Introdução
Se fizermos uma pesquisa bibliográfica por assuntos numa rede
computacional,usandopara tal a palavra motfologia, vamos depararcom
várias referênciasa eswdosde Química, Botânica,Biologia, e não apenas
de Linguística. Na verdade,trata-sede um termo que não é exclusivo da
ciência da linguagem; aliás, quando,no início do século XIX, começoua
ser utilizado, tambémo não era, referindo, sim, qualqueranálisecujo ob-
jecto fossea forma. Nessaáreado saber,porém, motfologia foi desdelogo
empregue,especificamente, no sentidotradicionalde análisedasformasque
as palavrasde uma dada língua podemassumir.
Presume-se,então, a partir desta definição clássica,que uma palavra
ocorre sobdiferentesformas;mas,dadoo termofonna serpolissémico,não
só em Linguística, como no seuuso quotidiano,como vamosinterpretá-Io
nestecontexto?
Consideremosos exemplosapresentadosem (Ia), ou em (lb):
215
nativasparadigmáticas,as suas"formasno Presentedo lndicativo. Em (lb),
estamosperanteseis ocorrênciasde seis palavrasdiferentes,porém, de al-
gum modo, notamosque elas tambémse relacionamformalmente,entre si,
i. e., a estruturainterna de cada uma reflecte relaçõescom as outras.
A Morfologia analisa, então, as formas das palavras, ou melhor, as
alteraçõessistemáticas,na forma destasunidades,alteraçõesessasque es-
tão relacionadascom mudançasno sentidodas mesmas,como observamos,
quer em (Ia) quer em (lb), ilustrando,embora,estesexemplos,dois tipos
distintos de alterações,como teremosoportunidadede atendermais adian-
te, ao longo destecapítulo. É uma disciplina linguística que tem a palavra
por objecto, e que estuda,por um lado, a sua estruturainterna, a organi-
zaçãodos seusconstituintese, por outro, o modo como essaestruturare-
flecte a relação com outras palavras,que parecemestar associadasa ela
de maneiraespecial.Nesseestudoinclui-se a análisedas unidadesque são
usadasnas alterações sofridas, como, por exemplo, afixos flexionais e
derivacionais,bem como as regrasque são postuladaspara dar conta des-
sas alterações.
1. Palavra
Mas o que é uma palavra?
Qualquer falante parece não ter dificuldade em dar inúmeros exemplos
de palavras ou reconhecer também um grande número de palavras da sua
língua. Agora que estamos a ler esta página, reconhecemo-Ias facilmente
pelos espaços em branco entre elas e, se deparamos com uma, da qual não
sabemos o significado, podemos procurá-Ia num dicionário, lugar onde tais
elementos se encontram quase que armazenadosà espera da nossa consulta.
Mas as palavras não são apenas reconhecíveis na escrita, como o que
apontámos acima poderia fazer supor; ao ouvirmos alguém falar, também
identificamos certas sequências como palavras. Por exemplo, imagine-se
que, durante uma conversa, nos perguntam: -O que é que « » signi-
fica? ou -Como pronuncias « » ? O item lexical a incluir no espaço
entre aspas, normalmente, deve representar uma palavra. De facto, esta
constitui-se na associação do sentido que express~ com os sons que a for-
mam e conhecer uma palavra implica, por conseguinte, saber o que signi-
fiça e como é pronunciada.
Repare-se que, em geral, para além de identificarmos estas unidades,
todos nós concordamos também com o que consideramos ser, ou não, uma
palavra na nossa língua. Assim, a forma sublinhada na frase Era um gato
enorme e muito ,s.l2lillQ,
não é uma palavra em Português, embora todas as
outras o sejam.
-
216
Este quadro, à primeira vista simples e incontroverso, analisado de mais
perto começa, porém, a revelar-se muito diferente. Aceitando, em princí-
pio, a existência da palavra, não nos apercebemos, por exemplo, na maior
parte das vezes, da complexidade da sua natureza.
Por outro lado, é vulgar os falantes suporem que as palavras são uni-
dades de sentido indivisíveis. Na verdade, muitas delas, como, por exem-
plo, pai, mãe, bom, para, não podem ser segmentadas em unidades
menores, que também sejam portadoras de sentido, ou seja, não possuem
estrutura interna, tratando-se de palavras simples e, com certeza, este facto
deve pesar na formação dessa convicção, que é relativamente generaliza-
da. Todavia, notemos que grande número de palavras do Português são
palavras complexas, i. e., divisíveis em partes menores, portadoras de sen-
tido, como por exemplo folhagem ou plumagem, em que folha refere uma
parte de uma planta e pluma uma pena de ave, enquanto em ambos os casos
a sua parte final, -agem, transmite a noção de conjunto.
