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As Metamorfoses de Caliban
As Metamorfoses de Caliban
A metamorfose de Caliban
Bloom (2000) relembra que A Tempestade “é uma comédia altamente experimental” incitada
pelo Doutor Fausto de Marlowe. Para justificar a tese, lembra ainda que Próspero, o mago da
peça, é a tradução italiana de Faustus (O favorecido), pseudônimo latino usado por Simão
Mago, o Gnóstico. Ariel, o serviçal do mago, por sua vez, em hebraico, significa “leão de
Deus” Dessa forma, em contraste com Mefistófeles, Próspero é o Anti-Fausto shakespereano.
Até então, Caliban, na crítica, não suscita compaixão, nem possui leituras mais aprofundadas
sobre sua natureza e vontade. Mesmo no poema Caliban entre Setebos, incluído no volume
Dramatis Personae (1864) de Robert Browning – que investiga a crença do personagem em
Setebos, deus de Sycorax – o ilhéu nativo é associado ao mal, enquanto Próspero representa
as luzes da razão. Caliban, no poema, mostra infantilidade e não supera o fato de ter perdido a
proteção paradisíaca de Próspero. Por isso, sente deleite em enganá-lo. (BLOOM, 2000). E,
aqui, mais uma vez uma leitura arquetípica pode ser invocada: para investigar as nuances da
fé, Browning lembra do término da proteção paradisíaca e do momento em que a criatura se
volve contra seu Senhor. Caliban, para Browning, serve como espelho do que há de mais vil e
pecaminoso no homem:
A rebeldia de Caliban não se volta apenas contra Próspero. Também pensa que Deus, o deus
Setebos de Sycorax, criou, muitas coisas, mas não todas.
Setebos, Setebos e Setebos! 'Pensa, Ele mora no frio da lua. 'Pensa
que Ele fez isso, com o sol combinando, Mas não as estrelas; as
estrelas vieram de outra forma; Só fez nuvens, ventos, meteoros,
como este: Também esta ilha, o que nela vive e cresce, E o mar
serpenteante que circunda e termina na mesma.
(BROWNING, 1864, p.124)
Em seguida, olha um peixe gelado que deseja escapar do riacho rochoso e se esquentar em
uma salmoura morna. O desejo do peixe conflui no próprio desejo de mudança, e, talvez, o
Deus que não abarque todas as coisas seja uma esperança que exista algo além do domínio de
Próspero. A Criação de Próspero é mais uma vez confrontada com o Deus de Caliban, que,
segundo Browning, mora na lua:
Ele mesmo espiou tarde, olhou Próspero para seus livros Descuidado
e altivo, agora senhor da ilha: Vexado, 'costurado um livro de folhas
largas, em forma de flecha. Escreveu ali, sabe-se lá o quê, palavras
prodigiosas; Descascou uma varinha e a chamou por um nome;
(BROWNING, 1864, p.129)
O Próspero de Shakespeare possui vestes cerimoniais e usa a comunicação para externar seu
domínio. Browning enfatiza situações em que o personagem usará da comunicação para
dominar e criar. Também, neste sentido, destacamos o excerto em que Caliban pensa na
própria captura:
O poema, assim, usa a pequenez do escravo disforme frente a Próspero para demonstrar como
a racionalidade é inútil perante o Divino. Acareados Próspero e Caliban, temos a dimensão da
pequenez deste perante aquele. Por sua vez, com tal imagem, segundo o autor, teremos a
correta resignação com Deus.
“As imagens não têm outra função senão permitir agrupar objetos e ações heterogêneas e
explicar o desconhecido pelo conhecido”, assim Chklóvski (1978, p. 55) resume o estudo de
Potebnia, que serviu como base para o estudo formalista. O uso de imagens conhecidas para
explicar o indizível é a raison d’être do panfleto teológico de Johnson, mas também explica o
manifesto político de Renan.
Ernest Renan (1823-1892) foi um escritor, filólogo, filósofo e historiador francês. Entusiasta
(e propulsor) das proposições evolucionistas darwinianas incipientes, transitou na sociologia,
antropologia e religião, como arauto dos preconceitos erigidos em seu tempo, como advogado
da grandeza de seu Espaço (A França). Seu Caliban - suite de La Tempête (1888) integra a
obra Drames philosophiques, sequencial à obra Dialogues philosophiques.
Para o autor, o diálogo seria, no espírito de seu tempo, a forma ideal para a exposição da
filosofia; por sua vez, o drama, para Renan (1888), constituía a imaginação do enredo e a
fantasia do personagem em prol da manifestação de uma ideia filosófica. Mutatis mutandis,
descontado o anacronismo do autor com os conceitos, a visão de Renan guarda correlação
com a ideia do “personagem-conceito” de Deleuze, bem como com o “estranhamento” dos
formalistas russos.
Suponho que depois da tempestade, Próspero, vitorioso por sua arte mágica de
todos os seus inimigos, é restabelecido em seu trono de Milão; Eu carrego com ele
Ariel, seu agente aéreo; Caliban, seu escravo sempre rebelde; Gonzalo, seu antigo
conselheiro; Trinculo, seu bobo. Shakespeare é o historiador da eternidade
(RENAN, 1888, p.)
Caliban, que já aprendera a língua com seu mestre, torna-se ainda mais ingrato e indócil.
Depois de sua primeira aparição bêbado, inflama as massas contra os governantes; destila
ódio contra os livros e contra a aristocracia e reproduz um discurso virulento:.
Há, também, os lamentos de Próspero sobre seu humanismo. Neste solilóquio, confunde as
próprias origens e diz que, na ilha, simplesmente aceitou Caliban como serviçal, mas nunca o
forçou a trabalhar.
O drama filosófico, assim conceituado o enredo que tem como conflito o “povo”,
representado por Caliban e a “Aristocracia”, corporificada em “Próspero”, pode ser colocado
como como o uso de um “personagem-conceito” (DELEUZE, XXX) em prol de uma
ideologia. Em outras palavras, o enredo, os personagens e o tempo-espaço da obra traduzem
o que Renan pensa do funcionamento de uma Nação. Em seu livro mais famoso, Qu’est-ce
qu’ une nation?, o filósofo francês advoga na crença de um homem que é livre, moral e
universal. Ato seguinte, o autor constrói a concepção de um “nacionalismo humanitário”
(OLIVIERI-GODET, 2005)
Tal nacionalismo é afirmado por um livre arbítrio (TODOROV, 1989). Não é a raça, a
religião ou fronteiras que fundam uma nação. Estes parâmetros são determinantes dos
Estados; a Nação é formada por um “princípio espiritual, uma consciência moral, uma
herança histórica compartilhada acrescidas de uma vontade comum no presente. (OLIVIERI-
GODET, 2005).
Aqui, as terminologias merecem uma análise detalhada, não só porque camuflam de ciência
alguns postulados do racismo vulgar, mas também porque se conectam ao Caliban reniano.
Gobineau advogou pela tese de três raças principais: negra, amarela e branca, identificadas
por marcas físicas, como tez, formato do crânio e características faciais. Não apenas são
marcadas por uma eterna separação, como também, para ele, são hierárquicas. Para o citado
autor, faltava à raça amarela força, e, aos negros, inteligência. Sua conclusão: “a raça branca
possuía originalmente o monopólio da beleza, da inteligência e da força” (GOBINEAU, p.
209, 1915), segundo Todorov (1989) não seria nada além de uma variante do senso comum,
se não houvesse introduzido o termo “civilização” na fórmula. O componente, histórico,
junta-se ao preconceito e o faz concluir que as “raças inferiores” não criaram a prensa nem a
máquina à vapor; não produziram “Homeros nem Galenos” (GOBINEAU, p. 37 e 38, 1915).
Ao dizer ‘nossa ciência’, ‘nossas descobertas’, não está sendo um arauto do progresso
científico, apenas exclui da civilização os não-europeus. Da apresentação, o autor chega a
duas conclusões: considerando-se a hierarquia proposta, a mistura é necessária para eliminar
o fosso entre as civilizações. No entanto, para a raça, a miscigenação não passa de
enfraquecimento.
Substitui, assim, o termo “raça” por “língua” e o usa para afirmar a incontornável
superioridade europeia. E, ao fazê-lo, toma cuidado para que as divisões raciais fiquem
subterrâneas.
“O espírito de cada povo e sua língua estão em estreita ligação: o espírito faz a língua, e a
língua, por sua vez, serve de fórmula e de limite ao espírito” (RENAN, 1858, p. 96 ). E
“Sendo a língua para uma raça a própria forma de pensamento, o uso da mesma língua,
continuado durante séculos, torna-se, para a família que nela está confinada, um molde, um
espartilho, em um caminho” (RENAN, 1858, p 32).
Dessa forma, ao mesmo tempo que advoga pelo romper dos grilhões da divisão racial de
Gobineau, Renan contrabalanceia sua fórmula com um determinismo linguístico, cultural.
Trata-se, também, de “uma relação entre língua e raça, que atesta, em primeiro lugar, a não
coincidência das duas e, em segundo lugar, a sua solidariedade”. (TODOROV, 1989). Dessa
forma, não elimina os conceitos de raça, só o dá um novo rumo; serve de alicerce para que
termos como ‘ariano’ e ‘semítico’ deixem de ser designações de famílias linguísticas e
passem a ser aplicados como divisores dos seres humanos (TODOROV, 1989). E, dessa
forma, apenas reformula a questão de Gobineau ao ligar com pronomes possessivos
invenções e pensadores com a ração: Para Renan, Kant e Goethe tinham, em si, o espírito
cultural e a linguagem que herdaram dos primitivos teutões; por sua vez, pela ausência deste
elemento, os africanos nunca atingirão o ápice da humanidade (TODOROV, 1989), Mas ao
separar a humanidade em culturas mutuamente impermeáveis, ao afirmar que os valores
fazem parte da cultura, Renan chega a um relativismo paradoxal: se a ciência é um labor
exclusivamente de indo-europeus, não deveria ter valor somente a eles? “Como pode uma
cultura específica produzir algo verdadeiramente universal, como a ciência?” (TODOROV,
1989).
O relativismo só realoca seus preconceitos, além de criar, para si e para os seus, uma visão
particular; para os outros, sua doutrina é geral e inflexível. E, colocadas estas posições,
compreendido o arco que levou o racismo a uma roupagem científica, alinhando-se à
civilização (Gobineau) e à linguagem (Renan), o seguinte excerto do Caliban reniano
(quando Próspero diz ao seu escravo domesticado) ganha uma nova dimensão: “Próspero lhe
ensinou a língua dos Aryas. Com esta linguagem divina, a quantidade de razão que dela é
inseparável entrou em você” (p. 382, RENAN).
