala uma língua civilizada.
O negro do Caribe só é considerado parte da espécie humana quando
pode falar fluentemente uma forma mais pura de castelhano, inglês ou
francês”. (GEISMAR, 1972: 18)

Outro parâmetro foi utilizado como questionamento. Para Césaire, “ser Negro, doravante, não
é mais ser dito, mas se dizer Negro, se reconhecer e se aceitar como tal. O negro e a
linguagem. P 14. Fanon questiona se o dizer não se traduz como uma extensão do fetiche
europeu e o modelo anglófono questionará a necessidade de se dizer algo.

Para Wole Soyinka, prêmio Nobel e encarcerado ao tentar defender as liberdades


fundamentais da Nigéria (ECO, PAPE SATAN ALEPE: crônicas de uma sociedade líquida.
Editora Record – Rio de Janeiro 1ª edição. 2017), um tigre não proclama sua tigretude
(ASHCROFT, 2005). Em outras palavras, a postulação do eu, do uso da linguagem, só
conferem à questão um jogo de palavras tautológico, que não resolve nada. Vale dizer, para
Soyinka, o problema se encontra no ‘modo de pensar’, não no uso da linguagem, não n

A Négritude nunca foi uma característica tão proeminente do pensamento das colônias
africanas anglófonas. A reação da primeira geração de escritores anglófonos nos anos 1960 à
antiga tradição da teoria da Négritude Francesa é utilmente, grosseiramente, resumida pela
observação frequentemente citada de Wole Soyinka de que "um tigre não proclama sua
tigritude".

(ASHCROFT, GRIFFITHS, TIFFIN, 2005, p.123)


Ao tigre e sua tigritude, Senghor respondeu: o homem fala de sua humanidade não só porque
é homem, mas porque pensa. (Migliavacca, 2017). Soyinka, ao longo dos anos, temperou sua
crítica e reconheceu as realizações pioneiras dos negritudinistas, mas não abrandou no cerne:
para ele, ao postular diferenças, o movimento só reproduzia a cultura colonizadora. A este
movimento, Soyinka dirá de uma estrutura ‘derivativa e replicativa’. (ASHCROFT,
GRIFFITHS, TIFFIN, 2005). E, aqui, tornamos a frisar: se a Negritude errou, se se portou
como évolué que apenas replica antigos dogmas, não o foi por usar o francês, mas pelo
próprio conteúdo do discurso. Já em suas bases, diz Soyinka, o movimento possui silogismos
racistas, quando afirma que: a. o pensamento analítico é uma marca do desenvolvimento
humano; b. o europeu emprega o pensamento analítico, logo é desenvolvido; c. o africano
não emprega o pensamento analítico, logo, não é desenvolvido.

O erro, segundo o Nobel nigeriano, foi quando o movimento refutou a premissa ‘C’, e não a
‘A’. Ao contestar o não desenvolvimento da última afirmação, os negritudinistas propuseram
uma emenda: “a compreensão intuitiva também é uma marca de desenvolvimento humano.”
E , assim, ao postular que o africano emprega compreensão intuitiva, concluiu-se que o
africano era, também, altamente desenvolvido. Dessa forma, a Negritude “não se deu ao
trabalho de libertar as raças negras do fardo” da premissa ‘A’, que, exposta por Sartre, apenas
retratava a velha dialética eurocêntrica. (Soyinka, 1963).
Ao conceituar o Essencialismo, Bonicci (2005) trata-a como “forma de representar a
verdadeira essência das coisas, as qualidades invariáveis e fixas de algum ser ou conceito.”
Tem seu antônimo na diferença e, no contexto pós-colonial, utiliza-se de um reducionismo
visando fixar “uma ideia essencial daquilo que é o Africano, o Indiano, o Árabe, o índio
brasileiro, simplificando o empreendimento Colonizador”.

Tal essencialismo é demonstrado pelas pungentes palavras de Soyinka:

O princípio de definição no sistema do mundo africano é muito mais


cauteloso e evita constantemente a substituição da função ou
qualidade temporal ou parcial pela essência de uma totalidade sócio-
política ativa ou inerte. O erro fundamental foi de procedimento: a
Negritude permaneceu dentro de um sistema pré-estabelecido de
análise intelectual eurocêntrica tanto do homem quanto da sociedade
e tentou redefinir o africano e sua sociedade nesses termos
externalizados. No final, até mesmo a poesia de celebração por essa
suposta auto-recuperação tornou-se indistinguível da corrente
principal da poesia francesa. O outono das flores do mal havia,
através de uma tradição compartilhada de autoconsideração excessiva,
se confundido com a primavera do renascimento africano. O aviso de
Fanon foi ignorado sowinka. P. 36)