Analisemos em seguida, com algum pormenor, a estrutura interna de uma
palavra que apresente um certo grau de complexidade, como é o caso de
perigosamente: podemos explicar o seu sentido, que representamosentre as-
pas, como «de modo perigoso», o que implica recorrer-se ao sentido de pe-
rigoso, que por sua vez podemos explicar como «cheio de perigo».
Encontramos,então, várias camadasde referência ao sentido, e não uma sim-
ples associaçãohomogéneade uma forma fonética a um conteúdo semântico.
Para dar conta do sentido de perigosamente, podemos proceder do se-
guinte modo: separamos uma parte do seu sentido e associamo-lo com a
relação que estabelece com outra, perigoso, presumivelmente mais «bási-
ca», e, depois, procedemos da mesma forma com perigoso, estabelecendo
uma relação com perigo. Temos de actuar da mesma maneira com a outra
parte do seu sentido, relacionando perigosamente, desta vez, com palavras
como lentamente ou rapidamente, e, em seguida, perigoso com palavras
como venenoso ou brioso. Em cada um dos casos, a outra palavra, com a
qual se estabelece a relação, possui uma forma incluída na forma da que
está a ser definida, por exemplo, lentamente/ perigosamente e perigoso/
/perigo, para além da relação de sentido encontrada.
Parece, então, existir uma relação sistemática entre subpartes da forma
de uma palavra e subpartes do seu sentido; sendo assim, podemos atribuir
a perigosamente a representação (2), em que (2a) indica a sua divisão for-
mal, e (2b) uma análise paralela do seu sentido:
(2)
(a) [[perigo] [oso] ] [mente] ]
(b) [[SITUAÇÃO] [CHEIO]] [MODO]
-
217
Note-se que, no esquema, ocorre -oso, embora na palavra em análise
tenhamos perigosamente. Uma explicação para este facto recorre à
etimologia do sufixo adverbial -mente, que, oriundo do substantivo latino
mens, mentis, do género feminino (cf. Cunha e Cintra, 1984: 103), se adi-
ciona sempre à forma feminina do adjectivo: perigosa-mente.
O sentido de uma palavra complexa, portanto, será função do sentido
das suas partes. Deste ponto de vista, o sentido de perigosamente é a com-
binação do sentido das subpartes perigo, -oso e -mente, como indicado na
análise que acabámos de realizar.
Voltando à nossa pergunta inicial, que nos fez pensar sobre o que en-
tendemos por palavra, note-se ainda que, no nosso conhecimento linguístico,
em relação a cada uma destas unidades, para além de sabermos o seu sen-
tido e a representação fonológica única que determina a sua pronúncia,
possuímos ainda informação quanto à sua categoria sintáctica 00 classe
gramatical (ver capítulo Sintaxe). Assim, se compararmos a frase em (3a)
com a sequêncianão gramatical em (3b), sabemosque construir, sendo um
verbo, não pode ocorrer numa frase em que um nome como construção
pode figurar, e que urgentemente, como é um advérbio, não pode ocorrer
onde um adjectivo como urgente pode aparecer.
Sabemosestesfactosintuitivamente,enquantofalantesdo Português,por
isso alguns linguistas consideramque possuímosuma gramáticainteriori-
zada,incluindo regrasde construçãode frases (ver capítulo Sintaxe)que,
como vemos, recorremà informaçãosobre a categoriasintácticadas pala-
vras.
Do que acabámosde expor, é possívelconcluir que podemosdefinir
uma palavraa partir de vários pontosde vista. Podemoscaracterizá-Ia,por
exemplo, como o domínio de princípios que regulam o material morfo-
lógico, mas tambémcomo uma unidadegráfica, como uma unidadefono-
lógica (ver capítulo Fonologia), como o elemento básico do léxico (ver
capítulo Semântica),ou como o elemento terminal da estruturasintáctica
(ver capítulo Sintaxe);há uma variedadeconsiderávelde perspectivasque,
naturalmente,delimitam unidadesque não têm forçosamentede coincidir.
