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TRADUCOES HISTORIA ORAL COMO GENERO Alessandro Portelli® Resumo Reflete-se neste artigo a natureza dialégica do discurso produzido a partir do trabalho com a histéria oral. Os historiadores se tornam cientes de gue do encontro entre pesquisadores ¢ entrevistados resulta um tahalho conjunto, em que aquele que ouve © aquele que relata t@m igual valor. Palavras-chave Histiria oral, discurso dialégico, publico-privado. Tradugdo: Maria Therezinha Janine Ribeiro Revisdo técnica: Dea Ribeiro Fenelon Abstract This article reflects on the dialogic nature of the discourse whose production is based on the work with oral history. Historians become aware that the meeting between researchers and interviewees produces a joint work. in which the person whe listens and the person who reports are equally important. Key-words Oral history. dialogie disc public-p vate. * Professor de Literatura Americana na Universidade Sapienza, em Roma. Proj. Historia, Sao Paulo, (22), jun. 2001 Capitulo 1 Um agrupamento de géncros: género em histéria oral. histéria oral como género. Como esta implicito no préprio termo, a Aistéria oral 6 uma forma especitica de discurso: histéria evoca uma narrativa do passado; oral indica um meio de expressio. No desenvolvimento da histéria oral como um campo de estudo, muita atengdo tem sido dedicada as suas dimensies narrativa e lingiifstica'. A maior parte deste trabalho, entretanto, diz respcito & andlise da “fonte”, isto @& do discurso ¢ da performance dos entrevistados. A pesquisa, em outras palavras, cnfocou mais o género ent histéria oral: 0 uso do folclore ¢ da anedota; a influéncia de outras formas orais ou escritas do discurso tais como 0 €pico, a novela, a comunicagiio de massa; as analogias ¢ diferengas entre a oralidade e a escrita, et Por outro lado, historiadores que trabalham com a histéria oral esto cada vez mais cientes de que cla é um discurso dialégico, criado nao somente pelo que os cn- trevistados dizem, mas também pelo que nés fazemos como historiadores — por nossa presenga no campo ¢ por nossa apresentagdo do material. A expressio “histéria oral”. por conscguinte, contém uma ambivaléncia que, intencionalmente. reterei neste paper: refere-se simultancamente ao que os historiadores ouvem (as fontes orais) € ao que dizem ou escrevem. Num plano mais convincente. remete ao que a fonte & 0 historiador fazem junios no momento de secu encontro na entrevista. A complexidade da histéria oral, como uma seqiiéncia dos processos e construgies no contexto do campo de trabalho verbais gerados pelos encontros culturais ¢ pessoai: entre o narrador (ou narradores) e 0 historiador, deriva em larga extensao da rica he- teroglossia que resulta de uma forma dialégica do discurso*. A hist6ria oral é, conse- 1 Baseado em um paper apresentado no workshop internacional “Methodology and Methods of Oral History L'viv, Ukraine, September 5-7, 1994. and Life Stories in Social Researel 2. Elizabeth Tonkin, Narrating Our Pasts, The Social Construction of Oval History. Cambridge, U-K., Cam- bridge University Press, 1992, Entre os papers apresemiados na eonferéncia de Lviv, esta abordagem ¢ ilustrada brilhantemente em Hana Hloskova's, “Oral History and Folklore Studies", que classifica a hist6ria oral dentro do sistema de literatura oral, como um tipo de “narrativas lendatias”, baseada na crenga da veracidade da natrativa, 3° Mikhail Bakhtin, “Discourse in the Novel”, em The Dialogic Imagination, Austin, University of Texas Press, 1984, pp. 259-422; Eva McMahan e Kim Lacy Rogers, Interactive Oral History Interviewing. Hillsdale, NJ, Lawrence Erlbaum Associates, 1994 10 Proj. Historia, Sdo Paulo, (22). jun. 2001 qiientemente, um género composto, que apela para uma aproximagao critica estratifi- cada: além do uso do género no discurso coletado do narrador (dos narradores), neces- sitamos também reconhecer 0 género no discurso piblico do historiador ¢ o gtnero no espago entre cles. Se definimos 0 género como um construto verbal moldado por dis- positivos verbais compartilhados entre varias pessoas — pouco importa se convenciona- dos ou nao —, a historia oral é, entdo, ao mesmo tempo, um género de narrativa e um discurso hist6rico. e um agrupamento de g@neros, alguns compartilhados com outros ele. Neste capitulo, por i 0, comegarei com alguns tipos de discurso, alguns peculiares poucos comentarios preliminarcs sobre aspectos de genero na hist6ria oral e, entao, prosseguirei para a hist6ria oral como género ¢ para géneros em histéria oral. Historias ndo contadas, contos contados duas vi Eu me lembro de estar sentado na sala de visitas de Santino Cappancra, cm