Ao postular características inalienáveis do continente e da cultura africana diaspórica


(ASHCROFT, GRIFFITHS, TIFFIN, 2007), os críticos da Negritude, especialmente Senghor,
recendiam às ideias antropológicas europeias que separaram os africanos da civilização.
Então, qual a saída? Para Soyinka, a distinção seria alcançada ao compreender (e usar) as
matrizes canônicas, visando formar um corpus personalíssimo de identidade cultural
(Migliavacca, 2017); em outras palavras, se Senghor postulava a diferença (A emoção é
negra, como a razão é helênica) para buscar o universalismo, Wole Soyinka pregou o
conhecimento comum para alcançar a distinção. E, ao falar em ‘conhecimento comum’, não
excluiu, por certo, a língua inglesa.

Tal atitude não significava, para o prêmio Nobel nigeriano, uma ode ao eurocentrismo. Se de
um lado o ‘mundo africano’ não poderia ser isolado, de outro, o autor não abre mão da
Tradição. Neste sentido, escreve em inglês e permeia sua obra com referências ao teatro
grego, a teologia cristã e a filosofia alemã. (DE ANDRADE, Karen. 2023). Pode um africano
escrever como Kafka? Soyinka responde que sim – e isso não implica verter, do alemão,
vernáculos exatos em jeje ou quimbundo, quiçá significa a mera transposição de enredos ou
personagens, atitude que só desnudaria um procedimento replicativo (soyinka, 1979). O
limite geográfico cinde a influência e a imitação (soyinka, 1963). A primeira é o material de
sua pesquisa, também o instrumento para a construção cultural personalíssima de um país.
A controvérsia opôs a crítica pós-colonialista anglófona e francófona. Para Senghor não
passava de uma reencenação, em solo africano, de antigas querelas entre França e Inglaterra.
Para os fins propostos deste trabalho, a demonstração auxilia a visualizar os parâmetros de
ruptura das antigas colônias anglófonas. Encerrados os mandatos coloniais, a vanguarda do
pensamento destes países elegeu o sistema educacional – com normas de comportamento e
critérios britânicos – como o inimigo a ser batido. Para Soyinka e outros pensadores, o
intelectualismo negritudinista falhara ao não romper com o modelo epistemológico
eurocêntrico; o alvo não era a criação de modelos que elevassem a raça (em sentido oposto ao
modelo evolucionista dialético europeu, que rebaixava o colonizado como ‘atrasado’). O
alvo, segundo Soyinka, era a própria dialética formadora dos binarismos: progresso & atraso,
civilização & barbárie, pensamento analítico & pensamento primitivo. Em outras palavras, a
educação não podia ser apenas um modelo ‘replicativo’ das antigas metrópoles. E, assim,
compreendendo a agenda (e a agência) de pensamento anglófono africano contra o modelo
educacional europeu, conseguiremos compreender outra contenda, formada no seio desta
corrente: o uso ou o repúdio da língua europeia na formação identidade que visa cortar as
raízes com seus dominadores.

Tal questão teve seus contornos expostos nos conceitos ab-rogação e apropriação. Com
relação ao primeiro, temos que descreve a:

rejeição por escritores pós-coloniais de conceitos normativos da


língua europeia (Standard English; King’s English; o francês da
Academia) ou da marginalização da língua (dialetos, crioulo,
variantes) usada por certos grupos de colonizados (crioulos franceses
de Haiti, Martinica e Guadalupe; pidgin English da Jamaica e Hong
Kong; crioulo português de Angola, Moçambique e Timor Leste).

(BONICCI, 2005, p. 27)

Já o segundo conceito demonstra que, através da apropriação, pode o colonizado assumir a


linguagem (e o cinema, o teatro, a filosofia) do colonizador, distendendo-a e a moldando-a,
não como aceite, mas como insurgência. (BONICCI, 2005, P. 27)
Trata-se, pensamos, de uma lide que, não obstante possua raízes abstratas, é capaz de
alcançar diretivas concretas, influenciar o ensino e o destino de nações. Assim, pelo peso que
a disputa assume, apresentamos os não menos pesados debatedores: Chinua Achebe e Ngũgĩ
wa Thiong'o.

A ab-rogação. O nativismo. (nativity in black)


Vale ressaltar, se não havia dúvida que o modelo pedagógico eurocêntrico devia ser
combatido, a questão recaia particularmente no impor uma língua local e a sistemática
refutação à forma e conteúdo europeus, ou no uso pragmático e instrumental de uma língua
capaz de suplantar as diferenças linguísticas tribais.