Diferentes abordagens sobre, o que é uma palavra convergem na mesma
unidadeem muitos casos,noutros não, o que tem sido causade grandes
controvérsias.
Vejamos alguns dos aspectosque ilustram esta falta de coincidência.
Consideremos,para começar,o contínuo sonoro. Quando as pessoas
-
218
falam, muitas vezes interrompem o discurso através de pausas,porque
queremdar uma formulação correcta aos seus pensamentos,melhorar a
ordemdaspalavrasna frase, procuraro termo exacto,etc. Se observarmos
este pormenor,daremosconta de que tais pausas,feitas em silêncio, ou
preenchidaspor sons indicadoresde hesitação,como «ah...ah...ah...», não
ocorrem,em geral, no interior das palavras,mas sim entre elas. Com base
nesteaspecto,qualquersegmentode uma frase, limitado por pontossuces-
sivos, nos quais é possívelfazer uma pausa,é uma palavra.
Assim, em (4), marcandocom a letra p as posiçõesde pausaspossí-
veis, de acordocom estadefinição,cadasegmentoentre duasinstanciações
destaletra é uma palavra.
p p p P
(4) Agora, chamem o guarda-noctumo.
219
Consideremosoutro pormenor: contámosas palavrasortográficasem
(5), mas haverána frase repetições?Quantassão consideradasdiferentes?
A respostaa estasperguntasnão é tão simples como pareceà primei-
ra vista, ou melhor, não há apenasuma única resposta,pois ela depende
do sentidoa atribuir a palavra; com efeito, repare-secomo as duas ins-
tânciasde contassão, de um ponto de vista ortográfico, a mesmapalavra
ortográfica e, de um ponto de vista do sentido, por exemplo,palavrasdi-
ferentes: trata-se de palavras homónimas, que se escrevemda mesma
maneira,embora designemnoçõesdiferentes,não se encontrandorelacio-
nadassemanticamente.
Há palavras,como pregar (pregos)e pregar (um sermão),que, se têm
a mesmagrafia, não se pronunciamda mesmamaneira,apresentandosig-
nificados diferentes:são palavras homógrafas. Entretanto,podemostam-
bém encontrar palavras que se pronunciam da mesma maneira, mas se
escreveme têm sentidosdiferentes,como concelhoe conselho,ou cozere
coser: sãopalavrashomófonas.Estestermos, homógrafo,homófonoe ho-
mónimo,têm todos um elementocomum,de origem grega, homo,que sig-
nifica «o mesmo»;assim,homógrafosignifica «a mesmagrafia»,homófono
«o mesmo som» e homónimo «o mesmonome».
Se em (5) contas,no sentido de «escrituraçãodo crédito e débito de
alguém»,e contas,no sentido de «tencionas»,não são a mesmapalavra,
em (6), e continuandoa analisara ambiguidadedo termo, quantaspalavras
diferentesencontramos?
??1
ciadada mesmamaneira,não apresentavariaçãogramaticale é um lexema;
porém, o mais frequenteé estestipos não seremidênticos.
Como vimos, por vezes, quando empregamoso termo palavra, não
pretendemosreferir um item vocabular abstracto, um lexema, mas uma
realizaçãodesselexema,ou seja,uma forma de palavra.Outrasvezes,ain-
da, palavra pode também ser consideradaa representaçãode um lexema,
mas com a particularidade de a ela se associaremcertas propriedades
morfossintácticas,i. e., em parte morfológicas,em parte sintácticas,como,
por exemplo,nome, verbo, género,número,etc.
Observemosas frasesem (7), reparando,tanto em (7a) como em (7b),
que, por um lado, se repetea mesmapalavraortográfica, lápis, realizando
esta forma de palavra o lexema LÁPIS mas que, por outro lado, não se
trata exactamentedos mesmoselementosem ambasas frases:
222
malisar, quer as palavras simples quer as complexas, con-
ue se tratava de associações particulares de som e sentido;
ote-se que as palavras não constituem, numa língua, a única
~m que se estabelece este tipo de asssociação. Não são consi-
l unidade máxima desse tipo de relação som/sentido, pois as)s
sintagmas (ver capítulo Sintaxe), sequências estruturadas de
são unidades maiores; devem, então, ser consideradas a uni-
)ortadora de sentido, ou precisamos de postular a existêncianidade
menor que a palavra, essa, sim, a unidade mínima signi-
224
aparelhoaerostáticoque conhecemosbem, possuindohélices horizontais
que,quaisasas,o sustentamna atmosfera;dípteroé um insecto,uma mosca
ou um mosquito,que tem duasasas,e pterópodeo grupode moluscoscujos
pésapresentam expansõeslaterais,lembrandoasas.É óbvio que pter ocorre
em palavrasportuguesas,cujo sentido tem a ver com «asas»,o problema
é que a maiorpartedos falantesnunca reparouna conecçãosemânticaentre
helicópteroe «asas».Convém, portanto, estabeleceruma distinção entre
informaçãoetimológica,cuja relevânciaé, essencialmente, histórica, e in-
formaçãosincrónica,que faz parte do nossoconhecimentolinguístico.