A salvação das civilizações, para Renan, consiste no ensino do francês, que não passa de um
componente do colonialismo. O ensino da língua constitui um espírito particular, que se
sobrepõe às intenções daquele que o fala. Sobre o assunto, trazemos ao estudo um trecho de
um discurso do autor feito em razão da Conferência da Aliança Francesa para a propagação
da língua:
O "drama filosófico” de Renan é, assim, um enredo em prol de uma ideia: a de que existe
raças culturais e que nada se cria a não ser aquilo contido nos moldes europeus, mais
especificamente o francês. Em outra ponta, ao afirmar que Caliban recebe e recusa a língua
de Próspero, Renan identifica o ovo da serpente que, no seu orgulho seio europeu, está por
nascer e romper com os antigos dogmas aristocráticos.
Significa dizer: a pureza, o progresso, as virtudes todas são europeias, são aristocráticas. O
que está fora disso pode ser resumido a uma palavra que, por si só, reúna todas as
ignorâncias, todos os vícios: Caliban.
Dois pontos podem ser colocados como parâmetros para compreendermos a ligação entre o
Caliban de Renan e o de Guéhenno: A História e a Cultura. Com relação a esta, percebe-se o
mesmo entusiasmo no arcabouço imaterial do saber, como justificador de um humano
melhor, o mesmo remontar de edifícios intelectuais que terão como primitivo elemento
topológico o iluminismo. No entanto, aquela, a História, separa o mestre, Renan, de seu
discípulo, Guéhenno. Como já dito, Enest Renan escreveu seus dramas Filosóficos sob o
influxo do ocorrido na Comuna de Paris, primeira experiência de um governo socialista, do
povo (que, para o autor, era representado por Caliban). Se retrocedermos, encontraremos, em
1870, a Guerra Franco Prussiana, que resultou não apenas da demonstração do poderio
militar francês, não apenas na conclusão do processo de unificação da Alemanha (o Segundo
Reich), mas na vergonha francesa de ver o Salão dos Espelhos do Palácio de Versalhes como
local da coroação de Guilherme I, como imperador alemão.
Se retrocedermos ainda mais, não vendo o ocaso do imperador Napoleão III com seu
sequestro e a derrota francesa na Guerra Franco-Prussiana, mas sua origem, veremos a
ebulição que, em 1848, mexia com o país. Tocqueville comparou o momento com dormir em
um vulcão, a terra a tremer, os ventos e as tempestades revolucionárias soprando no
horizonte. (Hobsbawm, 2015). O Zeitgeist, então, mostrava sua força centrípeta: naquele ano,
Marx e Engels divulgavam os princípios da revolução proletária “contra a qual Tocqueville
alertava seus colegas”.(Hobsbawm, 2015a, p. 25). Revoluções, que, em seu todo, foram
conceituadas como s “Primavera dos povos” floresciam na Bavária, Berlim, Viena, Hungria,
Milão, bem como a Revolução Praieira, ocorrida em Pernambuco. O marco iniciador da
Primavera de 1848 foi, no entanto, a insurreição que, na França, derrubou a monarquia e
instituiu a Segunda República. Se retrocedermos pela derradeira vez, compreenderemos,
entre 1789 e 1848 o período que Eric Hobsbawm (2015b) denominou como a “Era das
Revoluções”. Neste lapso temporal, a França se livrou da monarquia com a Revolução
Francesa, passou por momentos de terror jacobino, conheceu o auge e a queda nas guerras
Napoleônicas, experimentou o vigor revolucionário e seu arrefecimento, com o processo
restaurador que emanava do Congresso de Viena, de 1815. Após conhecer um segundo (e
breve) governo de Napoleão, o país retornou para as mãos dos Bourbon – desta vez Luis
XVIII, irmão de Luis XVI, que fora guilhotinado em 1793.
Quando Renan escreve seu Caliban, portanto, não tem em vista apenas a insurreição popular
da Comuna de Paris - já que este evento, por si só, era a ponta de lança de uma série de
altercações buscando o poder. A França de Renan era a da opulência aristocrática, no período
anterior à revolução, e o orgulho conquistador, que se seguiu após o golpe do 18 Brumário.
Se Renan se apoia na aristocracia, como salvação dos eflúvios malignos que vinham das
camadas populares, é porque sabia que a luta entre classes seria cada vez maior (e, neste
ponto, pode-se considerar o quanto foi profético com as revoluções que assolariam o Século
XX. Diria Renan, se tivesse ainda vida, que em 1918 Caliban era um bolchevique?); se o
autor pensa na língua como última instância, ainda sem máculas, da grandeza francesa, talvez
seja por despeito de ver o nascimento da Alemanha no local símbolo da aristocracia de seu
país. Vale lembrar, é o momento em que até a geografia é aprisionada por vontades políticas,
é quando Ratzel postula que o homem é fruto de seu meio e o Estado precisa de um “Espaço
vital” (Lebensrau) - doutrina que foi útil não apenas à unificação alemã, mas que serviria
também para o expansionismo nazista (xxxx) Cada pensador age com as armas que (seu
Estado) tem: A Alemanha necessitava de um arcabouço justificador para a unificação. A
França dó queria salvar a própria honra. E Renan é arauto desta empreitada.
Por sua vez, Jean Guehenno não quer salvar nada, a não ser a si mesmo. Filho de sapateiro,
aos quatorze anos foi obrigado a abandonar a escola para trabalhar como operário. Estudou
sozinho, obteve o bacharelato, serviu durante a guerra como oficial de infantaria e se tornou
professor do ensino médio. Assim, se pensa na Cultura como conditio sine qua non do
desenvolvimento, não a encapsula no conceito de “raça linguística” de Renan. Seu passado
não é aristocrático, e pouco importa, para ele, que a aristocracia já seja uma lembrança
longínqua dos áureos tempos franceses, tal qual as navegações são uma doce reminiscência
para os portugueses. Renan fala de cultura e do mau cheiro do povo, Guéhenno fala de
cultura e é do povo. Neste contexto, antes de dirigir a Revista Europa, de 1929 a 1936,
escreve Caliban Parle, em 1928; dedica-o, como era de se esperar, ao seu mestre Renan.
Mas Guéhenno quer mais: além de se apropriar do mote renaniano, usa Caliban abraçado
com uma ideologia, que Renan expressou em seu "L'Avenir de la science" (O Futuro da
Ciência) escrito em 1848 e publicado em 1890. Nesta obra, lê-se uma defesa apaixonada da
curiosidade, que, por sua vez, regula a própria ciência. Diz Renan:
Mas, para Renan, o conhecimento, a língua e o passado eram garantidores da grandeza de sua
nação, para Guéhenno, era o futuro que estava em questão: Renan afirmara que Caliban teve
a oportunidade de conhecer a língua francesa, mas a desprezou. O Caliban de Guehenno não
esnobará os livros, a língua, a cultura eurocêntrica. Com tais armas, o personagem deixará de
ser escravo. E, então, uma conclusão se torna inevitável: Guehénno acreditava-se humanista
ao recuperar os bons momentos de Renan, corrigindo-o de seus preconceitos. No entanto, ao
focar o conhecimento como combustível para a mudança, não deixa de ver o personagem (o
outro, o não europeu) como alguém menor. A única diferença é que, aqui, o escravo aceita a
mão amiga de Próspero enquanto, com Renan, rechaçava. Em Caliban Parle, Caliban falará.
Em francês, mas falará.
Então se inicia a Segunda Guerra, e Guéhenno se junta à resistência. Por um breve momento,
a História reaproxima mestre e pupilo> assim como Renan vira, consternado, a coroação de
Guilherme I no Salão de Versalhes, Guéhenno testemunha a ocupação nazista na Cidade Luz.
Albert Speer, Adolf Hitler, and Arno Breker on Trocadéro in front of the Eiffel Tower. A
crouching cameraman films Hitler for the cinema newsreel. Paris, 23 June 1940.
Photo collection: National Archives and Records Administration, USA
Mais, vê novamente Versalles ser usada como humilhação nacional. Em 22 de junho de 1940,
França e Alemanha acertaram um cessar-fogo, e o local escolhido para tanto não podia ser
mais simbólico: Hitler exigiu que o acordo de paz ocorresse na Floresta de Compiègne,
próxima a Paris; mais ordenou que soldados alemães arrombassem um museu e empurrassem
um vagão de trem, 24 19 D, até a floresta. Naquele vagão, naquela floresta, décadas antes,
fora assinada a rendição alemã na Primeira Guerra, que ocasionou no Tratado de Versalhes
(que, pelo seu artigo 231 e 232, estipulava a culpa alemã pela Primeira Guerra e a
necessidade de reparação de todos os prejuízos). (GERSTANBERG, online)
Mas se Renan se equilibrava, ébrio, no passado, Guéhenno e seus contemporâneos não viam
futuro. Com o término da Segunda Guerra, a libertação da França, originou um momento
tenso, nos campos político e filosófico. Se a Cultura já não representava um passado glorioso
para Guéhenno, agora também de nada servia ao berço do iluminismo. Reduzida a
escombros, em seu âmago, o país precisava se reconstruir do zero, em todos os aspectos.
Neste contexto, em 1947, surge uma revista literária, de nome Caliban. Com o objetivo de
promover a paz e destacar os valores universais contidos nas obras primas, a revista buscou
como inspiração o personagem Shakespeariano e a versão que Guehenno havia feito em
1928. (REYNES-DELOBEL, 2021). Já em seu primeiro número, o periódico apresentou uma
entrevista com Guéhenno, em que o autor relembra o conceito de seu Caliban e a importância
da Cultura e da educação, como motor propulsor das camadas mais baixas. No entanto, agora,
o próprio Caliban de Guéhenno havia se transformado: para ele e para os idealizadores da
revista, o personagem agora era, estranhamente, um símbolo do... europeísmo!
Vale lembrar, a Europa do pós-guerra fora destroçada intelectual, moral e fisicamente. Os
edifícios seculares das luzes, lembrados por Renan para erigir o conceito de “raça
linguística”, não passavam de escombros, assim como o Lebensrau de Ratzel e o possibilismo
de La Blache (VALENÇA, 2021).
Atores equilibristas, não das alturas, mas de vales sombrios, deviam compreender que não
passavam de atores secundários, equilibrando-se entre a necessidade de aceitar a ajuda do
Plano Marshal do polo americano, ou encampar a ideologia do bloco soviético. Ainda assim,
franceses e ingleses dividiam-se entre os que preferiam padecer sozinhos, e o que aceitavam
que as nações deviam se apoiar umas nas outras. A discussão destas duas frentes permeia os
avanços e retrocessos das primeiras comunidades europeias, desde a assinatura do primeiro
tratado supranacional, o CECA (Comunidade Europeia do Carvão e do Aço) em 1951, até a o
Tratado de Lisboa de 2009, que deu corpo à União Europeia. Pela amplitude da questão,
pelas particularidades, pelos tantos eventos que opuseram a cisão e a reunião, limitamo-nos,
aqui, a expor suas linhas gerais. No entanto, uma diatribe merece um comentário mais
extendido: anos antes da criação da revista Caliban, Jean Guéhenno e André Gide travaram
uma rusga que tinha exatamente esse componente: europeísmo versus euroceticismo. Nas
páginas do jornal Europe, com o tema da ‘Europeização da cultura’, Guéhenno tomou o lado
de Roman Rolland, um internacionalista pacifista. Gide, por sua vez, advogava pela tese de
que o interesse geral seria melhor servido com o crescimento das particularidades. Em outras
palavras, para Gide, não era preciso renunciar à cultura nacional para buscar algo maior.
