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Ofício do psicanalista II

por que não regulamentar a psicanálise

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Editora
Maria Cristina Rios Magalhães

Conselho Editorial
Prof. Dr. Henrique Figueiredo Carneiro (UNIFOR)
Prof. Dr. Paulo Roberto Ceccarelli (PUC-MG)
Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho (UFF)
Prof. Dr. Luis Cláudio Figueiredo (USP, PUC-SP)
Profa. Dra. Elisabeth Roudinesco (École Pratique des Hautes Études, FR)
Profa. Dra. Ana Maria Rudge (PUC-RJ)

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Ana Maria Sigal
Bárbara Conte
Samyra Assad
(Organizadoras)

Ofício do psicanalista II
por que não regulamentar a psicanálise

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© by Editora Escuta para a edição em língua portuguesa
1a edição: março de 2019

Capa
Alonso Alvarez

Produção editorial
Araide Sanches

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


O32 Ofício do psicanalista II : por que não regulamentar a psicanálise /
Ana Maria Sigal, Bárbara Conte, Samyra Assad (organizadoras)
– São Paulo : Escuta, 2019.
208p ; 15,5x19,5 cm

ISBN 978-85-7137-445-4

1. Psicanálise – Regulamentação. 2. Psicanalistas. 3. Psicanalistas –
Formação. I. Sigal, Ana Maria. II. Conte, Bárbara. III. Assad Samyra.

CDU 159.964.2.
CDD 150.195
Bibliotecária responsável: Sabrina Leal Araujo – CRB 8/10213

Editora Escuta Eirelli-ME.


Rua Ministro Gastão Mesquita, 132
05012-010 São Paulo, SP
Telefax: (11) 3865-8950 / 3862-6241 / 3672-8345
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www.editoraescuta.com.br

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S umário

Apresentação 7
Ana Maria Sigal, Bárbara Conte, Samyra Assad
Por que não regulamentar a psicanálise, Movimento Articulação
e a regulamentação da psicanálise 13
Ana Maria Sigal
O desejo de Freud é não regulamentável 21
Antônia Portela Magalhães
Formação em psicanálise: enquadre e deslizamentos 27
Bárbara de Souza Conte
A psicanálise de Freud e a nossa 39
Denise Maurano
A psicanálise é uma mercadoria? 45
Francisco Leonel Fernandes e Fernanda Costa-Moura
A questão da causa e a não regulamentação 53
Gêisa de Carvalho S. Ferreira
Movimento Articulação: pensando a ética complexa 59
Gustavo Soares e Valéria Quadros

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Tornar-se analista 73
Hemerson Ari Mendes
Legislar a psicanálise? Missão impossível... 77
Ligia Valdez Gomes e Maria Helena Saleme
O que o desejo do analista articula na sustentação política de
não regulamentação da psicanálise como profissão? 85
Mariana Mayerhoffer
A formalização do ato psicanalítico para os psicanalistas 103
Maria Teresa Saraiva Melloni et al.
Um desafio contemporâneo à psicanálise:
sustentar o real para que ela sobreviva 115
Samyra Assad
Somos todos Theodor Reik! 129
Sidnei Goldberg e Rosane Ramalho
O desser e a impossível profissão 135
Sonia Alberti
Apêndice
Manifesto das Entidades Brasileiras de Psicanálise 145
Anexos
Carta ao senador Almeida Lima 155
Psicanálise não pode ser exercida como profissão no Brasil 161
A psicanálise e as psicoterapias 165
Carta à Presidenta Dilma Roussef 169
Anulação do Conselho Federal de Psicanálise 173
Carta à senadora Fátima Bezerra 175
Carta ao Conselho Federal de Psicologia, em 2017 181
Jornal do Conselho Federal de Psicologia, 30.11.2017 185
Entrevista com Marie-Jean Sauret 191

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A presentação

Ana Maria Sigal, Bárbara Conte, Samyra Assad

É fato que à psicanálise está reservada uma resistência que lhe


é inerente, pela razão de ser sempre avessa ao já dado ou imposto
moralmente. A possibilidade subversiva da psicanálise será para sem-
pre objeto de uma espécie de sufocamento por parte dos discursos do-
minantes, e isso é demonstrado desde Freud, em seu célebre artigo de
1926, “A questão da análise leiga”.
Se a prática analítica sustenta, fundamentalmente, a desalienação
do sujeito faz sentido pensar, já de início, a formação de um analista
como não avalizada por um órgão oficial que submete o exercício do
ofício do psicanalista a uma autorização exterior a sua ética.
A partir desses princípios, o Movimento Articulação das
Entidades Psicanalíticas Brasileiras, desde o ano de 2000 luta contra a
regulamentação da psicanálise. Nesse mesmo ano Os Estados Gerais
da Psicanálise se reuniam na Sorbonne para afirmar a autonomia da
Psicanálise em relação a todas as formas de psicoterapia praticadas e
sua independência em relação aos poderes públicos e a uma regula-
mentação pelo Estado.

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8 Ana Maria Sigal, Bárbara Conte, Samyra Assad

Na mesma época, em nosso país, um deputado e um pastor evan-


gélico apresentava à Câmara dos Deputados um projeto de lei que plei-
teava a regulamentação da psicanálise. A proposta de “formação” tinha
a duração de dois anos que incluía carga horária para a análise pessoal,
supervisão e teoria. Após esse período o candidato, com um diploma,
estaria autorizado a exercer a prática analítica. Tal modelo coloca em
questão a ética da psicanálise, ao tratar a formação de analistas desde
uma distorção: supor que um “título” possa equivaler à transmissão e
ao processo analítico que a formação supõe e requer em seu rigor. A
marca das tentativas de regulamentação está nessa torção que insiste em
normatizar um percurso que é fruto do que não é normatizável, ou seja,
o desejo de saber depurado em uma experiência analítica.
Consideramos a formação inscrita a partir de projetos de lei, que
insistem até os dias de hoje em regulamentar a psicanálise, como a im-
postura de um diploma no lugar de uma análise. Essas especificidades
da formação de psicanalista foi o tema de nosso primeiro livro: Ofício
do psicanalista: formação vs. regulamentação.
Desde aí, após dez anos de seu lançamento, o Movimento
Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras continua a luta que
caracteriza sua organização e apresenta seu segundo livro Ofício do
Psicanalista 2. Por que a psicanálise não deve ser regulamentada. A
questão que se repete, e que é objeto do livro, está centrada na ideia
de que não é possível pensar a formação de um psicanalista com re-
gras e normas determinadas por uma regulamentação. Reafirma-se que
a formação supõe um percurso singular, único e pessoal: a travessia
subjetiva da experiência analítica, a qual se torna um instrumento de
trabalho fundamental para a posição de escuta, além da supervisão e
do arcabouço teórico. Estes são os três pilares que, se regulamentados,
podem vir a se transformar em leis vazias que justificariam projetos de
cunho religioso, ou cursos com interesses econômicos.

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Apresentação 9

Desse modo, o que nos convoca neste novo livro são 14 trabalhos
das dezoito instituições que compõem o Movimento Articulação e que
discutem os fundamentos do Por que a psicanálise não deve ser regu-
lamentada para que se mantenha como ofício sustentado a partir de sua
ética. São trabalhos que apresentam o esforço de divulgar nas institui-
ções, universidades, cursos e grupos de pares, os pressupostos que, ao
mesmo tempo mantêm a transmissão dos princípios da psicanálise e
conferem argumentos para a não regulamentação.
Nessa batalha constante, é necessário ressaltar que dezoito insti-
tuições psicanalíticas, diferentes entre si, se mantêm articuladas de uma
forma não institucionalizada através de reuniões semestrais desde o ano
2000.
São estas as questões que têm balizado nossa atuação desde os pri-
meiros encontros. Uma das reflexões que tratamos de sustentar ininter-
ruptamente se refere a como constituir e manter um Movimento que
não se institucionalize e se transforme ele próprio em um regulador do
exercício do ofício de psicanalista. Se nos arrogarmos o direito de di-
zer quem é e quem não é psicanalista estaríamos incorrendo no mesmo
erro que tentamos desfazer! Assim temos proposto somente intervir em
questões que afetam a regulamentação em nível de propostas de Estado
ou de demandas produzidas por instituições reconhecidas em sua prática
psicanalítica que solicitem assessoramento. Numerosas vezes somos
convocados a denunciar formações enganosas, a partir de publicações
ou anúncios em periódicos ou na internet, mas optamos por não intervir.
Há um acordo entre as instituições que formam nossa Articulação:
mantê-la como um movimento e não como uma instituição, para evi-
tar assim nos transformar em autorizadores. Insistimos em manter-nos
como Movimento, exercício que não é fácil, mas que tem nos permitido
trabalhar há quase vinte anos com sucesso em uma luta que, devemos
dizer, não tem sido simples.

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10 Ana Maria Sigal, Bárbara Conte, Samyra Assad

As instituições que formam o Movimento Articulação das Enti-


dades Psicanalíticas Brasileiras são aquelas que se dedicam à formação
psicanalítica. Fazem parte desse Movimento por expressão de suas ra-
zões, e aquelas que assim desejarem ingressar deverão ser apresentadas
por duas instituições que já formam parte da Articulação. Esse pedido é
analisado nas plenárias do Movimento e submetido a opinião de todas
as instituições que fazem parte do mesmo. Essa modalidade foi acor-
dada na origem do Movimento e é renovada sempre que necessária.
As instituições não podem ter cunho religioso, sindicalizante ou ser de
propriedade pessoal, com fins lucrativos.
Trata-se de um funcionamento que contempla a diversidade e que
confere a essa luta um dos mais inéditos Movimentos que ao longo des-
se tempo de existência busca preservar a psicanálise fora dos tentáculos
de ideais religiosos travestidos no exercício parlamentar brasileiro.
Este livro também contempla documentos produzidos pelo
Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras desde
2009, data da edição de nosso primeiro livro. Eles trazem os motivos de
não se regulamentar a prática da psicanálise, sendo que até então todos
os projetos foram barrados.
Assim, passamos a elencar alguns desses documentos:
Em 2009 nos manifestamos por carta ao senador Almeida Lima,
proponente do PL n. 64 de 2009, sobre a regulamentação da psicanálise:
projeto de lei arquivado.
Em 20 de junho de 2013 encaminhamos para a então presiden-
te da República Dilma Rousseff carta referente aos motivos de repú-
dio à aprovação da chamada Lei do Ato Médico, resultando no seu
arquivamento.
Em 25 de novembro de 2013 obtivemos o parecer do Tribunal Regional
Federal que negou a permissão à Sociedade Psicanalítica Ortodoxa de exer-
cer atividades de psicanálise de forma profissional no país.

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Apresentação 11

Em 2017 enviamos um dossiê contrário à aprovação do PL


174/2017 à senadora de Fátima Bezerra. Esse projeto de autoria do
deputado Telmário Mota (PTB/RR) visava regulamentar o exercício de
terapias naturistas incluindo a psicanálise. Tal projeto foi retirado da
pauta e reapresentado como PL 101/2018 especificamente para regula-
mentação da psicanálise. Esse projeto continua vigente, frente ao qual
estamos trabalhando para que seja arquivado.
Devemos também dizer que, em algumas oportunidades, temos
nos manifestado para defender instituições que corriam o risco de serem
desmobilizadas, como aconteceu quando tivemos a notícia do encerra-
mento abrupto de convênio que possibilitava o funcionamento, desde
2002, dos serviços de atendimento oferecidos pelo CRIA – Centro de
Referência da Infância e Adolescência, reconhecido como modelo de
atendimento a pacientes que vivem situações graves de sofrimento psí-
quico, tal como o autismo e, também, como campo de pesquisa e for-
mação. Os argumentos utilizados pelo ofício enviado pela Secretaria
do Estado de São Paulo faziam referência ao número de atendimentos
e ao fato de a “abordagem ser essencialmente psicanalítica, fugindo um
pouco do mainstream da psiquiatria atual”. Entre muitas outras ações
nos manifestamos e apoiamos no ano de 2013 o manifesto realizado
pelo Movimento Autismo, Psicanálise e Saúde Pública. O Cria não foi
fechado.
E, para concluir este livro, temos a entrevista realizada por Marie-
-Jean Sauret à revista La Psychanalyse (Toulouse/França), por ocasião
do Simpósio Nacional Psicanálise e Psicoterapia no Campo da Saúde
Mental (Rio de Janeiro, setembro de 2005) com representantes de insti-
tuições psicanalíticas no Movimento Articulação, e que discorre sobre
a forma de constituição do movimento e seus objetivos.
Desejamos ótima leitura a todos.

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P or que não regulamentar a psicanálise,
Movimento Articulação e a
regulamentação da psicanálise

Ana Maria Sigal1


Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

O Movimento Articulação das Entidades Psicanaliticas Brasileiras


é composto hoje por aproximadamente 18 instituições que, por sua
vez, têm suas filiais, e representam um amplo espectro do campo psi-
canalítico. Proponho-me a levantar questões polêmicas com as quais
nos vemos o tempo todo confrontados e apresentar as razões pelas
quais se organizou esse movimento no ano 2000. Este espaço tem uma
característica fundamental: é formado por instituições que se reúnem
para discutir e defender a psicanálise das tentativas de regulamenta-
ção, são instituições de diversas formações teóricas e escolas que, em
um espaço único, no Brasil e no exterior, se encontram dividindo um
alicerce mínimo comum para poder trabalhar em um coletivo, que se
baseia no respeito às diferenças. Formam parte desse movimento a
Febrapsi, ligada à IPA, diversas instituições lacanianas, como Corpo

1. Agradeço à psicanalista Cristina Robeiro Barczinski a revisão do texrto em portu-


guês.

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14 Ana Maria Sigal

Freudiano, Escola Brasileira de Psicanálise, Aleph, APPOA, Escola


Letra Freudiana, Laço Analítico, Escola Lacaniana de Psicanálise –
RJ, Escola Psicanalítica dos Fóruns do Campo Lacaniano e Tempo
Freudiano, que respondem a duas internacionais diferentes e alguns
grupos brasileiros independentes, como o Sedes, com seus dois grupos
de formação, Departamento de Psicanálise e Formação em Psicanálise,
dois grupos de Porto Alegre, Sigmund Freud Associação Psicanalítica e
CEPdePA, o Círculo Brasileiro de Psicanálise e o Círculo Psicanalítico
do Rio de Janeiro, cuja característica necessária e comum é que ofere-
çam formação.
Articulação é um espaço que faz questão de não se constituir en-
quanto uma associação, mas sim como um movimento, que se organiza
a cada encontro e no qual não existe nenhuma sociedade hegemônica.
A participação e a votação não dependem do número de associados ou
membros; é na presença e na argumentação que se trabalham as ideias.
A cada reunião uma instituição organiza e preside a reunião, consoli-
dando um espaço democrático.
No meu entender, o que nos permite fazer essa aproximação tem
a ver com a modalidade com que trabalhamos a diferença. Entendo, se-
guindo o pensamento de Derrida, que a diferença não é necessariamente
oposicional. O sistema binário, que oferece uma verdade positiva frente a
uma não verdade na diferença, não é a modalidade instituída. Numa en-
trevista a Elizabeth Roudinesco, intitulada políticas da diferença, Derrida,
ao falar sobre o que tem de universal na différance, diz que essa noção
[...] não é uma distinção, uma essência ou uma oposição, mas um movi-
mento de espaçamento, um “devir-espaço” do tempo, um “devir-tempo”
e espaço, uma referência à alteridade, a uma heterogeneidade que não é
primordialmente oposicional. (Derrida e Roudinesco, 2004, p. 34)
É uma relação com o outro, sem que seja necessário, para que ela
exista, congelá-la ou fixá-la numa distinção. A différance é cunhada

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Por que não regulamentar a psicanálise, Movimento Articulação e... 15

por Derrida para dar conta da temporalização e do espaçamento, pois


as oposições não podem ser pensadas num binário, visto que esse não
encerra o campo semântico da diferença, sendo possível pensá-la como
relação, apenas no movimento, no jogo, até porque o a da différance
lembra espaçamento e temporização, desvio, retardo.
O que nos sustenta como grupo que dialoga e produz é o con-
ceito de diversidade. Esse conceito vem ganhando um amplo desen-
volvimento na teoria psicanalítica. Cada associação tem suas regras e
seus conceitos teóricos enunciados desde dentro do campo da própria
psicanálise e que dizem respeito a como cada um entende a formação
subjetiva e também a formação de um psicanalista, que é diversa e in-
terminável. Uma instituição pode dar um suporte e uma rede para tran-
sitar na formação, mas nunca poderá dar conta dela na sua totalidade.
Dentro do próprio campo existem grandes divergências na for-
ma de organização e reconhecimento, seja por razões institucionais ou
teó- ricas; passe, análise didática, reconhecimento pelo coletivo etc. são
formas que cada instituição utiliza para avalizar o percurso do devir
analista. Podemos discutir e discordar sobre as modalidades, mas a de-
cisão é de cada instituição, e não é isto o que impediria a convivência.
O importante é que existe um enunciado comum: a psicanálise
não é um saber teórico desengajado da prática e sua transmissão se
funda essencialmente na análise pessoal, condição do conhecimento do
próprio desejo inconsciente. A formação complementa-se com a prática
clínica supervisionada e o conhecimento teórico. Justamente estas são
as condições éticas que impedem que a psicanálise seja regulamenta-
da por uma lei externa a si própria, uma lei jurídica ou de Estado, ou
uma deontologia profissionalizante elaborada por um conselho profis-
sional, CRP ou CRM, que diga quem é ou não um psicanalista. O texto
de Freud, “A questão da análise leiga” (1926), inaugura uma proble-
mática fundamental no campo da formação e damos a ele um espaço

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singular. Nesse texto, Freud defende Theodor Reik, destacado membro


de sua comunidade, que foi denunciado como charlatão e perseguido
pelo Estado por conduzir tratamentos sem um título que o habilitasse
para isso. Aqui Freud dá uma resposta ao Estado e à comunidade mé-
dica, defendendo a ferro e fogo a ideia de que o psicanalista se forma
a partir de sua própria experiência de analisando e que o saber médico
não contribui com base alguma para esse ofício, como justamente nos
mostram determinadas paralisias histéricas, que não seguem as bases
neurológicas que lhes dariam sentido. Pelo contrário, nos casos de his-
teria nas quais a paralisia é uma conversão, o saber médico impede a
escuta do recalcado, porque impõe um saber científico que não consi-
dera as determinações que afetam o corpo a partir dos fantasmas, onde
um sintoma orgânico explicita um conflito psíquico e não segue as vias
neurológicas esperadas. O ataque a Reik é um ataque à própria psicaná-
lise e à sua descoberta fundamental — o conceito de inconsciente — e
ao valor da fantasia e palavra na produção do sintoma. Freud nos diz
que, como profissão, a psicanálise é impossível. Preferimos entendê-la
como um ofício.
Na psicanálise se trata do encontro com uma verdade, a ver-
dade do sujeito, que não segue as leis da lógica cartesiana, e sim as
que regem o inconsciente. Dito isto, vemos que tanto a terapia quan-
to a formação têm suas leis e ética próprias, que decorrem do próprio
saber. As leis externas a ela pertencem a um esquema burocratizan-
te que enuncia normas a se cumprir. Como pode se regulamentar um
tratamento psicanalítico? Que lei pode determinar uma alta, qual é o
conhecimento teórico que responde à verdadeira psicanálise? Há uma
escola teórica que seja mais psicanalítica que outra? Há uma instituição
que seja a legítima representante da psicanálise? Definitivamente não.
Lembremos que mesmo se Freud nos diz que a psicanálise é uma psicote-
rapia, ela tem diferenças contundentes em relação ao que as associações

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Por que não regulamentar a psicanálise, Movimento Articulação e... 17

de psicoterapias definem como seu fazer. Esta questão levanta uma


grande polêmica na França quando se tenta regulamentar a lei de saúde
mental, o que nos põe em contato com as grandes questões políticas e
de poder que circundam esta problemática, já que se ligam aos planos de
saúde, aos laboratórios que propagam os remédios psi, e aos DMS IV e
5, que acabam expulsando as patologias psicanalíticas para impor as sín-
dromes como nomenclaturas para a classificação das doenças mentais.
Com frequência se escuta dizer que regulamentar a psicanálise se-
ria uma forma de proteger esse saber, já que impediria que fosse exer-
cido por qualquer um. No entanto, pensamos exatamente o contrário
— cumprir leis enunciadas externamente torna esses enunciados va-
zios, se esses não são enunciados desde um pensamento ético-político
interno ao próprio saber. Essa ética nos diz que a psicanálise é um saber
subversivo que enfrenta o sujeito com sua verdade e que o caminho que
se percorre, tanto no tratamento quanto na formação, é singular e único.
Sobre a burocratização desses elementos se apoiam os grupos que
desejam lucrar ou se apropriar do prestígio que a psicanálise tem alcan-
çado em mais de cem anos de prática.
As instituições que querem se apropriar desta prática por meio da
regulamentação formam até 2 mil psicanalistas por ano e respondem ao
tripé propondo cinquenta sessões de análise via internet, propondo um
conhecimento teórico no qual a teoria está totalmente misturada a ele-
mentos religiosos, no qual o supereu e o diabo formam uma unidade mo-
ralizante, e em cuja prática clínica incluem mandatos a serem cumpridos
para obter a saúde. O poder da sugestão e a obediência funcionam como
elementos sobre os quais se apoia a transferência, dando aos pastores
o poder de providenciar a saúde magicamente, contrariando toda ética
interna do pensamento analítico. Com o tempo, essas instituições vão se
aprimorando e escondendo cada vez mais as inaceitáveis evidências de
que respondem a uma moral que tem por objetivo o submetimento de

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18 Ana Maria Sigal

seus fregueses e o aproveitamento econômico do dízimo. Hoje existe o


sindicato de psicanalistas que oferece formação e titulação, nada os im-
pede, já que qualquer profissão pode ser sindicalizada, desde podólogo
até encanador, e formar um sindicato. A psicanálise não escapa dessa
situação e permite, através desta, pagar contribuição e impostos. Existem
numerosos agrupamentos que escondem sua ideologia e se utilizam do
tripé como elemento formal para oferecer uma suposta formação.
No decorrer da história da psicanálise houve numerosas tentativas
de regulamentar a mesma, inclusive a Sociedade de Psicanálise apre-
sentou alguns projetos que não vingaram, seja porque desistiram da ten-
tativa, seja porque o surgimento de numerosas instituições que não se
alinhavam com seu pensamento foram crescendo e se apropriando do
campo local e internacional, disputando espaços. Entendo que acirrar
a luta interna do campo psicanalítico acaba enfraquecendo-o e permi-
tindo que seja cada vez mais atacado e assediado pelas instituições e
movimentos que se beneficiariam de sua desaparição. Por essa razão
penso e insisto na importância da Articulação como espaço coletivo que
permite manter as diferenças junto a um diálogo fecundo e produtivo
que dê mais solidez a nosso saber.
Mas a última tentativa vinda de fora do campo psicanalítico, aque-
la que dá origem a nosso movimento, acontece no ano 2000, quando
o deputado da bancada evangélica, Eber Silva, apresenta uma lei no
Congresso para transformar a psicanálise numa profissão.
Esse projeto apoia uma sociedade chamada Sociedade Psicanalítica
Ortodoxa Brasileira (SPOB), que promete um título profissionalizante;
ao término do curso, que exige poucas horas de análise, uma supervisão
on-line e o estudo de algumas apostilas que distorcem o saber psicana-
lítico, respondendo de forma espúria ao tripé freudiano.
O movimento Articulação abriu uma luta intensa, esteve no
Congresso, encontrou deputados aliados, explicitou os motivos pelos

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Por que não regulamentar a psicanálise, Movimento Articulação e... 19

quais nos opúnhamos a essa regulamentação, e conseguimos que a lei


fosse arquivada. Finalmente, anos depois, em função desse arquivamen-
to, o TRF negou permissão à SPOB para desempenhar atividades pro-
fissionais de psicanálise no país. O tribunal chegou a um entendimento
unânime após julgar a apelação da instituição e considerou improceden-
te seu pedido de ministrar cursos, realizar debates e conferências sobre
psicanálise, e praticá-la como profissão em todo o território nacional.
Apoiou-se na ideia de que a formação em psicanálise não integra ain-
da o elenco dos currículos de graduação aprovados na legislação atual.
Nenhuma universidade dá o título de psicanalista, e esperamos que as-
sim se mantenha. Isto abre outra discussão sobre psicanálise e univer-
sidade. Entendemos a universidade como um aliado importante para a
pesquisa e sua relação com outros saberes, acreditamos na importância
que a psicanálise se inclua na graduação e na pós-graduação como saber
teórico, mas discordamos que na universidade possa haver formação de
analistas, já que aquela não poderá atender aos outros elementos do tri-
pé. Somos contra que essa regulamente a psicanálise como profissão ou
dê titulação de analista. Por enquanto inexiste uma lei que regulamente
a profissão de psicanalista, e batalhamos para que a situação permaneça
desta forma.
Fomos desenvolvendo outras lutas no decorrer desses anos,
sempre ligadas ao problema da regulamentação da psicanálise.
Pronunciamo-nos contra o “ato médico”, enviamos cartas ao Congresso
e conseguimos, junto a outras instância que lutaram por isto, que não se
transformasse em lei. Um confronto importante se desenvolveu em re-
lação às instituições que regulamentavam as psicoterapias, em especial
a ABRAP. Entendemos que as psicoterapias se regem por uma forma
diferente de entender os pilares que regem a psicanálise e não temos
nada contra sua regulamentação, mas pretendemos que a psicanálise
fique fora dessas tentativas, não porque seja o ouro puro, mas porque

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20 Ana Maria Sigal

seus objetivos e princípios éticos são diferentes. A lei que se apresentou


para a regulamentação inclui desde florais da Bach e cromoterapias a
outras. Nada temos a dizer sobre sua validade, mas sabemos que nada
têm a ver com o modo em que se conduz a cura, se compreende o sin-
toma e se trabalha a transferência em psicanálise. Nada temos contra a
regulamentação das psicoterapias gestálticas, cognitivistas comporta-
mentalistas; apenas pretendemos que a psicanálise não esteja incluída
nessa regulamentação, já que seu objetivo e ética são diferentes. Na
psicanálise se parte da condição conflitante da própria constituição cin-
dida do sujeito, e o que está em jogo numa análise é se confrontar com
essa condição. O sintoma se entende como uma fala, como algo que o
sujeito tem a dizer, e o objetivo não é apagar a fala, e sim aproveitá-la
para encontrar os deslocamentos, as condensações, os recalques que
nos permitem aceder ao estrangeiro em nós.
Todo esse complexo campo de nosso saber nos depara com a im-
possibilidade de ter uma regulamentação que nos dê garantias, já que
um título de psicanalista pretenderia dar-nos certezas sobre um saber
que sempre escapa, que se descentra permanentemente, abrindo novos
enigmas e novas angústias.
Esta é a condição que nos mantém unidos na Articulação e faz
com que instituições tão diversas se manifestem e lutem, para que ne-
nhuma instância legal possa se atribuir a função de ser a verdadeira
autorizadora deste saber.