Dissemosjá que, dadasas falhasde uma abordagempuramentesemânti-
ca, emboraestecritério do sentidodesempenhe o seupapelna identificação
dos morfemas,os linguistas estruturalistasprocuraramatribuir prioridades
a critérios formais. O princípio básico usado na análisedas palavrasé o
princípio da oposição,como referimos acima. Procedemos,então,opondo
formasque, por um lado, são diferentesfonologicamentee, por outro, são
tambémdiferentessemanticamente. Assim, a diferençafonológicaentre, por
exemplo,/pal e /pe/ está correlacionadacom uma diferençasemântica.
Começamosa análisedas palavrasem morfemascom a sua segmenta-
ção em morres.
É frequenteum morre realizar um morfema, mas estarelaçãode um
para um nem semprese verifica; por vezes,dois ou mais morresapresen-
tam o mesmosentido,mas, entretanto,nunca ocorremno mesmocontex-
to; por outro lado, a soma dos seus contextos constitui o conjunto dos
contextosem que o morfema que realizampode ocorrer. Como exemplo,
analisemoso casodo morfemade plural do Português.Nos falaresde Lis-
boa e do Rio de Janeiro,o plural, manifestona escritapela terminação-s,
pode assumirformas fonéticas diferentes (ver Cunha e Cintra, 1984:76)
como verificamosem (9) na palavra casas:
225
Estamosperantemorresdiferentesque realizam,nos três casos,o mes-
mo morfema {PLURAL}.
Quandomorfes diferentesrepresentamo mesmomorfema,são agrupa-
dos e intitulados alomorfes dessemorfema.
Repare-seque, nos exemplosque acabámosde analisar,a escolhaentre
estasdiferentesrealizaçõesé determinadaou condicionadapelo somseguin-
te. Dizemos nestescasosque o morfema {PLURAL} apresentaalomor-
fismo condicionado foneticamente.
Outro exemplode alomorfismotambéminteiramentecondicionadopor
razõesfonológicas,verifica-senas terminaçõesde plural das seguintespa-
lavras inglesasem (11):
226
Noutros casos, ainda, como em confortável e confortabilidade, ou inte-
ligível, inteligibilidade, por exemplo, é a estrutura morfológica que determi-
na a ocorrência dos dois morres, confortá-vel e conforta-bil, ou inteligí-vel
e inteligi-bil, ou seja, o alomorfismo, neste caso, é condicionado pela pre-
sença do sufixo -dade, adicionado a uma palavra que terminava com o
sufixo -vel; estamos, então, perante um alomorfismo com base num con-
dicionamento morfológico, uma propriedade idiossincrática destaspalavras.
Repare-se que o morfema {SER} se realiza sou, quando se encontra
associado aos morfemas de presente, primeira pessoa e singular, mas fui,
quando se encontra associado ao morfemas de passado, primeira pessoa e
singular; {SER} apresenta, portanto, vários «disfarces», alomorfes que de-
pendem inteiramente da presença de um elemento gramatical particular no
seu contexto; nestes casos, dizemos que estes alomorfes são condiciona-
dos gramaticalmente.