Appiah relembra que a diatribe por vezes tendia a ser resumida entre uma oposição de “uma
concepção herderiana sentimentalista das línguas e tradições da Africa, como expressão da
essência coletiva de uma comunidade tradicional pura” contra o uso positivista e
instrumentalizado do idioma que, assim, “podem ser purgados dos modos de pensar
imperialistas — e, mais especificamente, racistas”. (p. 121). A questão, desta forma
delineada, ecoa no debate entre universalismo e particularismo. Os sectários desta última
corrente é que, em nome do nacionalismo, alegarão as particularidades, a necessidade do
idioma próprio e a literatura como constructo da nação. Este é o cerne do nativismo.

Funcionando com essa topologia do dentro e do fora — nativo e


alienígena, ocidental e tradicional —, os apóstolos do nativismo são
capazes de mobilizar, na África contemporânea, o indubitável poder
de uma retórica nacionalista: uma retórica em que a literatura própria
é a da própria nação do sujeito. Contudo, os nativistas podem apelar
para identidades que são mais amplas e mais estreitas do que a nação:
para “tribos” e cidades, abaixo do Estado nacional, e para a África,
acima dele. P. 122

Se Fanon irrompeu contra o historicismo e com a repaginação de lugares comuns, mostrados


como nova roupagem de antigos interesses, Thiong’o, por sua vez, destinará suas armas
contra imperialismo cultural, mais duradouro que os mandatos coloniais.

Em um artigo na revista Courier, editada pela UNESCO, em setembro de 1971, há um artigo


de um autor que ainda não assinava como Ngũgĩ wa Thiong'o, mas pelo seu nome de
batismo: James Ngugi. Vale lembrar, assim como Soyinka, Ngũgĩ, após escrever seus
primeiros três livros em inglês, foi preso, em 1977, por ter escrito uma peça de teatro em
gikuyu.

EL PAIS. Ngugi wa Thiong’o: “Eu daria um Nobel a Jorge Amado, porque ele deu a mim o
seu Brasil”
https://brasil.elpais.com/brasil/2015/07/03/cultura/1435952470_967603.html

Neste artigo da revista da UNESCO, o autor trata a relação de Caliban e Próspero como
“prática e psicologia da colonização anos antes de se tornar um fenômeno global.” Como
Próspero, diz Ngũgĩ, o colonizador sabia da “importância suprema da cultura”:

O missionário atacava os ritos primitivos, as danças, as imagens


esculpidas, recuando diante de sua sugestão de sensualidade satânica.
Algumas das mentes mais brilhantes da Europa colaboraram com essa
grande decepção. Mas o que teve um efeito de longo alcance foi o
fato de que, novamente como Próspero, o europeu retirou a base
material e desmantelou sistematicamente as instituições políticas e
econômicas nas quais o africano havia construído sua maneira de
viver. The Independence of Africa and cultural decolonization.
Pagina 25. In The UNESCO Courier: a window open on the world,
XXIV, 1971 Retirado de
https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000188335

Segundo Ngũgĩ, a colonização produziu uma cisão, o nascimento de duas colunas nos países
que passaram pela experiência colonial: o primeiro grupo adotou a língua e o estilo dos
colonizadores. “Eram eles que ouviam a voz do Deus missionário, gritavam Aleluia e
levantavam os olhos para o Céu. Ridicularizavam os velhos deuses e recuavam com horror
estudado ou genuinamente adquirido dos ritos primitivos de seu povo.” Os demais eram
cooptados para trabalhar em serviços considerados menores – e, neste ponto, a construção do
Outro não perde de vista o modelo de assimilação francês. Para Ngugi, ainda James, antes de
se assumir Thiong’o (nome que só veio a adotar em 1977), a diatribe opõe os que nunca
perderam suas raízes, mesmo diante do açoite e da propaganda, e uma burguesia local, que ao
substituir o projeto de nação por um projeto de poder, encampam a cultura do colonizador.

Tal qual Césaire, Ngugi usará Caliban como termômetro da resiliência e da insurgência. Se o
martinicano usou o personagem shakespeareano para demonstrar que era possível falar, o
queniano dirá da importância de se falar na língua materna.