Referências

Derrida, J.; Roudinesco, E. De que amanhã... Diálogo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2004.
Freud, S. (1926). A questão da análise leiga. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

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O desejo de Freud é não regulamentável1

Antônia Portela Magalhães2


Práxis Lacaniana/Formação em Escola

No ano de 2000, tomei contato com uma nova tentativa de regula-


mentar a psicanálise como profissão. A partir daí, passei a participar das
reuniões que, inicialmente, aconteciam com certa frequência e, hoje,
são marcadas à medida da necessidade. Essas reuniões foram sendo
chamadas de Articulação das Instituições Psicanalíticas.
Na continuidade das reuniões, fui me perguntando: Quais são os
interesses em jogo nessas tentativas de regulamentação? Há muitos que
tentam: os não psicanalistas que são o grupo de religiosos e outros; e
também alguns psicanalistas, que, apesar de estarem comprometidos
“a sério” com o esforço de tomar os conceitos da psicanálise, seguin-
do algumas condições necessárias, como análise pessoal, supervisão e

1. Trabalho apresentado no V Congresso de Convergência, Movimento Lacaniano para


a Psicanálise Freudiana, Porto Alegre, 2012.
2. Membro da Práxis Lacaniana/Formação em Escola e inscrita na Fundação do Campo
Lacaniano.

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dedicação aos textos, dizem que já que vão regulamentar, por que não o
fazemos nós; e ainda, outro grupo que diz que não é para regulamentar,
mas, quando fala, o que se escuta, o que desliza na fala, é um desejo
de regulamentar, colocando em jogo uma ambiguidade manifesta em
relação à não regulamentação.
Isso aponta que alguém que se nomeie analista por estar num
grupo de analistas, que de alguma maneira se “reconhecem” entre si,
não é suficiente para garantir as condições necessárias à sustentação da
prática analítica. O reconhecimento, embora importante, não garante
a sustentação de uma posição na direção da delimitação do campo da
prática analítica.
Delimitação que só é possível pelo ato analítico, no qual a dimen-
são do significante tem a ver com a constituição do sujeito, enquanto
representado por um significante para outro significante. Atravessar o
impasse com que o sujeito se depara frente ao rochedo da castração,
dando as voltas necessárias, sustentando um desejo da máxima diferen-
ça exige que haja ato analítico.
Por que e o que se tenta regulamentar? Será que as tentativas de
regulamentar não são uma forma de obturar isso mesmo que constitui o
objeto da psicanálise — a falta que é estrutural? Será um desejo de fazer
unidade com o Outro e não de descompletá-lo?
É frente a essa dificuldade que é preciso que façamos o esforço
de insistir nas voltas necessárias para tomar o novo, que é a descoberta
do inconsciente, e os passos lógicos necessários para que a psicanálise
tenha lugar.
A questão que me interessa pôr em discussão tem a ver com a posi-
ção do analista enquanto objeto no lugar de agente em seu discurso, po-
sição essa necessária para que o ato analítico seja possível. Para situar
essa posição do analista, vou tomar a posição freudiana e diferenciá-la
em relação à posição de seus mestres: Breuer, Charcot e Chrobak.

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O desejo de Freud é não regulamentável 23

Freud, em “A história do movimento psicanalítico”, relata-nos


afirmações dos três que situam um saber relativo à etiologia sexual das
neuroses. E Freud se pergunta: “Mas se o sabem por que não o di-
zem?”. Diz ainda que, naquele momento, não compreendeu muito bem
o que haviam dito, mas essas afirmações ficaram adormecidas, embora
anotadas.
Os três mestres haviam lhe transmitido um saber que eles mesmos
desconheciam possuir. Mais tarde, esse saber sobre a etiologia das neu-
roses despertou em Freud como um saber original, até que ele recordou
que essa ideia, pela qual ele havia se tornado responsável, não havia
surgido só dele.
Freud, então, lembra a Breuer e a Chrobak suas respectivas afir-
mações a respeito da etiologia sexual das neuroses, mas essas lhe foram
desmentidas.
Temos aqui uma grande diferença entre Freud e seus mestres, uma
diferença de posição frente ao que se escuta e ao que se faz com o que
se escuta, e é essa posição que permite a Freud a descoberta do incons-
ciente. Isso foi possível para Freud porque estava numa posição em
relação ao desejo que é não regulamentável.
O caminho para a descoberta do inconsciente foram as histéricas
que o ensinaram a Freud, uma vez que, por lhes faltarem palavras, di-
zem mais do que querem dizer. Essas, ao revelar a coisa sexual, revelam
também uma dimensão do gozo, revelam a estrutura lógica da função
do gozo e sua relação com a função do desejo como: desejo de desejo
insatisfeito em sua relação com o objeto.
A posição freudiana é a de deixar a verdade falar, sob o nome de
inconsciente, no sentido de que é a linguagem que determina o incons-
ciente no ser falante. Quanto mais se prossegue no trabalho de falar em
transferência a um analista, na experiência da divisão do sujeito, mais se
engendra a hiância de um desejo confrontado com um gozo impossível.

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Quero situar uma diferença de posição em relação ao desejo entre


Breuer e Freud. Tomo essa diferença pela via da transferência, no ponto
em que Freud a situa pela primeira vez, e que nos mostra que o desejo
de que se trata no nível do desejo em Freud é o desejo em posição de
objeto que é falta.
É em relação a Anna O, e não sem Breuer, que Freud, pela primei-
ra vez, se depara com a transferência. Breuer estava encantado com a
experiência com sua paciente. Quanto mais Anna dava significantes e
tagarelava, melhor a coisa ia. No entanto, não havia nenhum traço em
tudo isso de alguma coisa embaraçante, ou seja, nada de sexualidade,
nem ao microscópio, nem a longo alcance. Mas a entrada da sexuali-
dade apresenta-se e retorna-lhe de sua própria casa com a reclamação:
você se ocupa um pouco demais dela.
Mas emerge à toda, quando Anna cria uma gravidez psíquica e
esse domínio da sexualidade mostra um funcionamento natural dos sig-
nos. Nesse nível, não podemos dizer que são os significantes, enquanto
o significante representa o sujeito para outro significante. Essa falsa
gravidez de Anna é um sintoma e, portanto, um signo que se apresenta
como representando algo para alguém. Diante do “deparamento” com
o sintoma, Breuer parte.
Freud diz a Breuer — Mas que negócio é esse, a transferência é a
espontaneidade do inconsciente dessa Berta. Não é o seu desejo — é o
desejo do Outro. Freud desculpabiliza Breuer, mas não o desangustia.
Essa leitura de Freud, segundo Lacan, a respeito da transferência, é algo
que nos mostra a legibilidade e a legitimidade do desejo freudiano.
Tomo outro recorte para finalizar. No texto “Um estudo autobio-
gráfico”, há algo que penso nos possibilita tomar essa questão do desejo
no nível da posição de objeto. Quando uma paciente de Freud, ao des-
pertar do hipnotismo, lançou-lhe os braços em torno do seu pescoço,
Freud faz diferente de Breuer com Anna O. Freud situa isso em termos

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de amor de transferência, e não de um possível “atrativo irresistível”


dele. Sem dúvida, algo diferente tomou o lugar dessa atração. Freud,
ao colocar em suspenso a dimensão do amor, instaurou aí a operação
analítica, quando diz: “Me tomam por um outro”. A operação do lado
da histérica foi abraçar aquele sobre o que havia feito o transporte da
função do objeto do qual Freud era o suporte, e do lado de Freud foi
dizer que não era para ele, mas estava dirigido ao lugar do Outro. Ele,
diferentemente de Breuer, não precisa partir e pode sustentar a função
desejo do analista para que o neurótico se analise.
A histérica, ao sair da captura hipnótica, alcançou, num rompante,
o termo da operação analítica: o objeto – é um abraço ao objeto para
conservá-lo. A esse abraço Freud não respondeu como sujeito, respon-
deu como objeto, o que outorga a esse acontecimento uma dimensão de
ato inaugural do campo da psicanálise.

Referências

Lacan, J. (1963-64). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psi-


canálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1964.
Freud, S. (1914). A história do movimento psicanalítico. In: Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. V.
XIV.
______. (1925). Um estudo autobiográfico. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. V. XX.

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F ormação em psicanálise:
enquadre e deslizamentos

Bárbara de Souza Conte


Sigmund Freud Associação Psicanalítica – SIG

O objetivo deste trabalho é mostrar como se foi instaurando, na


psicanálise, o contexto da formação quanto às exigências de análise
pessoal e supervisão bem como os desdobramentos que foram decor-
rendo para as tentativas de regulamentação.
Esta afirmativa parte da premissa que uma prática é sustentada por
um método e que esse método precisa ser apreendido mediante concei-
tos teóricos, supervisão e experiência terapêutica do terapeuta. Esse tripé
fundamenta o fazer ético. Os deslizamentos apontados referem-se às ori-
gens do que hoje entendemos como formação e que sustentam a hipótese
de são deslizamentos utilizados como justificativas para a regulamen-
tação do fazer clínico da psicanálise. Nos primórdios da psicanálise, o
conhecimento do método da associação livre e a técnica da interpretação
visavam que os psicanalistas tivessem um treinamento do referido méto-
do que garantisse a eficácia na resolução dos sintomas neuróticos estu-
dados e que sustentasse o fundamento da nova ciência do inconsciente.
Dessa preocupação e cuidado foi ocorrendo um deslizamento do que era
e de como era exercido o método para quem deveria ser psicanalista.

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28 Bárbara de Souza Conte

A organização de uma instituição foi a forma encontrada para que esse


controle da transmissão e do exercício da psicanálise se efetivasse.
A partir disso, verificamos o segundo deslizamento que diz res-
peito ao processo de supervisão. O que inicialmente foi pensado como
um debate teórico-clínico para afirmar ou não o emprego do método
em relação aos sintomas e sofrimentos enunciados, tomado como uma
investigação clínica, passou a ser uma forma de regular a prática dos
analistas. Esse percurso e suas repercussões na formação e transmissão
da psicanálise são objeto desta comunicação, bem como apresentam
uma forma de se pensar os motivos das inúmeras tentativas de regula-
mentação do exercício da psicanálise nos tempos de hoje.

Histórico: as origens da formação

Freud (1905) reunido com seus colegas no Colégio de Médicos


de Viena fala dos fundamentos do procedimento terapêutico por ele de-
nominado de “método analítico de psicoterapia”, que se distinguia do
método catártico e da sugestão. Assegura frente aos colegas que sua
terapia “é a de mais penetrantes efeitos, a que permite avançar mais lon-
ge, aquela pela qual se consegue a modificação mais ampla do doente”
(p. 249). Ao descrever um dos fundamentos da psicoterapia analítica
remarca o descobrimento e a tradução do inconsciente que se realiza
sob uma permanente resistência por parte do doente e ainda que o tra-
tamento seria uma pós-educação para vencer as resistências interiores.
Assim, a partir das palavras de Freud, podemos pensar que psicoterapia
e psicanálise, naquela época, eram entendidas como sinônimas, uma
vez que se referiam a um método capaz de lidar com as resistências
inconscientes, fruto da sexualidade infantil. A análise da transferência
se opunha à sugestão consciente do então método catártico.

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Formação em psicanálise: enquadre e deslizamentos 29

Um século se passou e, hoje em dia, se faz necessário diferenciar


a psicanálise (enquanto terapia analítica) da psicoterapia (dita de orien-
tação analítica), uma vez que se armou uma confusão conceitual no
campo do tratamento psíquico, que tem como resultado um abandono
de recomendações sobre o fazer psicoterápico e um descuido ético da
posição do terapeuta, o que nos leva a discutir quais os parâmetros para
pensar as psicoterapias. Sabemos que a psicoterapia, enquanto teoria
que passa a sustentar um modo de fazer, é uma prática anterior ao sur-
gimento da psicanálise, teve sua origem em 1872, pelo médico inglês
Daniel Tuke (1827-1895) e foi popularizada por Hippolyte Bernheim
(1840-1919), neurologista, como um método de tratamento das doenças
ditas psíquicas, através da hipnose.
Freud trabalhou a diferença de abordagem em relação a seus mes-
tres e ensinou que um método de tratamento pressupõe uma teoria que
o sustente, que os procedimentos estejam em consonância com essa
teoria e afirmou a necessidade de treinamento para quem aplica o mé-
todo, o que supõe a supervisão. Esse conjunto é chamado de formação.
O profissional assim habilitado1 se distingue do charlatão, por sua for-
mação e pela prática ética. Falamos do que é o fazer e de quem faz,
tornando indissociável a reciprocidade entre o terapeuta e o método
que baliza o campo da prática. Apesar da necessária diferenciação en-
tre a psicanálise e a psicoterapia, marcamos que o tema da formação se
mantém pertinente a ambos os campos.
Entendemos que a diversidade das psicoterapias da mente surgi-
das ao longo desse tempo e o afrouxamento dos critérios relativos à

1. O psicólogo está habilitado para a prática da psicoterapia através da resolução do


Conselho Federal de Psicologia n. 010, de 20 de dezembro de 2000, que diz em seu
artigo primeiro: “A psicoterapia é prática do psicólogo por se constituir, técnica e con-
ceitualmente, um processo científico de compreensão, análise e intervenção [...] para
o enfrentamento de conflitos e/ou transtornos psíquicos de indivíduos ou grupos”.

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formação, conforme marcamos anteriormente, estão inter-relacionados


e produzem extravios e desvios no campo da prática psicoterápica. Esta,
por vezes, é exercida à margem de qualquer critério ético e técnico, já
outras vezes, se guarnece com normatizações.
Roudinesco (2005) aponta que as escolas psicoterápicas agrupam-
-se estruturalmente em três categorias e, historicamente, em três gera-
ções sucessivas. A primeira — e mais antiga — é aquela das práticas
oriundas da hipnose e da sugestão, de onde derivou a psicanálise. A se-
gunda, surgida a partir dos anos 1930, provém das correntes dissidentes
da psicanálise implantadas nas grandes clínicas norte-americanas volta-
das para o tratamento das psicoses ou das patologias ditas “culturais”. A
terceira categoria teve origem nas demandas dos anos 1960, tais como:
místicas, corporais e de higiene psíquica, incluindo correntes psicoterá-
picas como a Terapia Familiar, a Análise Transacional, a Gestalt-Terapia,
o Psicodrama e, atualmente a Psicoterapia Cognitivo-Comportamental.
Cada uma das inúmeras formas de psicoterapia se inscreve nessas
linhas de origem e têm métodos específicos, a partir dos pressupostos
que sustentam essa inscrição, a saber: a transferência, a sugestão ou a
medicação. Porém o descuido na formação frente a essa diversidade
introduz o tema do charlatanismo, dito o outro da ciência e da razão, ou
seja, “aquele que empreende um tratamento sem possuir conhecimentos
e capacidades requeridas” (Roudinesco, 2005, p. 30). Esse parece ser
o ponto da questão que hoje se apresenta, uma vez que a diversidade
de práticas vai dispensando ou afrouxando o conhecimento das capaci-
dades necessárias para seu exercício, das teorias que as sustentam e do
conhecimento auferido no meio acadêmico.2

2. Estas páginas iniciais fazem parte do capítulo por mim escrito e intitulado
“Psicoterapia: o percurso histórico nos desafios por uma formação sem regulamen-
tação” (Holanda, 2012).

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Formação em psicanálise: enquadre e deslizamentos 31

Não por acaso, esse ponto também foi objeto de discussão nos
primórdios da psicanálise, ou seja, de que forma seria feita a transmis-
são dos princípios técnicos e éticos e quem estaria apto para o exercí-
cio da psicanálise? A história do movimento psicanalítico ensina que
inicialmente um “Comitê secreto” (Grosskurth, 1992) estava destina-
do a pensar o futuro da psicanálise. Posteriormente, a função sobe-
rana do poder foi entregue por Freud à International Psychoanalysis
Association (IPA), instituição criada em 1910 e considerada instân-
cia legítima de transmissão e controle de seus membros. No entanto,
múltiplas cisões ocorreram desde lá até nossos dias, até não mais se
sustentar uma legitimidade única. Inúmeras associações buscam trans-
mitir e assegurar o adequado exercício da prática entre seus membros,
reassegurando um pressuposto freudiano que é da ciência moderna: o
descentramento do sujeito, ou seja, o homem, em sua razão, não detém
o domínio do conhecimento.
Está marcado, desta forma, o lugar de alteridade que a psicanálise
perseguiu quanto à formação, apontando o inconsciente, o desejo e as
pulsões como conceitos desde onde o sujeito emerge de seu universo
estranho e familiar ao mesmo tempo. Da mesma forma, as práticas psi-
coterápicas se legitimam na transmissão de seus paradigmas a partir
da alteridade de outro. Justifico este ponto a partir da crítica ao sujeito
da modernidade que considera o eu como autônomo, racional e autos-
suficiente. Se o sujeito é sempre um sujeito histórico, que se constitui
na relação com o outro, é na intersubjetividade da prática que a trans-
missão ocorre. Não há uma prática sustentada em um sujeito autossufi-
ciente e único, caso contrário, corre-se o risco de que a transmissão e a
prática psicoterápica tornem-se dogmáticas e centradas em uma crença
não passível de ser questionada e de ser reformulada de acordo com os
achados da clínica. Cada associação, psicanalítica ou psicoterápica, que
se proponha a discutir os fundamentos de seu fazer necessita que seus
pressupostos sejam expostos ao exercício do debate clínico.

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Outro ponto não menos importante, além da legitimação da trans-


missão através das sociedades formadoras, é o de quem está habilita-
do a exercer a prática terapêutica das doenças psíquicas. Freud (1926),
no início do século passado, escreveu sobre a questão da análise leiga,
uma vez que havia uma denúncia de exercício ilegal da profissão contra
Theodor Reik. Freud o defendeu neste artigo, em um debate com um
suposto interlocutor com o qual vai descrevendo o que entende por aná-
lise leiga. Refere-se a três significados: o leigo (não médico), o profano
(não religioso) e o amador (não competente). Verificamos assim que
desses três possíveis sentidos de leigo, como sinônimo de charlatão,
Freud deu precisão ao termo leigo descrevendo-o como aquele que não
estava familiarizado com: 1) a ciência da vida sexual, com seu incons-
ciente, através da sua própria análise e, 2) com a delicadeza da técnica
da psicanálise, através da arte da interpretação, do combate às resistên-
cias e do lidar com a transferência.
Qualquer um que tenha realizado tudo isso não é mais leigo no campo da
psicanálise, [...] ninguém deve praticar a análise se não tiver adquirido o
direito de fazê-lo através de uma formação específica. Se essa pessoa é
ou não um médico, a mim me parece sem importância. (p. 214)
Desta forma o autor tornou claros os princípios que habilitavam o
analista para seu ofício e ensinou que a formação é o que capacita o ana-
lista em sua prática, e que a transmissão da psicanálise se processa com
rigor e independência, podendo seus analistas/membros ser de várias
origens do campo do conhecimento (médicos, psicólogos, educadores).
Instituiu um debate sobre a questão da análise leiga e assim gerou um
embate entre seus pares, uma vez que havia posições como a de Ernst
Jones de que “a Sociedade Britânica é, de modo praticamente unânime,
da opinião de que, na maioria, os analistas deveriam ser médicos, mas
que uma proporção de analistas leigos deveria ser livremente admitida,
desde que certas condições sejam preenchidas” (Kohon, 1994, p. 26).

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Formação em psicanálise: enquadre e deslizamentos 33

A questão da análise leiga e os impasses de quem poderia fazer for-


mação foram armando as determinações da formação, até que em 1925
foi padronizada a análise didática. As “Diretivas” de 19293 (Tardits,
2011, p. 39) especificam as condições de formação dos não médicos na
prática psicanalítica e marcam a cisão entre a análise pessoal terapêu-
tica, que até então tinha como objetivo a cura das neuroses, e a análise
didática, conduzida por analistas-didatas autorizados e que passa a ser
instrumento da formação, ou seja, do saber psicanalítico.
Essa cisão apontada do monopólio dos analistas didatas marca a
brecha, na atualidade, onde a regulamentação se inscreve: justamente na
ambivalência frente à legitimidade para o exercício de uma prática. O des-
lizamento a que me refiro na questão da análise ocorre da legitimidade da
formação para a regulamentação do ofício como prática. Houve o momen-
to que se perdeu a especificidade da análise pessoal como forma de conhe-
cimento do inconsciente — objeto da análise — para o controle de quem
poderia ou não ser analista, surgindo então a figura do analista didata. Esse
deslizamento deu lugar ao tema da regulamentação ou regulação do exer-
cício da prática. Quando se instala a ruptura entre instrumentalização do
saber e legitimidade da transmissão, abre-se o caminho para uma cisão
que cria um novo dispositivo de controle, neste caso, a regulamentação.

Supervisão como um dos eixos da legitimidade da prática leiga

O ponto desde onde se inscreve o tema da supervisão na formação


é o de uma função de transmitir o fazer prático e ampliar o conhecimento

3. Diretivas eram os documentos que especificavam a seleção dos candidatos para


a formação nas instituições psicanalíticas. Havia cursos reservados somente aos
médicos, que a partir da defesa de Freud à análise leiga, a favor de Reik, obrigou
que nova redação fosse realizada para especificar as condições dos não médicos na
prática psicanalítica.

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dessa prática a partir de um lugar de alteridade sobre o material clínico,


gerando um novo saber, um saber ampliado sobre o que foi realizado
em um enquadre terapêutico. Na mesma direção do dogmatismo e con-
trole que apontamos quanto à importância da análise pessoal caminha
também a questão da supervisão. Na história da psicanálise as análises
passaram de condições de reconhecimento da ferramenta de trabalho,
que é o inconsciente, para serem utilizadas como controle dos candi-
datos para a formação, conforme apontei. As supervisões ou controles
(como eram chamadas e ainda são em alguns casos) tomaram rumos
semelhantes no sentido de um deslizamento de sua função primeira,
que é legitimar a prática.
Em 1947, a Sociedade Britânica de Psicanálise discutiu o sistema de
formação, e Michel Balint, como voz dissidente, apontou a constatação
de que por vários anos havia a ausência de publicação, inibição do pen-
samento e “ausência de discussão científica sobre os objetivos e métodos
da formação” (Tardits, 2011, p. 70). Desde a dissidência entre Ana Freud
e Melanie Klein havia a querela entre autoridade analítica, autoridade
doutrinal e poder institucional, sugerindo uma ruptura entre a produção
de conhecimento e autoridade institucional, marcando exatamente a au-
sência da alteridade, uma vez que em vez da troca de ideias e do debate
clínico, o que havia era a briga pelo poder que encastela o grupo, ao mo-
delo de funcionamento eclesial.
Ao longo do tempo a supervisão também sofreu uma cisão, uma
vez que passa a “validar a passagem de uma posição de analisante a um
estatuto de analista” (Tardits, 2011, p. 134). A supervisão cumpriu ini-
cialmente no grupo de analistas que se reunia com Freud, como Sandor
Ferenczi, Paul Federn e Edoardo Weiss, a função de discutir a técnica,
escrever as experiências em publicações e trocar correspondências sobre
a condução e os entraves dos casos atendidos. Essa forma encontrada no
relato da condução dos casos criou uma produção de conhecimento que

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Formação em psicanálise: enquadre e deslizamentos 35

foi precursora da pesquisa em psicanálise, ou seja, a apresentação do caso


clínico com seus interrogantes e a interpretação da experiência clínica.
Este é o ponto importante da supervisão enquanto dispositivo para
pensar uma prática que funciona como produção, como pesquisa, que
sofre um deslizamento e passa a ter a função de controle, de autorização
do supervisor sobre a prática do analista em formação. Esse desliza-
mento acaba tendo como consequência um retraimento no momento de
apresentar e discutir o que é realizado na privacidade da sessão
Destaco, com este recorte histórico, um ponto que me parece fun-
damental sobre o tema da supervisão: seu lugar de produção de conheci-
mento dos interrogantes da clínica e também como forma de transmissão
e filiação. As supervisões ou discussões de casos são realizadas para
aprofundar, comprovar, questionar os achados do processo e do fazer
analítico e psicoterápico com um colega mais experiente. O supervisor,
enquanto olhar de terceiro que se coloca entre terapeuta e paciente para
discutir o fazer clínico, cumpre o papel de pesquisador, apontando acha-
dos teóricos e a repetição a ser discutida no desafio da clínica.
A alteridade é uma condição da supervisão em qualquer forma de
exercício da psicoterapia, diferença do sujeito e no sujeito em seu lugar
de construção do saber. A supervisão supõe, portanto, a presença de um
terceiro entre o terapeuta e o paciente. O campo da supervisão abarca essa
abertura do par paciente/terapeuta para um terceiro que pode privar (não
satisfazer), elucidar, pontuar, o que está ocorrendo como repetição ou ende-
reçamento na dupla, diferenciando-se, dessa forma, daquilo que é controlar.

A título de conclusão

A diversidade que caracteriza as práticas psicoterápicas deve ser


discutida mais além de enquadramentos, títulos, listas e regulamentações.