Numa língua como o Alemão, a forma dos adjectivos depende do
género dos nomes que modificam; vejamos, como exemplo, o nominativo
singular do adjectivo gross, que, portanto, apresenta alomorfes condiciona-
dos gramaticalmente, que indicamos usando itálico:
(12) Adv/Y//~"'"",
A
in-
AdO
feliz
"'"-mente
3. Alguns problemas
Em quadros teóricos estruturalistas, propôs-se o morfema, como temos
vindo a ilustrar, como unidade básica da Morfologia, em alternativa à noção
de palavra. Parecia haver interesse em eliminar esta e substituí-Ia por
-
228
2.
morfema, no domínio da pesquisa,fundamentalmentepelas seguintesrazões:
primeiro, porque, quando se comparam diferentes línguas, é difícil encon-
trar uma definição satisfatória para a noção de palavra; segundo, porque,
perante a existência de muitas palavras complexas, reconhece-se a neces-
sidade de um conceito que corresponda à unidade mínima, ao nível da
formação de palavras.
Na realidade, esta tomada de posição foi profundamente influenciada
por dois aspectosimportantes. Por um lado, a visão estruturalista da lingua-
gem que a identifica praticamente com um código, ao considerá-Ia constituí-
da por um grande número de elementos separados, cada um com a sua
forma distinta, codificando uma unidade de sentido; num enquadramento
deste tipo -em que, para secobter uma determinada mensagem a partir
desta forma codificada, basta, essencialmente, decifrar o código, identificar
os diferentes elementos portadores de sentido e, em seguida, reconstituir a
mensagem,combinando os sentidos encontrados -o morfema é o melhor
candidato ao lugar de unidade central do código linguístico. Por outro lado,
quando os estruturalistas se iniciam em análises morfológicas, já possuem
um modelo para este estudo: o do fonema, a unidade mínima distintiva da
estrutura sonora, que tinha resultado em importantes investigações.
A estrutura morfológica de muitas palavras em diversas línguas, parti-
cularmente nas chamadas aglutinantes (ver 8. Tipologia das línguas), como
o Turco e o Suaíli, em que existe uma correspondência biunívoca entre um
morte e um morfema, parece não levantar problemas a este tipo de aborda-
gem que considera as palavras analisáveis em constituintes morfémicos;
porém, há também muitas palavras em que não é possível delimitar e identi-
ficar os morfemas, satisfazendo o requisito fundamental de as semelhanças
semânticas e as semelhançasfonéticas se encontrarem correlacionadas, co-
mo se reconhece explicitamente no quadro estruturalista (cf. Hockett, 1947).
Ilustrando alguns dessescasos problemáticos, comecemos por verificar
que há casos em que o número de morfemas presentes é maior que o nú-
mero de mortes encontrado; na palavra fui reconhecemos estarem realiza-
dos vários morfemas; um deles é {SER}, como podemos provar se, por
exemplo, à frase em (13) mudarmos o contexto sintáctico, mas não a sig-
nificação como em (14):
sing «eu canto» VS. sang «eu cantei» vs. song «canção»
-
231
A definição tradicionalde modernacomo unidademínima significati-
va é então posta em causa.
Este conjunto de problemasé, talvez, um pouco heterogéneo,mas a
frequênciadas situaçõesem que eles ocorremnas línguasde todo o mun-
do levou linguistas, como, por exemplo, Aronoff (1976) e MacCarthy
(1981), a rever os princípios norteadoresda noção estruturalistade morfe-
ma, generalizando-osou até mesmoabandonando-os.
A teoria morfológica,hoje em dia, em particulara generativa,tem como
unidadechave a palavra,porém,como o modernacontinuaa ser uma en-
tidade teórica importante, consideremos ainda os diferentes tipos de
moderna mais em pormenor.
4. Tipos de morfema
232
---lexicais
em mais do que um moderna,como cafezinhoou amor-perfeito,são pa.
lavras polimorfémicas. Mas não se fique com a ideia de que as palavras
polimorfémicastêm de serconstityídaspelo menospor um modernalivre,
pois há em Portuguêspalavrascomo eurocrata ou morfologia que são
constituídasapenaspor modernaspresos.
Vimos que as palavrastêm estruturainterna.Consideremosagora,mais
em pormenor,os elementosconstituintesde palavra,usadospara criar essa
estrutura.
Em Português,as palavrassimples,monomorfémicas,podem consistir
num único constituintenão flexional, o radical, como, por exemplo, pai,
mãe, ou por radical e um sufixo I-a, I-o ou I-e: poema, bolo, mestre.As
palavrascomplexas,palavraspolimorfémicas,formadaspor mais do que um
constituintenão flexional, em geral, contêmpelo menosduaspalavras,caso
das palavras compostas,como guarda-noctumo,ou um modernacentral,
que transmiteo sentidobásico,e um número variável de outros modernas
que modificam este sentido, como no caso das palavras derivadas: por
exemplo,em infelizmente,podemosdetectaro radical, o moderna poten-
cialmentelivre feliz, e dois afixos, in- e -mente.O moderna preso in-, à
esquerdado radical, é um prefixo e -mente,o modernapresoà direita do
radical,é um sufixo.