Assim, Caliban não era mais apenas o símbolo do escravo que tem a oportunidade de
desfrutar do conhecimento iluminista. Tinha agora, também, a oportunidade de ter o
passaporte europeu, de transitar pelos países sem passar por averiguações ou alfandegas.
Neste excerto de Guéhenno publicado pela edição número um, percebe-se não apenas a
reiteração do europeísmo do autor, mas a vocação supra nacionalista de Caliban – do
personagem e da revista.
Corine Renou (1993) rastreou as raízes do suplemento: sua origem internacionalista
remontava o leitmotiv de um jornal clandestino bimestral com o nome “Le Français” que
circulou entre 1941 e 1942. Após o Armistício, em 1947, alguns dos fundadores deste jornal
ganharam permissão do Ministério da Informação para a criação de Caliban. Na revista
augural, os editores publicaram um manifesto enfatizado que a insularidade das nações era
coisa do passado – mas, de maneira estranha, decidiram assinar coletivamente o J’accuse
com o nome “Ariel”, na mesma oportunidade em que Guéhenno bradava que Caliban somos
todos nós.
Como dito, o eurocentrismo antagonizará com o “europessimismo” e a valorização pela
individualidade das nações. Como também exposto, a diatribe se dá em diversos planos: em
construções filosóficas e em políticas externas dos países europeus; está presente na
Declaração Schuman, de 1950, no vaticínio de que “A Europa não se construirá de uma só
vez, nem de acordo com um plano único. Construir-se-á através de realizações concretas que
criarão, antes de mais, uma solidariedade de facto”. (UE, online, 2023) e também nas
motivações que levaram ao Brexit, em 2018. (ESTADÃO. Online, 2023)
No entanto, a questão não se cinge a uma disputa regional, que opõe supranacionalismo e
individualismo. Isso porque o eurocentrismo, em si, ao ser escolhido como modelo de
conduta, em outros períodos históricos, foi o desencadeador de imperialismo, de espoliações
e teorias discriminatórias. Por exemplo, antes do Congresso de Berlim, que definiu a partilha
colonial, era comum encontra descrições europeias sobre formas políticas africanas
complexas, aperfeiçoadas. Após tal Congresso, que congregou uma vontade supranacional
expansionista, as imagens africanas começaram a se deteriorar. (VIEIRA, 2006). Em outras
palavras, o eurocentrismo, ao articular e inscrever em seu bojo a posse de referências
clássicas, como a grega e a romana, quer revestir-se de um universalismo. E, ao se colocar
como umbigo do universo, exclui o outro de qualquer humanidade. Portanto, o eurocentrismo
não pode ser visto como um etnocentrismo qualquer. Por ser um projeto de poder, não é
equivalente ao panafricanismo de Willians, Du Bois e Garvey (CASTRO, SEIXAS, 2013)
Em síntese, o eurocentrismo leva ao afro pessimismo. (VIEIRA, 2006).
E, voltando a Guéhenno, seu erro, agora, fica nítido. Tal autor usou Caliban apenas quando
foi conveniente: em um primeiro momento, prega um humanismo ao alçar o conhecimento
como forma de progressão social, mas, implicitamente, não deixa de enxergar o outro como
um bárbaro. Depois das atrocidades da Segunda guerra, afirma que somos todos Calibans
para demonstrar que o ilhéu deixou sua ilha e abraçou o continente de seus algozes. Assim,
queria dizer: não somos insulares, somos universais, porque Caliban nos mostra que é
possível renegar a ilha, em nome de algo maior. Sem pensar que a colonização fora um
resultado do eurocentrismo, constrói um edifício de fachada humanista, e coloca o escravo
colonizado como símbolo de uma União Europeia.
E eu, que tenho sido um defensor de Cuba livre, nem que seja por
acompanhar tantos agricultores nos seus sonhos e tantos mártires no seu
heroísmo, sou amigo da Espanha no momento em que a vejo atacada
por um inimigo brutal
DARIO,1998. p. 455.
Assim Caliban aporta na América. Uma figura complexa, assim como o continente. Um
personagem colonizado que, no entanto, será utilizado para chacotear um império americano.
Este é o ‘J’acuse’ de Groussac: ao apontar e acusar, reveste seu discurso do sentimento da
formação da identidade latino-americana e da autodeterminação dos povos, assim portando-
se como um homem que se recusa a obedecer Próspero; ao proferir sua acusação em sua
língua materna, no entanto, mostra-nos que sua rebeldia é apenas nostalgia. Seu
inconformismo são apenas elegias do passado glorioso europeu.
Neste contexto, José Enrique Rodó escreverá seu Ariel. Lançado em 1900, o opúsculo do
uruguaio é considerado por Scliar (2000) como um ensaio fundador do pensamento
americano; um livro latino-americano que não encontra pares na repercussão
alcançada. Dentre os temas abordados, destacam-se o afluxo de emigrantes na América
latina e o caráter utilitarista do pensamento da América do Norte. Rodó critica o pragmatismo
norte-americano, uma atitude aristocrática, como a de Renan. “Aristocracia intelectual, mas
aristocracia” (SCLIAR, 2000).
O pensador francês, inclusive, parece ser uma constante no leitmotiv do uruguaio.
"Racionalmente concebida, a democracia admite sempre um imprescritível elemento
aristocrático, que consiste em estabelecer a superioridade dos melhores." (RODÓ, 2003, p.
70). A frase nasceu de um pensador sul-americano e, sem meias palavras, exemplifica a
diatribe da política externa dos países sul-americanos no começo do Século XX: de um lado,
o Brasil se inclinava a uma simpatia com os Estados Unidos, de outro, Argentina e Uruguai
acenavam que optariam pela velha Europa.
(procurar aqui a citação do Brasil: entre a america e a eruopa.
Não se sabe se Rodó conhecia os textos de Dario e Groussac. (RICUPERO, 2016). No
entanto, é certo que Renan foi influência para o uruguaio. O francês é citado onze vezes em
Ariel; em uma das mais emblemáticas, Rodó evoca Renan e seu desprezo pela democracia.
Continua o uruguaio, mesclando o texto com elegias para Renan e demonstrando como o
francês encontrou a metáfora perfeita nos personagens de A Tempestade.
Piensa, pues, el maestro, que una alta preocupación por los intereses
ideales de la especie es opuesta del todo al espritu de la democracia.
Piensa que la concepción de la vida, en una sociedad donde ese
espÌritu domine, se ajustar· progresivamente a la exclusiva
persecución del bienestar material como beneficio propagable al
mayor número de personas. Según él, siendo la democracia la
entronización de Caliban, Ariel no puede menos que ser el vencido de
ese triunfo
O mestre (Renan) acredita, portanto, que uma preocupação elevada
com os interesses ideais da espécie é completamente oposta ao
espírito da democracia. Ele acredita que a concepção de vida em uma
sociedade onde esse espírito prevaleça se ajustará progressivamente à
busca exclusiva do bem-estar material como um benefício que possa
ser compartilhado com o maior número de pessoas. Segundo ele, uma
vez que a democracia é a entronização de Caliban, Ariel não pode
deixar de ser derrotado por essa vitória..
(RODÓ, 2006, p. 55)
Renan, diz-nos Rodó, pensa que os interesses ideais da espécie só podem ser buscados sob a
batuta da aristocracia no poder. Vaticina a derrota de Ariel frente ao utilitarismo de Caliban –
e, daí, Rodó busca o título de seu opúsculo - que dará voz a uma corrente de pensamento
denominada “arielismo.”
Renan, como insistentemente expusemos, é homem de seu tempo, advoga pelos interesses de
sua nação, que não passa uma estátua de passado glorioso, ainda que tenha barro em seus pés,
pieds-noirs1.
Por sua vez, Rodó não tem passado glorioso, seu país não possui História, a origem da
República Oriental do Uruguai não é nada além de um fruto do confronto de interesses de
caudilhos e de ingleses, e que tomou corpo em uma guerra entre brasileiros e argentinos.
A crítica aos Estados Unidos é feita com argumentos aparentemente preocupados com o
destino da raça humana: o conhecimento vertical, especifista e que serve apenas ao aumento
da produção é sua preocupação - e, neste ponto, algumas das páginas de Rodó antecipam as
discussões que seriam recorrentes no Século XX sobre o progresso vertiginoso e sua
correlação com a alienação humana.
O professor pensa, portanto, que uma grande preocupação com os interesses ideais da espécie
se opõe completamente ao espírito da democracia. Ele pensa que a concepção de vida, numa
sociedade onde este espírito domina, ajustar-se-á progressivamente à procura exclusiva do
bem-estar material como um benefício que pode ser difundido ao maior número de pessoas.
Segundo ele, como a democracia é a entronização de Caliban, Ariel não pode deixar de ser o
perdedor desse triunfo. Afirmações semelhantes a estas de Renan abundam nas palavras de
muitos dos mais ilustres representantes que os interesses da cultura estética e a seleção do
espírito têm no pensamento contemporâneo. Assim, Bourget tende a acreditar que o triunfo
universal das instituições democráticas fará com que a civilização perca em profundidade o
que a faz ganhar em extensão.
1
A expressão é oportuna, além do dito popular. Pied-noir é o termo usado para classificar
cidadãos franceses que viveram na Argélia, no Marrocos e na Tunísia e foram responsáveis
pela administração destes (então) protetorados.
Tirado de
https://www.algeria.com/blog/the-history-of-the-pied-noirs/
Benjamin, décadas mais tarde, fará a célebre comparação do progresso com um quadro de
Paul Klee. O anjo da História mira o passado, que é, simultaneamente, o paraíso. Algo o
impede seu retorno, algo impele para que siga caminhando, para frente e para frente. Algo o
que?
Rodó se opõe a Sarmiento e a sua máxima de que a Argentina deveria ser mais ‘americana’
do que latina. Meio século após a publicação de Facundo, o uruguaio revisitará o tema da
contraposição dos conceitos de ‘civilização’ e ‘barbárie’. A fuga da barbárie proposta por
Sarmiento é transformada em elementos simbólicos: o espiritualismo de Ariel e o
materialismo utilitarista de Caliban. (RICÚPERO, 2016) O fim do libelo de Rodó segue à
regra: se há uma mediação entre Caliban e Ariel, esta só pode ser executada pelo intelecto,
por Próspero. Da alegoria, o autor funda a figura da ‘democracia nobre’, que nada mais é do
que a união do materialista Caliban e do espiritualista (e aristocrático) Ariel (RICÚPERO,
2016). É, aliás, Próspero quem diz: “a multidão, a massa anônima, não é nada por si mesma.