Aqui vale um adendo. Segundo Vaughan (xxxx), entre Césaire e Ngugi como interpretes de
Caliban, há George Lamming. É com este autor que haverá o ponto de virada, e Caliban
deixará de ser culpado pelas próprias limitações linguísticas

a relação entre Prospero e Caliban tomou um rumo no ensaio de


George Lamming, "A linguagem de Prospero, a voz de Caliban", em
1960. Quando Lamming identificou a linguagem como "prisão" de
Prospero, ele propôs uma prisão ambígua que mantinha seu poder de
forma produtiva: sua prisão era efetuada na maneira como poderia
"produzir" Caliban. Calibans voice

A partir deste momento, falar – tal qual havia sido proposto pelo modelo cosmogônico de
Césaire que se equipara a criação - não será mais habeas corpus, mas mandado de prisão. Em
outras palavras, não importava mais falar, mas sim como falar. Tal pstura que influenciará o
nativismo de Ngugi.

Como já dito, o nativismo se aproxima do particularismo, que, por sua vez, opõe-se ao
universalismo. Ao postular a importância da língua mãe, o autor se filia aos costumes e
tradições locais da mesma forma que Bonaman negou a uma tribo africana a compreensão de
Hamlet nos mesmos moldes que o europeu médio o faria.
Assim, ao tratar de valores universais, o queniano arrola dois momentos: No primeiro, lembra
de como o europeu se sentia maravilhado porque estudantes ganeses viam alegorias de Auden
em rincões tribais africanos. Neste período, especificamente posterior ao pós-segunda Guerra,
o estudo de inglês em escolas e instituições de ensino superior foi sistematizado e “com
pouquíssimas variações, eles ofereceram o que também era obtido em Londres”. Xx.

Cita, então, o cânone crítico (Richards, Lewis, Elliot) para mostrar como as orientações
políticas do colonizador ainda continuavam na mente e nos estudos das nações que tinham
acabado de travar lutas de independência. Doutrinas raciais, significação moral da literatura,
o fado de ter que governar, tais eram as diretrizes ainda estudadas em universidades de
Yganda, Nigéria, Gana, Serra Leoa, Quênia. “Quantos seminários passamos detectando essa
significância moral em cada parágrafo, em cada palavra, até nas vírgulas e pontos finais de
Shakespeare?” pergunta, retoricamente, o autor de um Grão de Trigo.

A continuidade do jugo cultural através do apagamento da língua nativa, bem como a relação
de dependência com o colonizador são analisados. Para tanto, Thiong’o coloca Shakespeare e
Jane Austen como parâmetros.

A centralidade e universalidade da tradição inglesa foram resumidas


no título de uma palestra inaugural do Professor Warner de Makerere,
"Shakespeare in Africa", na qual ele ficou quase extático com o fato
de que alguns de seus alunos haviam sido capazes de reconhecer
alguns personagens dos romances de Jane Austen em suas próprias
aldeias africanas. Portanto, a literatura inglesa também era aplicável à
África: a defesa dos estudos de inglês em uma situação africana
estava agora completa. Nas escolas, os programas de língua inglesa e
literatura inglesa eram moldados para preparar os poucos sortudos
para um diploma em inglês na universidade. Portanto, os programas
tinham o mesmo padrão. Shakespeare, Milton, Wordsworth, Shelley,
Keats e Kipling eram nomes familiares muito antes de eu saber que
conseguiria chegar a Makerere. (Thiong’o, decolonizing...)
Em um segundo momento, o autor lembra as primeiras revoltas “contra Shakespeare”,
quando grupos nacionais se insurgiram com “seus próprios roteiros em Kiswahili. Essa
revolta tomou cores nacionalistas nas décadas seguintes e formou uma base de dramaturgos
quenianos. A descolonização não se tratava apenas de um ato formal e da compra da
passagem de volta dos europeus. A herança dominadora continuava parasitária nas
universidades, no erigir dos valores, na eleição do cânone africano. Para reverter este jugo,
diz Ngũgĩ wa Thiong'o, é preciso descolonizar a mente – termo que usa para batizar seu
ensaio. Dessa forma, em décadas seguintes, a experiência mostrou que o estudo de literatura
alienígena seria possível, desde que a identidade nacional estivesse formada. Não se tratava
apenas do exotismo de transportar personagens e valores de Austen e ficar admirado porque
encontravam símiles nas localidades, nas tribos; não se tratava de propor um estudo que tinha
como único vetor mostrar a universalidade do pensamento europeu. No entanto, ao
descolonizar a mente, ao livrar-se das amarras de uma cultura universal, proposta pelo
dominador, novas conexões poderiam ser feitas entre os escritos nacionais e os estrangeiros:

O crescimento do Departamento de Literatura na Universidade de


Nairobi, um departamento que formou estudantes capazes de,
partindo de seu ambiente, conectar livremente as experiências rurais e
urbanas da literatura queniana e africana com a de García Márquez,
Richard Wright, George Lamming, Balzac, Dickens, Shakespeare e
Brecht, está a anos-luz dos dias dos anos cinquenta e sessenta, quando
costumavam tentar identificar personagens de Jane Austen em suas
aldeias.