O afixo é um morfemaque ocorreapenasquandoconcatenadocom ou-
tro modernaou modernas.Por definição,um afixo é, portanto,um moderna
preso.Na forma de palavra pais junta-seo sufixo flexional plural -s ao ra-
dical simplespai. O radicalé, portanto,a parte da palavraque existe antes
de se afixar um elementoflexional, um afixo cuja presençaseja requerida
pela sintaxe,como os marcadoresde número nos nomes.Em rapazinhos
ocorre o mesmosufixo flexional -s, desta vez depois de um radical mais
complexo, um radical derivacionalque consistena raiz rapaz e o sufixo
derivacional-zinho que é usadopara transmitiro sentidode «pequeno».
Finalmente,qualquerunidade à qual um afixo pode ser aliado tem o
nomede base.Os afixosjuntos a uma basepodemser,portanto,flexionais,
se seleccionados por razõessintácticas,ou derivacionais,se alteramo sentido
ou a função gramaticalda base.Uma raiz como petiz pode ser uma base,
na medidaem que é possíveljuntar-lheo sufixo flexional paraformar o plu-
rnI, petizes,ou um afixo derivacionalparaformar um outro nome, petizada.~
5. Flexão e derivação
Vimos antesque os mortes afixos podem ser divididos em duasgran-
des categorias funcionais, os morfemas flexionais e os morfemas
derivacionais.Esta classificaçãoreflecte o reconhecimentode dois grandes
-
234
processos de construção de estrutura interna das palavras, a flexão e a
derivação.Embora todos os morfologistasaceitem,de algum modo, esta
distinção,trata-se~e um dos temas mais controversosda teoria morfoló-
gica.
Esta divisão dos fenómenosmorfológicos,presentejá nos gramáticos
latinos, como, por exemplo, Varrão, não tem sido cuidadosamente
estabelecidaa partir de uma definição explícita; no entanto,consideremos
algunsexemplosque lhe servemde base.
Vejamosprimeiro flexão. Sabemosque há palavras, ler, por exemplo,
é uma entre muitas, que podem assumirvárias formas (leio, lemos,li, leu,
etc.),continuandoessasdiferentesformasa serconsideradas a mesmapala-
vra; dizemosentãoque lemosé uma forma da palavra ler e que li também
é a mesmapalavra.Assim, como as formas flectidas são variantesde uma
únicae mesmapalavra,podemosconcluir que flectir uma palavranão deve
alterar-lhea categoriagramatical,o que, de facto, acontececom os exem-
plos dados: li, lemosou ler são sempreformas do mesmoverbo. Devido
a estacaracterística,flexão é a operaçãoque não obriga a palavra a alte-
rar a sua categoriasintáctica,segundouma das suasdefiniçõesmais cor-
rentes.
Já demosalguns exemplosde derivação; vejamos,de novo, como o
verbo constituir forma o nome constituição por meio do sufixo -ção e
como, a partir destapalavra, podemosformar o adjectivo constitucional,
que, por sua vez, está na basede constitucionalizar.Neste processo,não
andámosaté fechar um círculo, fomos antes formando uma espéciede
espiral, ou escadaem caracol, pois constituir, sendoembora tambémum
verbo, não quer dizer o mesmoque constitucionalizar;nada nos permite
aflrmarque constitucionalizaré urna forma da palavra constituir,trata-se
sim de duas palavrasdiferentes,embora relacionadas,na medida em que
a primeira foi criada a partir destaúltima. Como os exemplosnos deixam
concluir, a derivaçãoé uma operaçãomorfológica que forma palavrasno-
vasde outrasjá existentes,e, normalmentemasnão necessariamente, como
em café, cafezinho,a nova palavra não pertenceà categoriasintácticada
que lhe serviu de base.
Estesdois ramos da morfologia, flexão e derivaçãodevem,então, ser
separados?