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O diálogo entre os diversos fóruns, como os institutos de formação, os


órgãos de fiscalização e as relações éticas entre os psicoterapeutas e suas
práticas é o que entendemos que poderá direcionar os rumos da psicote-
rapia, resguardando a autonomia necessária para que a laicidade tome o
rumo a que se referiu Freud. Mais do que o regulado por uma instituição
que arbitre o direito de legislar, “é preciso reconhecer a necessidade de
etapas, instâncias, auto e heterorreguladoras, evadindo-se do pressuposto
de que a transmissão de conhecimento possa estar restrita a um grupo”
(Hausen e Conte, 2008, p. 65). Desta maneira está proposto o lugar da su-
pervisão como uma forma de pesquisa e lugar de filiação que supõe a le-
gitimação do fazer e a troca de experiências desde um lugar ético e laico.
Retomo a questão da legitimidade. Legitimar-se é ter a outorga de
outro ou outros (lugar institucional, ou não) pela prática que é exercida.
Essa legitimação requer que se enderece ao outro o trabalho realizado
pelo sujeito. É necessário dar conhecimento a outro do que é produzido.
Primeiro passo para que o trabalho no campo da psicanálise seja legitima-
do e que seu método inclua a questão da alteridade. Termo este que desig-
na diferença, uma vez que o outro vai instaurar a marca de sua presença e
interrogar para que se produza algo novo. Distingue-se, portanto, da pres-
crição ou sugestão do que fazer. Isto é possível entre pares e entre fóruns
distintos, tendo como exemplos o caso “Anna O” discutido entre Freud e
Breuer (1893-1895), quando da mudança de terapeuta e os efeitos de sua
paixão; as reuniões das quartas-feiras, onde estudavam os achados clíni-
cos e teóricos, buscando afirmação do método; e o caso Hans (1909), em
que o pai levava o relato dos diálogos entre ele e seu filho para que Freud
o orientasse quanto aos “procedimentos interpretativos”.
Alteridade é o olhar do outro em mim; o endereçamento a alguém
que vai ser tocado pelo que é endereçado e responde desde aí como
lugar e sujeito de transferência. Alteridade também como efeito dessa
passagem do outro por mim, como o conceito de identificação. Abertura

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Formação em psicanálise: enquadre e deslizamentos 37

ao encontro entre o que é de um e de outro, possibilitando a criação do


novo pela introdução da diferença, onde a repetição dá lugar ao inédito.
Aí aparece o que faz sentido em um tratamento, o fazer ético que pro-
duz conhecimento.
A partir da alteridade do supervisor, tomo outro dispositivo para
pensar a supervisão, o efeito por posterioridade do encontro do tera-
peuta com o supervisor que coloca em cena o encontro terapêutico.
Tomando a ideia de Laplanche (2012) de um tempo em espiral, a su-
pervisão não opera para adjetivar um fazer: se é bom ou ruim, mas sim
para ressignificar, a partir da intromissão de outro em um outro tempo,
a relação de trabalho clínico entre o analista/terapeuta e seu paciente/
cliente.
Sabemos que o conflito não é fruto dos acontecimentos, ele é efei-
to de novos acontecimentos em outro tempo, onde o sujeito pode pro-
duzir algo diferente ou continuar a repetir (Laplanche, 2012). Assim
podemos pensar, a partir do dispositivo da supervisão, como se inscreve
como uma “nova volta”, “outro olhar” no processo terapêutico que dá
lugar ao novo, temos também nos deslizamentos os argumentos para as
regulamentações que repetem o idêntico: o controle. A supervisão en-
contra sentido à medida que abre vias de pensamento às interrogações,
tais como: qual o conflito escutado? Qual a fonte do sofrimento narra-
do? Onde houve a interrupção da escuta e a sugestão que se inscreve
para obturar a fala? Perguntas que recolocam o pensar sobre o efeito do
encontro dito terapêutico.
Assim, é preciso marcar que no decorrer do tempo de exercício
das práticas psicanalíticas e psicoterápicas os rumos da transmissão dos
fundamentos e deslizamentos ocorridos desviaram em muitas situações
o foco do chamado tripé de uma formação — a análise pessoal, os semi-
nários teóricos e a supervisão — para formas de controle e de poder nas
instituições, nos grupos formadores, nas seitas religiosas e no Estado.

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38 Bárbara de Souza Conte

Marcamos as instâncias de participação e discussões entre pares


ao modelo do enfocado como uma filiação na alteridade, em uma tem-
poralidade por après coup, ou seja, em uma temporalidade em espiral
que leva em conta o efeito do acontecimento como parâmetro ético da
clínica e garantia de uma análise leiga, sem regulamentações.

Referências

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de Sigmund Freud. Buenos Aires: Amorrortu, 1990. V. 2, p. 1-315.
______. (1905). Sobre Psicoterapia. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Buenos
Aires: Amorrortu, 1990. V. 7, p. 243-258.
______. (1909). Análisis de la fobia de un niño de cinco años. In: Obras Completas de
Sigmund Freud. Buenos Aires: Amorrortu, 1990. V. 10, p. 1-251.
______. (1926). Pueden los legos ejercer el análisis? Diálogos con un juez imparcial.
In: Obras Completas de Sigmund Freud. Buenos Aires: Amorrortu, 1990. V. 20, p.
165-245.
Grosskurth, P. O círculo secreto. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
Hausen, D., Conte, D. Psicoterapia: ampliar ou restringir. Revista da Sociedade de
Psicologia do Rio Grande do Sul, v. 7, n. 1, p. 58-67, ago. 2008.
Holanda, A. O campo das psicoterapias. Curitiba: Juruá, 2012.
Kohon, G. A Escola Britânica de Psicanálise: The Middle Group, a tradição indepen-
dente. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
Laplanche, J. El après-coup. Problemáticas VI. Buenos Aires: Amorrortu, 2012.
Roudinesco, E. O paciente, o terapeuta e o Estado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
Tardits, A. As formações do psicanalista. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2011.

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A psicanálise de Freud e a nossa

Denise Maurano
Corpo Freudiano do Rio de Janeiro

A reunião de representantes de entidades psicanalíticas, as mais


diversas de todo o país, em prol da causa da defesa da psicanálise, en-
tidades que tinham por costume, mais disputarem entre si que qualquer
outra coisa, foi e é, creio, um passo e tanto na luta pela não regulamen-
tação da psicanálise.
Afinal, desde que os psicanalistas, inspirados por Freud, se puse-
ram a agrupar-se, a constituir escolas, logo surgiram disputas entre elas,
das mais razoáveis às mais irracionais.
Nessa perspectiva a situação atual da psicanálise não é diferente
daquela que Freud nos expõe no texto de 1914 “Contribuições à histó-
ria do movimento psicanalítico”. Nele transparece muito claramente a
disputa entre o que ele chama de Escola de Viena e a Escola de Zurique.
Freud se dedica a mostrar em que as teorias que elas vieram a
construir não representam uma escola da psicanálise, mas sim propos-
tas alheias à psicanálise.
Nessa época, ele, com razão, combatia a ideia de que haveriam
três escolas de psicanálise. E como ele faz isso? Como encara a difícil

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40 Denise Maurano

tarefa de tentar delimitar o que diz respeito à psicanálise e o que foge


ao campo psicanalítico? Buscando enunciar o mais claramente possível
os postulados e hipóteses fundamentais da psicanálise. E, para nós, é
extremamente interessante observar a estratégia utilizada por ele para
situar seu trabalho, porque nesta revela-se o passo a passo de uma in-
venção, não de uma descoberta.
A ciência esmera-se em promover descobertas. Descobrir é desve-
lar, tirar o véu de algo que já estava lá antes. Uma invenção tem outra
natureza: porta, inexoravelmente, a marca de seu inventor. Por isso, não
há psicanálise sem Freud. Não há psicanálise sem levar em conta tudo
o que circunscreve as contingências de sua criação. Não há psicanálise
se a abordagem que se tem do sujeito não considerar o psiquismo como
confrontado com o conflito entre os apelos da racionalidade consciente
e as exigências indomáveis de satisfação sexual. Não há psicanálise
sem que a tragicidade que perpassa nossas vidas encontre um lugar de
expressão, e mais do que isso, de savoir-faire.
Nesse sentido, em 1914, ou em 2018, no Brasil, ou em qualquer
parte, estamos todos no mesmo barco. Num barco onde a autorização
para atuar na função de analistas não vem de nenhum diploma universi-
tário ou de nenhuma titulação que seja. Assim, não temos como recuar
do risco de termos abraçado um ofício sempre prestes a ser enxovalha-
do. Mas então por que não regulamentá-lo, ou regulá-lo de forma a dizer
quem é e quem não é psicanalista? Simplesmente porque “o” psicana-
lista não existe, é uma função que pode ser assumida por alguém que
para alem de ter estudado teoricamente e feito suas supervisões, fez um
percurso de analise que implica uma experiência que tem uma dimen-
são real, denominada por Freud de transferência. E será o modo como
a dimensão viva da transferência foi processada e dissolvida em cada
trabalho psicanalítico que possibilita ou não o surgimento de alguém
apto a sustentar a função de psicanalista. Estranha função de fazer-se
meio para o Outro, e que responde a um desejo estranho e singular.

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A psicanálise de Freud e a nossa 41

Nada garante que uma psicanálise termine por fazer advir um ana-
lista. Entre querer ser analista e estar apto para sustentar essa função há
um largo passo. Não há como regulamentar a psicanálise de ninguém,
não há como medir suas possibilidades. Fazer uma análise não é fre-
quentar um psicanalista, ainda que este seja muito bom e renomado,
ainda que se faça isso por anos a fio. Nesse sentido, o que foi concei-
tuado como transferência, para indicar o que traz implicações afetivas
e efetivas, na atualização do inconsciente que é colocada em ato numa
psicanálise, se constitui como um obstáculo para toda e qualquer regu-
lamentação da psicanálise, porque uma análise só pode ser contada uma
a uma, a partir do destino disso que se chama transferência.
Mas então o que fazer? Sentar e chorar o infortúnio de sermos ex-
postos a ser enxovalhados a cada ataque dos evangélicos, dos médicos,
dos psicoterapeutas ou de quem quer que seja?
Não! Por isso estamos aqui e temos com Freud o compromisso de
tentarmos enunciar o mais claramente possível os postulados e hipóte-
ses fundamentais da psicanálise. Ou seja, temos o compromisso de nos
empenharmos em transmiti-la com todo o entusiasmo e rigor ético que
ela merece. E não podemos esquecer de nos ocuparmos também de sua
difusão, questão cara a Freud.
E, se ainda assim, não podemos garantir para o leigo, de manei-
ra inquestionável, o reconhecimento de um bom analista, ou de uma
boa escola de formação, podemos pelo menos fazer alguns alertas. Por
exemplo: vale divulgar que quando se trata de psicanálise, a propagan-
da das garantias e facilidade encontra-se em proporção inversa à serie-
dade. Desconfiem das garantias e facilidade anunciadas.
Vale também observar se o trabalho psicanalítico é feito com in-
dependência ou se ele se encontra apenso, submetido a algum credo,
religião, ou a alguma outra disciplina, seja filosofia, medicina, psicolo-
gia ou o que for. Porque uma coisa é a psicanálise dialogar com outras
áreas, outra é submeter-se a elas.

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42 Denise Maurano

Outro alerta diz respeito à função do psicanalista na transferência.


Se ele não suportar escutá-lo na sua diferença, abstendo-se de apelar às
identidades, abstendo a fazer comparações, dar “pitaco”. Ou seja, se a
palavra dele não for “bem dita”, servindo de meio e não de fim. Se ela
em vez de o pôr a trabalhar, impeli-lo a alienar-se numa resposta que
não é sua. Preste atenção e corra dele.
É claro que tais alertas não bastam. Temos que nos empenhar em
desenvolvê-los, difundi-los. Eles valeriam em 1914 como valem agora.
No que tange ao que é fundamental na psicanálise, nada mudou: a psi-
canálise foi inventada para tratar o mal de amor, porque em determinado
momento da historia do Ocidente a inflação da tematização do amor em
nossas vidas fez mal e exigiu que se inventasse um tratamento. Pelo me-
nos ainda isso não mudou, haja vista o destino privilegiado do desenvol-
vimento tecnológico de comunicação, demarcando o império de Eros e
de seus reveses. E não me venham dizer que a questão do dinheiro veio
a prevalecer porque uma é reflexo da outra. O que a economia financeira
vela é questão da economia libidinal.
Se é assim, não é à toa que nos trópicos “calientes”, no Brasil, a
psicanálise encontrou tão bem seu lugar e seu reconhecimento. Cabe a
nós, aqui reunidos — e a novidade é essa, a nossa reunião — lutarmos,
ao modo de bons vigilantes, para que ela permaneça no bom lugar que
conquistou.
O que significa sustentarmos a “ Outra cena” , diante do apelo glo-
balizante, espetacularizante, pasteurizador que se apresenta na atualida-
de. Isso sim mudou de 1914 para cá. Mas se as entidades psicanalíticas
conseguirem se manter unidas para isso, já está de bom tamanho. Não
precisamos mais acordos do que esse.
Em vários lugares do mundo não houve articulação, e a psicanáli-
se está pagando um preço alto por isso. Tornou-se refém da psicologia
ou da medicina. Vamos aqui apostar em nossa articulação. Apostar que
podemos ter um melhor destino. Por que não?

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A psicanálise de Freud e a nossa 43

A Articulação das Entidades Psicanalíticas do Brasil foi criada


devido à ameaças externas, porém com o convívio e o forte caráter
latino de nossa cultura, que favorece certa cordialidade, lubricidade no
contato, nossa Articulação pode alargar seu espaço e promover laços
de camaradagem entre nós. Os deliciosos cafés, servidos em nossos
encontros, ajudam na troca de ideias e de gostos. E como sabemos,
a transferência favorece a transmissão. Pouco a pouco se alarga um
espaço que é também de transferência de trabalho. As escolas, através
de seus representantes, não se apresentam mais exatamente da mesma
maneira que no início da construção desse coletivo.
Nesses 18 anos de convivência, a política da gestão de nossas di-
ferenças internas nunca foi fácil, mas são justamente essas diferenças
que justificam nossa causa. Lutamos pela diferença, num cenário onde
se vê prevalecer a uniformização, a pasteurização de tudo. Sem cairmos
numa falsa homogeneidade, conseguimos, até aqui, fazer vigorar um
tipo de lógica coletiva em ato no qual as diferenças são respeitadas, po-
rém cada reunião é um desafio. Amanhã, nós não sabemos o que pode
ocorrer. Mas não é assim mesmo na vida?

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A psicanálise é uma mercadoria?

Francisco Leonel Fernandes e Fernanda Costa-Moura


Tempo Freudiano Associação Psicanalítica

O título sugere, antes de qualquer consideração, a necessidade de


uma demarcação do modo de a psicanálise se inscrever no mundo, en-
quanto uma prática remunerada, com relação à lógica do capital. Como
ela poderia estar destacada dos processos de precificação e controle que
contornam as mercadorias de maneira geral e que circunscrevem o va-
lor tão somente à esfera econômica? E a que título ela justificaria tal
pretensão?
Uma primeira condição para essa discussão é que não decaia numa
visada moral. Pois esse decaimento, muito comum, configura um ex-
travio da questão e tem por consequência imediata anulá-la como tal e,
assim, fomentar a possibilidade de que, da psicanálise, no circuito das
trocas, reste apenas o nome como rótulo de uma mercadoria a mais.
Com efeito, é cada vez menos trivial hoje, que se entenda a esfera
do valor, sempre repercutida no plano econômico e mediatizada por sua
dinâmica financeira, sem que a mesma se esgote nesse nível. A surra-
da distinção entre valor de troca e de uso marca, a esse respeito, uma
distinção importante: o plano do uso, pelo menos em princípio, situaria

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46 Francisco Leonel Fernandes e Fernanda Costa-Moura

a questão fora do escopo dos valores meramente econômicos, e nessa


dimensão, frequentaríamos outras órbitas de valor. Por outro lado, com
o apagamento do nome-do-pai como instância simbólica e a consequen-
te contestação de seu aparato de produção de sentido que fundava a
hierarquização do mundo numa perspectiva religiosa e transcendental,
tem sido cada vez mais difícil situar um “para além” do valor agregado
à mercadoria que não seja mero espelhamento da dinâmica de sua re-
produção. E isso por sua vez implica a degradação ou uma redução da
apreciação do valor, do uso, à troca.
Na medida em que cada vez mais os processos de cálculo prevale-
cem e dominam ou transformam a dimensão significante que opera na
linguagem ordinária, a abertura para o sentido que articula o discurso
deixa de ter como horizonte o transcendente. O sentido tende a limi-
tar-se à esfera das demandas, da infinidade de pequenos apetites que a
linguagem pode produzir e, em seguida, a agenciar os processos de pro-
dução dos objetos adequados a esses mesmos apetites. Nesse roldão, to-
das as coisas que importam passam a admitir uma inscrição extensional,
onde os objetos tornam-se aptos a serem contabilizados, precificados,
cada vez mais inseridos e reduzidos, quanto ao valor, ao peso que têm
numa dinâmica financeira que se generaliza e coloniza as demais esferas
de valor. Aí os objetos estão dados, de maneira tal, a se permutarem fa-
cilmente em função da positividade de seus valores notariais, numéricos,
que lhes dão uma consistência contábil. Uma consistência que ameaça
sobrepujar qualquer outro plano de valoração e de referenciação. O que,
em suma, acaba por agenciar uma generalização da positivação exten-
sional das coisas, para oferecê-las a serem captadas, cada vez mais, es-
tritamente desse modo. A ponto de podermos dizer, no limite, que hoje
tendemos a não nos reportarmos mais aos valores de uso, ao que tem
valor em si para cada um, ou que tem valor em outros registros, como o
ético e o estético, enquanto o valor de troca tende a resumir toda a esfera

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A psicanálise é uma mercadoria? 47

do valor. A pessoa então não frui para si ao comer, ela se “alimenta”, tal
ou tal atividade transforma-se em “investimento” ou “gasto”, tudo na
vida passa a ser situado na perspectiva de que cada um é uma empresa
a ser administrada quanto à sua “sustentabilidade”. Qualquer iniciativa
passa a ser concebida e avaliada sob a ótica do “custo e benefício”, do
“direito dos consumidores”, como se diz.
Qual a relação da psicanálise com essa lógica que se encontra,
hoje, em vias de se totalizar? Em que sentido a psicanálise poderia fa-
zer alguma objeção a essa lógica e por quê? São perguntas que pode-
mos desdobrar a partir da noção de discurso introduzida por Lacan em
1969-70. A psicanálise, dentre tantas outras marcações, assinala que
a ordem do discurso, que se inicia com o discurso do Mestre, o qual
situa a operação fundamental da linguagem, sempre coloca em jogo um
resto. O discurso é por assim dizer uma operação que deixa resto, na
medida em que, ao se colocar, estrutura lugares e diferenças, ao mesmo
tempo em que (e justamente porque) ele produz uma perda, exclusão. É
este resto que está na base, no fundamento da produção do sujeito em
função da articulação significante. A emergência do sujeito como efeito
do discurso localiza justamente esse resto, aquilo que Lacan designou
como objeto a, como a perda que indicia e constitui um sujeito. Neste
sentido, o sujeito assinala um constrangimento da estrutura, um “fora”
dela, um real que se articulou localmente de dentro dela, em certa con-
juntura significante que expõe sua incompletude. Vale dizer, o objeto a
é aquilo localiza a perda que é necessária para um discurso se articular.
E a localiza como o desperdício, a dissipação e, mais rigorosamente, a
entropia que é implicada e produzida na própria articulação da ordem
do discurso.
Por conta dessa entropia, não há nenhum “além” ao cada um que
cada um é. O futuro de cada um é a morte, como efeito disso que nos
constitui e se desperdiça — e nos singulariza. Vale dizer: o desejo é

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48 Francisco Leonel Fernandes e Fernanda Costa-Moura

finito, podendo mesmo ser entendido como o dinamismo “vital” que


atravessa o falante, organiza sua vida e seus atos no laço com os outros.
Dinamismo — desejo — que ata linguagem, sexo e morte.
O que tem valor de negar a entropia, de subsistir a ela, e que pode
ser colocado como o que resta de cada um, é o próprio significante e a
ordem do discurso a que ele dá lastro. Daí decorre a ideia de transmis-
são, a ser distinguida da ideia de reprodução social. Isto é, o sujeito se
transmite pela perda-desperdício acionada pelo discurso. Sua existência
finita e sua presença na cotidianidade evanescente depende de que cada
um, no escopo de sua finitude, “passe a bola” para a geração seguinte.
“Passar a bola” é, pois, dar ensejo a que a ordem significante, por sua
ação discursiva, abra chances ao advento do sujeito, ali mesmo, nas
proximidades de onde ele se abole e decai onde o discurso tende a se
fechar e “Isso” goza.
Uma alternativa mais problemática que Lacan também entreviu
como potência na ordem discursiva foi o que ele designou como “dis-
curso do capitalista”. O chamado “discurso capitalista” não chegou a
ser propriamente um conceito. Sua formulação foi difusa e não se fixou
quanto à sua articulação interna com os demais conceitos da psicanálise
que Lacan propôs, configurando talvez mais um truncamento do que
um desdobramento da ordem do discurso. Tratar-se-ia porém de uma
articulação tal, dos termos discursivos, que abole o resto, e, em caso
de radicalizar-se, abole até mesmo a perda que constitui um discurso
como discurso e dá lugar ao sujeito. Assemelhando-se talvez a um de-
lírio, uma contradição em termos, só que real. Parecendo um delírio.
Uma contradição em termos, só que real. Algo com uma compleição
“termodinâmica” do gênero do mobile perpetuum — como o macaco
levantar-se, enfrentando a gravidade, puxando o próprio rabo. Ou o tra-
balho realizado por uma máquina para alimentá-la... para produzir... o
trabalho de alimentá-la. Ou seja, um sistema sem resto, que incorpora o

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A psicanálise é uma mercadoria? 49

que seria da ordem da entropia como diferença para fazer movimentar


o sistema, visando assim sustentar sua operação ininterruptamente, sem
perda. O mito da autossuficiência. O capitalismo devorando-se e geran-
do a si mesmo no processo de sua reprodução.
É muito sensível hoje em dia onde se chega com essa dinâmica.
Uma imagem simplificadora e brutal, mas que toca à verdade, é que, em
vez de recuperar o próprio dejeto para se retroalimentar, tal dinamismo
torna-se ele próprio um dejeto. Ele é suicidário em seu desembestamen-
to. O que indica que a incompletude da linguagem, “alingua”, pode
bem forjar o colapso da própria estrutura. Demonstrando-se com isso,
justamente, que esta toca ao que é mais sério na vida: a própria finitude
da estrutura como limite. Assim, o celular mais avançado que compra-
mos hoje, no ano seguinte é, literalmente, lixo. A produção eleva-se
a níveis acima das possibilidades de os ciclos da natureza recompo-
rem seus padrões de estabilidade, equilíbrio e renovação, de sorte que
a tendência geral é de nos afogamos no lixo que nós mesmos produ-
zimos. Sendo dado que não há “fora” disso, seja como trabalhadores,
seja como consumidores, é nessa engrenagem que tomamos lugar. Não
há escansão, os processos de demanda saturam todo espaço, sem que
elas situem uma escansão, um ritmo mínimo a partir do qual possam se
recolocar para o sujeito. Nessa conjuntura, o desejo encontra muita difi-
culdade para se articular, açodado que está, pelas demandas que exigem
a aquisição dos objetos de consumo pret-à-porter que as satisfazem.
Objetos cuja função se revela ser sobretudo a de obturar as chances de
o desejo chegar a emergir como tal, convidando o sujeito a se exercer
na direção de sua singularidade.
Tudo isso é de conhecimento geral e tem sido recenseado de diver-
sas maneiras na literatura que busca entender a cena contemporânea. O
que se trata de localizar nesse breve comentário é como a psicanálise
joga esse jogo e como o tema de sua possível regulamentação a atinge.

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50 Francisco Leonel Fernandes e Fernanda Costa-Moura

A Dificuldade maior da psicanálise é justamente sustentar para o sujeito


que a condição necessária para que ele possa advir exige o registro de
certo desperdício, de um gastar sua vida para “coisa” alguma e, sobre-
tudo, sem fins lucrativos, dando lugar a certo desarranjo estrutural entre
custo e benefício. É por seguir essa via que a psicanálise se contrapõe
ao capital. De dentro da lógica do capital e em seu movimento, ela não
é ganho, é gasto.
A questão essencial então será como abrir para o sujeito essa via,
sem apelar para o que ela representa como “benefício” (que se colocaria
sempre em contraposição ao “custo”) e sabendo que seu custo muitas
vezes pode se colocar como exorbitante — menos, até, no sentido fi-
nanceiro, que sempre pode ser manejado para se adequar ao plano dos
recursos, mas sobretudo em termos do desejo, da decisão subjetiva e
do ato que é sempre contingente. Haveria como ordenar, prever e regu-
lamentar tal exigência — ou convite? Pelo contrário, o que sabemos é
que, se tal proposta opera, se há psicanalistas e pessoas em análise, isso
se deve, certamente, à aquela “uma” psicanálise ter sido encaminhada a
partir de uma oferta em pura perda. Uma oferta que produziu uma de-
manda muito específica ao psicanalista, personagem que tem a respon-
sabilidade de sustentar um modo peculiar de tratar o amor, que Freud
cerniu sob a rubrica da transferência. Ou seja: do sofrimento presente
no início do tratamento, ao nível em que se estabelece a demanda de
cuidado, para o “nada” —, o situar-se frente à própria castração, a partir
do que o sujeito pode fazer ressoar sua própria questão, que ecoa em seu
sintoma, e passar pela marca que o singulariza e, nessa medida mesmo,
o responsabiliza em sua vida — esse “alguém”, o psicanalista, é quem
opera esse volteio impossível de ser regulamentado e agenciado pela
propaganda. E, menos ainda que isso, ele o é, psicanalista, sim, mas
em decorrência da própria operação que logrou sustentar — e que se
testemunha apenas pela fala, no registro da indicação, espécie de “boca

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A psicanálise é uma mercadoria? 51

a boca” que assinala num plano que não o imediato da evidência, num
plano que é eminentemente subjetivo, o “cada um” analista. Em suma,
sustentar entre pares praticantes essa condição de analista pela via de
uma pactuação tão somente e que perdura, que não se regulamenta, que
não faz consistir um interesse corporativo nas figuras do Estado, mas
que o leva em conta, não é só um feito notável que podemos aproximar
de uma criação no sentido próprio do termo, como é também uma mo-
dalidade de, sem desconsiderar as diferenças que demarcam os grupos
psicanalíticos diversos, sustentar o discurso como transmissão, e não
mera reprodução social.
Por força da estrutura, portanto, e por exigência da operação que
precisa pôr em prática e sustentar no real, assim é para a psicanálise: no
lugar de regulamentação, pacto, transferência produzida em trabalho.
Desviando-se da pretensão moral que promete conjugá-la às demandas
de adequação da sociedade e do jogo econômico, resta, pois, à psicaná-
lise tomar as responsabilidades que lhe são próprias. E se por aí não se
chega evidentemente a unir os analistas, a fazer “conjunto”, a unificar o
campo sempre conflagrado da psicanálise, é em ato que se pode, a cada
vez, sustentar os limites desse campo e dar a ele uma chance efetiva.