Segundo Thiong’o, Brecht e Garcia Marquez só poderão ser cotejados após a edificação do
pensamento local – pelo processo de incorporar, na literatura nacional, a História oral, os
valores, os vícios, as visões particulares de mundo. Conclui, assim, premissas que não se
pode comparar duas culturas, se apenas uma delas tenha um olhar crítico sobre si mesmo.
Não há objeto de comparação se não há dois objetos para se comparar. A descolonização da
mente é um pressuposto necessário para a existência de pensamentos distintos, não
subordinados. E o universalismo só existirá se os processos de transmissão cultural se derem
sob modelos harmônicos de transcultural entre dois blocos distintos e independentes. Se
existir apenas a hegemonia de um pensamento, o universalismo estará travestido de
imperialismo.

Ainda neste sentido, Thiong’o alertará que a descolonização da mente não ocorre apenas com
a formação de um corpus de escrita criativa local. Como acima ressalvamos, é preciso que as
teorias locais pensem sobre este corpus literário. Talvez a imposição cultural não venha
através de Shakespeare, mas de como enxergamos Shakespeare, seja pela psicanálise de
Freud, seja pelo imperialismo de Renan.

Um crítico que, na vida real, é suspeito das pessoas que lutam pela
libertação, suspeitará de personagens que, mesmo que apenas em um
romance, estejam lutando pela libertação. Um crítico que, na vida
real, tem impaciência com toda a conversa sobre classes, luta de
classes, resistência ao imperialismo, racismo e lutas contra o racismo,
violência reacionária versus revolucionária; terá a mesma impaciência
quando encontrar os mesmos temas dominantes em uma obra de arte.
Na crítica, assim como na escrita criativa, há uma luta ideológica. A
perspectiva de mundo de um crítico, suas simpatias de classe e
valores afetarão as avaliações de Chinua Achebe, Sembène Ousmane,
Brecht, Balzac, Shakespeare, Lu Hsun, García Márquez ou Alex La
Guma.
A busca pela relevância requer mais do que a escolha de material. A
atitude em relação ao material também é importante. Claro, sobre
isso, nunca pode haver legislação. Mas é crucial estar atento às
pressuposições ideológicas de classe por trás das escolhas, enunciados
e avaliações. A escolha do que é relevante e a avaliação da qualidade
são condicionadas pela base nacional, de classe e filosófica. Esses
fatores subjazem à controvérsia que envolve toda a busca pela
relevância no ensino de literatura nas escolas e universidades
quenianas.
Em outras palavras, não é só a escrita criativa que possui vetores ideológicos, mas também os
escritos que balizam as virtudes e os vícios. A crítica, a técnica, a explicação também são
permeadas de vontades. E, assim, não apenas a ruptura a modelos freudianos fica mais nítida,
mas também as próprias razões de Caliban existir. Caliban pensa e fala com a linguagem
do colonizador; neste contexto, com tais condições, é possível criar uma base própria, sem
influências, sem imposições do colonizador?

Neste sentido, Lamming dirá da Armadilha de Próspero. Para este autor, o aprendizado não é
revestido do iluminismo libertário que está presente cotejado com a magia faustica em
Shakespeare, nem com a aristocracia histórica de Renan, nem com o iluminismo libertário de
Guéhenno, nem com a refutação ao pragmatismo burguês de Rodó, nem mesmo com a
apropriação cultural de Césaire. Para Lamming, a linguagem ensinada é forma de servir ao
colonizador e não passa de régua para medir a distância entre Senhor e Vassalo. “Isso abraça
um não sequitur que nega qualquer agência a Caliban.” (Ashcroft, Calibans voice)

Ashcrot, comentando a Armadilha, passará a negá-la. De um lado, é certo que o ensino e os


dialetos em confronto com o inglês padrão fortaleçam a diferença. De outro, trata-se de uma
Armadilha direcionada apenas para Caliban? Neste ponto, cita Heidegger, para lembrar que a
linguagem fala, o homem, Próspero ou Caliban, só fala se conformar habilmente com a
linguagem.