Um argumentoa favor da separaçãoé o facto de morres portmanteau
-i. e., como vimos acima, morres que realizam numa só unidade não
analisável,valores de duas ou mais categoriaslinguísticas -ocorrerem
com frequênciaem sistemasflexionais, mas muito raramenteem deriva-
ção; entretanto, as línguas naturais parecem não apresentar, no mesmo
morre portmanteau, elementos que combinem categorias flexionais e
derivacionais.
-
235
Também tem sido notado que, nas formas em que ocorrem elementos
derivacionais e flexionais, com<:>;
por exemplo, emflexionais, o material que
corresponde à flexão, neste caso a marca de plural, ocorre na parte mais
externa da palavra: a flexão é periférica em relação à derivação; por ou-
tras pa1~yras,quando se trata de dois ou mais sufixos, os flexionais vêm
antes dos derivacionais, que são, portanto, mais internos, o que constitui
nova assimetria entre derivação e flexão.
No entanto, não é assim tão fácil separaros processosque são flexionais
dos que são derivacionais, como temos vindo a sugerir.
6. Processosmorfológicos
Mencionámos algumas operações morfológicas que operam sobre
uma determinada palavra, gerando uma nova palavra, como as ope-
rações por prefixação e por sufixação" mas as que ilustrámos não es-
gotam a variedade de processos observáveis nas diferentes línguas.
Assim, além destes processos morfológicos de afixação, que são de
adjunção, típicos de uma morfologia concatenativa, há outros que são
processos de repetição e processos de alteração da estrutura interna das
palavras.
Sublinhe-se que este modo de encarar os fenómenos morfológicos é
diferente do que propusemos até aqui. Falámos de formas de palavras di-
vididas em mortes, de mortes sendo realizações de modernas, de variação
entre um alomorfe e outro alomorfe de um moderna, ou seja, explorámos
um modelo essencialmente estático para a análise das palavras. Agora, a
forma de palavra emerge como resultado da interacção de uma forma bá-
sica e de outra, i. e., adopta-se uma visão dinâmica nos estudos
morfológicos. Passamos,então, a utilizar uma seta para simbolizar proces-
so nos exemplos empregues.
Começando pelos processos de adjunção, consideremos a afixação.
Os processos de afixação podem ser, como vimos, de prefixação, sufixação
ou infixação, conforme, respectivamente, o afixo é adicionado à esquerda
da base (infeliz), à direita desta (felizmente) ou num ponto determinado no
seu interior (fumikas «ser forte», como vimos em Bontoc). Em Português,
o processo mais frequente parece ser o da sufixação, tanto em formações
derivacionais (feliz ~ felicidade, gerar ~ geração), como nas formações
fIexionais (classe ~ classes, cantar ~ cantamos).
Para além da afixação, há um outro processo aditjvo, ou melhor, de
repetição, geralmente designado por reduplicação. Nessescasos, o afixo não
é uma constante, possui antes uma forma determinada, na totalidade ou em
parte, pela forma da base a que se aplica o processo; por outras palavras,
-
236
o formativo é uma cópia de parte do material a que é adicionado, como
no exemplo qUe se segue de verbos em Tagalog:
7. Formação de palavras
As questões morfológicas podem também ser encaradas a partir da
análise de como as palavras são formadas numa língua. De facto, ao re-
flectirmos sobre este tema, podemos descobrir que as palavras obedecem
a certos princípios na sua formação. Desta maneira, qualquer falante do
Português, ao deparar-se com inconstitucionalissimamente, poderá eventual-
mente dizer que nunca ouvira antes este termo, que tem alguma dificuldade
em o pronunciar, tão comprido ele é, que não sabe bem o que quer dizer,
ou melhor, que pode tratar-se de um modo de actuar muito inconstitucional,
mas de certeza que não o rejeita como não fazendo parte da sua língua,
ao contrário de, por exemplo, *issimaconstituinciomental.
lnconstitucionalissimamente é, portanto, uma palavra portuguesa, e o
falante tem disso consciência, assim como também sabe intuitivamente que
nela podemos considerar componentesque ocorrem noutros contextos, como
in- (em ingrato), -ai (em original), -íssimo (em belíssimo), -mente (em
calmamente) ou ainda constituição, o que demonstra que palavras comple-
xas, como é o caso desta, revelam semelhanças fonéticas e semânticas
parciais umas com as outras. A intuição que temos quanto às relações entre
palavras, como vimos quando do nosso exemplo, inconstitucionalis-
simamente, era captada na perspectiva tradicional, pelo facto de se dizer
que partilham um moderna, mas pode ser também considerada nesta nova
abordagem,dizendo-se que essaspalavras partilham, por exemplo, uma base
(inconstitucional e constitucionalmente) ou partilham uma propriedade
-
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morfológica relevante,como {PLURAL} (casase alunos), ou que a sua
derivaçãoenvolve a mesmaregra, como ingrato e infiel, em que o prefi-
xo in- se junta a um adjectivo. Chegamosassima uma visão mais refina-
da do que a que propõe que as palavrasapenaspartilham, ou não, um ou
mais morfemas.