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A QUESTÃO DA CAUSA
E A NÃO REGULAMENTAÇÃO

Gêisa de Carvalho S. Ferreira


Aleph – Escola de Psicanálise

O mundo não marcha senão pelo mal-entendido.


É pelo mal-entendido universal que o mundo inteiro se entende.
Pois se, por desgraça, os homens se compreendessem,
não poderiam jamais entender-se.
Charles Baudelaire, Meu coração desnudado

A psicanálise é um método de investigação do Inconsciente no


qual Freud constatou a existência de forças psíquicas e o modo como
somos afetados por elas, mesmo não tendo delas consciência. Usando
a “associação livre de ideias” e a “atenção flutuante”, formou um corpo
teórico-clínico que dialoga com outras áreas, sem a elas se submeter,
o que mantém a psicanálise distinta dessas áreas em seus princípios e
técnicas. Surge um novo campo de saber, com novos objetos de conhe-
cimento, que lhe é específico e que se fundamenta e se sustenta com
rigor lógico em sua complexa rede conceitual, que deve ser conhecida
por todos que deste campo queiram fazer parte.

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54 Gêisa de Carvalho S. Ferreira

Introduzir a psicanálise na cultura implica incluir o acontecimento


psíquico (Lacan, 1966-67), seu funcionamento e a própria maneira de
lidar com ele. Isso significa incluir o que é rechaçado no simbólico e,
também, o “mais além”. A ciência associou-se ao capitalismo e à difu-
são da psicanálise no mundo. Assim, passa a oferecer como resposta à
divisão do sujeito e à sua eterna busca da felicidade, uma proliferação
de objetos que não respondem a pergunta sobre a causa. O discurso ana-
lítico, contudo, inaugura outra relação do sujeito com a causa. O sujeito
é sempre dividido, evanescente, a estrutura não cede, e é o que orienta
o trabalho do analista. A relação do sujeito consigo mesmo e com o
seu entorno não é uma relação de harmonia; é, antes, uma relação de
destruição. O sujeito freudiano, marcado pela Spaltung, é antinômico à
boa ordem, à harmonia e à felicidade, pois o objeto da pulsão é parcial
e sempre perdido. Com a entrada em cena do objeto pequeno a, Lacan
retifica o objeto perdido freudiano e mostra que a inexistência do objeto
é a própria condição de satisfação da pulsão. A pulsão se satisfaz com o
vazio, no traçado que molda a hiância, após ter dado voltas e voltas pelo
desfiladeiro da demanda do Outro. Há um movimento, tendência do
aparelho, que impele no sentido de uma busca de satisfação, que jamais
encontrará um objeto que a sacie. O sujeito reencontra-se, assim, com
o cerne da sua constituição subjetiva como falta. E é nesse ponto que
deverá se reconhecer. Está colocada em pauta, aí, a análise do analista
e o desejo do analista.
Essas são questões que articulam a psicanálise ao campo da ética
e exige lidar com o sujeito da falta-a-ser. Para manter a ética que nosso
saber e nossa prática exigem, esse campo complexo impõe — àquele
que pretende se ocupar desse ofício — uma formação específica, sin-
gular e única, sustentada a partir de um tripé constituído por ensino
teórico, supervisão e análise pessoal.
A psicanálise faz operar o inconsciente mediante a palavra. Ela
surge e se desenvolve na escuta e a partir da escuta singular à qual se

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A questão da causa e a não regulamentação 55

propõe. A livre associação, regra fundamental da análise, resulta do tra-


balho do inconsciente. Submeter-se a ela não é uma ordem técnica, mas
um procedimento lógico decorrente da lei do inconsciente.
No seu texto “A questão da análise leiga” Freud nota a “juvenil
insuficiência” (Tardits, 2003, p. 20) concernente à transmissão da psi-
canálise nos moldes do ensino nas universidades. A transmissão em
psicanálise ultrapassa uma simples questão de ensino e está para além
do ensino teórico, sendo importante a maneira pela qual ela se articu-
la constantemente com sua prática clínica e com a análise pessoal do
psicanalista.
O analista se forma fazendo da própria subjetividade objeto de
investigação. A psicanálise não é uma disciplina ou um conjunto de pro-
cedimentos que mantém uma relação de exterioridade com o sujeito que
a pratica. A escuta do inconsciente deve ser pensada inicialmente em si
mesma, e há um trabalho para saber o que compromete a mobilidade
psíquica do sujeito. O analista se faz à medida que se reconhece efeito
de seus desejos, de suas fantasias e de seus processos inconscientes. Por
isso, diz Freud (1926), “(o) fator individual sempre desempenhará um
papel mais significativo na psicanálise do que alhures” (p. 250).
Freud não cede: não denega o real que insiste e divide o sujeito.
O acontecimento psíquico busca uma análise que dê prioridade à cons-
trução de um saber sobre a causa. Aquela digna desse nome institui
uma análise de transferência que constitui o sintoma analítico... “Ser
formado para lidar com essa dificuldade implica que o próprio analista
tenha experimentado, em sua análise, essa neurose de transferência... e
a dificuldade de se livrar dela” (Tardits, 2003, p. 20).
Esse manejo não é um saber teórico desengajado da sua prática. Daí
o valor e a especificidade do tripé: a formação complementada por uma
prática clínica supervisionada e o conhecimento teórico fazem valer a
ideia de que o psicanalista se forma a partir de sua própria experiência

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56 Gêisa de Carvalho S. Ferreira

de analisando. As formações do inconsciente são tentativas de solução


construídas pelo aparelho psíquico, aparelho de linguagem, para que
cada sujeito dê conta do real que o acossa. O saber é leigo, Freud o diz,
pois se trata aqui do real da castração que insiste. Isso não é fácil de
ser sustentado, uma vez que, como Lacan afirma, há um real em jogo
na própria formação do psicanalista que provoca seu desconhecimento.
Assim, uma formação de analista não se ajusta aos modelos de
profissionalização garantidos por certificação ou diploma, expedidos
por instituições de ensino laicas ou não, ou, ainda, por órgãos regula-
dores públicos. Tornamo-nos analistas a partir da própria experiência e
do desejo daí advindo. É impossível que um sujeito obtenha a resposta
sobre a causa de seu desejo a partir de um curso ou de qualquer espécie
de titulação. A questão da não regulamentação toca, portanto, a expe-
riência analítica, uma experiência de saber com o inconsciente, e esse
saber não avança sem o atravessamento de resistências.
O que Freud (1926) afirma em “A questão da análise leiga”, em
relação ao tempo e ao espaço, se modifica. “Essa questão tem suas li-
mitações tanto no tempo como no espaço. No tempo porque até agora
ninguém se preocupou com quem pratica a análise... A questão está
limitada ao espaço porque não surge em todos os países com igual sig-
nificado” (p. 209).
Estamos em uma nova ordem, uma nova era, um novo tempo mar-
cados por um capitalismo que avança. Freud experimentou o capitalis-
mo em sua viagem aos Estados Unidos em 1909 e denunciou fatores
sociais e econômicos incompatíveis com a prática rigorosa da psicaná-
lise: o ideal de conforto e o desejo imediato de resultados. Mais de cem
anos depois estamos diante de uma disputa acirrada de poder e por mer-
cado em que a questão é a quem compete formar o psicanalista e de que
maneira. Neste contexto social, como pensar os ensinamentos de Freud
em relação à não regulamentação da psicanálise e por que sustentá-los?

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A questão da causa e a não regulamentação 57

Sempre que a questão da não regulamentação surge, exige repen-


sar a práxis e a formação analítica. Isso, em vez de fragilizar a psi-
canálise, revela sua potência e permite diferentes circulações por esse
campo. É na radicalidade das vicissitudes desse processo que se poderá
abrir um campo de investigação criativo e profundo no qual será relan-
çada (sempre) a questão do inconsciente e, também, será localizada a
função específica da causa.
Justamente essas são as condições éticas que impedem que a psi-
canálise seja regulamentada por uma lei externa a si mesma. Rigidez e
rigor não definem lógicas equivalentes. A formação do psicanalista é
singular, única e de rigor lógico. Regras em nada garantem a profun-
didade do processo e, ao contrário, cria a ilusão de que se sabe como
advém o analista. O tornar-se analista tem sempre caráter inédito e
imprevisível.

Referências

Baudelaire, C. Meu coração desnudado. Trad. Aurélio Buarque de Holanda. Rio de


Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
Freud, S. (1926). A questão da análise leiga. In: Obras completas. Rio de Janeiro:
Imago, 1976. Vol. XX, p. 205-293.
Lacan, J. (1966-67). O seminário. Livro 14. A lógica do fantasma. Lição de 11 de ja-
neiro. Inédito.
Tardits, A. O passo de Freud em direção ao saber profano. Trad. Analúcia Teixeira
Ribeiro. Revista da Escola da Letra Freudiana, Rio de Janeiro, ano XXII, n. 32, p.
19-26, 2003.
Vidal, E. A análise leiga, uma questão crucial para a psicanálise. Revista da Escola da
Letra Freudiana, Rio de Janeiro, ano XXII, n. 32, p. 27-41, 2003.

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M ovimento Articulação:
pensando a ética complexa

Gustavo Soares1
Valéria Quadros2
Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre – CEPdePA

O Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras

O Movimento Articulação organizou-se na virada deste século e


hoje está consolidado. Neste artigo refletimos sobre as razões que le-
varam à sua fundação — fato muito mais complexo do que a simples
criação de um movimento político em defesa da psicanálise —, sobre o
projeto ético que nos embasa, e por que a regulamentação da psicanáli-
se é deletéria para sua prática.

1. Psiquiatra e Psicanalista. Membro Associado da Sociedade Psicanalítica de Porto


Alegre (SPPA). Membro Pleno do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre
(SPPA). Membro Titular da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e Associação
de Psiquiatria do RS (APRS).
2. Psicanalista. Membro Pleno do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre
(CEPdePA).

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60 Gustavo Soares e Valéria Quadros

Psicanálise no Brasil: surgimento, formação, regulamentação

A psicanálise passa a ser mencionada no Brasil ainda no sécu-


lo XIX — praticamente simultânea ao seu nascimento — através de
Juliano Moreira, psiquiatra baiano, em suas aulas na Faculdade de
Medicina de Salvador e, mais tarde, no Hospital de Alienados, no Rio
de Janeiro. Nesse período o interesse dos profissionais era a teoria.
Com Durval Marcondes, médico paulista, se inicia a prática clínica
da psicanálise. Em 1927 escreve uma carta a Freud comunicando a
fundação, junto com Franco da Rocha, da Sociedade Brasileira de
Psicanálise, a primeira da América Latina. Desde esse início a psica-
nálise enquanto formação e prática esteve sempre acompanhada por
uma disputa pela sua “oficialidade” e pelo seu domínio através de
sociedades/grupos que a introduziram em nosso país.
Nos anos 1950-1960, dois fatos importantes ilustram essa bus-
ca por hegemonia, seja entre grupos ou sociedades ou mesmo entre
categorias profissionais, especialmente os médicos: o primeiro foi o
reconhecimento oficial das Sociedades Psicanalíticas no Brasil pela
IPA — uma espécie de “início oficial da formação e da prática da
psicanálise”. O segundo, concomitante a isso, o único documento
normativo sobre a prática e formação psicanalítica chamado “Aviso
Ministerial n. 257” do Ministério da Saúde que poderia ser inter-
pretado como uma tentativa de regulamentar a psicanálise. A his-
tória das tentativas de regulamentação da psicanálise no Brasil está
amplamente citada e comentada no primeiro livro do Movimento
Articulação. Em especial por Edson Soares Lannes, a quem remete-
mos o leitor (Lannes, 2009).

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Movimento Articulação: pensando a ética complexa 61

O chamado

Era o ano 2000 quando recebemos um e-mail quase imperativo


para inscrição, já com anuidade definida, na Sociedade ou Colégio
de Psicanalistas do Brasil. Verificamos que nossos nomes constavam
numa lista publicada na internet, assim como os de vários colegas. O
“chamado” estava vinculado à “Sociedade Psicanalítica Ortodoxa do
Brasil” (SPOB), um grupo de pessoas estranhas ao nosso campo inter-
no da psicanálise, e que ofereciam formação psicanalítica. A forma-
ção proposta nessa época tinha duração de duas semanas a três meses
e os cursos eram nos finais de semana, inclusive expondo faixas de
propaganda numa importante avenida de Porto Alegre.
Esse “chamado” ecoou entre as instituições psicanalíticas brasi-
leiras de forma ampla, resultando numa ação de resistência. A partir
daí nascia o embrião do Movimento. Portanto, ao longo de 2000 e iní-
cio de 2001, foi sendo gestado o Movimento, um grupo de entidades
psicanalíticas brasileiras que se erguia para defender a não regula-
mentação da psicanálise.
O que havia mudado? Através da literatura descrita se observa
que as disputas ocorriam entre as instituições ligadas à IPA e as que
haviam sido criadas a partir da década de 1960 — não só no Brasil —
em especial decorrentes do movimento lacaniano, portanto, restrin-
giam-se ao “campo interno”. O que se identificava como fato novo é
que naquele momento o “inimigo” vinha do campo externo, estranho
— e atacava todos os princípios que havíamos assimilado a partir
de Freud. Era sem dúvida um ataque mortífero à psicanálise, do ser
psicanalista e como ele se forma. O que aconteceu foi um fenômeno
parecido quando um país é atacado por outro, o que obriga todas as
regiões do Estado, por mais diferentes que sejam, a se unirem e tomar
a sua defesa em um objetivo comum.

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62 Gustavo Soares e Valéria Quadros

Outras Articulações

Gostaríamos de compartilhar a hipótese de que a história do


“Articulação” se entrelaça a outro Movimento, os Estados Gerais da
Psicanálise, que no mesmo ano 2000 realizava seu encontro inaugural
em Paris. Em pesquisa na internet, localizamos alguns elementos que
nos favoreceu essa associação.
Em uma página dos Estados Gerais (Documento online) encon-
tra-se o pedido para que seja divulgado até a data de 30 de abril [2000],
o texto ali adicionado e que se constitui no esboço do que viria a ser
o primeiro Manifesto do Movimento Articulação, aprovado em reu-
nião de mesma data. O fato de essa convocação ter-se utilizado de
página dos Estados Gerais nos leva a pensar que naquela ocasião se
articulavam movimentos dentro da Psicanálise, no Brasil e no exterior,
pautados por uma nova posição ética. Pela primeira vez as instituições
brasileiras que se reconheciam, a si e entre si, como psicanalíticas,
reuniam-se em torno de um objetivo comum, qual seja o de defender
a Psicanálise.
René Major, articulador dos Estados Gerais, em entrevista por
ocasião da segunda convocação, em 2003, com sede no Rio de Janeiro,
conta os motivos da criação desse fórum:
O principal motivo veio do esquecimento, do recalcamento e mesmo da
ignorância intrínseca da política no movimento psicanalítico. A história
da psicanálise no Brasil teve um papel desencadeador dessa tomada de
consciência. (Major, 2003. Documento online)
E acrescenta que a decisão foi em 1997, em Paris, quando do lança-
mento do livro Não conte a ninguém, da psicanalista Helena Besserman
Vianna, o qual ele mesmo havia prefaciado. O livro narra os nefastos
acontecimentos ocorridos na Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro,
durante o período de ditadura militar no Brasil, tendo a autora como

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Movimento Articulação: pensando a ética complexa 63

protagonista dessa denúncia. Para que fosse possível o esclarecimento


das circunstâncias — um dos membros da instituição, Amilcar Lobo,
colaborava com a tortura de presos políticos — foi necessário aguardar
a determinação democrática de Horacio Etchegoyen, primeiro latino-
-americano na presidência da IPA (1993-1997). Continua René Major:
“Os sintomas que se manifestaram no Rio não eram apenas locais ou
regionais, mas internacionais, pois diziam respeito a todo o movimento
desde a Segunda Guerra” (Major, 2003. Documento online).
Entendemos que a questão da ética no bojo das instituições psica-
nalíticas é uma convocação permanente.
Em Relatório do encontro de Paris, Alberti testemunha a plurali-
dade de opiniões e participações de colegas, o que primeiramente lhe
pareceu uma Babel, impressão que foi se modificando. Suas palavras:
Os Estados Gerais da Psicanálise se instituem assim num lugar em que,
independente dessas escolhas particulares, as barreiras entre escolas e
instituições de formação deixam de se exercer como um impedimento à
criação de uma comunidade psicanalítica internacional, para terem um
papel definitivo no fortalecimento da própria psicanálise, e sua presen-
ça no século XXI. (Alberti, 2000. Documento online)
Poderíamos transpor essas palavras para o Movimento Articulação
— guardadas as diferenças — pois esse caracterizou-se, desde sua fun-
dação, pela convivência entre colegas com singulares modelos de for-
mação psicanalítica. Tal fato assume considerável significado quando
lembramos que eram justamente as divergências quanto a critérios de
formação que criava profundo abismo de reconhecimento.
Será que foi apenas frente a um “inimigo comum” que se deu o
inédito acontecimento de aproximação e compartilhamento? Talvez já
viesse se processando algo novo no campo analítico internacional, que
desembocaria em Movimentos como os Estados Gerais e o Articulação.
Esse algo, pensamos, se enlaça com a ética.

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64 Gustavo Soares e Valéria Quadros

Nas palavras de Alberti (2009) surge explicitamente o que seria a


definição do Movimento:
(...) um movimento criado em 2000, que visa defender a psicanálise tal
como Sigmund Freud a conceituou, diante dos campos de poder — tanto
econômico, quanto político — estabelecidos no final do século XX, a
fim de garantir um espaço no qual ela possa seguir com seu crescimento
e consolidação de acordo com sua ética genuína, sua relação particular
com a ciência e sua eficácia que nem sempre se reduz à terapêutica. (p.
7; grifos nossos)

Projeto ético-político do /Movimento/Grupo

O Movimento Articulação está atualmente composto por 18 ins-


tituições que representam suas associações ou sociedades, o que lhe
confere uma abrangência muito maior. Tendo em vista as diferenças já
mencionadas, o que nos sustenta enquanto grupo de trabalho é o fato
de adotarmos uma tolerância à diversidade e à diferença. Entendemos
diferença como a define Derrida (2004, apud Sigal, 2017):
(...) não é uma distinção, uma essência ou uma oposição, mas um movi-
mento de espaçamento, um “devir-espaço” do tempo, um “devir-tempo”
de espaço, é uma referência à alteridade, a uma heterogeneidade que não
é primordialmente oposicional. (p. 40; grifo nosso)
As diferenças observadas nas instituições que o compõem não
são necessariamente oposicionais, ou, pelo menos, há uma busca pelo
respeito a essa diversidade. São notórias as diferenças de compreen-
são de cada colega acerca da psicanálise, sua prática, seus pressupos-
tos teóricos, e os aspectos da formação analítica, ainda que o chamado
tripé da formação seja um consenso. Enquanto grupo, ele se constitui
a cada encontro, realizado em média duas vezes por ano; é proposta

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Movimento Articulação: pensando a ética complexa 65

uma pauta e, em caso de debates, cada representante tem direito a um


voto. Sendo assim, é eminentemente democrático, e cada reunião é
organizada e presidida por uma instituição/representação em comum
acordo.
Como representante do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto
Alegre, um dos autores do presente capítulo pôde recentemente viven-
ciar a atuação do Movimento, quando foi apresentado outro Projeto de
Lei no Senado, de n. 174/2017. Visava novamente a regulamentação do
exercício de algumas práticas — dentre elas as “terapias psicanalíticas”
— sem qualquer relação com o que a comunidade profissional, de for-
mação científica, julga ser de garantia para essa mesma prática.
Em poucos dias, foram feitas várias “articulações” entre repre-
sentantes institucionais do Movimento, contatos com representantes de
conselhos profissionais, entidades de classe, políticos, para barrar o PL.
Ou seja, em vigília, a resistência havia entrado em ação contra o ini-
migo estrangeiro.
Reconhecendo a grande diversidade das instituições que partici-
pam, precisamos aceitar que o princípio da “não hegemonia” — seme-
lhante a domínio, poder — esteja sempre incluído nessa luta, a partir
de dentro, ou seja, adotado por todos os componentes do Movimento.

Ética complexa versus regulamentação da psicanálise

A Psicanálise, desde Freud, é um saber e uma prática subversivos,


em que a questão central é a busca de verdade e o sujeito que a percorre
o faz numa direção única e singular. Esse deve ser o projeto ético-polí-
tico que nos guia no Movimento.
O tema da Ética e da Moral está sempre presente na Psicanálise, na
sua prática e nas instituições. Quando se aborda a questão da formação

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66 Gustavo Soares e Valéria Quadros

analítica e a possibilidade de regulamentação da psicanálise, torna-se


ainda mais relevante.
Na literatura, seja filosófica ou psicanalítica, não é fácil estabele-
cer uma diferença mais nítida entre ética e moral, mas é possível co-
locar alguns parâmetros e discutir algumas diferenças. Propomos que
a ética está implicada com a função psicanalítica da personalidade
(Bion, 1962b), e a moral com um sistema de normas ou regras. A ética
está sempre por construir, aceita a pluralidade, enquanto a moral tende-
ria ao fechamento e, portanto, à intolerância.
A ética, tal como aqui apresentamos, como função psicanalítica da
personalidade, relaciona-se ao interior do ser humano, e sendo a norte-
adora de suas ações provocará consequências diretas no outro. Estando
ligada ao interior do homem, é necessário que este perceba suas emo-
ções, a partir do seu aparelho de pensar (Bion, 1962a), e as defina ante
o social, pautando sua conduta. Tal qual a função psicanalítica da perso-
nalidade, a ética está sujeita às incertezas e à complexidade, é tolerante
com a diferença e torna o indivíduo um sujeito autônomo e socialmente
responsável pelos seus atos.
A construção ética é constante ao longo da trajetória de cada indi-
víduo, assim como permeia a própria história da humanidade. Nos dias
atuais, por exemplo, os avanços tecnológicos — gestação in vitro, cé-
lulas tronco, entre outros — obrigam a que esse sujeito pense e decida
sobre sua posição frente às mudanças. Portanto a ética não se define a
priori.
A concepção de ética a partir desse vértice está relacionada ao
desenvolvimento do que é denominado “objeto complexo” (Chuster,
Soares, Trachtenberg, 2014). O objeto complexo surge a partir da meta-
de do século XX, criando o pensar complexo e tendo grande influência
na teoria e na prática psicanalítica atuais. É oriundo de contribuições
de vários pensadores: Morin, com teoria da complexidade; Heisenberg

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Movimento Articulação: pensando a ética complexa 67

com o princípio da incerteza na Física Quântica; Varela e Maturana com


enação e autopoiese, entre outros conceitos nas ciências afins.
Morin (2005) introduz a ideia de uma ética complexa/complexida-
de da ética que nos ajuda a pensar na pergunta que seguidamente muitos
se fazem: por que não regulamentar a psicanálise?
Assim como na psicanálise, mas trabalhando com outros referen-
ciais, Morin diz que a ética se manifesta em nós de maneira imperativa
como exigência moral, e esse imperativo origina-se numa fonte inte-
rior do indivíduo, afirmando que indivíduo-sociedade-espécie é uma
tríade inseparável. Os paradigmas propostos pela complexidade e pelo
princípio da incerteza influem na concepção de ética aqui apresentada.
Sendo a ética da ordem da interioridade do humano, sua manifestação
se fará visível através das ações do ser humano. Assim Morin (2005)
valoriza o ato, a ação. Diz ele: “Mesmo supondo-se a consciência do
bem e do dever, a ética encontra dificuldades sem solução na simples
consciência do ‘fazer bem’, do ‘agir pelo bem’, do ‘cumprir seu dever’”
(p. 40). Nesse momento, introduz a ideia da ecologia da ação segundo
a qual a complexidade e a incerteza tornam problemático definir uma
ação ética, pois a ação muitas vezes escapa à vontade de seu autor. Aqui
novamente podemos fazer um paralelo com a psicanálise entendendo
que a complexidade ética se relaciona com o inconsciente, função psi-
canalítica da personalidade, bem como com o contexto sociocultural no
qual o indivíduo está inserido. Dessa forma, a complexidade ética surge
no plano da ação.
Ao introduzir a proposição de ética complexa, a moral passa a ser
equacionada a uma ética simples, que pode ser relacionada ao modelo
de pensar vigente até a metade do século XX, do positivismo. A noção
de ética complexa e a tentativa de estabelecer uma diferença entre ética
e moral, permite que uma não se defina sem a outra, em uma relação
dialética, ou seja, onde uma não está, está a outra. Essa é a base do

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68 Gustavo Soares e Valéria Quadros

pensar complexo, regido pelo princípio da incerteza e que trará influ-


ências importantes no desenvolvimento da teoria e prática analíticas.
Seguindo Morin (2005):
A complexidade ética deve tornar-se lei universal, comportando proble-
mática, incerteza, antagonismos internos, pluralidades. Assumir a incer-
teza do destino humano conduz a assumir a incerteza ética. Assumir a
incerteza ética conduz a assumir a incerteza do destino humano. (p. 58)
No “campo externo do inimigo”, como já se o nomeou, encon-
tramos elementos que escancaram a confusão existente entre “moral”,
“ética”, “manual de prescrições”. Na internet estão acessíveis os sites
que oferecem formação analítica em breves cursos, utilizando palavras
próprias à linguagem da Psicanálise, como por exemplo, “curso de ana-
lista didata”, ou “psicanalista com formação da tríade psicanalítica”.
Buscam mimetizar o mesmo padrão visual dos endereços eletrônicos de
instituições psicanalíticas, fazendo uso de imagens dos pioneiros, geral-
mente de S. Freud. A cópia, a colagem, a impostura. Não faltam ali os
Códigos de Ética: “Escrevemos o presente Código de Ética objetivando
dar um referencial para todos aqueles que fizeram formação psicanalíti-
ca e/ou em psicoterapias diversas, e que querem ter uma conduta moral
para desenvolver trabalhos em seu campo psicoterapêutico”, tendo o
autor dedicado sua obra a “Deus, arquiteto do universo” (Documento
online; grifo nosso). Na moral religiosa a virtude é agir em conformida-
de com a vontade de Deus.
Regulamentar a prática psicanalítica e a psicanálise seria estabele-
cer um conjunto de normas e regras, uma ética simples que aboliria as
transformações necessárias pelas quais passa o analista em sua forma-
ção, tendo como pilar sua própria análise pessoal, locus do desenvolvi-
mento da função psicanalítica da personalidade.
Na medida em que grupos alheios ao campo interno da psica-
nálise tentam regulamentar sua prática e formação, fazendo uso de

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Movimento Articulação: pensando a ética complexa 69

pressupostos analíticos e os oferecendo tais como análise pessoal, semi-


nários, supervisão “como se fosse” o tripé proposto por Freud e “como
se fosse” também uma forma de tornar mais acessível a psicanálise,
precisamos dar atenção ao desejo de domínio, de possuir a psicanálise.