A multidão será um instrumento de barbárie ou de civilização se careça ou não de uma alta
direção moral” (RODÓ, 2003, p. 220).
A última cena de Ariel não foge da simbologia que o erigiu. Em um livro marcado pelo
diálogo entre Próspero e alunos, no fim, os discípulos se despedem de seu mestre, ainda
pensativos: “Sob o abrigo de uma reflexão unânime, todos experimentavam essa destilação
sutil da meditação, absortos em assuntos graves”. Retornam para a realidade com o contato
com a multidão, que enche as ruas – e o “contato áspero” é visto como como um desarranjo
aos elevados pensamentos que, até então, tinham: “A única coisa que perturbava o êxtase era
a presença da multidão. Um sopro morno fazia o ambiente estremecer com languidez e
deleite, como o cálice trêmulo na mão de uma bacante.”
Escorregam, então, seus olhos para os céus, e percebem que “as grandes estrelas cintilavam
no meio de um séquito infinito.” Admiram Aldebarã, Sirius e o Cruzeiro do Sul. Neste ponto,
o mais jovem dos alunos talvez tenha pensado em Renan (e na construção de Caliban como
um assaltante do céu) para falar: "Enquanto a multidão passa, observo que, embora ela não
olhe para o céu, o céu a observa”
Não é Caliban que olha para Ariel. É o céu que precisa vigiar a multidão. E assim o
Arielismo se finca de vez na formação da identidade do pensamento latino-americano no
Século XX.
“Há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã
filosofia.”
Mais uma vez, é preciso pensar no contexto do mundo que se iniciava após a Segunda
Guerra: um mundo que tentava se erguer após a experiência do holocausto, a falência dos
mandatos coloniais, a nascente bipolarização. Neste período, Octave Mannoni escreverá a
Psicologia da colonização (1950). À luz da psicanálise, e utilizando-se das figuras da
literatura do europeu que se refugia a um local insular e aí se depara com o Outro (Próspero
& Caliban, Crusoé & Sexta-Feira) o autor pretendeu demonstrar a relação entre colonizados e
colonizadores.
Em um primeiro momento, a teoria não é mais que uma releitura da visão iluminista:
O colonizador, diz Mannoni (1990), oscila constantemente no pêndulo entre ‘corrigir’ os
‘erros’ do selvagem e o desejo de identificação - o retorno a um paraíso perdido.
(MANONNI, 1990).
Até então, a proposta não é nova: o caráter ambivalente do contato entre europeus e outros
povos já fora estudado por Montesquieu: os selvagens eram rudes e irracionais; no entanto,
sua pureza devia servir de parâmetro para recuperar o velho e viciado continente. a figura
ambivalente se cindirá, E suas partes serão lembradas quando a conveniência for oportuna: o
“Bom selvagem” lembrará que o homem é puro, mas a civilização o corrompe; por isso, o
conceito será evocado como suporte dos contratos sociais, necessários para coibir os abusos.
De outro lado, o Leviatã e A utopia mostrarão a maldade original, que pode ser balizada
pelo Estado, pela civilização - e estarão, tais obras, na carga genética das ideologias
expansionistas, no “fardo do homem branco” em sua missão de levar aos bárbaros a
civilização.
Assim, uma primeira conclusão se mostra: ao pensar em estágios diferentes, Mannoni foi
influenciado pelo evolucionismo e pela corrente da antropologia cultural. Não é tributário,
portanto, da linhagem poligenista e do darwinismo social. Tal afirmação pode ser encontrada
no prefácio da edição americana de seu estudo:
“...O que nos é apresentado é, sob uma fina nova roupagem, muito a
visão "recebida" da evolução social que foi aceita na primeira parte do
século XX, através da gradual osmose das teorias de antropólogos e
cientistas sociais do século XIX. Como foi o caso de muitos desses
escritores iniciais, o argumento de Mannoni combina história europeia,
ontogenia e antropologia evolutiva.” (BLOCH, 1990)
A seguir, o autor dá cores psicanalíticas à diatribe – e, aqui, outra consideração merece ser
feita. Embora formulada com problemas (que o próprio Mannoni obervará posteriormente), a
Psicologia da colonização será a pedra fundamental para a leitura psicanalítica de A
Tempestade. Desta linhagem, segundo Alden T. Vaughan & Virginia Mason Vaughan (2014)
colacionam-se os seguintes livros ou ensaios:
O estudo de Mannoni não é só o primeiro - é também o que teve mais ecos nos estudos pós-
coloniais – para o bem e o para o mal. Por isso, justificamos o olhar mais detalhado sobre tal
obra, e a crítica que se originou desta.
Duas são as figuras psicanalíticas principais na obra de Mannoni: A supercompensação de
Adler (FANON, 2020) e o complexo paterno. Em síntese, este originariamente foi concebido
por Freud como um aspecto do complexo de Édipo (VAUGHAN & VAUGHAN). Aquele,
um estímulo no indivíduo que se sente inferiorizado em um nicho para buscar uma
compensação em outra senda. Nas palavras de Adler:
Em verdade, a extensão do senso de inferioridade fora, já por Adler, estendida para uma
‘sobrecarga social ou econômica.
Mannoni, por sua vez, acrescentará a divisão étnica naquilo que Adler denomina como
“inferioridade orgânica”. O complexo de inferioridade gera a supercompensação. Tal fato,
aliado do complexo paterno, possibilitará uma interpretação nova (e polêmica) sobre o
colonizador e o colonizado.
Para o europeu, as diretrizes psicanalíticas acima demonstradas aponta que sua vida é iniciada
com a dependência de seus pais. Ao crescer, o vínculo de dependência é rompido e há um
‘abandono’ por seus genitores. Tal ‘abandono’ pode resultar em crescimento pessoal ou
incubar um “complexo de inferioridade” que o levará a querer dominar outros povos.
(BLOCH, 1990). Aqui, como na gênese do selvagem de Montesquieu, há uma evidente
ambivalência: inconscientemente, diz Mannoni, há, de um lado, o desejo de correção, que
pode ser ligado ao país natal (e ao projeto imperialista que o norteia); do outro canto, não há
como subtrair desta identificação as memórias que o colonizador tem da própria infância (e
da sua própria culpa inconsciente por ter abandonado seus pais) (BLOCH, 1990)
Dessa forma, formulará o seu “Complexo de Próspero”: não só as memórias de um paraíso
perdido são afloradas no colonizador, mas também o desejo de conquistar é mostrado como
algo ancestral. Assumindo-os como um complexo, Manonni entende que estes desejos estão
presentes de forma latente e reprimida na psique do europeu. A experiência colonial, segundo
o autor, simplesmente os trouxe à tona.
O autor relembra que a conceituação do selvagem existia antes de Defoe – e cita ‘As histórias
das viagens ao Brasil’ de Jean de Léry (1572). Outrossim, menciona a inconsciente tendência
que leva milhares de europeus a procurarem ilhas oceânicas, habitadas por Calibans ou
Sextas-Feiras; a insularidade destes locais é cotejada com ilhas remotas da geografia mental
humana; nestas ilhas, prossegue o psicanalista, os europeus acreditam que podem usar da
força bruta contra seus habitantes (contra as criaturas aterrorizantes de seus inconscientes).
Caliban is the unruly and incorrigible son who is disowned. Prospero says
he was 'got by the devil himself'. At the same time he is the useful slave
who is ruthlessly exploited. But Caliban does not complain of being
exploited; he complains rather of being betrayed,
Já para os povos de matriz africana (e que, de forma extensiva, poderia ser utilizado aos
americanos e asiáticos), há o rótulo de “primitivos”, pressuposto quase imediato para
chegarmos ao conceito de evolução:
O prefaciador então sublinha que Mannoni não quis comparar a população das colônias com
“crianças retardadas.” Ao contrário, “ Eles são adultos, mas retêm o estado de dependência ao
inventar pseudo-pais ao longo da vida na forma de anciãos e ancestrais aos quais prestam
culto”. (BLOCH, 1990)
Adiante, ao mostrar que Mannoni fez seu estudo com a população costeira de Madagascar,
“primitivos como os africanos”. Deixa claro que o autor, descontente com o adjetivo, usou-o
entre aspas. E, dessa forma, conclui que os “primitivos’ malgaxes, devido o seu “complexo
de dependência”, precisam ter figuras parentais para não enlouquecerem.
No entanto, munidos das vestimentas, da linguagem e dos livros do colonizador, em
determinado momento, o colonizado postulará a mesma existência do colonizador (uma
figura que a crítica pós-colonialista denominará como evolué). Ao migrar para a Europa, ou
ao postular o mesmo reconhecimento e os mesmos direitos do colonizador, o colonizado
perceberá como seu projeto foi inútil. Foi chamado para a civilização e descobriu sua
identidade projetada pelo que o Outro edificou. No entanto, ao postular sua existência, foi
traído: o chamado civilizatório era falso. Desta constatação, nasce o seu complexo de
inferioridade. E, enfim, conseguimos ler com maior clareza a segunda parte da sentença que
acima sublinhamos: Caliban não se queixa de ser explorado; ele reclama de ter sido traído.
Uma incisiva resposta não demorou para ser dada. Frantz Fanon (1925-1961) nasceu na
Martinica, então colônia francesa. Voluntariou-se para lutar contra o nazismo em 1944 e, em
1948, chegou à Lyon para estudar psiquiatria. Lá, tem aulas de Jean Lacroix, Merleau-Ponty,
além do contato com ideias de Freud, Jung, Adler, Sartre, Jaspers, Lacan, Marx, Hegel,
Nietzsche. (FAUSTINO, 2015); outrossim, aproximou-se de grupos universitários, inclusive
fundadores da Negritude. (BARBOSA, 2020).
Pele Negra, Máscaras brancas é, além de outras coisas, a resposta que Fanon dá a Mannoni.
Mas a crítica ao método adleriano não é só uma resposta a este autor, mas um grito que já há
algum tempo ameaçava romper. Para compreender o contexto, retrocederemos uma casa para
mirar a gênese da obra fanoniana. Aos 27 anos, compôs sua dissertação para a conclusão de
Medicina, “Essai sur la désalienation du Noir” (Ensaio para a desalienação do Negro) mas o
texto, que confrontava problemas sócio-psiquícos do colonialismo, foi rejeitado por seu
supervisor, Jean Dechaume. O motivo era que o mainstrean da psiquiatria adotava, já, uma
abordagem positivista capaz de explicar o psicológico através do fisiológico. (FAUSTINO,
2015). Em seu lugar, propôs um trabalho sobre a doença de Friedreich, mas não se escusou
de apontar questões socioculturais, além de postulados teóricos. Sobre tal fato, um resumo é
dado por Patrick Ehlen,
No contexto do desenvolvimento de teoria da psicologia humana de
Fanon, a sua atenção para a lei de Levy-Bruhl [a coexistência de
pensamento lógico pré-lógico] revela um entendimento de simpatia
para com visão de mundo cultural do paciente acima e além de
qualquer teoria médica. A tarefa do psiquiatra, então, não se torna
simplesmente para entrevistar o paciente e, em seguida folhear um
livro para descobrir o diagnóstico e solução, mas fazer um esforço
para "alcançar" o paciente através de símbolos próprios do paciente e
sistemas de crença (EHLEM apud GORDON, 2015)
Em 1955, revisitou a antiga dissertação, que já continha suas reservas com a Negritude, sua
decepção com o prefácio de Sartre e sua concepção positiva e revolucionária da identidade
negra: assim, nascia Pele Negra, Máscaras brancas. (GORDON, 2015). Após esta
observação, fica mais nítida a resposta que Fanon dá a Mannoni
.