Terni, Italia, batendo & maquina uma entrevista sobre a sua vida como metaltirgico e ativista politico*. Sua filha adolescente estava no comodo ao lado, fazendo sua ligdo de casa. Apos cerca de vinte minutos, cla Ievou sua cadcira para 0 saguao, do lado de fora da sala de visita; um pouco mais tarde. estava de pé ao lado da porta; quando a entrevista se aproximava de uma hora ela se achegou ¢ sentou perto de nés, ouvindo. © que & falado numa tipica entrevista de histéria oral, usualmente, nunca foi contado dessa forma antes. A maior parte dos relatos pessoais ou familiares so contados conhecemos mesmo as vidas de nossos em pedagos ¢ episédios, quando surge a ocasiat parentes mais proximos por fragmentos. repetigoes, por ouvir dizer. Muitas historias ou ancdotas podem ter sido contadas intimeras vezes no interior de um cfrculo restrito, mas a historia total dificilmente tera sido contada em seqiiéncia, como um todo coerente e organizado: 0 avd ou a av6 que poe um neto ou neta cM seu colo para lhe contar a hist6ria de sua vida ¢ uma fic¢ao literdria®. A cst6ria de vida como uma completa € coerente narrativa oral no existe na natureza; ela é um produto sintético da citncia 4. Excertos desta entrevista esto inclufdas em “Absolutely Nothing, War Time Refugees in Terni”, cap. 8 de The Battle of Valle Giulia, Oral History and the Art of Dialogue. Madison, The University of Wisconsin. 1997. 5 Vor meu “Absalom, Absalom!: Oral History and Literature", om The Death of Luigi Trastulli. Form and Meaning in Oral History, Albany, N.Y. State of New York University Press, 1991, pp. 270-272. Proj. Historia, Sdo Paulo, (22), jun. 2001 i social. Isso nao a torna menos preciosa: nao espanta que a filha de Santino Cappanera viesse ouvi-lo. As anedotas aborrecidas do seu pai cstavam se tornando “Historia” diante de seus olhos. A narrativa de Cappanera adquiriu stars e importancia aos seus préprios olhos ¢ de sua filha, em boa parte em consegiiéncia da propria entrevista. De fato. mesmo que as est6rias tenham sido contadas antes, clas nunca foram contadas para aquele ouvinte ¢ questionador especial que ¢ 0 entrevistador da historia oral. A entrevista, implicita- mente, realga a autoridade e a autoconsciéncia do narrador ¢ pode levantar questdes sobre aspectos da experi@ncia do relator a respeito dos quais ele nunca falou ou pensou seriamente. Assim, wna entrevista da histéria oral tende a ser uma hist6ria ndo contada, ainda que largamente recheada de episédios relatados duas vezes: ¢ 0 falante tende a lutar pela melhor dicgao possivel. A novidade da situagdo ¢ o esforgo da dicgdo acentuam uma caracteristica de todo discurso oral: a de ser um “texto” em claboragao, que inclui scus proprios esbocos, materiais preparatorios, tentativas descartadas. Haveré graduais tcntativas na busca de um tema, nfo diferente do glissando musical, reparos & conversa € corregdes apos o fato, quer por empenho pela exatid’o, quer por cficiéncia pragmatica; repcligdes incrementadas por conta de acabamento ¢ precisdo ou de efvito dramético. : esforgo pessoal de composigao na performance’ é sustentado pelo uso de matéria izada (clichés, f6rmulas, folclore, anedotas congeladas, Jugares-comuns) ¢ pelo cxemplo de g@neros derivados de escritos (novela. autobiografia, livros de his- t6ria) ou comunicagio de massas. Esses blocos estabelecidos de discurso definem ca- minhos seguros no territ6rio nio demarcado do discurso, de modo muito andlogo aos roteiros aéreos invisiveis, porém rigidos, que guiam os avides no fluido territério do 6 Uso “texto”, aqui, para indicar as palavras que compem o discurso, Falando estritamente, sem deivida, no ha tal coisa em texto oral: Walter J. Ong, Orality and Literacy. The Technologizing of the Word, London ¢ New York, Methuen, 1982, p. 13; Maranatha: Death and Life in the Text of Book em Interfaces of the Word, Ithaca e London, Comell University Press, 1977, pp. 230-271. 7 Tirei esta expresso de Albert Lord, The Singer of Tales (Cambridge, Mass, Harvard University Press, 1960), que a usa para descrever © trabalho de poetas cpicos orais. Em termos menos formalistas, isto se aplica a todas as formas ndo ensaiadas de discurso, Sobre repetigao multiplicativa, ver Gordon Hall Gerould, The Ballad of Tradition, 1932: repr. New York, Oxford University Press, 1957. pp. 105- Ho. 12 Proj. Histéria, Sdo Paulo, (22). jun. 2001 céu, Lembro a estéria (talvez uma lenda) de um estivador de Civitavecchia, perto de Roma, que ficou sem fala diante dos intelectuais nos comfcios do Partido. até perceber que poderia falar em rimas — quando, entdo, cncontrou sua voz. Entre os fluid

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