Ética e psicanálise versus regulamentação

Freud descobriu e revelou o Inconsciente, os desejos inconscien-


tes, tomando os sonhos como a via régia para conhecê-los. E colo-
cou o mito de Édipo como central em sua compreensão do humano.
Descobriu a transferência e, assim, criou uma prática analítica singular
diferente de qualquer outra práxis psicológica, inaugurando uma ética
psicanalítica própria, constituída a partir do Inconsciente.
Como ficaríamos se o Estado regulasse a psicanálise e ditasse o
que é ou o que não é psicanálise? Quem responderia ou transmitira
a psicanálise? Quais critérios seriam estabelecidos? Quais profissio-
nais poderiam reivindicar serem psicanalistas? Acrescentamos a essas
a questão da laicidade do Estado, uma garantia democrática. No mo-
mento, os grupos que lideram a tentativa de regulamentação pretendem
vincular uma prática profissional a crenças religiosas. Ainda está por
ser decifrado quais suas motivações. Podemos supor o interesse na cha-
mada “cura gay”, assim como no mercado religioso, com a “formação”
de milhares de analistas, como costumam noticiar.
O Movimento tem muitos desafios pela frente: que seus compo-
nentes permaneçam na posição de aceitar suas diferenças, que não se
petrifique em um grupo “dono da verdade,” passando a ser os guar-
diões da moral e dos bons costumes, da “verdadeira” psicanálise, mas
assumindo uma posição de ética complexa e sempre em vigília. Somos
contra a regulamentação da psicanálise pelo Estado por entender que

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70 Gustavo Soares e Valéria Quadros

esse não possui os elementos necessários para se responsabilizar pela


formação de analistas. E qualquer grupo ou instituição que fizer essa
mesma tentativa, encontrará o posicionamento do Articulação. Para não
sermos dogmáticos e deterministas, pensamos que esse é o estado das
coisas neste momento. O futuro resta-nos esperar.

Referências

Alberti, S. et al. Ofício do psicanalista: formação vs. regulamentação. São Paulo: Casa
do Psicólogo, 2009.
Alberti, S. Pelo fórum de debates: uma apresentação. In: Alberti, S. et al. Ofício do
psicanalista: formação vs. regulamentação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.
______. Pequeno relatório do colóquio Os Estados Gerais da Psicanálise. 2000.
Disponível em: <http://www.psicomundo.com/foros/egp/relatorio.htm>. Acesso em: 9
abr .2018.
Bion, W. (1962a). Uma teoria sobre o pensar. In: Estudos psicanalíticos revisados. Rio
de Janeiro: Imago, 1994.
______. (1962b). O aprender com a experiência. Rio de Janeiro: Zahar, 1966.
Chuster, A., Soares, G., Trachtenberg, R. W. R. Bion – a obra complexa. Porto Alegre:
Sulina, 2014.
Código de ética. Disponível em: <https://www.portaldopsicanalista.com.br/cdigo-de-
tica>. Acesso em: 8 jan. 2018.
Lannes, E. S. História das tentativas de regulamentação no Brasil. In: Alberti, S. et al.
Ofício do psicanalista: formação vs. regulamentação. São Paulo: Casa do Psicólogo,
2009.
Major, R Entrevista concedida a Leneide Duarte-Plon. Folha de S.Paulo. Caderno
Mais. Disponível em: <https://chasqueweb.ufrgs.br/~slomp/psicanalise/rene-major.
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Manifesto das entidades brasileiras de psicanálise. Estados Gerais da Psicanálise.
Disponível em: <http://egp.dreamhosters.com/textos/manifesto_entidades_brasilei-
ras_de_piscanalise.shtml>. Acesso em: 8 abr. 2018.

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Morin, E. O método 6 – Ética. Porto Alegre: Sulina, 2005.
Sigal, A. Psicanálise: gênero e transexualidades. Ainda a psicanálise no campo da se-
xuação! Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte, n. 47, p. 35-46, jul. 2017.

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T ornar-se analista

Hemerson Ari Mendes


Federação Brasileira de Psicanálise – Febrapsi1

Quais são as elaborações necessárias para tornar-se psicanalis-


ta? Freud precisou elaborar a transição entre a identidade médica e a
de psicanalista. Entre o modelo de psicologia existente e a psicologia
profunda por ele criada. A elaboração da resistência da ciência oficial/
acadêmica frente ao modelo psicanalítico. A elaboração frente às im-
plicações do papel social do analista na comunidade. As elaborações
frente às crenças religiosas do seu ambiente familiar. [...]
Nesse caminho, a angústia é atual, neurótica, de alarme, prototípi-
ca, o pânico, a morte, o (re)nascimento.
A publicação de A interpretação dos sonhos foi um dos momentos
fundantes da psicanálise. Ela é o resultado da autoanálise de Freud e
da elaboração do luto pela morte do pai, portanto, para tornar-se ana-
lista precisa-se ter um conhecimento maior sobre os conflitos, traumas

1. Federação Brasileira de Psicanálise – Febrapsi, que federa todas as instituições bra-


sileiras da Associação Psicanalítica Internacional (IPA).

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74 Hemerson Ari Mendes

pessoais, e um amplo e aprofundado conhecimento sobre o funciona-


mento do seu inconsciente. Poderíamos seguir falando das elaborações
do seu desenvolvimento psicossexual, elaboração da situação edípica
junto ao Instituto de Psicanálise, ambiente no qual se reproduzem mui-
tos dos conflitos edípicos.
Freud, em 1937, citou que analisar, educar e governar são funções
impossíveis de ser exercidas. Contudo, o modelo proposto para formar-
se analista é um tripé no qual podemos identificar essas três funções
no processo de formação. A formação analítica inclui a análise pesso-
al, ou seja, analisa-se com alguém, que exerce uma função impossível.
Participa-se de seminários e supervisiona-se, processo no qual não po-
demos eliminar o elemento educacional. Tudo isso “governado” pelos
Institutos das Sociedades.
Formalmente, tornar-se analista é um processo relativamente
simples. Geralmente, não se têm tantas provas e exigências como na
formação acadêmica; contudo, muitos candidatos demoram e poster-
gam o final da sua formação. É como se a liberdade existente no pro-
cesso implicasse um peso maior. Tornar-se analista não é um processo
externo, ligado ao cumprimento protocolar de etapas. Tornar-se analis-
ta implica um processo de elaboração interna, com implicações mais
pessoais do que institucionais (ou regulamentares).
A formação analítica é um processo individual e único de auto-ou-
torga. Precisa-se elaborar vários conflitos, alguns pessoais, mas outros
são comuns a todos, desde os primeiros analistas. Outro aspecto é que
as obrigações e o avanço formal nas etapas da formação não estão, ne-
cessariamente, em sincronia com o processo interno. Sendo assim, po-
de-se tornar-se analista, sem sentir-se analista.
Tornar-se analista é um processo de constituição, construção, des-
constituição, desconstrução, reconstrução, reconstituição, desconstitui-
ção, desconstrução, [...] do próprio self. Isso se dá no calor da batalha

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Tornar-se analista 75

da própria análise, no encontro analítico com os pacientes, nas supervi-


sões, nas discussões de casos, seminários, leituras, releituras, [...].
Desde os primórdios, a psicanálise relacionou-se com vários ra-
mos da cultura e da ciência. A medicina foi uma das primeiras; entre
idas e vindas, segue estreita até hoje. Mas isso não impediu Freud de,
em 1926, no trabalho “A questão da análise leiga”, fazer um comentário
que pode servir de alerta para aproximações de outras áreas:
[...] ainda sinto certas dúvidas quanto a se o presente cortejar da psicaná-
lise pelos médicos está baseado, do ponto de vista da teoria da libido, na
primeira ou na segunda subfase de Abraham – se desejam tomar posse
de seu objeto com a finalidade de destruí-lo ou de preservá-lo. (p. 287)
Psicanalistas devem permanecer atentos ao uso dos vários tipos de
aproximações de outras áreas da cultura, inclusive a religião.
Freud, 1900, citou José do Egito em A interpretação dos sonhos.
Poderíamos utilizar sua hi(e)stória para pensarmos como uma metáfora
do processo e suas intempéries de tornar-se psicanalista.
Antes de ser chamado para interpretar os sonhos do Faraó, ele so-
breviveu a um longo processo. Como ele, o psicanalista precisa sobre-
vier aos ataques dos demais, mesmo quando estes vêm dos irmãos das
neurociências, da psicologia cognitiva e comportamental […]. Também
dos ataques que surgem no cenário criado durante um processo de aná-
lise; nele, muitas vezes, o analista, além dos ataques de irmãos, precisa
sobreviver aos dirigidos ao pai, filho, irmão, amante, patrão […], todos
papéis que ele desempenha no cenário transferencial.
O trabalho é árduo, abstinente; quase escravo em culturas, muitas
vezes, diferentes das suas. Os psicanalistas não podem cair na cantada
fácil de prazeres com conotação incestuosa, mesmo que sofram retalia-
ções. Precisam estar preparados para dar notícias/interpretações boas
(libertadoras) e difíceis (sobre a morte). José foi lembrado não porque
fez boas previsões, e sim porque fez interpretações corretas.

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76 Hemerson Ari Mendes

Os psicanalistas precisam estar preparados para anunciar a fartura


(esperança/vida/criatividade), mas também a prolongada penúria (seca/
esterilidade). Precisam planejar e governar — mesmo que esta seja uma
missão impossível, segundo Freud. Precisam perdoar, sem serem pusi-
lânimes. Precisam acolher os perseguidores, porque água/comida não
se nega nem para inimigo e muito menos para irmãos.
Precisam prepará-los para que sejam pais dos pais, quando estes
precisarem. José fez e foi tudo isso. Foi um precursor dos interpretado-
res de sonhos, pretensiosos analistas, que mesmo sabendo das dificul-
dades, não desistem de exercer essa função impossível.
Ah, sim, também não devemos nos esquecer que Freud, em 1933,
enunciou: Não acho que nossas curas podem competir com as de
Lourdes.

Referências

Freud, S. (1900). A interpretação de sonhos. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1988. V. IV,
p. 11-322.
Freud, S. (1926). A questão da análise leiga. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1988. V. XX,
p, 211-284.
______. (1933). Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. In: Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 2. ed. Rio
de Janeiro: Imago, 1988. V. XXII, p. 15-226.
______. (1937). Análise terminável e interminável. In: Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1988.
V. XXIII, p. 247-290.

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L egislar a psicanálise?
Missão impossível...

Ligia Valdez Gomes1


Maria Helena Saleme2
Instituto Sedes Sapientiae

Se Deus esta morto, então, tudo é possível.


Fiódor Dostoiévski

Regularizar a psicanálise tem sido um tema atual e constante,


discutido tanto por pessoas que pretendem aprimorar a formação de
psicanalistas quanto pelos que pretendem apoderar-se da Psicanálise. dela
Independentemente das intenções, tentar regularizá-la é atacá-la em
seus pontos vitais. Assim, vários projetos políticos foram apresentados
nesse sentido.
Consequente a esses projetos surgiu o Movimento Articulação,
um grupo de resistência organizado por psicanalistas pertencentes

1. Psicanalista, professora e supervisora no curso Formação em Psicanálise do Instituto


Sedes Sapientiae.
2. Psicanalista, professora e supervisora no curso Formação em Psicanálise do Instituto
Sedes Sapientiae

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78 Ligia Valdes Gomez e Maria Helena Saleme

a entidades formadoras de psicanalistas de todo o Brasil. Nos reuni-


mos com frequência para fazer frente aos golpes que a psicanálise vem
recebendo.
Lutamos, sobretudo, para manter a posição ética do psicanalista. A
psicanálise tem sido ameaçada. Citando Joel Birman (2015): “Não
é a primeira vez que a Psicanálise se vê num momento crítico, ou seja,
ameaçada não tanto de ser dissolvida ou proibida, mas o que talvez seja
pior, de ser desnaturada” (p. 12).
Acrescentamos, perdendo as condições que a mantém vigorosa há
mais de cem anos do seu início.
De fato, não se trata do primeiro ataque e, sabemos, não será o
último, tanto no Brasil como no mundo.
O primeiro ataque importante ocorreu em 1926. Theodor Reik foi
denunciado por exercer a psicanálise sem ser médico. Freud respondeu
com o artigo “ A análise leiga” discordando dessa tentativa de subordi-
nar a Psicanálise à Medicina.
O segundo ocorreu em 1956, época do desenvolvimento da
Psicologia do Ego, que acabou por desencadear o retorno a Freud por
Lacan.
Nessas duas situações, as crises levaram a um crescimento expo-
nencial da Psicanálise.
O terceiro ataque à psicanálise foi na França em 2003. O deputado
Bernard Accuyer apresentou na Assembleia Nacional uma emenda para
garantir a formação dos psicoterapeutas, incluindo os psicanalistas no
grupo de psicólogos. A psicanálise subordinada à Psicologia perderia
as suas características. A lei foi promulgada em 2004 e ficou conhecida
como o Artigo 52.
Vários grupos responderam a essa lei e cederam a “sedução do
mercado da psicoterapia”. A Sociedade Psicanalítica de Paris tornou-se
o órgão formador de psicoterapeutas analíticos que, depois, receberam

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Legislar a psicanálise? Missão impossível... 79

esse título do estado. O grupo lacaniano, Associação de Psicanálise


Jacques Lacan, foi uma das instituições que se recusou a aceitar essa
lei.
Joel Birman (2015) considera a Lei de Accoyer sinal emergente
de um momento crítico da psicanálise e aponta para a necessidade de
constantes reflexões éticas na psicanálise.
Ataques à psicanálise têm ocorrido também em outros importan-
tes centros do mundo como Alemanha, Holanda, Itália e Inglaterra.
Aqui no Brasil tivemos a intervenção, como foi dito, de um grupo
religioso com o intuito de legislar a psicanálise, ditando como deveria
ser a formação do analista e a sua prática clínica, compreendida por
eles como profissão que não exige, para ser exercida, nível univer-
sitário e tampouco uma especialização séria. Esse projeto quase foi
aprovado, mas conseguiu ser barrado por nossa intervenção junto a
outros políticos.
No entanto, eles continuam funcionando, formando cerca de
2000 psicanalistas por ano. Continuam divulgando afirmações que não
constituem a psicanálise: o reconhecimento de seu curso pelo MEC, a
entrega de um certificado de psicanalista, carteirinhas de psicanalis-
ta, autorizando os candidatos se intitularem psicanalistas, mestres e
doutores.
Dito grupo criou vários centros de “formação de psicanalistas”,
apossando-se do conceito de tripé na formação. Os vértices, teórico,
clínico e da análise pessoal foram desvirtuados de acordo com a com-
preensão que eles têm de uma pretensa psicanálise. Assim, a análise
pessoal consta de cinquenta sessões realizadas na internet. Em geral,
a teoria ministrada em oito meses de estudos é compreendida desde a
perspectiva religiosa, assim como a supervisão clínica que consta de
poucas horas realizadas virtualmente. A mágica passa a fazer parte da
formação e da prática clínica.

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80 Ligia Valdes Gomez e Maria Helena Saleme

Entendemos, porém, que é o ato analítico que cria um psicanalista,


enquanto a sugestão deles é a de que seja um ato jurídico, legislado por
normas incompatíveis com a psicanálise.
Os outros autores do Manifesto pela Psicanálise (2015) também
destacam a relação entre o neoliberalismo e as novas modalidades de
gestão no social, compreendendo que a regulamentação é consequência
de um novo modo de funcionamento do social. A psicanálise cooptada
por forças políticas e econômicas, traz a urgência de uma reflexão sobre
a ética, como problemática fundamental na atualidade, de como a psi-
canálise está articulada com a política.
Márcia Tiburi ao longo do livro Filosofia prática (2016) acentua
a relação entre a ética e a política no mundo pós moderno. Na filoso-
fia prática o enfoque primordial é a respeito da compreensão ética que
se pode ter a partir das questões formuladas entre indivíduos nas suas
ações. Atualmente a ética se debruça sobre problemas que procuram
determinar juridicamente as práticas entre os indivíduos.
Para aprofundarmos a reflexão sobre ética e política, cabe a dis-
tinção entre moral e ética, algumas vezes confundidas. A realidade nor-
mativa constitui a moral, o que implica uma realidade social vista como
realidade normativa. A moral é tida como um conjunto de costumes,
normas, como aquilo que se impõe a nós. Já a ética diz respeito ao
questionamento das práticas entre sujeitos. Coloca a necessidade de re-
fletirmos sobre os fundamentos de nossas ações. Qualquer experiência
ética supõe a alteridade; impossível pensar a ética em abstrato, fora de
seu contexto, e sim, na relação de um sujeito com outro e na esteira da
moral.
Judith Butler (2017) afirma que a quebra de determinadas cer-
tezas é uma crise normativa. Esta aparece sempre quando os opostos
não podem mais dialogar; quando se estabelece uma política de guerra,
um estado discursivo de combate, onde um não consegue reconhecer o

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Legislar a psicanálise? Missão impossível... 81

outro. Mas no campo da ética, sempre que possível, deve haver a busca
por um reconhecimento das práticas do sujeito e do outro, firmando
posições buscando a pluralidade.
No entanto, sabemos que aquilo que o sujeito pode falar de si mes-
mo é sempre aquém do que ele é. O sujeito constituído por um conjunto
de normas, hábitos, regras, não consegue reconhecer como tais normas
se constituíram e quais são os seus efeitos; assim estas permanecem
como elementos desconhecidos, mas que influenciam na construção das
subjetividades.
Lacan coloca a ética na experiência do reconhecimento ao re-
fletir sobre a relação dialética entre senhor/escravo, em Hegel. En-
contramos nos textos lacanianos sobre o imaginário, como a neurose
representa uma vivência traumática cujo reconhecimento não pode
acontecer. A repetição, ao mostrar o que não pôde ser elaborado,
aponta nas entrelinhas para a possibilidade do desconhecido motiva-
do pelo trauma, poder ser perlaborado, e então tornar-se reconhecido
no ato analítico.
São os gestos, atos e palavras do sujeito na experiência psicanalítica
que trazem a possibilidade de ampliar esse saber, não como uma experi-
ência cognitiva, e sim ética; marcados pelo envolvimento do sujeito nes-
sa experiência, conforme palavras de Walter Benjamim na sua afirmativa
de que a experiência leva a quebra de um tempo passado e futuro, e im-
plica o sujeito no seu envolvimento no presente, num aqui e agora. É só a
experiência da transferência, no campo do ato, que pode trazer os rastros
do que foi o assujeitamento do sujeito, como na relação senhor/escravo.
É a possibilidade de reconhecer um pedaço perdido de sua história. Mas
lembrando que sempre existirá no sujeito uma certa opacidade, como
bem nos demonstra Judith Butler (2017), quando critica que haja uma
transparência absoluta no sujeito em reconstruir sua própria história. Não
é possível, a partir de narrativas sobre si, reconstruir a si mesmo. O que

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a psicanálise propõe é uma desconstrução desses modelos alienados no


sujeito, o que implica uma reinvenção de si mesmo.
Na pré-modernidade a relação entre indivíduos era legislada por
Deus e pelo Monarca. A relação era predominantemente vertical e
qualquer transgressão era punida pelo detentor da lei — o Soberano.
Com a morte de Deus e do Rei, a revolução francesa e a crescen-
te urbanização e industrialização, as crises de normas, de regras
proliferaram.
É exatamente essa falta de limites que torna possível a transgres-
são se dar de outra forma. Para Foucault, cria-se o vazio da lei da pré-
-modernidade, que passa a ser ocupado por um sistema de normas que
traz em seu bojo uma falsa permissividade.
A relação entre indivíduos passa a ter um caráter horizontal, com a
possibilidade de submissão entre um sujeito e um outro. A precariedade
do ser humano o leva a depender do outro e sujeitar-se. É o que Freud
chama de desamparo, surgido com a modernidade e que é constituinte
do sujeito.
Surge, portanto, o que Etienne de La Boétie (1552) chama de
Servidão Voluntária. Para ele, o sujeito se submete voluntariamente ao
poderoso, rejeita sua liberdade, e isto acontece caso o sujeito seja for-
çado ou iludido. Focalizando somente um dos pontos levantados por
Boétie, afirmo que o sujeito é iludido, acreditando que, sendo subser-
viente terá proteção, uma medida um tanto covarde de ressuscitar Deus
e não se encontrar com sua condição humana.
Para Lacan a psicanálise é ética em seu fundamento. Podemos
então dizer que a psicanálise é tida como uma ética com um aspecto
político, porque implica a reflexão do sujeito sobre suas ações, confron-
tando-as com o estado e suas normas. A psicanálise, portanto, é uma
ferramenta poderosa e libertária, agindo diametralmente em direção
oposta à tirania. A relação analítica liberta.

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Legislar a psicanálise? Missão impossível... 83

Chegamos assim na impossibilidade total e absoluta de os pode-


rosos política ou religiosamente se apoderarem de um dos bastiões de
alforria do sujeito.
Há um poder na psicanálise que não é o de dominação que assujei-
ta o outro, é um poder que advém do contrapoder, porque questiona o
instituído e possibilita a construção da singularidade, da pluralidade de
posições e do diálogo entre os sujeitos.
Foucault mostrou com clareza que a religião pode ser usada como
um instrumento da tirania, que ilude com a proteção divina, que acalma
com a esperança de que a justiça virá em outras vidas e que permite
privilégios a alguns e domestica os crentes.
Repetindo, a ética psicanalítica nos conduz ao polo oposto da tira-
nia, nos leva a participar do processo de aceitação do desamparo.
Talvez pela psicanálise exercer um contrapoder, trabalhar enfren-
tando a perda das singularidades, seja alvo de tantos ataques. Estamos
presenciando, neste momento, mais uma dessas ferozes ofensivas.

Referências

Birman, J. Cuidado e saber sobre Foucault e a psicanálise. Rio de Janeiro: Relume-


Dumará, 2000.
Birman, J. et al. O manifesto pela psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
Butler, J. Relatar-se a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica,
2017.
Dunker, C. I. Qual a visão da psicanálise sobre Deus. Disponível em: <https://www.
youtube.com/watch?v=X3YVyCrG3X8>. Acesso em: 18 fev. 2018.
Dostoiévski, F. Os irmãos Karamázov. São Paulo: Ed. 34, 2012.
Duvidovich, E. Diálogos sobre formação e transmissão em psicanálise. São Paulo:
Zagodoni, 2013.
França, M. I. (Org.). Ética, psicanálise e sua transmissão. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.

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84 Ligia Valdes Gomez e Maria Helena Saleme

Freud, S. O futuro de uma ilusão. In: Obras Completas. São Paulo: Companhia das
Letras, 2014. V. 17.
Lacan, J. (1953-54). O seminário. Livro 1. Os escritos técnicos de Freud. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1983.
______. (1954-55). O seminário. Livro 2. O Eu na teoria de Freud e na técnica da
psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
Tiburi, M. Filosofia prática: ética, vida cotidiana, vida virtual. Rio de Janeiro: Record,
2016.

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O que o desejo do analista articula
na sustentação política de não regulamentação
da psicanálise como profissão?

Mariana Mayerhoffer1
Laço Analítico Escola de Psicanálise

Qual é a ex-tensão do desejo do analista na pólis?