A utilidade deve balizar a formação desta renascença africana, alerta Fanon. Buscar passados
ideais, encontrar estruturas inatas ou superegos não mudará a geografia africana, dividida de
acordo com os interesses dos dominadores, nunca respeitando as subdivisões etnicas. De nada
adianta que um estudioso como Martin Bernal (BERNAL, 1987) afirme que Atena, figura
central do panteão helênico, seja uma continuação da deusa egípcia Neith. A existência
universal do inconsciente freudiano não muda a demagogia e os assassinatos no consciente:
O touro negro, diz Fanon, não é o phallus, os dois homens negros não são dois pais, um o
real, o outro o ancestral. A arma do soldado senegalês não é um pênis, e sim um fuzil Lebel
1916.
Fanon critica os dois polos da conceituação. Sobre o ‘complexo de Próspero’. afirma tratar-se
de um conjunto de disposições neuróticas que desenham ao mesmo tempo ‘a figura do
paternalismo colonial’ e o ‘retrato do racista cuja filha foi objeto de uma tentativa de estupro
(imaginário) por parte de um ser inferior’.
Com relação a explicação psicanalítica do colonizado, algumas respostas de Fanon merecem
destaque. Primeiro, pela falta de fundamentos da noção que o malgaxe possuía complexo de
dependência antes da chegada do europeu. Sobre tal fato, lembramos as palavras de xxx,
prefaciadora da edição americana.
O autor de Pele Negra Mascaras brancas compara a situação com um exemplo cirúrgico: o
aparecimento de varizes em um indivíduo não deriva de ter ficado muitas horas em pé, mas
de uma “fragilidade constitutiva da parede venosa,” Trata-se, portanto, de uma tentativa de
explicar o colonialismo responsabilizando o colonizado por formas latentes de seu
pensamento. E, para o postulado, dá uma resposta enfática: “A inferiorização é o correlato
nativo da superiorização europeia. Tenhamos a coragem de dizer: é o racista que cria o
inferiorizado.” (FANON, 2020)
Também refuta a ideia de que a exploração colonial se diferencie de outros racismos. Neste
ponto, sugere que conceitos da fenomenologia e da psicanálise apenas mascaram o problema
central: “Ao querer considerar no plano da abstração a estrutura desta ou daquela exploração,
mascara-se o problema capital, fundamental, que é o de restituir o homem a seu devido lugar.
O racismo colonial não se diferencia de outros racismos” (FANON, 2020)
Já quando Mannoni afirma que nem todos os povos foram colonizados, somente os que
tinham essa ‘necessidade’ (através de um desejo inconsciente de domínio nos nativos). Fanon
assim responde: “Como se vê, o branco obedece a um complexo de autoridade, a um
complexo de chefe, enquanto o malgaxe obedece a um complexo de dependência. Todo
mundo fica satisfeito.” (FANON, 2020)
Kafka, que desdenhava da psicologia (BLOOM, 2013), cunhou a frase: “há esperança, mas
não para nós”. Em outro continente, em outras condições, Fanon interpretou assim a
desesperança da redução do colonizado: Há um complexo de dependência e, por isso, o
colonizado não se importa de submeter-se ao jugo. Se o aceita, o complexo de dependência
de um e o complexo de chefe do outro se harmonizam. Já se o malgaxe pleitear a altura de
um europeu, sofrerá do complexo de inferioridade ao perceber que tal porta está fechada. “De
fato, ele concede ao malgaxe a escolha entre a inferioridade e a dependência. Fora dessas
duas soluções, não há salvação”.
Em outras palavras, se aceitar a dependência, tudo ocorrerá bem. Se desejar um voo maior,
“então o dito europeu se irrita e rejeita o insolente”. Ao viver um fracasso, terá aflorado seu
complexo de inferioridade.
A linha de raciocínio se relaciona com o conceito de évolue, o produto final da política de
assimilação francesa nas colônias.
The évolué signified any African who had fully assimilated French
law, language, and customs. The évolué was the quintessential elite.
He received wider political and economic opportunities than the
indigenous masses. Consequently, the évolué was expected to admire
French life style and denigrate local mores
Trata-se desta figura que é chamada para ser assimilada e que, segundo Mannoni, gerará o
complexo de inferioridade.
Por fim, Fanon critica o conceito da inferioridade, que, para Mannoni, só existirá “entre os
indivíduos que vivem em minoria em um meio que predomina outra cor”. (xxx)
A falácia de Manonni, acima exposta, torna-se mais nítida com a conceituação do hibridismo
de Bhabha. Para tal autor, a resposta está além das conveniências do universalismo ou da
busca homogeneizante da História. Seu tertium genus é, portanto, o que denomina como
hibridismo cultural, figura que não pode ser explicada tão somente pela antropologia ou pela
História, e está mais afeita à ‘diferença cultural’ do que à ‘diversidade cultural’ (xxxxx).
Tal locus não pode ser explicado por processos binários Eu/Outro ou Negro/Branco; seu
teatro é um ‘terceiro espaço de enunciação’ - e trata do Outro, cindido pela imagem que lhe
foi construída; trata, outrossim do Eu, que insere (que impõe) universalismos em troca do
antigo fardo humanizador. Neste contexto, e com tais premissas, relembramos a diatribe de
Césaire/Fanon e de Manonni.
Ao negar o processo alienador de Freud (e de Manonni), Fanon nega que a História conflua
nos mesmos moldes na mente de um argelino e de um austriaco.
Fanon não nos revela iluminação alguma, mas expõe o declive nu, do qual nasce a autêntica
sublevação. Não se trata, aqui, da questão do homem colonial nos termos universalistas, nem
de questões ontológicas sobre o ser do homem. A luta contra a opressão colonial muda não
apenas o curso da História ocidental, mas contesta o próprio historicismo fundado no
progresso e na ordem. Tais constatações, diz Bhabha, mostram como Fanon evocou a
condição colonial de forma mais profunda – e que é relevante no presente tópico sobre
Caliban: o sujeito colonial, para o autor de Pele negra, máscaras brancas, é determinado de
fora, através da imagem e da fantasia - e, neste sentido, compreende-se como Fanon esnobou
a psicanálise de Freud e as releituras de Manonni. Seus trabalhos, ao contrário, foram no
sentido de articular o problema da alienação cultural colonial na linguagem psicanalítica da
demanda e do desejo.
A transição entre interesses individuais à autoridade social – o mito do Homem e da
Sociedade - não pode ser reproduzido na situação colonial, diz Fanon. As virtudes civis,
nestes casos, possuem núcleos de violência política e psíquica e alienam a identidade:
Despite its tabula rasa appearance, the map was, from the beginning,
designed to record particular informa¬ tion. As the spaces of its grid
were written over, there was revealed a palimpsest of the explorer’s
experience, a criss-cross of routes gradually thickening and congealing
into fixed seas and lands
Apesar da aparência de tabula rasa, o mapa foi, desde o início, pensado
para registrar informações específicas. À medida que os espaços de
suas grades eram escritos, revelava-se um palimpsesto da experiência
do explorador, um cruzamento de rotas que gradualmente se
adensavam e congelavam em mares e terras fixas.
CARTER. P. 23, 1987
1. Existir tem correlação necessária com a alteridade. De um lado. o desejo colonial depende
do outro; o ideário da posse não se concretizaria se não houvesse Calibans; O vetor oposto
também é verdadeiro, a chancela da existência depende do olhar para o colonizador. Neste
sentido, diz Fanon (2020): “...não há um nativo que não sonhe pelo menos uma vez por dia se
ver no lugar do colono." Desta afirmação, bem como do ideário de posse, permite-se
concluir: é sempre em relação ao Outro que o desejo colonial é articulado. Seja pela posse ou
pela inversão de valores.
Aqui, voltamos ao conceito de évolué. O europeu não apenas enxerga o outro através da
edificação que fez, mas chama o colonizado para ingressar em seu mundo. Através do
discurso colonial historicista faz-se um chamamento à civilização. No colonizado,
inescapável a cisão no constructo de sua identidade: é um diferente do europeu e, ao mesmo
tempo, pretende-se que seja diferente, entre seu povo.
3. Por fim, o entendimento de que a identidade nunca é uma profecia pré-estabelecida, nunca
se trata da afirmação de uma identidade já dada, mas produção de uma imagem de identidade
e a transformação (e a fissura) de um sujeito para alcançar tal imagem. Tal cisão não apenas
desnudará a demanda do desejo do colonizador e a impossibilidade do colonizado de alcançar
este ideário (que Mannoni chamará de ‘complexo de inferioridade’). Na sociedade, também
causará uma fratura delicada.
You taught me language; and my profit on’t Is, I know how to curse.
The red plague rid you For learning me your language.
A resposta de Caliban será usada como parâmetro da reinterpretação da peça e dos valores
históricos presentes em sua edificação. Césaire concentrará seus esforços na resposta que o
personagem dá ao colonizador e, na crítica anglófona, Ngugi também recorrerá a Caliban
para pontuar a língua como ponta de lança da resistência. Ashcroft, em um livro destinado ao
personagem shakespeariano e à fala, resume a ‘superioridade moral’ de Próspero na
linguagem, instrumento que usa para nomear e controlar a ilha. (xxx)
Vale lembrar, o arcabouço formal das teorias raciais não havia sido formulado à época da
escrita de A Tempestade. Por isso, a categorização racial não é elemento explícito para
distinguir as posições de Caliban e Próspero. Dessa forma, a régua de julgamentos do Outro
era feita de outras formas, a mais visível a sua animalização. Caliban nasce sob o anagrama
de canibal e a ausência da fala sublinhará a caracterização que o europeu o faz, como um
animal irracional.
A representação ambígua de Caliban ocorre porque as noções de raça
ainda não haviam se consolidado quando Shakespeare escreveu, e não o
fariam por um século e meio. As direções, insinuações e descrições
ambíguas de Caliban na peça surgem porque, embora o conceito de
"canibal" já estivesse enraizado na psique europeia como o sinal
absoluto do outro, ainda não estava conectado à categoria de raça. O
que descobrimos aqui são as origens do racismo em uma distinção mais
radical - entre humanos e animais - e a conexão subsequente entre raça
e escravidão. Miranda chama Caliban de "escravo" além de "monstro",
e de fato ele foi escravizado.