Quanto à questãoda reconstruçãodas relaçõesinternas,ou hierarqui-
zação,entre as partesconstituintesde uma palavra complexa,que a visão
tradicional representapor meio de uma organizaçãodos seus morfemas
componentesnuma árvore de estruturade constituintes,propõe-se,em al-
ternativa,uma regrade formaçãode palavrasque operesobrea palavra(ou
radical), manipulandotanto a sua forma fonológica (tipicamente,mas não
exclusivamente,por afixação),como as suasoutras propriedades.
Se considerarmosque o estudodas formasé representado mais adequa-
damentepor meio de relações ou processosdo que por concatenações e
afixos, aconteceentão que a morfologia de uma língua consiste em um
conjunto de regras,cada uma descrevendouma dada modificaçãode for-
mas existentes,modificaçãoque as relaciona com outras formas. Em vez
de se investigar uma teoria da estruturada palavra, fundamentadana no-
ção clássicade morfema, parte-sedo princípio de que as palavrasse en-
contramrelacionadasumascom as outras,atravésda operaçãode processos,
atravésde regrasde formaçãode palavras.
Este é um projecto de trabalho que a Morfologia tem levado a cabo
ultimamente,mas que não iremos desenvolver,dado o carácterintrodutório
destecapítulo.
Esta designaçãoFormação de Palavrasé, por vezes, empreguepara
referir, na sua globalidade,os processosde variaçãomorfológicana cons-
tituição de palavras,incluindo, portanto, flexão, derivaçãoe composição;
em geral, porém, o seuempregorestringe-sea estesdois últimos.
Poder-se-iasupor que caberia aqui falar da criação de palavrastotal-
mentenovas,como foi o casode kodak,ou da criaçãode palavrasque se
formam por meio de várias alteraçõessobrepalavrasexistentes;por exem-
plo, as criadaspelo processode truncamento, como manif (manifestação),
prol (professor/a),ou fac (faculdade)em que se elimina uma sequênciano
final de uma palavra,não se verificandoalteraçãodo seusentidoou da sua
categoriagramatical,ou ainda de outros casosde abreviatura,como as si-
glas, de que são exemplo PS, CGTP, ou MFA; no entanto,estescasos,e
outros, embora sejamrecursospara criação de novas palavrasno léxico,
não serãoincluídosna nossaanálisede formaçãode palavras,pois não são
processosregulares.
Vejamos em primeiro lugar os processosde formaçãode palavrasca-
racterizadospela adição de afixos.
Com já sabemos,chamam-sederivadasas palavras'formadaspor afi-
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xação. Trata-se de palavras complexas, constituídas por um constituinte, a
base, ao qual se associa outro constituinte, o afixo. Recorde-se que se cos-
tuma usar este termo base para referir a parte de uma palavra à qual se
aplica uma operação, como a junção de um afixo; por exemplo, na pala-
vra complexa inútil, a base é útil, mas se adicionarmos a inútil o sufixo
-mente, considera-se base desta vez inútil. A base pode, portanto, corres-
pondera:
a) nome+nome:saia-calça,abelha-mestra
b) nome+adjectivo:cofre forte, ferro-velho
c) adjectivo+nome:belas-artes
d) adjectivo+adjectivo:azul-marinho
e) verbo+nome:tira-teimas,passatempo
f) nome+preposição+nome: lua-de-mel,máquinade escrever
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Turco é um dos exemplos clássicos de uma língua aglutinante; apre-
tendência para a relação morte-moderna ser uma relação de um
A concluir
Leituras complementares:
BAUER, 1983; BAUER, 1988; DI SCIULLO e WILLIAMS, 1987; GLEASON, 1961;
HOCKElT, 1958; NIDA, 1949; SCALISE, 1984; SPENCER,1991.
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