O desejo do analista é o desejo que advém de uma experiência de


análise, colocando o sujeito em vias de se fazer semblante de um ob-
jeto causa do desejo de outra pessoa. É o desejar uma função de fazer
desejar, do que se delimita desejo como a decantação de um processo
de fazer brechas nas costumeiras costuras psíquicas que constituem o
sujeito do inconsciente. Para se tecerem essas costuras precisam sinco-
par, pôr sob a barra parte dos traços que vêm a constituir nosso saber
fazer aí com a vida.
Política é o termo pelo qual se designa a organização da convi-
vência dos cidadãos na pólis. Como conceito, nasceu na Antiguidade
com referência ao que se instituía como pólis, que em grego quer dizer
cidade, concebida naquele momento mais ou menos como o que hoje
reconhecemos no “Estado”. Na definição de Ferrater Mora (2004) para
política, esta comporta uma atitude reflexiva, tratando da atividade do

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86 Mariana Mayerhoffer

político e “também de todo membro de uma sociedade na medida em


que intervém ou trata de intervir nos processos que permitem chegar a
decisões a respeito da forma de governo” e suas consequências, “con-
dições dentro das quais se exerce a liberdade individual, o cumprimento
da justiça etc.” (p. 2833). Saber fazer com o desejo é colocar na pólis um
singular jeito de ver e intervir ao redor, sendo político esse saber fazer,
pois é Outro o desejo, ao retalhar restos imponderáveis do desejo dos
Outros/outros da pólis, desde os outrinhos que nos desejaram propician-
do nosso nascimento e sobrevivência até tudo o que forma nosso dis-
curso, a linguagem e nela nossa cultura. Um analista que em sua clínica
sustenta o tecimento desse saber fazer está sustentando uma política da
clínica, a política de fazer esse singular furar a totalização da organiza-
ção que é instituída pelo sintoma, política da psicanálise (Lacan, 2003c,
p. 23). Intervindo no que o sujeito institui e erige como defesa, a análise
é política. O sujeito é, digamos assim, institucionalizado pelo sintoma,
arranjo entre o recalque e o desejo na formação psíquica. A função do
analista é desinstitucionalizar o desejo quando o sujeito sofre demasia-
do, fazê-lo liberar-se da injunção significante que o aprisiona em apenas
um modo de repetição na relação com o outro. O analista proporciona ao
analisante, diz Lacan (2012), um “suplemento de significante” (p. 149),
como chama nesse momento a interpretação, o que abre novas possibili-
dades de furo e sentido para o sujeito tecer com o sintoma.
Desde seu nascimento, a psicanálise se inscreve como avesso
de toda regulamentação, toda organização ready to use, do sintoma
ao Estado, mas é exatamente tomando como causa o sintoma (Lacan,
2003b, p. 427), e no Estado, que ela ex-siste. A ex-tensão é um fora,
que está moebianamente dentro, na psicanálise in-tensão; essa tensão
constitui a operação analítica pelo desejo do sujeito, cabendo ao analis-
ta garantir que essa tensão nele se balize. No entanto, a tensão que vem
do empuxo da norma exerce uma força que por vezes ameaça a própria

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O que o desejo do analista articula na sustentação política... 87

existência da psicanálise, como testemunhamos desde o processo con-


tra Theodor Reik não ser médico, que levou Freud (1926) a escrever
“A questão da análise leiga” em 1926, até os dias atuais, onde vemos
o Movimento de Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras
sustentar a psicanálise não regulamentável como profissão.
O psicanalista não quer ser reconhecido política e culturalmente
como portador da profissão de propiciar uma análise porque não é o
analista que propicia a análise por si; ele é quem pode, ou não, possibili-
tar que o sujeito trabalhe na construção de uma posição frente ao desejo
que ele próprio desconhece, cabendo ao sujeito psicanalisar e ao ana-
lista o ofício de sustentar tal trabalho. Como esse trabalho é singular,
configura-se não regulamentável, não é uma profissão, é leigo que ele
se faz. A análise é leiga, depende da preservação do lugar do não saber
que opera o desejo de saber do inconsciente. Como do inconsciente
nunca se sabe, quando se o sabe já não é mais inconsciente, a laicidade
do saber vale tanto para o analista, que não deve se pautar pelo saber
apriorístico que carrega, quanto para quem está na posição de analisan-
te, que é quem garante o discurso da psicanálise, o discurso regido pelo
objeto a como causa, pelo furo.
O Movimento de Articulação foi criado no ano de 2000, e até aque-
le ano cerca de oito tentativas de regulamentação pelo Estado já haviam
sido engendradas, incluindo o lançamento de um “Aviso Ministerial”
em 1957, ato normativo para o exercício da psicanálise, que poderia
ser conduzida por não médicos, desde que por indicação e sob “respon-
sabilidade estrita” (Lannes, 2009, p. 36) de um médico, e somente por
analistas formados e reconhecidos por instituições ligadas à IPA — fe-
lizmente essa regulamentação não encontrou eco na práxis da psicanáli-
se no Brasil de então. O Articulação é um movimento inédito na história
da psicanálise mundial, porque reúne, há 17 anos, uma heterogeneidade
enorme de instituições psicanalíticas que trabalham coletivamente para

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88 Mariana Mayerhoffer

que a psicanálise se mantenha como não regulamentável. As institui-


ções se reuniram pela primeira vez num contexto brasileiro de cresci-
mento vertiginoso de cursos de Formação de Psicanalista de cerca de
dois anos, aulas presenciais e virtuais, professores ligados uma Escola
Superior de Psicanálise, com promessa de profissionalização, propagan-
da generalizada para fi liação a um Conselho de Psicanálise Clínica e
inserção num “mercado de trabalho”. Os cursos incluem num balaio de
gato bibliográfico conteúdos diversos, do campo da psicologia e da psi-
canálise ao da religião, “formando” um número assombroso de mais de
mil “profissionais da psicanálise” por semestre (Sigal, 2010). Tudo isso
ligado à SPOB, Sociedade Psicanalítica Ortodoxa do Brasil, ramificação
“clínica” da tradicional assistência ao sofrimento fornecida pelas igrejas,
com uma forte inflexão empresarial, como pode se testemunhar no site
da organização (SPOB, 2017). Nesse momento inicial o movimento op-
tou pelo caminho jurídico, impetrando ação contra o “Conselho”, com o
respaldo institucional do Conselho Federal de Psicologia.
Meses após a primeira reunião que viria a constituir o Movimento
de Articulação, a SPOB entrou com um projeto de lei na Câmara do
Congresso Nacional, por intermédio de um deputado evangélico, pro-
pondo a regulamentação da psicanálise. O desejo dos analistas em sua
interface política criou uma enorme mobilização em torno da constru-
ção de Articulação, que visa fazer sobreviver a prática psicanalítica,
avesso à organização e à regulamentação, posto que é em transferência,
desse modo singularmente, que se coloca alguém no lugar de analista.
O trabalho de transmissão da psicanálise como ofício não regulamen-
tável alcançou inclusive e de forma intensa tal Câmara dos Deputados,
levando ao arquivamento do referido projeto de lei.
Tal contexto despertou o desejo de sustentar o Movimento, que
desde então se reúne sistematicamente, atualmente sendo dois o nú-
mero de encontros anuais. O Movimento de Articulação barrou assim

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O que o desejo do analista articula na sustentação política... 89

também duas outras invectivas em forma de projetos de lei, uma delas


que dizia respeito às psicoterapias, que certamente levaria a psicanálise
de roldão. No campo jurídico, o Articulação obteve mais uma vitória
com o resultado da ação no Supremo Tribunal de Justiça, que suspen-
deu o funcionamento do pretenso Conselho de Psicanálise Clínica. Sua
participação foi também fundamental no veto ao chamado Ato Médico
e no não fechamento do CRIA, instituição de São Paulo que atende psi-
canaliticamente a crianças e jovens autistas e psicóticos.
No que diz respeito às tentativas de regulamentação da psicanálise
pelos evangélicos e suas reações nesse período dos anos 2000 para cá,
podemos deduzir que houve alguns momentos diferentes. Num primei-
ro, teve-se o aproveitamento da situação da psicanálise como leiga: não
havendo regulamentação, podia-se propor qualquer iniciativa de curso
ou filiação. Com a intervenção da Articulação, gerou-se um segundo
momento com a reação da pretendida regulamentação segundo crité-
rios que tinham o objetivo tácito de fazer de tais instituições religiosas
monopolizadoras da prática. No insucesso dessa empreitada, adveio um
terceiro momento, o reuso da laicidade da psicanálise como terreno para
proliferação e difusão de práticas mercantis e religiosas como se fossem
clínicas, prescindindo da regulamentação, posto que se “qualificaram”,
no momento anterior, com a apropriação indébita da psicanálise no uso
do que foi construído pelo embate da não regulamentação — por exem-
plo, passaram a apresentar os cursos como supostamente atendendo à
única regra da formação, o tripé análise, supervisão e formação teórica.
Atualmente, há mais um projeto de lei no Senado propondo a regula-
mentação da profissão de Terapeuta Naturista, no qual a psicanálise está
enquadrada como uma de suas “modalidades”.
O Articulação também passou por muitos momentos, como a pro-
posta de autorregulação a ser feita por alguma suposta regulação supra
institucional composta de analistas do Articulação, também recusada

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pela maioria das instituições presentes no Movimento após muitas dis-


cussões e elaborações, por ser uma reapresentação apenas deslocada
da proposta do Estado de regulamentar a prática — com o agravante
de destituir o próprio argumento do Movimento de que não há saber
prévio a ser verificado para a autorização de um analista, e menos ainda
que uma “fiscalização” como essa coubesse a algum comitê de psica-
nalistas que saberiam, esses, quem estaria ou não apto ao ofício. Essa
história pode ser encontrada com os importantes passos do Movimento
de Articulação no livro O ofício do psicanalista: formação vs. regula-
mentação (Alberti et al., 2009), e nele é impressionante encontrar um
trabalho entre psicanalistas, pares com tantas diferenças institucionais,
sustentando esse lugar de luta comum pela psicanálise viva.
Considero que o Articulação é um lugar que inclusive fomenta a
formação para os psicanalistas que ali representam suas instituições,
mas que comparecem com o seu desejo de fazer a ex-tensão do desejo
do analista na pólis. Então, me remetendo à pergunta feita no início des-
te escrito, essa extensão alcança até o ponto onde é do lugar do analista
que se trata de fazer subsistir, o que varia e verifica-se com o estilo de
cada um. Os desejos dos analistas originaram a fundação do Articulação
como um ato, que Lacan (1967-68) define como o que tem consequên-
cias de um dizer, formulação que destrincharei pelas questões que dessa
afirmação se desdobram: de que ato se trata no trabalho do Articulação
e, em sendo do ato político, em que condições é possível verificá-lo.

Ato e tarefa do psicanalista em Articulação

Em O seminário. Livro 15. O ato psicanalítico, Lacan (1967-68)


diz em relação aos profissionais, que “desse ato, à medida que se faz
dele profissão, resulta uma posição da qual é natural se sentir assegurado

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pelo que se sabe, pelo que se guarda dessa experiência” (p. 28). Em
relação à psicanálise, Lacan dirá em seguida que da natureza própria
do ato nesse campo resulta uma “posição que se deve manter por estar
apto a exercê-lo”, do qual “dependem consequências mais sérias” em
relação ao que resulta disso. Nesse ponto afirma que “o ato psicanalí-
tico diz respeito, e muito diretamente, em primeiro lugar” aos que dele
não fazem profissão, mas que “desse ato fazem profissão de agente”,
como cita Alberti (1998, p. 97). Seu ato é não regulamentável porque a
psicanálise não se transmite como qualquer outro saber, como dito em
O seminário. Livro 17. O avesso da psicanálise (1969-70), citação que
assim prossegue:
O psicanalista tem uma posição que eventualmente pode ser a de um
discurso. Ele não transmite um saber — não porque não tenha nada a
saber, ao contrário do que imprudentemente se diz. Isto é o que está posto
em questão — a função, na sociedade, de um certo saber, aquele que lhe
transmitem. Ele existe. (p. 188)
É igualmente por ser o discurso do analista aquele que fará interrogar
os outros em suas estruturas de dominância a partir do lugar agente que a
psicanálise não é uma profissão e não há como verificar, senão em termos
particulares, sua eficácia, que lhe será inculcada pelo valor da interpreta-
ção, que é sempre no um a um que se produz. Cada um dos quatro lugares
dos quatro discursos tem a ver com a apreensão de um efeito do signifi-
cante, sendo o lugar agente do discurso do analista o objeto pequeno a
como dito por exemplo em O seminário. Livro 20. Mais, ainda (1972-
73). E isso quer dizer que a psicanálise tem uma referência ética colocada
no lugar de normas, não é uma regra. É mais que isso: o tripé análise/
supervisão/teoria é uma transmissão ética que se faz de maneira singu-
lar, que tem suas balizas autorizadas tanto pelo próprio analista quanto
por outros, pares psicanalistas ou mesmo a sociedade, inclusive mas não
só no que esta se encarna no analisando. Diz-se antecipadamente que o

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discurso analítico não faz jamais mudança na estrutura social, no entanto,


não é nunca sem o discurso do analista que qualquer troca de discurso se
processa: “desse discurso psicanalítico há sempre alguma emergência a
cada passagem de discurso a outro” (Lacan, 1972-73, p. 26).
Retomando a referência do Seminário 15, onde já de saída se di-
ferencia ato e tarefa, então nessa questão sobre do que se trata de tomar
como responsabilidade do Articulação, podemos talvez também pensar
por um lado qual é sua tarefa e por outro quando e se o Movimento faz
ato. O que queria dizer Lacan (1967-68) ao afirmar nesse Seminário que
o ato psicanalítico reinterroga “esse ponto de equilíbrio, em torno do qual
se coloca a questão do que é o ato” (p. 87) e em texto contemporâneo, que
“está claro que, se todo ato é apenas uma fi gura mais ou menos completa
do ato psicanalítico, não há quem domine este último”? (Lacan, 1970a,
p. 269). Lacan (1970b, p. 407) explicita em outro texto da mesma época
que somente o ato analítico pode esclarecer qualquer outro ato — mesmo
não sendo dominado, uma vez que algo da dimensão do ato analítico está
mais ou menos presente em qualquer ato que assim possa ser nomeado,
o que está muito longe do que comumente chamamos de ato no senso
comum. Aqui ele refere-se à linguística fornecer o aparelho material da
análise, o inconsciente, mas não dominá-lo por não operar com o que
surte efeito no inconsciente, o objeto a. Resta nomear o que é um ato e no
que ele comporta a dimensão de consequência de um dizer por um efeito
de divisão, de sujeito, que define o ato analítico agenciado do lugar do
pequeno a.
É o discurso do analista que define o lugar do psicanalisante, su-
jeito do inconsciente em trabalho agenciado pelo objeto a ocupando o
lugar que o causa, como a posição política mais interessante do ponto
de vista de tolerância quanto à singularidade, princípio da psicanálise.
Situamo-nos para pensar o lugar do analisante com o que Lacan (1967-
-68) chama de sua tarefa na psicanálise, analisar, contrapondo-a com

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ato, que então é do analista. Quando Lacan (1967-68, p. 87) se refere ao


ato analítico na interrogação do que é o ato diz que tem duas ambições
falando do ato: a curta, “a melhor”, é saber em que consiste o ato analí-
tico, e a longa, que diz que não pode ser descartada, é esclarecer o que é
o ato. Dessa longa ambição recorto então o que seria o ato político, e em
Articulação.
Articular o ato analítico, diz Lacan, se for um ato, implica sua
consequência, uma vez que o ato é um dizer e um dizer na medida que a
dimensão do Outro no testemunho que ele faz não pode ser eliminável.
Lacan (1967-68, p. 211) diz que o que constitui o ato está no objeto
a que permite destituir de sua função a relação com o “todo”. No ato
analítico, a encarnação do objeto a faz a destituição subjetiva para que
o sujeito possa aceder ao lugar de objeto no seu desejo, o que só pode
ocorrer por um efeito de hiância. O analisante, chegando à realização
que é a da castração, consuma nesse ato sua divisão. O ato analítico é
definido como de natureza, por introduzir outra dimensão que é a de
não agir por si mesmo, a lançar luz sobre o ato “sem qualificação”.
Entendemos que esse ato que Lacan diz ser o que não nomeia, seria o
ato, se houvesse, do psicanalisante. O ato é “fato de significante” (p.
216), “por onde tem lugar o retorno do efeito dito efeito de sujeito, que
se produz pela fala, na linguagem”, uma vez que “ele é radicalmente
divisor”.
Para concluir o acompanhamento teórico nesse ponto, é impor-
tante dizer que essa construção desemboca na afirmação de que todo
pensamento ordenado se situa “a partir de um bivium” que é particular-
mente claro em nossos dias: ou se rejeita o efeito de divisão de sujeito
ou o pensamento “entrega-se à dimensão do ato e, para isto, basta que
toque no efeito de sujeito” (p. 217).
Poderíamos a partir dessa construção definir o ato político como
o que instaura um efeito de sujeito, de divisão, por um dizer que não

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elimina a dimensão do Outro? Se assim é, esse ato pode ser esclarecido


pelo ato analítico, pois é à medida que faz intervir a dimensão do objeto
a que se faz ato.
Como poderíamos verificar um ato como político e, mais ainda,
um ato político como tendo dimensão de ato analítico? Se verificamos
num ato político a consequência do ato, uma divisão, essa seria consu-
mada de forma análoga ao que seria o ato psicanalisante na assunção
de uma divisão.
Voltando ao que se refere o que fazemos em Articulação, temos,
podemos dizer, como tarefa manter o quanto possível a psicanálise
como leiga no que tange às tentativas nefastas de extirpação da singu-
laridade nos projetos que pretendem regulamentá-la. Seria tarefa num
sentido diferente, mas próximo do que faz o analisante ao narrar sua
história, acompanhando sua construção aí mesmo, em transferência
com um analista que ao se encarnar no lugar de objeto a a partir do ato,
faz o sujeito não eliminar mais o lugar do Outro, mas considerá-lo desse
vazio divisor que o pequeno a representa? Na posição de analisantes,
segundo esse raciocínio, em transferência com o texto freudiano, acom-
panhando as tentativas de regulamentar a psicanálise e sua transmissão,
cabe verificarmos se e em que momento fazemos o ato de aceder a essa
divisão a partir da consequência que um ato pode testemunhar na não
eliminação do Outro que se faz a partir desse ato.
Podemos chamar de ato o que testemunhamos em momentos como
os da presença de membros desse Movimento no Congresso Nacional,
que teve o efeito de derrubada de projetos de lei que pretendiam regula-
mentar a psicanálise? O que Lacan diz sobre o ato implicar uma conse-
quência podemos ver refletir-se nessas ocasiões, mas podemos verificar
tais efeitos de divisão, e como efeitos de ato, a serem atribuídos ao que
fez Articulação? Se sim, podemos considerá-los efeitos que testemu-
nham uma posição política a partir da posição do analisante, definida

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pelo discurso do analista, portanto pelo sujeito no lugar de trabalho,


sobre o qual incide a inclusão do que há de divisor no objeto a: efeitos
de divisão são os efeitos de interdição da regulamentação no todo da
norma institucional do Estado, por cada sujeito que no lugar de trabalho
sustenta/sustentou essa tarefa, sobre cujos sujeitos incide/incidiu o lugar
de causa do desejo de manter a psicanálise como leiga, como questiona-
mento sobre a via do furo e da contingência do desejo, como psicanálise,
portanto, em Articulação.
Lacan (1967-68) diz que a noção de consequência liga-se às fun-
ções de sequência lógica, pela qual o que tem consequência é “a ar-
ticulação de um discurso, com o que ele comporta de sequência, de
implicação” (p. 229). Certamente um discurso foi articulado nas expe-
riências citadas do Articulação, o discurso da psicanálise, que coloca
a questão da verificação de terem ocorrido ou não atos políticos nos
citados exemplos de transmissão. Tomo todo esse cuidado, pois, como
sabemos, o nosso ato de referência, o ato analítico, traz consigo uma
extrema dificuldade no que tange à sua transmissão. A própria questão
do passe, dispositivo que Lacan criou para verificar a existência de um
analista, consequentemente seu ato — que é o que o define —, ser tão
difícil de ser implantada corrobora essa dificuldade de como verificar
um ato analítico, um analista, fora da análise ainda por cima. Em rela-
ção ao ato político, é prudente tomar as mesmas referências, de verifi-
cação de sua consequência ter ou não trazido efeito de divisão, o que
diz respeito ao sujeito; portanto no ato político a dificuldade aqui apa-
rece em como verificar tal efeito num coletivo. Trata-se de efeitos no
real institucional da impossibilidade presumida de haver uma prática
que não seja regulamentada, efeitos simbólicos de divisão nessa inter-
face com o imaginário que predomina no Estado, de tudo ter que fazer
parte do “todo” regulamentável da imagem de uma profissão. É de um
enodamento Outro que se trata na tarefa do Articulação que sustenta

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a psicanálise como um sintoma peculiar que amarra os registros real,
simbólico e imaginário à sua própria maneira de não todo.
Diz Lacan (1967-68) em relação aos efeitos do ato que por
sua duração, sua persistência e seu efeito aderente ao que dura, ao que
se mantém nesse esforço de articulação, poderemos, com efeito, medir
indiretamente o que há de deslocado no outro campo que é precisamen-
te o campo das forças reais. Mas é sempre por algum nó de consequên-
cias, e de consequências significantes, que apreendemos o que ocorre.
(p. 230)
Forças reais, interessante expressão que nos remete ao que há de
mais político, no sentido amplo do termo, de viver na pólis.
Em “todo discurso há efeitos de ato”, diz Lacan (1967-68, p. 104),
então também com o que diz sobre somente o ato analítico poder es-
clarecer qualquer outro ato, autorizamo-nos a tentar esclarecer a leitura
da política a partir do discurso do analista. Esse discurso tem como
produto um significante-mestre, mas “outro estilo de significante-mes-
tre” (Lacan, 1969-70, p. 168), que se produz através da histerização do
discurso que tem num outro giro discursivo o advento dos efeitos do
discurso do analista, a ida do saber para o lugar da verdade, o que co-
loca a questão da possibilidade ou impossibilidade de verificação dessa
operação num coletivo, que determina a política e retoma a questão da
definição de ato político de suas condições de verificação.
Em “Radiofonia”, Lacan (1970b), diz que “o efeito que se propa-
ga não é de comunicação da fala, mas de deslocamento do discurso”
(p. 405). Assim, não se pode deslocar o discurso na política, a não ser
pontualmente. Quanto à questão de se objetivar histerizar o discurso, tal
qual Lacan (1969-70, p. 31) diz, no Seminário 17, que é o objetivo do
discurso do analista, também na política poderíamos fazer a analogia
de nesta se desejar fazer histerizar os discursos. Voltando num giro ao
discurso da histérica propriamente dito, este é o que leva ao saber, mas
para nada saber sobre isso, ela quer levar o mestre ao saber, fazer furo

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no discurso do mestre. Se esse passo é desejável, tem-se a condição de


não se ficar aí, para aceder ao saber no lugar da verdade como barrado
a ser agente, uma vez que esse discurso oblitera o objeto. O discurso
do analisante é o que se histeriza a partir do lugar do analista, o que
faz ressaltar a diferença sobre o discurso da histérica, no qual o sujeito
está no lugar de agente, portanto não do trabalho, que não faz mais do
que fazer o outro trabalhar. O lugar do analisante então se define de
saída como diferenciado em relação ao agente histérico. Desse modo,
uma posição política deve desta diferenciar-se.
Tomando a construção que faz Lacan (1969-70) ao sustentar que
o discurso do universitário é a versão pervertida do discurso do mes-
tre, no Seminário 17, encontramos ele nomeando essa como “mutação
capital” que “confere ao discurso do mestre seu estilo capitalista” (p.
160), que algumas páginas à frente Lacan vai complementando, pri-
meiro dizendo ser uma “pretensão insensata” do agente desse discurso,
o S2, ter como produção um sujeito, um sujeito que de modo algum
pode “se perceber por um só instante como senhor do saber” (p. 166). O
S1 então como agente, no discurso do mestre, ao contrário, extraía seu
saber do lugar do trabalho do escravo, como Outro, o que se modifica
no discurso universitário por ter-se o saber como agente do discurso
“a partir de certo momento da história”, sobre o que diz em seguida:
“a partir de certo dia, o mais-de-gozar se conta, se contabiliza, se to-
taliza. Aí começa o que se chama de acumulação de capital” (p. 169).
O objeto a, assim contabilizado, totalizado, confere à política, quan-
do exercida a partir do discurso universitário, sua semelhança com a
característica desse discurso, de ocupação pelo objeto a de um lugar
“da exploração mais ou menos tolerável”, como diz Lacan na página
seguinte. A política assim, quando intenciona “tudo-saber” (p. 29),
característica do discurso universitário, se enquadraria nesse quando
tivesse o saber como demanda. Mas a política não somente inten-
ciona “tudo saber”, ela faz uso do do saber para que tudo funcione

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— como as políticas hoje fazem uso dos aparatos técnicos de saber,
como no discurso do mestre mesmo, que nada quer saber, mas quer
que isso funcione.
O saber que é transmitido numa análise é um saber deveras par-
ticular, no sentido de não compreender mais do que a estrutura topo-
lógica, enodada por um savoir y faire1 adquirido singularmente pelo
sujeito — o qual lhe trará um estilo, tributário de seu sinthoma. Um
ato político, portanto, se o definimos como ato que instaura tais efei-
tos de consequência de divisão — de ida do saber para o lugar da
verdade, com a produção de um significante mestre de outro estilo
pelo sujeito no lugar de trabalho causado pelo objeto mais-de-gozar
—, comporta uma impossibilidade paradoxal, porque não pode ser
verificado no sujeito, como dito antes, efeitos a serem verificados exa-
tamente na cultura, institucionalmente. A sociedade pode sim verifi
car efeitos da psicanálise na cultura, e diz Lacan (1975) que apenas
nela, como lemos:
Qualquer retorno a Freud que dê ensejo a um ensino digno desse nome
só se produzirá pela via mediante a qual a verdade mais oculta manifesta-
se nas revoluções da cultura. Essa via é a única formação que podemos
pretender transmitir àqueles que nos seguem. Ela se chama: um estilo.
(p. 460)
O estilo que se produz do discurso do analista faz intervenção na
pólis, na cidade, na cultura. É o outro que vira causa do desejo, mais-
-de-gozar do sujeito, com a análise. O mesmo podemos pensar para a
produção do discurso analítico na cultura. A impossibilidade parado-
xal de se saber disso não inviabiliza a verificação de que isso fala na
cultura, e quando isso fala pela intervenção do outro como objeto a,

1. Saber-fazer aí, tal qual Lacan (1976-77, p. 12) se refere ao saber fazer com o sinto-
ma, no Seminário 24. Na edição brasileira de Outros escritos traduz-se como “saber
haver-se”, em relação à verdade (Lacan, 1970b, p. 442).