Ashcroft. Calibans voice.
Da oposição entre humano e animal, bem como do uso da fala, algumas considerações
precisam ser feitas. A primeira é de como a língua, antes da caracterização racial, serviu para
edificar o conceito moderno de nação. Appia (xxx) coloca Herder, autor de On the New
German Literature: fragments, de 1767, como um marco desta conceituação teórica. É deste
autor o conceito de Sprachgeist, o ‘espírito da língua’, a síntese de que a comunhão do idioma
é mais que um meio de comunicação; a língua, para Harder, era o meio sagrado de pensar e
criar; ao mesmo tempo em que era comungada, tratava-se de um muro natural para separação
de outras civilizações. Era, em outras palavras, um identificador da nação. Importante
ressalvar, ainda, nesta época, buscava-se dar identidade aos conceitos de Estado e Nação.
O moderno nacionalismo europeu, que produziu, por exemplo, os
Estados alemão e italiano, foi uma tentativa de criar Estados que
correspondessem às nacionalidades, nacionalidades estas concebidas
como o compartilhar de uma civilização e, mais particularmente, de
uma língua e uma literatura. Exatamente pelo fato de a geografia
política não corresponder às nacionalidades de Herder, ele foi
obrigado a estabelecer uma distinção entre a nação como entidade
natural e o Estado como produto da cultura, como um artifício
humano. Página 111. Casa de meu pai
Neste contexto, é possível compreender não apenas como a língua se tornou ferramenta
importante na edificação de Estados contemporâneos, mas também o uso da literatura serviu
como instrumento aglutinador. A ressalva é importante e ecoará em pontos nevrálgicos na
formação da literatura de nações que passaram por processos coloniais. Outro ponto relevante
observado por Appiah é que, ao aproximar a ‘língua’ e a ‘literatura’ da ‘civilização’, Herder
distinguiu Estado e Nação: este era uma entidade natural, aquele, um produto da cultura, um
artifício humano.
Com Georges Cuvier, o termo raça é introduzido na literatura, e dá novo empuxo à disputa
entre poligenistas e monogenistas, no Século XIX (Schwarcz, 2005). Neste contexto,
Gobineau adota um elemento histórico, a ‘civilização’, ao parâmetro raça e, com isso, propõe
uma divisão hierárquica entre brancos, negros e amarelos. Renan, por sua vez, afastar-se-á da
ideia da degeneração, como resultado da miscigenação, como proposto por Gobineau. Da
mesma forma que Herder, Renan pensará na língua como instrumento da nação, sendo as
raças e as fronteiras delimitações próprias do Estado. No entanto, de forma diametralmente
oposta a Herder, Renan pensará na Nação como um constructo cultural, não natural.
Renan é, assim, o arauto que deu nova roupagem à velha missão civilizatória. Se antes, o
especismo era a justificativa para a invasão e colonização, a hierarquia cultural, resultado da
edificação do seu conceito de ‘raça cultural’, será a engrenagem que permitirá ao humanismo
europeu sojigar e possuir sem ter peso na consciência. Renan é hábil ao deslocar o foco do
que liga o Nós e os Outros. É homem de seu tempo ao compreender que a raça é um elemento
natural, mas visionário ao dar castas a cultura – e, portanto, dar ao europeu novos motivos
para ver o outro. Mais, Renan é bom conhecedor do passado. Sabe que a linguagem e os
livros foram as armas letais no tempo de Próspero, e o continuarão a ser também em seu
tempo. E, ao mesclar a relevância Herderiana da linguagem com o racismo científico de
Gobineau, é este autor o pioneiro a levar Caliban da natureza para a cultura. Tal movimento,
pensamos, pode ser sintetizado por este excerto:
Dizes sem cessação que a ilha te pertencia. Em verdade, pertencia a ti, assim
como o deserto pertence à gazela, a selva ao tigre, e nada mais. Não conhecias
o nome de nada lá. Eras estranho à razão, e tua linguagem inarticulada se
assemelhava ao mugido de um camelo irritado mais do que a qualquer fala
humana.
(Renan 1896: 17)
Não por outro motivo, Renan será o principal difusor da língua francesa como instrumento de
dominação. E aqui, frisa-se novamente os sutis ergos que possibilitam a propagação do
racismo que se alastrou no Século XIX. Nação e literatura se unem, assim como raças
culturais e nações. Superpondo-se tais conceitos, é possível explicar o florescimento da
“compreensão racial da literatura” da segunda metade do século XIX. Assim como Renan foi
para o imperialismo francófono, é possível destacar alguns marcos na ideologia anglófona.
Appia cita como exemplo o History of English Literature [História da literatura inglesa], de
Hippolyte Taine, que identifica a literatura nacional ao ‘estado moral’ de sua respectiva raça.
Para unificar ‘raça’ e ‘nação’ inglesa, colocando-as como centro do mundo, o autor busca as
origens anglo-saxônicas da literatura, excluindo as matrizes latinas e gregas.
É a concepção do núcleo unificador da nação inglesa como sendo a
raça anglo-saxônica que explica a decisão de Taine de identificar as
origens da literatura inglesa, não em seus antecedentes nos clássicos
gregos e romanos que forneceram os modelos e os temas de grande
parte das mais afamadas obras da “arte poética” *25 inglesa, nem nos
modelos italianos que infleunciaram a arte dramática de Marlowe e
Shakespeare, mas em Beowulf, um poema em língua anglo-saxônica,
poema este que era desconhecido de Spenser e Shakespeare, os
primeiros poetas a escreverem numa versão da língua inglesa que
ainda quase conseguimos entender.
Segundo Appiah, duas são as principais correntes para explicar as diferenças e semlehanças
entre os povos. A grega, baseada em Hipócrates, explica a superioridade helênica por uma
conjuntura espacial: a aridez do solo forçou o povo grego a evoluir. Já a tradição judaico-
cristã se volta ao patriarca Abraão e sua linhagem. Seus descendentes se tornam “o povo de
Israel”, título sanguíneo que não guarda correlato com naturalizações ou universalismos.
Appiah se debruça sobre tais explicações para demonstrar como Crummel formou um
conceito distinto de “raça”.
Tal divisão é útil para entendermos alguns pontos desta doutrina. Em primeiro lugar, a ideia
de civilização como um corpus moral, religioso, político em que se fia uma sociedade, tem
analogia com a concepção cultural histórica que aparece com Renan. No entanto,
diferentemente do francês, Crummell não usará a língua como patrimônio edificante da
nação. Sendo a compleição de sua doutrina o todo, a unificação continental, a multiplicidade
de línguas africanas se mostrava como óbice, não como solução.
O segundo ponto que se aproxima e se distende do modelo europeu está na própria forma de
enxergar a raça. Como as doutrinas nascentes europeias, Crummell usava a raça como
elemento de distinção entre povos – um elemento de unificação do que delimitava como o
seu povo. Era, portanto, uma teoria racialista. No entanto, não usava o elemento racial como
“base para fazer mal a alguém” (casa de meu pai, 48). Não era, então, um racismo extrínseco.
Sobre tais conceitos, julgamos necessárias algumas considerações. O racialismo foi atividade
nuclear do século XIX para moldar teorias de diferenciação, mas também se trata de conceito
que, advindo de Hegel, não pretende ser científico; sem postular hierarquia, tem como objeto
de estudo possíveis distinções entre as pessoas. Appiah, apesar de pensar que se trata de base
falaciosa, não a enxerga, a príncipio, como discriminatória. No entanto, é assertivo ao afirmar
que “o racialismo (...) é um pressuposto de outras doutrinas que foram chamadas de
‘racismo’. Neste ponto, o citado filósofo divide o racismo em intrínseco e extrínseco, o
primeiro sendo um distintivo que o faz reconhecer seus pares, o segundo, o uso da
particularidade para o domínio, em nome da hierarquia.
A lenta evolução (especismo, que se transforma em racialismo, que gera racismo/ Racismo,
que, ao passar do natural para o cultural, vincula-se com nação e com a literatura/ Racialismo
e tradição judaico-cristã que originam a base do pan-africanismo) é importante para
compreender a anatomia da gênese do pensamento pós-colonial. Crummel pensa em
cristianismo e racialismo quando pensa no futuro da Africa. De um lado, o todo racial não
admitiria a variação linguística - e, por isso, o inglês, tal como pensado por Macaulay,
continua para Crummell um instrumento importante. Por outro lado, a identidade que almeja
construir, a africanidade, é tecida por fios de racismo intrínseco. E, segundo Appiah, é tal
modelo que origina a retórica do discurso da solidariedade racial.
Em verdade, O panafricanismo nasce como pan-negrismo. Para Crummell, assim como para
Blyden, a África era a pátria do negro, e o afro-americano não seria nada além de um exilado
(casa de meu pai). É este o bastão que Du bois, sociólogo e ativista norte americano, pega, e
prega, em 1987. Seu pan-negrismo, no entanto, tinha falhas estruturais. Ao tomar o modelo
crummeliiano de raça, não se desvia da concepção de psicologia racial (que estará presente,
meio século depois, na Psicologia da Colonização de Mannoni). Tal modelo, ao eleger uma
forma de pensamento peculiar africana, cai na armadilha de pensar no continente como um
produto cultural homogêneo - característica que o beninense Paulin Houtondji denominou
como unanimismo (casa de meu pai, xxx). A partir de 1911, Du Bois caminha para o
panafricanismo, rejeitando o conceito científico de raça. Para tanto, percorre um trajeto já
conhecido. Ao tirar o foco em modelos hierárquicos biológicos, ao pensar na ancestralidade
para buscar a unidade, trilha uma vereda desgastada:
19/03/2020.
Retirado de https://www.politize.com.br/agenda-2063-da-uniao-africana/
A exposição dos conceitos tangencia o problema da fala, objeto central do presente capítulo.
A edificação do termo ‘raça’, conforme demonstrado, ganhou contornos distintos nos
continentes europeu e africano. Com Renan, raça e língua iniciam uma aproximação,
duradoura e perigosa. Já no solidarismo africano, a imposição de uma língua seria apenas um
óbice a mais. Disso, fica mais nítido compreender como os movimentos da Negritude e da
Personalidade africana elegeram o particularismo e o historicismo, mas não colocaram
especificamente a língua dentre suas armas. É certo que Césaire se preocupou com o romper
do silêncio, imposto pelo jugo colonial. Então, primando pela diferenciação técnica, é certo
afirmar que a Negritude teve como enfoque a linguagem, e não a língua. Tal fato está
demonstrado quando, ao propor a releitura de A Tempestade, Césaire não deixa passar a
famosa cena em que o escravo e o senhor tratam do aprendizado da linguagem:
calibán: ¡Uhuru!