Essa palavra 'habilmente' abre uma ambivalência marcada e sutil no


texto de Shakespeare. Por que é, por exemplo, que Caliban recebe
algumas das linhas mais belas da peça? Pode ser que a diferença
radical entre Caliban e Prospero esteja assentada em uma espécie de
semelhança, na semelhança de seu envolvimento com a linguagem?

Em seguida, o autor aponta a semelhança entre os vaticínios de Próspero e Caliban. Através


de seu livro sagrado, ou através da crença em Sycorax, ambos utilizam da linguagem para
mostrar poder.
Ambos usam ameaças de magia e maldições e eloquentes declarações
de vingança temível. Ambos usam a linguagem 'habilmente'. Em que
medida a agência de Caliban está incorporada à sua identificação com
Prospero? "Eu sou todos os súditos que você tem", ele diz em um
momento para Prospero. Será que a inteligência estratégica de
Caliban, incorporada de maneira tão sutil no presente da peça, é uma
premonição de sua agência transformadora no futuro?

Appia observará como a postura do nativismo, ao negar a cultura colonial, ironicamente se


aproxime de “outros conjuntos de invenções coloniais. CASA DE MEU PAI)

a própria invenção da África (como algo mais do que uma entidade


geográfica) deve ser entendida, em última instância, como um
subproduto do racialismo europeu; a idéia de pan-africanismo
fundamentou-se na noção do africano, a qual, por sua vez, baseou-
se, não numa autêntica comunhão cultural, mas, como vimos, no
próprio conceito europeu de negro (CASA DE MEU PAI)

Um clássico sobre o nativismo é o manifesto Toward the Decolonization of African


Literature [Pela descolonização da literatura africana], de três autores nigerianos: Chinweizu,
Onwuchekwa Jemie e Ihechukwu Madubuike. O objetivo do livro, diz Appiah, “consiste em
derrubar por terra o etnocentrismo crítico de seus adversários eurocêntricos, em nome de um
particularismo afrocêntrico”. Em seu bojo, constestavam, os autores, à herança de modelos
universais nas artes e letras, e pensavam na literatura africana “como uma entidade autônoma,
separada e distinta de qualquer outra literatura. Ela tem suas próprias tradições, modelos e
normas”. Chinweizu, Onwuchekwa Jemie e Ihechukwu Madubuike, apud Appiah. Retomam,
outrossim, a velha ideia de que o universalismo não pode ser explicado sem o uso de aspas:
De fato, é característico dos que posam como anti-universalistas usar
o termo “universalismo” como se ele significasse “pseudo-
universalismo”; e a verdade é que sua reclamação não é com o
universalismo, em absoluto. Aquilo a que eles realmente objetam — e
quem não objetaria? — é a hegemonia eurocêntrica fazendo-se passar
por universalismo

A conclusão de Appiah é que o nativismo, ao assumir um ‘discurso invertido’, é apanhado na


armadilha do parâmetro que se pode usar e/ou questionar a matriz cultural ocidental. “A pose
de repúdio pressupõe, na verdade, as instituições culturais do Ocidente e suas ideologias.
Esbravejando contra a dominação cultural do Ocidente, os nativistas são partidários dela sem
saber.”
Em último ponto, a ideologia não localiza a particularidade, mas se filia ao modelo de que as
particularidades sejam usadas para valorar o nosso e o outro. Uma releitura, portanto, de um
argumento usado por Herder e Renan.

De fato, os próprios argumentos e a retórica de contestação que


nossos nacionalistas exibem são, em certo sentido, canônicos,
confirmados pelo tempo. É que eles encenam um conflito que é
interno à mesma ideologia nacionalista que deu à categoria
“literatura” suas condições de emergência: a contestação é menos
determinada pelas noções “nativas” de resistência do que pelos
ditames do próprio legado herderiano do Ocidente — suas ideologias
sumamente elaboradas de autonomia nacional, e da língua e da
literatura como seu substrato cultural.

A tribo e o mundo: Achebe.