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como causa, fala de modo diferente. Fala de modo ético. E isso não é
qualquer coisa.
No ato de fundação e sustentação do Articulação verificamos
efeitos de divisão, institucionalmente, efeitos de convivência das di-
ferenças das instituições analíticas e efeitos de barra, até aqui pelo
menos, à regulamentação da psicanálise.
O sujeito funciona totalizando-se, institucionalizando-se, por
isso tanto a clínica quanto a política inscritas nesse campo da psica-
nálise se definem por uma operação de fazer furo, de questionar o
que chega ao sujeito como tarefa para ele reproduzir. No trabalho do
Articulação testemunha-se, com essa referência, o exercício de uma
política que se move pela direção contrária à totalização discursiva
na contabilização capitalista: onde uma política quer regulamentar o
saber, a política da psicanálise exercida em Articulação faz furá-la.
Com isso poderíamos identificar as tentativas de regulamentação da
psicanálise com a tentativa sempre presente no humano de fazer o
Um da repetição, de identificar-se, pela unificação, plenamente com
os “semelhantes” com a ajuda caridosa de um mestre que os co-
mande, lembrando o axiomático “Psicologia das massas e análise
do eu” (Freud, 1921), aliado ao que Lacan diz sobre a massa vi-
sar comumente ser comandada por um Outro, na “Conferência em
Genebra sobre o sintoma” (Lacan, 1975, p. 8) ou ao que é dito em O
seminário. Livro 23. O sinthoma: “A maior necessidade da espécie
humana é que haja Outro do Outro” (Lacan, 1975-76, p. 124). E a
partir dessa realidade tratar de responder ao que daí advém como
mais-de-gozar, quando o que se apresenta é a intenção de ganho de
um bônus que compensaria a perda originária, como se pode ler as
tentativas de regulamentação da psicanálise, às quais o Articulação
se contrapõe.
Em O seminário. Livro 19. ... ou pior, Lacan (1971-72, p. 146) fala
que o sujeito reproduz a neurose que os pais inocentemente produziram.

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Não tem outra forma de o psíquico se costurar, nesses termos, mas
cabe ao sujeito em análise ao dar o passo da segunda reprodução dessa
neurose, questioná-la. A psicanálise faz então questionar. Ainda nesse
seminário, Lacan (1971-72) pergunta:
A psicanálise é o quê? É a demarcação do que se compreende de obscu-
recido, do que obscurece como compreensão, em virtude de um signifi-
cante que marcou um ponto do corpo. (p. 145)
Demarcar o que se compreende de obscurecido, garantir, a esse
obscurecido, seu devido lugar. É a tarefa a qual se dedica o Articulação.
E se na política o desejo do analista é sustentado também, é esse furo
que o analista transmite, e não um saber sobre que regras abarcariam a
constituição de uma competente psicanálise a ser regulamentada pelo
Estado.
Política leiga, do Articulação, que faz tarefa e ato diante da cana-
lhice da tentativa de regulamentar o desejo e a psicanálise, nos inspira
a sentir o quanto seria entusiasmador verificar mais e mais uma rede
de iniciativas que faça ocupar a política de nosso dia a dia, como o
faz a rede que o Articulação teceu, sustentando de outro lugar que não
o de analista, mas de cidadão, a singularidade no mundo do conviver
que nos rodeia e concerne.
Lacan (1967-68) diz que “só há exemplos quando os efeitos se
tornam um pouco persistentes” (p. 256). Já 18 anos de trabalho ilus-
tram a responsabilidade assumida pelo Articulação na persistência em
sustentar a transmissão do discurso da psicanálise em nosso país. E,
falando sobre a insurreição de maio de 68, Lacan (1967-68, p. 252)
diz que assinar a título de psicanalistas parece um modo muito fácil
de proceder em momentos como esse, pois seria considerar-se ana-
lista “estando quite com os acontecimentos”, o que liga a estar em
“comunidade absoluta” com eles. Superficialidade, como nomeia, que
nos adverte nesse momento recente e fecundo de insurreição em nos-
so país — com as Jornadas de Junho de 2013 — contra a aceitação

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O que o desejo do analista articula na sustentação política... 101

dócil da exploração capitalista. No Articulação tratamos com a mes-


ma advertência de responder, sem estar em comunidade absoluta, mas
responder quando pertinente, a tentativas de retirar da psicanálise exa-
tamente sua especificidade, a de ser não fora, porém à margem.

Referências

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A formalização do ato psicanalítico
para os psicanalistas

Maria Teresa Saraiva Melloni et al.1


Escola Lacaniana de Psicanálise, Rio de Janeiro

O real só se poderia inscrever por um impasse da formalização.


(Lacan, Seminário XX, Mais, ainda, p. 125)

Introdução

O presente trabalho é fruto de elaboração do Seminário XV, de


Jacques Lacan, O ato psicanalítico, proferido nos anos de 1967-68. A
proposta é investigar sobre a função analítica.
Como podemos verificar que há um psicanalista? Como regu-
lar uma prática da ordem de uma arte? Como determinar um tempo
de duração, um objetivo a ser alcançado, um preço a ser pago? Se o
ato analítico é um produto de uma operação lógica inconsciente, ele

1. Ana Luisa Colnaghi, Claudia Blois, Elisa Maia, Marcia Cirigliano e Renata Dias,
Analistas Membros da Escola Lacaniana de Psicanálise – RJ.

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difere radicalmente de qualquer ação do psicanalista, intencional ou


não. Sendo assim, o ato psicanalítico escapa a qualquer definição, pré-
concepção ou regulamentação.
Existe O psicanalista? Ou trata-se de uma função, produto de um
ato, que lhe escapa, cujo efeito só pode ser verificado, a posteriori,2
movido pela transferência do analisante?
Se a existência de um analista decorre do ato psicanalítico, como
podemos falar de uma profissão em uma prática da Psicanálise?
Muito se tem escrito a respeito da formalização ou regulamenta-
ção da psicanálise nos últimos tempos. Essa é uma grande questão não
somente para quem vive do ofício da psicanálise, como há muitos anos
o próprio Freud já havia nos alertado para tal questão. Enfim, o que trata
a psicanálise?
Poderíamos discorrer inúmeras respostas, mas a princípio vamos
percorrer um caminho, cujas marcas objetivam falar de um tratamento
com uma direção, uma atemporalidade e seus efeitos a posteriori como
já dito aqui.
O grande fundamento, a pedra estrutural da nossa questão é o
Inconsciente, o objeto de estudo e de ofício da psicanálise. Falando
do Inconsciente estamos falando da sua estruturação e de suas forma-
ções. Ora, então, o que é o Inconsciente? O próprio nome já nos dirige
a pensar que são processos mentais que nos escapam um saber, um
saber dizer. São palavras e ditos que se liberam e saltam fora do dizer
coerente, ou então, palavras que se fazem presentes no próprio corpo,
denunciando aquilo que ainda não pôde ser dito.
Fica claro então que o Inconsciente é estruturado como uma lin-
guagem. Portanto, a psicanálise está implicada no ato do dizer, do

2. Só depois.

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A formalização do ato psicanalítico para os psicanalistas 105

dito, do discurso, ou seja, dos efeitos da linguagem em cada um de


nós. Podemos afirmar então que é a linguagem que funda o Sujeito do
Inconsciente, ou seja, o próprio Inconsciente que habita em nós e que
reconhecemos como estrangeiro.
Este atravessamento da linguagem no sujeito é marcado por uma
determinação, pelo corte da correlação entre significante e significado.
Na função do corte, há uma negação em jogo, isto quer dizer que não há
relação, não há correspondência, e a própria relação de um significante
para um outro significante não é suficiente para dar conta do SER.
O Sujeito do Inconsciente é o que há de mais particular. É um a
um. O Sujeito é na verdade um mero intervalo vazio entre um signifi-
cante e outro significante, onde ele se representa justamente nesta falta,
falta em SER.
A sua representação só é possível a partir do Outro. E por que
escrevemos o Outro com letra maiúscula? Porque se trata de um con-
ceito, que diz dos efeitos simbólicos do discurso que advém do nos-
so semelhante. Então entendemos que o Sujeito, e portanto Sujeito do
Inconsciente, é formado a partir dessas marcas da linguagem, do inves-
timento olhar e voz do outro que vão possibilitar também a constitui-
ção da imagem especular e, portanto, do narcisismo. O sujeito então
se constitui fantasmaticamente e se pergunta: O que sou para o Outro?
Nasce aqui o grande enigma!
Vale a pena ressaltar que há algo nesta imagem especular que é
inibido no Outro, ou seja, o infans3 não se apropria do desejo da mãe
como um todo, apenas parte. Esta parte que é capturada tenta revestir
algo que é sentido como objeto perdido e que Lacan vai tratar de objeto
a, ou seja, de alguma coisa que é impossível simbolizar e que é tomada
pelo Sujeito como falta.

3. Antes da aquisição da linguagem.

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Paramos então para nos perguntar:


— O que resta desse momento da constituição do Sujeito? Não é
simples responder, mas a psicanálise vai se debruçar diante deste enig-
ma para cada Sujeito e fazer daí o seu único e mais precioso ofício que
é percorrer a historicidade de cada paciente. Será um percurso marcado
pela singularidade, transferência, resistências, angústias, atos, interpre-
tações, marcados por um tempo lógico.
No Seminário 1 – Os escritos técnicos de Freud (1953-54), Lacan
nos escreve que Freud trabalhou em torno dessa noção de que cada caso
deverá ser da apreensão de um caso singular, e, como disse mais adian-
te, tomar um caso na sua singularidade.
Tomá-lo na sua singularidade, o que quer dizer isto? Quer dizer essen-
cialmente que, para ele, o interesse, a essência, o fundamento, a dimen-
são da própria análise, é a reintegração, pelo sujeito, da sua história até
os seus últimos limites sensíveis, isto é, até uma dimensão que ultrapassa
de muito os limites individuais. (p. 133)
Lacan vai subverter essa ideia de esgotar o passado, mas há que
tomar cada caso como se fosse o primeiro, na sua essência, na sua
singularidade. Ele vai trabalhar com a possibilidade de criação, da
história retroativa do passado e a partir desta construção haver uma
retificação subjetiva. Trata-se de um tempo lógico, no qual o trabalho
do analista vai se apoiar na cadeia de significantes, mediante as cir-
cunstâncias de seu paciente e na possibilidade de o sujeito se impli-
car, num só depois. O trabalho do psicanalista visa aquilo que há de
mais indizível, mais osso, que chamamos de Real. Para abordar esse
Real o Sujeito precisa simbolizar trabalhar na construção de um novo
dizer, nomear seu sintoma e poder concluir sem fechar a cadeia de
significantes.
Como demonstração, vamos trabalhar o sofisma abaixo na propos-
ta de fazer uma correlação com o trabalho de análise:

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A formalização do ato psicanalítico para os psicanalistas 107

O diretor de uma prisão reúne três prisioneiros e promete a liberdade


àquele que descobrir a cor do disco que pregou às costas de cada um,
cada disco sendo escolhido dentre três (discos) brancos e dois (discos)
pretos. Os prisioneiros não têm meios de comunicar uns aos outros os
resultados de suas inspeções, nem de alcançar com a vista o círculo pre-
gado às próprias costas. Depois de se terem observado por um tempo,
os três prisioneiros se dirigem juntos para a saída e cada um, separada-
mente, conclui que é (tem nas costas o disco) branco, o que é realmente
o caso, dizendo a mesma coisa: “Dado que meus companheiros eram
(tinham nas costas discos) brancos, pensei que, se eu fosse preto, cada
um deles poderia inferir disso o seguinte: ‘Se eu também fosse preto, o
outro, devendo reconhecer imediatamente ser branco, teria saído imedia-
tamente, portanto não sou preto’”. E ambos teriam saído juntos, conven-
cidos de serem brancos. Se não faziam nada, é porque eu era um branco
como eles. Diante disso, encaminhei-me para a porta, para dar conhecer
a minha conclusão. (Porge, 1989, p. 80)
Lacan nos chama atenção para a realização de três momentos: o
instante de ver, o momento para compreender, e o momento do con-
cluir. São os tempos de uma análise, os tempos da formação, tempo
lógico. Trata-se da experiência de cada um. Não há o que se aprender;
trata-se de experimentar, pagar para perder. Este é o início do percurso
da formação do analista. Experimentar e pagar a perda.
Está aí o ponto nevrálgico do nosso texto: a formação do analista
e seu ofício. O que esperamos da formação do analista é que esta possa
ser vivida como uma experiência dentro de uma Escola, que por não
se caracterizar como Instituição, permita que cada um encontre condi-
ções para realizar seu percurso de formação, que se revelará a partir de
sua análise pessoal e de uma insistência no investimento da formação
permanente.
Numa Escola de psicanálise o que se espera desse analista é que
ele dê provas do seu trabalho, do seu estudo da obra de Sigmund Freud
e seus seguidores, contribuindo para o avanço da psicanálise. Vamos

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108 Maria Teresa Melloni et al.

mais além, a Escola também espera daquele que está implicado com
a causa analítica que sua produção, atravessada pela experiência pes-
soal de sua análise, possa atravessar os demais analistas em formação.
Então, podemos ver que o ato psicanalítico jamais estará dissociado da
formação de um psicanalista, da mesma forma que esta está ligada ao
percurso de um analista em uma Escola.
Sendo assim, da mesma forma que o ato psicanalítico é algo que
escapa à apreensão, a formação em uma Escola de psicanálise não se
trata de uma aprendizagem. Não há professor, nem mestre, a psicanálise
não se aprende e sim se experimenta.
A teoria psicanalítica sim, pode ser aprendida, mas de nada serve
ao psicanalista no seu ato, na medida em que este provém do não saber
do real do inconsciente, do que está fora da ordem significante, ou seja,
fora do pensamento. Como compreender que as escolhas feitas sob a
maior lucidez, levam alguém à repetição de uma mesma experiência
desastrosa, inúmeras vezes? É possível enquadrar tais sintomas em ca-
tegorias diagnósticas, mas o saber sobre a origem de tais sofrimentos
há que ser construído. Não se trata de melhora do sintoma e sim de
reconstrução subjetiva. Um novo sentido, uma nova história de vida,
uma invenção.
Na aula de 5 de janeiro de 1968 (Seminário XV – O ato psicana-
lítico) Lacan se utiliza do cogito cartesiano “penso logo sou”, toman-
do-o pela negação. “Penso onde não sou” e “sou onde não penso”,
para recortar entre esses dois campos, o não absoluto: “nem penso
nem sou”, lugar limite da linguagem, onde o Real da verdade poderá
surgir.
Portanto, é se despojando dos efeitos imaginários da marca do
Outro que o constituiu enquanto pensamento, que o sujeito, em uma
psicanálise, pode advir como psicanalista.
Um psicanalista surge da sua absoluta solidão!

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A formalização do ato psicanalítico para os psicanalistas 109

Lacan (1967-68) afirmou que, enquanto o final de análise é uma


passagem ao ato, o ato de passagem do analisando à condição de ana-
lista é um re-ato, ou seja, uma reação ao ato cometido por seu analista
de suportar a transferência. Trata-se, portanto, de uma passagem ao ato
esclarecida, que comporta um saber. Lacan denominou esse ato de “lou-
cura advertida”, que, obviamente, tem seus efeitos sobre o analista. Um
desses efeitos é a interrogação sobre a Psicanálise, o desejo de analista
e os acontecimentos da clínica, dentre eles as dificuldades. A condução
de um processo de análise é também um re-ato no sentido em que tais
dificuldades remetem à própria análise do analista. A partir do trabalho
com seus analisandos o analista re-ata, religa-se à sua experiência de
análise pessoal e de final de análise. E a supervisão é um espaço privi-
legiado para o tratamento dessas questões.
Ele mesmo, Lacan, não nos poupou da sua experiência no rescaldo
do que foi o seu percurso entre os destroços do movimento psicanalítico,
na França da primeira metade do século passado. A solidão que ele expe-
rimentou em ato, na fundação da sua escola — “tão sozinho como sempre
estive” — foi teorizada com o grupo de Klein, no vértice inferior direito,
que ele chamou de impasse. Assim, um psicanalista brota no campo da
transferência, dela se descolando, através da construção da operação ver-
dade, a qual ele terá que sustentar, na condição de que dela nada saiba.
Ao analista que então advém como causa da sua divisão, cabe fa-
zer trabalhar o inconsciente. Dirigido não mais ao Outro da fantasia e
sim ao próprio discurso, ele põe à prova a transferência de trabalho.4
Na medida em que cai a suposição de saber no Outro e dissolve-se
a representação de um sujeito de um significante a outro, a linguagem

4. É a transferência de trabalho que aponta para a transmissão a outros, não apenas


dos resultados, mas de um estilo de trabalho. Se no trabalho de transferência há
amor ao saber, na transferência de trabalho se transmite o desejo de saber.

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passa a ser um refúgio ao ato. O que resta então do dizer do psicanalis-


ta? O que resta dizer depois do ato?
Na condição de não saber mais quem é, no seu dizer, se lhe impõe
o difícil campo singular da experiência. Se, para cada um, as experiên-
cias vividas a partir de acontecimentos de origem inconsciente e por
isso absolutamente fora de sentido, são organizadas de maneira singu-
lar, o psicanalista não pode se valer de um modelo científico universal,
para nele enquadrar a vida psíquica do seu analisante.
A partir do ato que o funda como analista, ele vê o trabalho do
inconsciente promover um ato de fé, colocado em questão, riscando do
mapa o Outro. Ao final de uma análise, esse lugar onde habitava a supo-
sição de saber, vai poder pôr em questão, a fé em “há um” e fazer vigo-
rar o que é da ordem do frescor do surgimento da verdade, ponto Real
da origem do sujeito, canteiro no qual poderá brotar todas as formas de
identificação. A partir de então, já não é mais importante onde ele esteja
colocado no discurso do Outro, porque pode estar em qualquer um.
É o que concebemos como a libertação do lugar sintomático, de
suas amarras identificatórias, para o salto no ar, um lugar solitário no
qual será o autor da sua própria história, desde que se aproprie das mar-
cas simbólicas do Outro.
Estamos falando dos efeitos de uma análise, tanto do que diz res-
peito a um processo de tratamento, quanto ao que concerne à formação
de um psicanalista, porque um psicanalista é o resultado de uma análise
ter chegado ao seu fim, à sua finalidade.
Por isso, o surgimento de um analista tem consequências para o
movimento psicanalítico. Porque se a formação de um psicanalista pro-
move o testemunho de uma experiência com o inconsciente, há que
fazer avançar a psicanálise.
Se a suposição de saber já não mais ligada a uma fantasia de rela-
ção com o Outro, pode circular, haverá uma recomposição dos lugares,
não só dentro das escolas de psicanálise, mas também entre elas.

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A formalização do ato psicanalítico para os psicanalistas 111

A formação de um psicanalista depende da formação da Escola,


ou seja, depende de um lugar do não saber, da não hierarquização, da
queda dos mestres, para que nesse lugar surja a mestria. Em uma Escola
de Psicanálise, o saber circula, podendo ser recortado pela atenção
flutuante do analista, agindo sobre a associação livre do discurso da
histeria, que coloca como agente o sujeito barrado pela sua própria divi-
são subjetiva. O discurso da histeria clama por um mestre, sendo assim
produtor de um saber.
É por não responder a essa demanda, por frustrá-la, que uma
Escola de analistas pode fazer vigorar o desejo do analista e a possível
produção de um saber a mais, sempre novo.
Lacan nunca quis se referir à formação do psicanalista e sim à for-
mação do inconsciente, porque na verdade um analista só se forma nesse
momento, em ato, da produção de um saber inconsciente, um saber novo.
Ele nomeia de ato em falso, esse suporte dado ao ato analítico, ao
qual o analista se presta, na condição de saber que não pode sê-lo.
E questiona: Como alguém, fruto do ato e dele advertido, suporta
restaurar na transferência, a atualização do inconsciente, com esse ser
sem essência, nada mais que resto, caído como objeto, ou abjeto, da
operação da divisão subjetiva?
É porque o ato psicanalítico tem essa estrutura de resto, que a fun-
ção do psicanalista não pode ser regulamentada, tampouco a formação
de um psicanalista pode ser enquadrada em um projeto de curso.
A formação em psicanálise não se realiza em um percurso harmô-
nico e equilibrado, muito pelo contrário, seu caminho é de pedras, de
perdas, de crises.
Tais operações de deslocamentos produzem abalos, cisões e re-
conduções que jamais poderiam se sustentar sob modelos e regulamen-
tos. No texto “O mal-estar na civilização” (1930), Freud mostra como
um quantum de fracasso é inevitável na vida organizada.

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112 Maria Teresa Melloni et al.

O ineditismo que caracteriza a prática da psicanálise, a apro-


xima mais a uma forma de arte ou de ofício, do que a um modelo
científico.
Portanto, não há prevenção, evitação, nem conformação, para os
percalços em que se desdobram as experiências de uma escola, assim se
mostra na história do movimento psicanalítico.
Isso seria uma leitura moral do fracasso, para não suportar o fra-
casso enquanto lugar na estrutura e servir de abrigo contra o questiona-
mento que o bem dizer do sintoma de uma escola pode produzir.
O ato psicanalítico não implica reconhecimento.
Se há algum lugar onde o analista não se conhece é no ponto onde
ele é esperado — lugar de objeto — que o analisando exige dele, como
outro, para que, no decorrer de uma análise, seja rejeitado. “Lá onde o
significante agia, eu ajo, como dejeto, lanço no mundo, esta coisa —
a — razão daquilo que introduz uma nova ordem, da qual sou dejeto/
suporte” (Lacan, 1967-68, p. 99).
Concluímos assim, que ao introduzir uma nova ordem, o ato psi-
canalítico, ao final da análise de um psicanalista, incide sobre a Escola
sob forma de dissolução/renodulação. Resta a cada um psicanalista, tão
sozinho como sempre esteve, como Lacan, suportar as perdas narcísicas
e sustentar as consequências advindas do real do ato. É o instante de re-
ver as bases de sustentação do funcionamento da Escola, para concluir
uma nova história.

Referências

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abr. 2016.
Coelho, M. As novas dificuldades na clínica e a formação do psicanalista. Colégio de
Psicanálise da Bahia, 2006.

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A formalização do ato psicanalítico para os psicanalistas 113

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Estrada. Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 1998.

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U m desafio contemporâneo à psicanálise:
sustentar o real para que ela sobreviva1

Samyra Assad2
Escola Brasileira de Psicanálise

Do que insiste

A descoberta do inconsciente por Freud, diga-se de passagem, es-


candalosa para a sua época, impulsionava-o a transmitir através da sua
clínica, especialmente, a existência da sexualidade infantil, a fantasia
masoquista, o acerto real no erro, dentre tantas outras manifestações
psíquicas na psicopatologia da vida cotidiana, na interpretação dos so-
nhos, enfim, no estranho familiar. Nada disso fazia parte de um discurso

1. Este texto foi apresentado, em sua primeira versão, na abertura do I Colóquio do


Observatório Lacaniano da EBP, Florianópolis, SC, em 23 de agosto de 2014. O even-
to nasceu da preocupação inerente à aparição de uma tal “Psicanálise de Deus” em
Florianópolis, com apoio da prefeitura da cidade. Jornalista (Clara Becker), a profes-
sora de Direito (dra. Jeannine Philippi) e um representante da Escola Letra Freudiana
(RJ) no Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, Maurício
Lessa.
2. Representante da Escola Brasileira de Psicanálise no Movimento Articulação das
Entidades Psicanalíticas Brasileiras.

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116 Samyra Assad

comum, mas evidenciava conflitos num sujeito, com sérias consequên-


cias no trabalho e no amor. O melhor lugar para um conflito era secreto,
ou mesmo, trazido sob a forma de segredo, inconfessável, na maioria
das vezes, para o próprio sujeito que fazia uso de sua fala.
A partir de uma escuta, em seu esforço de cavar o que de precioso
e secreto se localizava na superfície do discurso do sujeito, Freud ten-
tava provar a existência do inconsciente e suas consequências a partir
da indicação de um buraco na linguagem, de algo cuja busca pelas pa-
lavras não atingia o seu alcance. No entanto, os sonhos, os tropeços ou
atos falhos, os sintomas, a negação, apresentavam um caminho de corte
inédito para o sujeito que queria se livrar do seu sofrimento; um cami-
nho, enfim, para se alcançar uma verdade a partir de um furo no saber
que eles traziam em suas manifestações.
Assim, desde Freud, após a descoberta da psicanálise como modo
de tratar sintomas cuja formação advém do inconsciente, a importância
da análise leiga estava em jogo para qualquer ser graduado que sofresse
a incidência desse tipo de tratamento, e, por alguma razão, desejasse
depois praticá-lo, tal como alguns dos seus pacientes, independente-
mente de suas formações, se interessavam por isso. A formação do ana-
lista tinha em seu âmago, ou mesmo dependia, enfim, da formação do
inconsciente.
O próprio fundador da psicanálise, numa carta ao amigo Oskar
Pfister, lhe afirmava: “Não sei se o senhor adivinhou a ligação secreta entre
‘A questão da análise leiga’ e o ‘Futuro de uma ilusão’. Na primeira, quero
proteger a psicanálise dos médicos; na segunda, dos sacerdotes”. Trata-se
de um antevisto, portanto, quanto ao lugar da psicanálise no mundo.
O curioso é perceber que essa ênfase é trazida, simultaneamente,
à relutância pelas chamadas de um tempo que coloca o sujeito sob a
égide de um regime superegoico, antes de interdição — tal como a época
de Freud demonstrou —, e agora, no regime superegoico do gozo, da

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Um desafio contemporâneo à psicanálise... 117

permissividade, o da civilização moderna. Desde o início do século XX,


Freud apontava que “a psicanálise não é uma profissão que se preste a
normas regulamentares, tampouco universitárias”. Ele dizia:
[...] há certas complicações, com as quais as leis não se preocupam, mas
que não obstante exigem consideração. Talvez venha acontecer que nes-
ses casos os pacientes não sejam como outros, que os leigos não sejam
realmente leigos, e que os médicos não tenham exatamente as mesmas
qualidades que se teria o direito de esperar deles e nos quais suas alega-
ções devem basear-se. Se isto puder ser provado, haverá fundamentos
justificáveis para exigir que a lei não seja aplicada sem modificação ao
caso perante nós. (Freud, 1926, p. 210 )
Ou seja, antes, a relutância da cultura (civilização) à análise leiga
era trazida pela ciência; hoje, pelo Estado, no fundo, não laico. Com
outras roupagens, observamos insistir, desde o momento em que a psi-
canálise nasceu, uma tendência para tentar se apagá-la em seu mais
íntimo e legítimo rigor.