A poesia é forma de romper com o silêncio. E o uso do verbo, como atitude disruptiva, como
visto na resposta de Caliban, também ecoa em outro libelo de Césaire, o poema 109 do Diário
de um retorno ao país natal, quando o Negro, ao se desalienar, chega ao status do sujeito de
fala. (o negro e a linguagem
O poema prossegue, não só postulando a potência da fala, mas ligando-a umbilicamente com
figuras eróticas:
Para, ato contínuo, usar duas figuras que tem valor metafísico: a argila e a pomba.
O uso da argila como matéria bruta criativa, sua correlação com o verbo, e o uso da pomba
como ligação entre o físico e o metafísico são figuras desgastadas na dogmática judaico-
cristã, desnecessário tecer comentários explicativos. No entanto, Combe pontua outro modelo
pensado por Césaire para este poema: a cosmogonia dogon, que o autor toma emprestado dos
antropólogos Marcel Griaule e Georges Dieterlen. (O NEGRO E A LINGUAGEM).
Aqui é preciso ressaltar, a postura de Césaire com a linguagem sofreu críticas, algumas mais
veladas, outras mais diretas. Fanon, por exemplo, que tinha respeito e reservas à Negritude,
não atacará frontalmente o poema, mas a interpretação que Sartre fez dele, evocando-o como
uma “cosmogonia erótica da Negritude” e sublinhando a tensão entre as oposições “Preto-
branco” edificadas pelo martinicano. Em Pele Negra, Máscaras brancas, Fanon assim
responde: “O Negro continua a ser o grande macho da terra, o esperma do mundo. Sua
existência é a grande paciência vegetal; seu trabalho é a repetição ano após ano do coito
sagrado” (p.32)
Outra resposta indireta de Fanon se dá contra a mensagem do “grito negro”. Em 1946, no
livro Les armes miraculeuses, Césaire anunciou: et je pousserai d’une telle raideur le grand
cri nègre que les assises du monde en seront ébranlées. “Quero soltar do peito o grande grito
negro que sacudirá os alicerces do mundo”. A frase foi recuperada por Sartre, no ensio Orfeu
Negro, sem indicação à fonte original.
Estancará a fonte da Poesia? Ou, apesar de tudo, tingirá o grande rio
negro o mar em que se lança? Não importa: a cada época sua poesia;
em cada época, as circunstâncias da história elegem uma nação, uma
raça, uma classe para retomar o facho, criando situações que só
podem exprimir-se ou superar-se pela Poesia; e ora o ímpeto poético
coincide com o ímpeto revolucionário, ora divergem. Saudemos hoje
a oportunidade histórica que permitirá aos negros com tal vigor gritar
o grande grito negro que os alicerces do mundo sejam abalados
Fanon modula seu ataque ao francês, lembrando das palavras iniciais de Orfeu Negro: “O que
esperáveis que acontecesse, quando tirastes a mordaça que tapava estas bocas negras?” para,
em seguida, dizer: se solto um grande grito, de modo algum ele será negro. Não, da
perspectiva adotada aqui, não existe questão negra.”
Assim como o inglês era instrumento para Du Bois, a língua francesa foi trunfo de Césaire. A
postura, se de um lado denotava a apropriação cultural, bem como desnudava o teatro da zona
de contato, “região fronteiriça cuja divisa é extremamente porosa e indeterminada e onde a
transculturação e as mudanças acontecem”. (Bonicci, p 69 e 70), de outro ponto, lembrava a
assimilation francesa e ao conceito de évolué. Neste ponto, citamos Geismar, biógrafo de
Fanon, que, ao expor as reservas deste para com o martinicano, cita uma tensão ligada ao uso
da língua:
(Fanon) deixou claro que a virilidade, o poder, o prestígio intelectual
e a posição social do nativo dependiam de seu conhecimento e
habilidade com as línguas europeias. Aime Cesaire, nesse sentido, era
o rei negro da Martinica; sua maestria no francês superava a de
muitos dos escritores contemporâneos no território metropolitano.
(Geismar, p. 18)
Ainda segundo Geismar, Fanon não tardou a reconhecer conhecimento linguístico com
estrutura de classe. “Os Ilhéus mais pobres falam o patois; a burguesia assimilada usa o
francês, exceto para dar ordens a seus inferiores.” (p.18). Outrossim:
Outro parâmetro foi utilizado como questionamento. Para Césaire, “ser Negro, doravante, não
é mais ser dito, mas se dizer Negro, se reconhecer e se aceitar como tal. O negro e a
linguagem. P 14. Fanon questiona se o dizer não se traduz como uma extensão do fetiche
europeu e o modelo anglófono questionará a necessidade de se dizer algo.
A Négritude nunca foi uma característica tão proeminente do pensamento das colônias
africanas anglófonas. A reação da primeira geração de escritores anglófonos nos anos 1960 à
antiga tradição da teoria da Négritude Francesa é utilmente, grosseiramente, resumida pela
observação frequentemente citada de Wole Soyinka de que "um tigre não proclama sua
tigritude".
O erro, segundo o Nobel nigeriano, foi quando o movimento refutou a premissa ‘C’, e não a
‘A’. Ao contestar o não desenvolvimento da última afirmação, os negritudinistas propuseram
uma emenda: “a compreensão intuitiva também é uma marca de desenvolvimento humano.”
E , assim, ao postular que o africano emprega compreensão intuitiva, concluiu-se que o
africano era, também, altamente desenvolvido. Dessa forma, a Negritude “não se deu ao
trabalho de libertar as raças negras do fardo” da premissa ‘A’, que, exposta por Sartre, apenas
retratava a velha dialética eurocêntrica. (Soyinka, 1963).
Ao conceituar o Essencialismo, Bonicci (2005) trata-a como “forma de representar a
verdadeira essência das coisas, as qualidades invariáveis e fixas de algum ser ou conceito.”
Tem seu antônimo na diferença e, no contexto pós-colonial, utiliza-se de um reducionismo
visando fixar “uma ideia essencial daquilo que é o Africano, o Indiano, o Árabe, o índio
brasileiro, simplificando o empreendimento Colonizador”.
Tal atitude não significava, para o prêmio Nobel nigeriano, uma ode ao eurocentrismo. Se de
um lado o ‘mundo africano’ não poderia ser isolado, de outro, o autor não abre mão da
Tradição. Neste sentido, escreve em inglês e permeia sua obra com referências ao teatro
grego, a teologia cristã e a filosofia alemã. (DE ANDRADE, Karen. 2023). Pode um africano
escrever como Kafka? Soyinka responde que sim – e isso não implica verter, do alemão,
vernáculos exatos em jeje ou quimbundo, quiçá significa a mera transposição de enredos ou
personagens, atitude que só desnudaria um procedimento replicativo (soyinka, 1979). O
limite geográfico cinde a influência e a imitação (soyinka, 1963). A primeira é o material de
sua pesquisa, também o instrumento para a construção cultural personalíssima de um país.
A controvérsia opôs a crítica pós-colonialista anglófona e francófona. Para Senghor não
passava de uma reencenação, em solo africano, de antigas querelas entre França e Inglaterra.
Para os fins propostos deste trabalho, a demonstração auxilia a visualizar os parâmetros de
ruptura das antigas colônias anglófonas. Encerrados os mandatos coloniais, a vanguarda do
pensamento destes países elegeu o sistema educacional – com normas de comportamento e
critérios britânicos – como o inimigo a ser batido. Para Soyinka e outros pensadores, o
intelectualismo negritudinista falhara ao não romper com o modelo epistemológico
eurocêntrico; o alvo não era a criação de modelos que elevassem a raça (em sentido oposto ao
modelo evolucionista dialético europeu, que rebaixava o colonizado como ‘atrasado’). O
alvo, segundo Soyinka, era a própria dialética formadora dos binarismos: progresso & atraso,
civilização & barbárie, pensamento analítico & pensamento primitivo. Em outras palavras, a
educação não podia ser apenas um modelo ‘replicativo’ das antigas metrópoles. E, assim,
compreendendo a agenda (e a agência) de pensamento anglófono africano contra o modelo
educacional europeu, conseguiremos compreender outra contenda, formada no seio desta
corrente: o uso ou o repúdio da língua europeia na formação identidade que visa cortar as
raízes com seus dominadores.
Tal questão teve seus contornos expostos nos conceitos ab-rogação e apropriação. Com
relação ao primeiro, temos que descreve a:
Appiah relembra que a diatribe por vezes tendia a ser resumida entre uma oposição de “uma
concepção herderiana sentimentalista das línguas e tradições da Africa, como expressão da
essência coletiva de uma comunidade tradicional pura” contra o uso positivista e
instrumentalizado do idioma que, assim, “podem ser purgados dos modos de pensar
imperialistas — e, mais especificamente, racistas”. (p. 121). A questão, desta forma
delineada, ecoa no debate entre universalismo e particularismo. Os sectários desta última
corrente é que, em nome do nacionalismo, alegarão as particularidades, a necessidade do
idioma próprio e a literatura como constructo da nação. Este é o cerne do nativismo.
EL PAIS. Ngugi wa Thiong’o: “Eu daria um Nobel a Jorge Amado, porque ele deu a mim o
seu Brasil”
https://brasil.elpais.com/brasil/2015/07/03/cultura/1435952470_967603.html
Neste artigo da revista da UNESCO, o autor trata a relação de Caliban e Próspero como
“prática e psicologia da colonização anos antes de se tornar um fenômeno global.” Como
Próspero, diz Ngũgĩ, o colonizador sabia da “importância suprema da cultura”:
Segundo Ngũgĩ, a colonização produziu uma cisão, o nascimento de duas colunas nos países
que passaram pela experiência colonial: o primeiro grupo adotou a língua e o estilo dos
colonizadores. “Eram eles que ouviam a voz do Deus missionário, gritavam Aleluia e
levantavam os olhos para o Céu. Ridicularizavam os velhos deuses e recuavam com horror
estudado ou genuinamente adquirido dos ritos primitivos de seu povo.” Os demais eram
cooptados para trabalhar em serviços considerados menores – e, neste ponto, a construção do
Outro não perde de vista o modelo de assimilação francês. Para Ngugi, ainda James, antes de
se assumir Thiong’o (nome que só veio a adotar em 1977), a diatribe opõe os que nunca
perderam suas raízes, mesmo diante do açoite e da propaganda, e uma burguesia local, que ao
substituir o projeto de nação por um projeto de poder, encampam a cultura do colonizador.
Tal qual Césaire, Ngugi usará Caliban como termômetro da resiliência e da insurgência. Se o
martinicano usou o personagem shakespeareano para demonstrar que era possível falar, o
queniano dirá da importância de se falar na língua materna.