De outro lado, Achebe não abdicará da língua inglesa para pensar em uma construção
identitária cultural livre de influências das antigas colônias. Isso não significa que o autor
emulará a língua canônica ou reproduzirá, na forma ou no conteúdo, o que Soyinka
denominou como modelo cultural “derivativo e replicativo”. Ao contrário, usar como lastro o
inglês significa, para tal autor, a possibilidade de ressifignicá-la, plasmando-a de costumes e
provérbios em igbo. Nisso, consiste, de forma sintética, a apropriação que Achebe faz da
linguagem:

O escritor africano deve procurar usar o inglês de uma maneira que


melhor carreie sua mensagem sem alterar a língua a ponto de que seu
valor como meio de troca internacional seja perdido. Ele deve tentar
criar um inglês que seja ao mesmo tempo universal e capaz de levar
sua experiência peculiar da África. (ACHEBE, 1964, p. 100)

A ruptura, para Achebe, não se daria pela negação, mas pelo ofício de oleiro, ao moldar
aquilo que, até então, era considerada uma estrutura rígida. Hutcheon (1995) relembra
roupagens desta teoria: através da paródia, o peso tirânico sofre revaloração. Por sua vez,
através da ironia, o colonizado poderá preencher os hiatos, criticar os valores, ridicularizar os
estereótipos, inscrever-se na sua história. Essa existência irônica o faz rebelar contra o poder
colonizador e exigir o reconhecimento que lhe foi negado (BONICCI, p. 13). Tal figura,
segundo Hutcheon, é marcada pela dualidade – não só a possibilidade de edificação de
história dupla, mas, sobretudo, na lembrança da construção do Outro colonial, marcado pela
dualidade, pela cisão (BHABHA). Outra figura correlata é a da mimese, que pode ser
sintetizada na adoção da cultura do colonizador, mas subvertendo-a em seu âmago, através da
ressifignicação de valores, inclusão de costumes próprios ou amálgama da língua. Sharpe
(1195) relembra a figura contraditória do mímico que, simultaneamente, “reforça a
autoridade colonial e a subverte” (Sharpe, 1995, p. 99 ) Já segundo Bonicci (xxx), pela
mímica, o colonizado “toma para si o que lhe foi imposto e o faz seu, refletindo a própria
situação”.

Isso é o que fez Achebe em sua produção literária. A tradução é sua ferramenta de guerrilha,
não o atestado que se conformou ao alinhamento cultural da antiga colônia. E para
compreender o uso de tal instrumento, retrocederemos um passo para pensar nos termos
assinatura e contra-assinatura.
A partir da problemática de Saussure sobre a escrita como instrumento estranho à língua,
Derrida problematizará a subordinação da escrita em relação à fala. Postula, assim, a
différance, e a “língua passa a não mais ser vista como um corpo estanque e um sistema
estático, mas como um organismo dinâmico no qual a significação não se dá como algo fixo”
A LÍNGUA HÍBRIDA DE CHINUA ACHEBE: da contra-assinatura à resistência insurgente
em Things Fall Apart e No Longer at Ease. LUANA CASTELO BRANCO ALVES. Página
20.

Ao colocar a escrita como não mais subordinada à fala, dá-se à mesma o rótulo de criadora de
significados.

A escritura surge como instância onde a significação se torna possível


enquanto uma construção que se processa por meio da différance. É
retirado, do sujeito, antes senhor de si, a ilusão do poder de impor
significados à escrita, de fazer dela repositório de suas ideias. Se vai à
escrita para derivar significados. A LÍNGUA HÍBRIDA DE
CHINUA ACHEBE: da contra-assinatura à resistência insurgente em
Things Fall Apart e No Longer at Ease. LUANA CASTELO
BRANCO ALVES. Página 20.

Neste sentido, ressalvada a importância da escrita, prosseguimos visualizando os movimentos


de apropriação da língua, através da múltiplas assinaturas. Derrida aponta três tipos de
assinatura: as enunciações orais, as assinaturas escritas e as contra-assinaturas. No primeiro
caso, a presença do falante já é uma “fonte” e, por si só, uma assinatura. No segundo caso, a
ausência do emissor é substituída por “uma noção transcendental de presença que opera em
plano de fundo”. A LÍNGUA HÍBRIDA DE CHINUA ACHEBE P. 40)

Por definição, uma assinatura escrita implica a não-presença atual ou


empírica do signatário, mas, dir-se-à, marca também e retém o seu ter
estado presente num agora passado, que permanecerá um agora futuro
portanto num agora geral, na forma transcendental da permanência
(DERRIDA, 1991, p.371)

O terceiro caso, por sua vez, é a contra-assinatura, feita pelo ouvinte que se apropriará ou
desejará se apropriar do escrito:

o desejo de apropriação já é, em si, uma contra-assinatura, na medida em que ele configura o


prelúdio do diálogo, demonstrando o vínculo primário da resposta a qual já começa a ser
moldada no instante mesmo do surgimento do desejo

Ao inscrever-se como possibilidade de manusear a herança, a contra-assinatura operará na


língua e na escrita (e se tornará visível por ser consequência da différance da escrita). A
contra-assinatura, insculpida na tradução, não se situa nem na obediência à língua do
colonizador nem ao irredentismo absoluto: seu entre-lugar é, neste ponto, próxima à
emergência de um terceiro espaço, conceito de Bhabha.

O pacto da interpretação nunca é simplesmente um ato de


comunicação entre o Eu e o Você designados no enunciado. A
produção de sentido requer que esses dois lugares sejam mobilizados
na passagem por um Terceiro Espaço, que representa tanto as
condições gerais da linguagem quanto a implicação específica do
enunciado em uma estratégia performativa e institucional da qual ela
não pode, em si, ter consciência. O que essa relação inconsciente
introduz é uma ambivalência no ato da interpretação BHABHA,
PROCURAR.
Este “terceiro espaço” é uma resposta para a ideia de que a tradução entre culturas permita “a
produção do significado estrangeiro na cultura de destino” (CARBONELLI I CORTES,
1997)

No hibridismo cultural, a identidade cultural de um país é formado. E é neste terreno que


Achebe atua. Sua escritura tem a genética de La Tempete de Césaire e de outros tantos
exemplos que constamos no presente trabalho sobre a possibilidade de reinterpretação e
reescritura do cânone. Trata-se não da produção “derivativa e replicativa” (SOYINKA), não
da aprendizagem da experiência europeia para traduzir a vivência local, mas o uso da forma
canônica para edificar o conteúdo (o passado, os costumes, os provérbios) próprio.

Achebe entendia que os escritores africanos de sua época tinham um papel a desenvolver.
Apesar de afirmar que esse papel não estava muito claro entre os escritores contemporâneos a
ele, Achebe define que seu principal objetivo era contestar os estereótipos, os mitos e as
imagens do continente africano, e reformulá-los por meio de suas histórias. Ele sempre levou
a sério a tarefa de escrever – dizia ter uma “obrigação moral” de preencher essa ausência de
uma voz africana, de modelos africanos e tinha a missão de inserir a própria perspectiva
africana da história no cenário mundial (ANCHIETA, 2014)

Achebe sempre deixou claro que via a tarefa do escritor africano em seu tempo como um
contra ataque à falsa representação da África nos escritos europeus sobre o continente que
estudou em suas aulas de literatura inglesa na faculdade. O que faltava em todos eles, pensou,
era um reconhecimento dos africanos como pessoas com projetos - vidas que lideravam,
aspirações que eles estavam buscando - e uma cultura existente e rica, exemplificada nos
provérbios e nas tradições religiosas que são tecidas nesses romances. Ele estava escrevendo,
como costumava dizer, contra a África do Coração das Trevas de Joseph Conrad. (APPIAH,
2017, p.3, tradução nossa).

Completando o giro, retornamos para outro autor já estudado: Kwame Anthony Appiah. O
autor de cosmopolitismo recorda uma fala de T.S Elliot e lembra que seu poema “A jornada
dos magos” foi inspiração para No longer at ease, de Achebe (e, aqui, inserimos uma nota de
rodapé à nota de rodapé e lembramos que “A jornada dos magos” foi uma um dos cinco
poemas que Elliot escreveu para uma série de 38 panfletos ilustrados que, mais tarde, foram
publicados com o título de Poemas de Ariel).

1927 Journey of the Magi by T. S. Eliot


drawings by E. McKnight Kauffer
1927 Journey of the Magi by T. S. Eliot
drawings by E. McKnight Kauffer

Appia recordou de uma dúvida de Elliot. Um poeta ou romancista pode ser universal sem ser
local também? Tolstoi respondeu a questão com um aforismo: “se queres ser universal,
começa por pintar a tua aldeia.” Achebe, por sua vez, seguiu o conselho e executou a ideia.

Não consigo pensar em nenhuma obra literária que confirme, mais


persuasivamente, este julgamento do que a trilogia de Chinua Achebe,
que evoca para nós o mundo local de Igbolândia enquanto exploramos
temas que são reconhecíveis para todos nós. Achebe, ao nos convidar
para o seu mundo, expande o nosso próprio. Kwame Anthony Appiah

E tal qual Shakespeare, que ‘inventou o humano’ ao expor sentimentos e desejos nossos de
uma forma que não o conhecíamos, Achebe procede a magia de nos transportar para a vila
igbo de Okonkwo e permitir que enxerguemos, através dos olhos de seu protagonista, a
corrosão incontrolável do mundo.
SAID, Edward W. Cultura e imperialismo / Edward W. Said ; tradução Denise

Bottmann. – São Paulo: Companhis das Letras, 1995.

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