Aqui vale um adendo. Segundo Vaughan (xxxx), entre Césaire e Ngugi como interpretes de
Caliban, há George Lamming. É com este autor que haverá o ponto de virada, e Caliban
deixará de ser culpado pelas próprias limitações linguísticas
A partir deste momento, falar – tal qual havia sido proposto pelo modelo cosmogônico de
Césaire que se equipara a criação - não será mais habeas corpus, mas mandado de prisão. Em
outras palavras, não importava mais falar, mas sim como falar. Tal pstura que influenciará o
nativismo de Ngugi.
Como já dito, o nativismo se aproxima do particularismo, que, por sua vez, opõe-se ao
universalismo. Ao postular a importância da língua mãe, o autor se filia aos costumes e
tradições locais da mesma forma que Bonaman negou a uma tribo africana a compreensão de
Hamlet nos mesmos moldes que o europeu médio o faria.
Assim, ao tratar de valores universais, o queniano arrola dois momentos: No primeiro, lembra
de como o europeu se sentia maravilhado porque estudantes ganeses viam alegorias de Auden
em rincões tribais africanos. Neste período, especificamente posterior ao pós-segunda Guerra,
o estudo de inglês em escolas e instituições de ensino superior foi sistematizado e “com
pouquíssimas variações, eles ofereceram o que também era obtido em Londres”. Xx.
Cita, então, o cânone crítico (Richards, Lewis, Elliot) para mostrar como as orientações
políticas do colonizador ainda continuavam na mente e nos estudos das nações que tinham
acabado de travar lutas de independência. Doutrinas raciais, significação moral da literatura,
o fado de ter que governar, tais eram as diretrizes ainda estudadas em universidades de
Yganda, Nigéria, Gana, Serra Leoa, Quênia. “Quantos seminários passamos detectando essa
significância moral em cada parágrafo, em cada palavra, até nas vírgulas e pontos finais de
Shakespeare?” pergunta, retoricamente, o autor de um Grão de Trigo.
A continuidade do jugo cultural através do apagamento da língua nativa, bem como a relação
de dependência com o colonizador são analisados. Para tanto, Thiong’o coloca Shakespeare e
Jane Austen como parâmetros.
Segundo Thiong’o, Brecht e Garcia Marquez só poderão ser cotejados após a edificação do
pensamento local – pelo processo de incorporar, na literatura nacional, a História oral, os
valores, os vícios, as visões particulares de mundo. Conclui, assim, premissas que não se
pode comparar duas culturas, se apenas uma delas tenha um olhar crítico sobre si mesmo.
Não há objeto de comparação se não há dois objetos para se comparar. A descolonização da
mente é um pressuposto necessário para a existência de pensamentos distintos, não
subordinados. E o universalismo só existirá se os processos de transmissão cultural se derem
sob modelos harmônicos de transcultural entre dois blocos distintos e independentes. Se
existir apenas a hegemonia de um pensamento, o universalismo estará travestido de
imperialismo.
Ainda neste sentido, Thiong’o alertará que a descolonização da mente não ocorre apenas com
a formação de um corpus de escrita criativa local. Como acima ressalvamos, é preciso que as
teorias locais pensem sobre este corpus literário. Talvez a imposição cultural não venha
através de Shakespeare, mas de como enxergamos Shakespeare, seja pela psicanálise de
Freud, seja pelo imperialismo de Renan.
Um crítico que, na vida real, é suspeito das pessoas que lutam pela
libertação, suspeitará de personagens que, mesmo que apenas em um
romance, estejam lutando pela libertação. Um crítico que, na vida
real, tem impaciência com toda a conversa sobre classes, luta de
classes, resistência ao imperialismo, racismo e lutas contra o racismo,
violência reacionária versus revolucionária; terá a mesma impaciência
quando encontrar os mesmos temas dominantes em uma obra de arte.
Na crítica, assim como na escrita criativa, há uma luta ideológica. A
perspectiva de mundo de um crítico, suas simpatias de classe e
valores afetarão as avaliações de Chinua Achebe, Sembène Ousmane,
Brecht, Balzac, Shakespeare, Lu Hsun, García Márquez ou Alex La
Guma.
A busca pela relevância requer mais do que a escolha de material. A
atitude em relação ao material também é importante. Claro, sobre
isso, nunca pode haver legislação. Mas é crucial estar atento às
pressuposições ideológicas de classe por trás das escolhas, enunciados
e avaliações. A escolha do que é relevante e a avaliação da qualidade
são condicionadas pela base nacional, de classe e filosófica. Esses
fatores subjazem à controvérsia que envolve toda a busca pela
relevância no ensino de literatura nas escolas e universidades
quenianas.
Em outras palavras, não é só a escrita criativa que possui vetores ideológicos, mas também os
escritos que balizam as virtudes e os vícios. A crítica, a técnica, a explicação também são
permeadas de vontades. E, assim, não apenas a ruptura a modelos freudianos fica mais nítida,
mas também as próprias razões de Caliban existir. Caliban pensa e fala com a linguagem
do colonizador; neste contexto, com tais condições, é possível criar uma base própria, sem
influências, sem imposições do colonizador?
Neste sentido, Lamming dirá da Armadilha de Próspero. Para este autor, o aprendizado não é
revestido do iluminismo libertário que está presente cotejado com a magia faustica em
Shakespeare, nem com a aristocracia histórica de Renan, nem com o iluminismo libertário de
Guéhenno, nem com a refutação ao pragmatismo burguês de Rodó, nem mesmo com a
apropriação cultural de Césaire. Para Lamming, a linguagem ensinada é forma de servir ao
colonizador e não passa de régua para medir a distância entre Senhor e Vassalo. “Isso abraça
um não sequitur que nega qualquer agência a Caliban.” (Ashcroft, Calibans voice)
De outro lado, Achebe não abdicará da língua inglesa para pensar em uma construção
identitária cultural livre de influências das antigas colônias. Isso não significa que o autor
emulará a língua canônica ou reproduzirá, na forma ou no conteúdo, o que Soyinka
denominou como modelo cultural “derivativo e replicativo”. Ao contrário, usar como lastro o
inglês significa, para tal autor, a possibilidade de ressifignicá-la, plasmando-a de costumes e
provérbios em igbo. Nisso, consiste, de forma sintética, a apropriação que Achebe faz da
linguagem:
A ruptura, para Achebe, não se daria pela negação, mas pelo ofício de oleiro, ao moldar
aquilo que, até então, era considerada uma estrutura rígida. Hutcheon (1995) relembra
roupagens desta teoria: através da paródia, o peso tirânico sofre revaloração. Por sua vez,
através da ironia, o colonizado poderá preencher os hiatos, criticar os valores, ridicularizar os
estereótipos, inscrever-se na sua história. Essa existência irônica o faz rebelar contra o poder
colonizador e exigir o reconhecimento que lhe foi negado (BONICCI, p. 13). Tal figura,
segundo Hutcheon, é marcada pela dualidade – não só a possibilidade de edificação de
história dupla, mas, sobretudo, na lembrança da construção do Outro colonial, marcado pela
dualidade, pela cisão (BHABHA). Outra figura correlata é a da mimese, que pode ser
sintetizada na adoção da cultura do colonizador, mas subvertendo-a em seu âmago, através da
ressifignicação de valores, inclusão de costumes próprios ou amálgama da língua. Sharpe
(1195) relembra a figura contraditória do mímico que, simultaneamente, “reforça a
autoridade colonial e a subverte” (Sharpe, 1995, p. 99 ) Já segundo Bonicci (xxx), pela
mímica, o colonizado “toma para si o que lhe foi imposto e o faz seu, refletindo a própria
situação”.
Isso é o que fez Achebe em sua produção literária. A tradução é sua ferramenta de guerrilha,
não o atestado que se conformou ao alinhamento cultural da antiga colônia. E para
compreender o uso de tal instrumento, retrocederemos um passo para pensar nos termos
assinatura e contra-assinatura.
A partir da problemática de Saussure sobre a escrita como instrumento estranho à língua,
Derrida problematizará a subordinação da escrita em relação à fala. Postula, assim, a
différance, e a “língua passa a não mais ser vista como um corpo estanque e um sistema
estático, mas como um organismo dinâmico no qual a significação não se dá como algo fixo”
A LÍNGUA HÍBRIDA DE CHINUA ACHEBE: da contra-assinatura à resistência insurgente
em Things Fall Apart e No Longer at Ease. LUANA CASTELO BRANCO ALVES. Página
20.
Ao colocar a escrita como não mais subordinada à fala, dá-se à mesma o rótulo de criadora de
significados.
O terceiro caso, por sua vez, é a contra-assinatura, feita pelo ouvinte que se apropriará ou
desejará se apropriar do escrito:
Achebe entendia que os escritores africanos de sua época tinham um papel a desenvolver.
Apesar de afirmar que esse papel não estava muito claro entre os escritores contemporâneos a
ele, Achebe define que seu principal objetivo era contestar os estereótipos, os mitos e as
imagens do continente africano, e reformulá-los por meio de suas histórias. Ele sempre levou
a sério a tarefa de escrever – dizia ter uma “obrigação moral” de preencher essa ausência de
uma voz africana, de modelos africanos e tinha a missão de inserir a própria perspectiva
africana da história no cenário mundial (ANCHIETA, 2014)
Achebe sempre deixou claro que via a tarefa do escritor africano em seu tempo como um
contra ataque à falsa representação da África nos escritos europeus sobre o continente que
estudou em suas aulas de literatura inglesa na faculdade. O que faltava em todos eles, pensou,
era um reconhecimento dos africanos como pessoas com projetos - vidas que lideravam,
aspirações que eles estavam buscando - e uma cultura existente e rica, exemplificada nos
provérbios e nas tradições religiosas que são tecidas nesses romances. Ele estava escrevendo,
como costumava dizer, contra a África do Coração das Trevas de Joseph Conrad. (APPIAH,
2017, p.3, tradução nossa).
Completando o giro, retornamos para outro autor já estudado: Kwame Anthony Appiah. O
autor de cosmopolitismo recorda uma fala de T.S Elliot e lembra que seu poema “A jornada
dos magos” foi inspiração para No longer at ease, de Achebe (e, aqui, inserimos uma nota de
rodapé à nota de rodapé e lembramos que “A jornada dos magos” foi uma um dos cinco
poemas que Elliot escreveu para uma série de 38 panfletos ilustrados que, mais tarde, foram
publicados com o título de Poemas de Ariel).
Appia recordou de uma dúvida de Elliot. Um poeta ou romancista pode ser universal sem ser
local também? Tolstoi respondeu a questão com um aforismo: “se queres ser universal,
começa por pintar a tua aldeia.” Achebe, por sua vez, seguiu o conselho e executou a ideia.
E tal qual Shakespeare, que ‘inventou o humano’ ao expor sentimentos e desejos nossos de
uma forma que não o conhecíamos, Achebe procede a magia de nos transportar para a vila
igbo de Okonkwo e permitir que enxerguemos, através dos olhos de seu protagonista, a
corrosão incontrolável do mundo.
SAID, Edward W. Cultura e imperialismo / Edward W. Said ; tradução Denise