Da salvação pelos ideais à salvação pelos dejetos

A tese freudiana de que o sintoma ligado à verdade aloja um saber


inconsciente permitiu trazer o aspecto de uma salvação pela revelação
de uma verdade. Revelar o enigma dessa falha no saber, inconscien-
te, denotava-o assim como um saber não sabido. Desse modo, Freud
percebia se dissolverem os sintomas dos seus pacientes, como resul-
tado do ato de falar, que, inevitavelmente, conduzia-os ao campo da
sexualidade, no tocante a algo não realizado ou evitado por uma defesa
particular. O sintoma era uma resposta ao que teria sido intraduzível
simbolicamente a partir de um trauma, constituindo, ele mesmo, dessa
maneira, uma satisfação substitutiva. Assim, essa satisfação substitutiva

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118 Samyra Assad

sustentada numa verdade inconsciente, uma vez revelada, levava à re-


alização de outra satisfação. Um alívio. Uma salvação pelo Ideal. Isso
permite dizer que o Ideal sustentava uma salvação simbólica, trazendo
um sentido para o sintoma, ligado, por sua vez, à verdade de cada um.
É preciso dizer que aqui o Ideal expressaria um rumo, uma orientação
pelo sentido, um resgate do sentido pelo que não se sabia que sabia.
Não foi à toa que Freud se deteve em mitos que fundamentassem a
expressão simbólica da existência de um Pai, decisiva como ferramenta
de uma interpretação, fundamentando uma lei para o desejo e a culpa.
Ou seja, com isso, era dada para o sujeito a localização de algo em torno
do qual tudo girava e que fazia seu laço com uma realidade sexual do
inconsciente.
Os mitos de “Édipo” e de “Totem e tabu”, por exemplo, tra-
ziam, sob a espécie de uma forma épica de se dizer a estrutura subje-
tiva de linguagem, uma orientação pelo sentido, pelo Pai como Ideal.
Expressamente, foi em um dos seus últimos trabalhos, intitulado como
“Moisés e o Monoteísmo” (1938), que Freud atingiu, a meu ver, o ápi-
ce da sua tentativa de transmitir a importância da existência de uma
referência única e simbólica, como um princípio inerente à causalidade
psíquica. Diga-se de passagem que o contexto desse escrito em especial
se localizava no tempo da grande Guerra Mundial, em que a figura de
um líder, inclusive, dominava todo o mundo...
Logo, essa ponte da psicanálise com a religião via salvação pelos
ideais, pelo sentido, permite introduzir entre as duas certo aspecto de
conjunção sobre o qual a doutrina psicanalítica pode se deter muito
mais, dada a importância psíquica, simbólica e estruturante, sobre a
qual, entretanto, não vou me deter aqui.
Um passo a mais e esbarramos com a impossibilidade de se dizer
de onde vem isso, que é o mesmo que dizer da impossibilidade de se
nomear o lugar do silêncio de onde vêm as palavras ou, se quiserem,

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Um desafio contemporâneo à psicanálise... 119

do analista. Assim, essa referência simbólica cai, o discurso do Mestre


é o avesso do discurso analítico. A salvação passa a ser pelos dejetos.
Algo fracassa, inexoravelmente, no campo do ser falante, demonstrando
assim a experiência com o impossível de dizer, a experiência com o real.
Mas, no entanto, podemos dizer que é daí que advém uma invenção li-
bertadora, “literalmente” do nada, que possa adquirir uma durabilidade,
uma satisfação superior, quando se trata de uma salvação pelos dejetos
(Miller, 2010, p. 20). O caso do mendigo que encontra um livro de bio-
logia no lixo e se torna um médico pode ilustrar essa questão, guardadas
as devidas proporções daquilo que se extrai de uma análise, quando a
sucata que resta no final vira ouro em meio a um saber fazer com isso —
ou com o osso —, sobretudo, quando não importa mais a verdade.

Alguns ecos da queda dos ideais na contemporaneidade

É possível observar então a queda da referência paterna na pas-


sagem que demonstra o caminho do simbólico ao real. Esse vetor se
percebe tanto na trajetória de uma experiência analítica quanto no da ci-
vilização moderna, a qual se configura como um produto do discurso da
ciência e do capitalismo. Ambas experimentam a queda dos ideais, da
referência ao Pai, resultando a falta de sentido. Porém isso se demonstra
de forma distinta em cada uma delas (experiência analítica e civilização
moderna), justamente, no modo de existir:
• Do lado da civilização moderna, o progresso da ciência favorece
uma subjetividade contemporânea que, afinal, rechaça o inconsciente,
intensifica a insuportabilidade ao real, evita o adiamento de uma satisfa-
ção. Nessa escala progressiva, as realizáveis ficções científicas e jurídicas
se tornam obsoletas rapidamente, de acordo com a necessidade contem-
porânea de satisfação. É dessa forma que, na metonímia ou deslizamento

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120 Samyra Assad

dos objetos ofertados pela ciência e dos documentos jurídicos que visam
contornar situações contemporâneas nunca pensadas antes, permanece,
então, uma falta de sentido. Exacerba-se o caráter de uma permissivi-
dade, tal como foi possível também perceber no que se anunciava em
maio/68, sobretudo no refrão que gritava: “é proibido proibir”.
Estas são algumas das roupagens que sustentam, por outro lado, cer-
ta sede de sentido contemporânea, ou do movimento que leva ao triunfo
do sentido, tanto no que diz respeito à ciência quanto à religião. Trata-se
de movimentos que exigem o tamponamento de um furo intransponível
na existência humana, ao se trazer a oferta de um sentido para o que de
insuportável a permissividade ao gozo apresenta na civilização atual. É
aqui que podemos dizer com Miller (2004) que, em “O futuro de uma ilu-
são”, “Freud pôs o dedo sobre o que é hoje um extraordinário significante
mestre da religião: a vida” (p. 12).
Nisso, se me permitem dizer, é como se o globo terrestre pudesse
ser transformado numa boca aberta... A propósito, “Deus é o pão e a
vida”...
• Do lado da psicanálise em sua experiência clínica, a falta de sen-
tido resulta do tratamento das ficções aprisionantes do sujeito, desti-
tuindo-se assim o sentido do sintoma, ao mesmo tempo conduzindo-o
a uma liberação sob a espécie de uma invenção libertadora, a partir do
nada que restou disso tudo.
O milagre aqui, se assim posso dizer, é que esse encontro com o
que há de mais singular em cada um e que redefine um modo de vida,
nos permite reconhecer o tamanho da ficção que sustentou todas as nos-
sas escolhas e sofrimentos, reduzindo-a a um engano que não abriga ne-
nhuma correspondência, nem de significado, nem de substituição, sob a
égide de um discurso que não seria mais do semblante.
É como se a psicanálise viesse, no osso para o qual se conduzem
as palavras que veiculam uma história, demonstrar sempre a direção

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Um desafio contemporâneo à psicanálise... 121

para a existência de um furo irremediável na linguagem. Inclusive, nin-


guém produz um mesmo sonho igual ao do outro semelhante. Ninguém
tropeça nas mesmas palavras que o outro proferiu e tropeçou — há algo
que, inexoravelmente, permanece sem par e configura uma singulari-
dade ímpar.
Vê-se aí demonstrar o caráter irrefutável de um ponto de solidão,
incompartilhável, que, na maioria das vezes, o travesseiro é cúmplice,
depois de todo o barulho das crenças e leis antes buscadas para se fazer
ser e existir. Há uma pedra no caminho, mesmo que neste se estenda
um tapete vermelho rumo a uma lucidez medida, (ilusoriamente) espe-
rada... Enfim, há algo insocializável e que, em seu mais elevado grau
ético, não depende e nem se submete, definitivamente, ao Outro social.
O que diríamos de essa experiência sofrer a tentativa de ser me-
dida, padronizada, regulamentada, de tempos em tempos, em projetos
de lei? E ainda, por uma fatia da religião representada na política do
Congresso brasileiro? Ou mesmo pelas ofertas de formação impróprias
e de caráter finito veiculadas pela internet?

O escrito e o futuro

Há alguns anos, quando me deparei com a leitura de um discurso


de Lacan dirigido aos católicos em 1974, por ocasião de um congresso
em Roma, sobreveio a mim um impacto estranho: eu não sabia definir
se era um susto, indignação, ou mesmo um impulso para lutar con-
tra aquilo, evitar que acontecesse. O tom de uma surpresa permanece
quando percebo que fiz essa leitura no final do século XX, e esta se
mostra tão atual em termos do que foi antevisto em relação a uma
tendência na civilização. Assim, na virada de um século para o outro,
experimento então o futuro que estava escrito ali, naquele passado,

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122 Samyra Assad

nessa frase: “A religião triunfará. A psicanálise sobreviverá ou não”


(Lacan, 1974, p. 78).
Porém, atravessados o susto e a indignação, a vontade de lutar
contra ou evitar que isso acontecesse cedeu lugar à sustentação de um
desafio, que implica preservar a psicanálise fora de uma ética moral
e a serviço do Estado. Proponho, assim, três razões que, a meu ver,
justificam esse desafio colocado à prática da psicanálise nos dias de
hoje:
1. A primeira razão é que, por ter vivido uma longa experiência
analítica e aí perceber que o discurso religioso, nesse terreno, é incom-
patível, ou seja, o real insiste, o sentido não cobre o que resta dessa ex-
periência. A experiência com o inconsciente, a propósito, permite uma
pergunta, que, fundamentalmente, sustenta a formação de um analista,
produzindo-o.
A que veio? E de que lugar?
Não dá para alcançar isso se, lá no osso, na pedra do caminho
de uma análise, lá onde se instala a retirada de um amparo pela
crença no Outro, se dá consistência a esse Outro. Não dá para viver
a dimensão real da letra que escreve o ser falante — e que marca,
de certa forma, o seu destino nessa instauração do trauma da lingua-
gem —, se a substituirmos pela demanda do Outro social, colocar-
mo-nos sob uma lei burocrática, que se adequa e obedece ao patrão
contemporâneo.
Para os inadvertidos do caráter irredutível do sentido da letra que
escreve cada ser falante no mundo, e da impossibilidade radical de fazer
a sua leitura contingente dentro de uma carga horária, tais candidatos
podem facilmente aceitar, nessa onda da satisfação ou busca pelo sen-
tido e pelos números, o seguinte: “Tome essa avaliação feita em dois
anos, esse número de horas para a sua análise e supervisão, creia que um
sintoma é eliminado e não liberado, para que você possa, rapidamente,

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Um desafio contemporâneo à psicanálise... 123

sentar-se em uma poltrona e receber quem vai te pedir ajuda... Mas não
se esqueça: você tem que obedecer a um registro com carteira profis-
sional de psicanálise, bem como à respectiva fiscalização para se dizer
psicanalista apto a receber pacientes...”.
Posso dizer que há, então, um tensionamento, certo misto de sur-
presa e consequência que implica, de um lado, sustentar uma interven-
ção no discurso social — ou seja, preservar a psicanálise fora de uma
regulamentação pelo Estado —, e de outro, sustentar o que a rigor se
vive numa experiência analítica, justamente ao lado do que “legitima”
entre a doutrina e a política da psicanálise, a formação do analista. Trata-
-se da intervenção de um singular produzido na formação do analista via
sua própria experiência analítica, sobre o universal. Nisso, podemos di-
zer que o que importa mesmo é manter a prática analítica — a formação
que a sustenta — numa certa ruptura com as demandas do Outro social;
importa a posição do analista como um rebotalho da humanidade.
Logo, a ação que implica preservar a psicanálise fora de um char-
latanismo articula, de forma especial, a importância decisiva da experiên-
cia analítica sob a égide de um tempo sem duração, e um consequente
movimento na civilização, a fim de se conservá-la, essa experiência
analítica, fora de um domínio ditado pelo mestre contemporâneo, fora
das falsas garantias obtidas pelas normas, regras de carga horária, como
também pelo sentido.
2. A segunda razão que justificaria o desafio colocado à prática
da psicanálise nos dias de hoje se liga ao fato de que o futuro é incerto
e a cada um pertence. A sobrevivência da psicanálise supõe o esva-
ziamento de um lugar para aquele que a ela se submete. Esse lugar,
por sua vez, é “conquistado” a partir de uma longa experiência com
o inconsciente, outra forma de dizer sobre a importância de saber não
saber. Sumariamente falando, essa é a condição para que uma causa —
a causa analítica daí proveniente — possa favorecer, por conseguinte,

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124 Samyra Assad

escutar outros sujeitos sem interferir na construção do desejo incons-


ciente que operou na fantasia e no sintoma de cada um deles.
O analista produzido em uma experiência analítica, portanto,
carrega esse aspecto que não nos permite dizer que a psicanálise so-
breviverá, mas, fundamentalmente, onde ela sobrevive. O analista, na
verdade, é um resto dessa operação analítica e que marca o princípio
de um novo discurso. Posso dizer, então, que essa posição advém de
acordo com a letra consentida de uma nova forma, no destino daquele
que fez do ofício da psicanálise um modo de vida.
3. A terceira razão para o desafio atual à psicanálise, provém da
interferência da religião na política, decorrendo daí o nefasto interesse
de regulamentar psicanálise. Nosso objeto de trabalho é, portanto, lutar
contra isso, tentar evitar que isso aconteça, sustentando a legitimidade
do ofício da psicanálise fora de uma lei insensata e equivocada.

Adiante!

Há uma preocupação que a EBP tem desde o ano 2000, quando


— junto a 17 instituições psicanalíticas que se reuniram sob a égide
da criação de um movimento denominado Articulação das Entidades
Psicanalíticas Brasileiras —, nos contrapusemos ao projeto de lei ela-
borado por um deputado e pastor evangélico, o qual visava regula-
mentar a psicanálise sob critérios burocráticos impróprios à tão cara
ética da psicanálise. De 1975 a 1980, seis projetos de lei dessa natu-
reza foram elaborados; a este do ano 2000 seguiram-se outros três,
igualmente arquivados. No antepenúltimo projeto de lei elaborado
em 2010, conseguimos, através de cartas assinadas pelas instituições
envolvidas nesse Movimento, evitar que a psicanálise fosse inseri-
da, dessa vez, no campo das psicoterapias. No fim do ano de 2017,

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Um desafio contemporâneo à psicanálise... 125

estivemos diante de mais um projeto de regulamentação da psicanáli-


se, dessa vez sob a égide das “terapias naturistas”...3
Logo, desde o final do século XX, podemos enumerar pelo menos
dez tentativas que visaram regulamentar a psicanálise. O que signifi-
ca haver mais preocupação a respeito, pois, em dimensões opostas, os
religiosos também trabalham em silêncio, até que um novo incêndio
aconteça. Somos impelidos a “defender” a psicanálise ao colocarmos à
prova a sua prática como também a sua doutrina, e, fundamentalmente,
os efeitos da experiência analítica de cada um.
É evidente, no entanto, que não se trata de levantar a bandeira
da psicanálise, reclamar também o seu triunfo. Talvez possamos nos
limitar a dizer a que vem a psicanálise e de qual lugar, cuja prática não
admite e nem se vale de uma autorização burocrática estatal.
Tanto é que o que fez nascer a psicanálise, batizada por Sigmund
Freud, foi o momento quando uma paciente lhe rogou desprezar outros
métodos intermediários para que ele, simplesmente, a deixasse falar. O
nascimento da psicanálise transformou a civilização, apontando-lhe o
seu mal-estar: primeiramente, sob a égide de uma cultura da inibição,
e, hoje, da desinibição.

O triunfo do sentido

O problema que se coloca então, a princípio, é saber por que al-


guns políticos que fizeram sua escolha pela religião evangélica se

3. Frase acrescentada recentemente. Trata-se do PL 174/2017. Um pouco mais tar-


de, em abril de 2018, surgiu mais um projeto específico para a regulamentação da
Psicanálise, o PL 101/2018, contra o qual nossa luta, atualmente, continua.

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126 Samyra Assad

interessam por regulamentar a psicanálise. Como desfazer o equívoco


crescente que traz sérias e graves consequências, no que tange ao uso
da psicanálise sob a forma de um ideal religioso, seja ele qual for? Não
temos nada contra os religiosos, mas descaracterizar a psicanálise é pre-
ocupante; sua ética própria não se assenta, sob espécie alguma, numa
educação, crença ou moral. A doação de sentido tem o preço da morte
do sujeito desejante.

(H)a vida na voz

Como introduzir uma intervenção que aponte a direção para um


resgate do ser desejante, em meio ao empuxe homogeneizante e mortí-
fero da promessa de felicidade e completude que a religião e a ciência
simulam em suas crenças e leis?
Do império do sentido e da imagem ao eco de uma voz que
possa dar lugar ao consentimento de que nem tudo é traduzível pelo
sentido — este, a meu ver, seria o percurso de um desafio para sus-
tentar o real que faz sobreviver as sutilezas da psicanálise, as quais
guardam o que há de mais singular e inavaliável em cada um. Mas,
por enquanto, “assistimos a um maravilhoso esforço, uma nova ju-
ventude da religião em seu esforço de afogar o real por meio do sen-
tido” (Miller, 2004, p. 14).
Antes de concluir, deixo pelo menos três tópicos para reflexão,
ou algumas vertentes passíveis de serem extraídas dessa tendência
atual:
• a ideia de uma complementação entre o espírito e o psíquico,
inerente à interferência da religião sobre a psicanálise nos tem-
pos atuais, não é o aspecto central; os ideais religiosos fazem uso
da psicanálise para o aumento de fiéis e dos dízimos, tal como

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Um desafio contemporâneo à psicanálise... 127

podemos ver publicado na revista Cult n. 160: “Pastores brasileiros


usam psicanálise para cativar fiéis evangélicos — Por meio do es-
tudo das teorias de Freud, religiosos tentam aumentar o rebanho e
o dízimo”;4
• a presença de uma proliferação em massa das propostas de formação
em psicanálise, “garantidas” pelo papel reciclado de um diploma e
veiculadas por internet, bem como a instalação de filiais em todo o
território nacional é preocupante, pois podemos acompanhar nas pre-
missas dessas ofertas e filiais os projetos de lei arquivados até então
para se regulamentar a psicanálise. Essas propostas de formação estão
adquirindo um caráter progressivo e irrefreável;
• a direção para um movimento mais abrangente que possa, em seu
voto, evitar que uma ferida indesejável e insistente se instale na laici-
dade de uma análise, bem como na política brasileira, é algo, enfim,
que deve ser considerado..
Penso que tudo dependerá dos efeitos que uma experiência ana-
lítica traz, nos campos clínico, epistêmico e político — ou seja, os
efeitos de uma psicanálise pura sobre os ideais sociais e políticos.
A meu ver é aí que o ensinamento de Jacques Lacan, em seu Seminário
XV sobre A lógica da fantasia, encontra uma expressão que evidencia
ou reforça, no contexto atual, o pivô de uma direção: “O inconsciente,
é a política”.
Assim, na pergunta que reflete a longa e permanente trajetória
da formação do analista, qual seja, “a que se veio”?, algo permanece
intocável, intraduzível, porém, inegavelmente, mantém e coloca em
movimento o rigor de uma causa analítica. A partir da letra que redefi-
niu, de certo modo, um destino a ser tomado aí, me aproximo do real

4. Amanda Massuela, revista Cult, São Paulo, n. 160, de 5/9/2014.

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128 Samyra Assad

em jogo inerente à formação analítica, nesse chamado à reconquista


do campo freudiano. Trata-se de algo que reflete nada mais do que a
marca de um desejo, a saber, o de fazer sobreviver a psicanálise pela
sustentação do real, e não por uma burocracia ou ideal religioso. Há
aí o dever ético de manter a psicanálise fora de uma lei do Estado ou
daquela que incentiva a culpa e o sacrifício.

Referências

Freud, S. (1926). A questão sobre a análise leiga. In: Edição Standard das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. V. XX.
______. (1927). O futuro de uma ilusão. In: Edição Standard das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. V. XXI.
______, (1939). Moisés e o monoteísmo. In: Edição Standard das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. V. XXIII.
Lacan, J. (1974). El triunfo de la religión. In: El triunfo de la religión precedido de
Discurso a los Católicos. Buenos Aires: Paidós, 2005. p. 78.
Miller, J. A. Religião, psicanálise. Opção Lacaniana, São Paulo, n. 39, p. 9-24, maio
2004.
______. A salvação pelos dejetos. Revista Correio, São Paulo, n. 67, p. 23-24, dez.
2010.
.

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S omos todos Theodor Reik!

Sidnei Goldberg1
Rosane Ramalho2
Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA

Freud escreveu o livro A psicanálise leiga para defender Reik, seu


brilhante discípulo, da acusação de exercício ilegal da medicina, charla-
tanismo. Decerto essa acusação não ocorreu à toa, já que, como lembra
Lacan, a psicanálise surgiu como a mais fina flor da medicina no final
do século XIX para tratar de sintomas causados pelas aflições que aco-
metem os seres de linguagem, os ditos humanos.
Freud também teve sobre si, e principalmente sobre sua invenção,
essas mesmas acusações vindas tanto do campo intitulado científico, a
medicina universitária, quanto do campo político.
No filme Lou, que conta a história de Lou Andréas-Salomé, uma
cena inicial nos chama a atenção: uma enorme queima de livros. Na

1. Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA.


2. Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA.

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130 Sidnei Goldberg e Rosane Ramalho

gigantesca fogueira vê-se uma foto de Freud numa página de livro sen-
do consumida pelas chamas. Uma voz ao fundo atiça a multidão, o tom
é de ódio e ouvimos a expressão: psicanálise, ciência judaica. Isto ocor-
reu em 1933, logo após a ascensão de Hitler ao poder.
Em um outro filme, Freud além da alma, vemos, numa das cenas
finais, o episódio em que Freud apresenta suas teorias sobre a etiologia
das neuroses, especificamente o tema da sexualidade infantil e, nesse
momento, sofre acusações de produzir uma teoria charlatã. Tais acu-
sações acompanharam o desenvolvimento da teoria psicanalítica: entre
os argumentos repetidos estava o de que Freud produzia uma ciência
judaica. No período entre 1895 e 1933, observamos o desenvolvimento
progressivo e simultâneo tanto da psicanálise quanto do nazismo, como
nos aponta Roudinesco (2016). Nesse sentido, a conferência XXXV:
“A questão de uma Weltanschauung” pode ser compreendida como um
dos momentos em que Freud responde de maneira sintomática, dizen-
do: ciência sim, religião não. Nesse ponto, Freud está balizado pelo
imperativo de localizar sua invenção no campo da ciência, tomando
como molde a física de sua época. Por outro lado, a clínica o conduz
para além de suas intenções, o que o fez oscilar entre oposições como
trauma e fantasia, realidade histórica e realidade psíquica, lembranças
encobridoras e lembranças reais. Há uma aproximação dos termos re-
ligião, fantasia, mente infantil, mentes primitivas e, especialmente, o
termo ilusão, com a noção de falsidade, charlatanismo.
Num de seus últimos textos, “Construções em análise”, Freud
(1937a) propõe que alcançar as lembranças do passado através de inter-
pretações é essencial num processo de cura. Ainda assim reconhece que
devemos trabalhar como um arqueólogo construindo ou reconstruindo
a realidade histórica a partir de restos. Parafraseando Cazuza: “Raspas
e restos nos interessam”. E, estendendo essa busca da verdade histórica
à psicose, afirma: “Assim como a nossa construção só tem efeito por

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Somos todos Theodor Reik! 131

trazer de volta uma parte da história de vida perdida, o delírio também


deve seu poder de convencimento à porção de verdade histórica que ele
coloca no lugar da realidade rejeitada” (p. 379).
Porém Freud reconhece no mesmo texto que muitas vezes não
conseguimos levar o paciente a recordar o recalcado, mas que se o pa-
ciente adquirir uma convicção segura da verdade da construção, isto
terá, do ponto de vista terapêutico, o mesmo efeito que uma recordação
recuperada.
Num texto contemporâneo,“Análise finita e a infinita”, Freud
(1937b) comenta aspectos de nossa prática com a seguinte metáfora: “É
como a diferença que o artista plástico deve sentir quando trabalha com
a pedra dura e a argila maleável. […] temos a impressão de que não
trabalhamos com argila, mas que escrevemos sobre a água” (p. 347).
Sob esse fio de navalha, bascula o discurso freudiano: verdade
histórica ou ficção?
No Seminário 2, Lacan profere a famosa frase: o inconsciente é
o discurso do grande Outro, todos estamos destinados a tropeçar em
algo que também foi um tropeço para as gerações anteriores. É nesses
tropeços que se pode fazer algo novo ou apenas reproduzir o tropeço.
Lacan também tropeça nesse tema da ciência e da legitimidade
versus o charlatanismo. Pode-se evocar diversas passagens, mas basta
lembrar o episódio de sua “excomunhão”. O fato de ter aberto a audiên-
cia de seus seminários para um público não médico trouxe para ele todo
tipo de reação contra si, que, aliada à sua prática de sessões com tempo
lógico ou curto, segundo quem as descreva, teve como consequência
que as análises didáticas até então conduzidas e as que ulteriormente
conduzisse passariam a ser consideradas inválidas.
No início de seu percurso, Lacan dizia que a psicanálise era uma
ciência conjectural; adiante, investiu na ideia de uma transmissão do
saber fazer clínico e teórico por matemas e criou um mecanismo de

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132 Sidnei Goldberg e Rosane Ramalho

verificação dos efeitos de uma análise através do procedimento do pas-


se. Ao final, concluiu que tal experiência havia sido um fracasso e que a
psicanálise requereria ser reinventada novamente a cada vez.
Se eu disse, em Lille, que o passe tinha me decepcionado, é por causa
disso, pelo fato que seja preciso que cada psicanalista reinvente, segundo
o que ele conseguiu retirar do fato de ter sido por um tempo psicanali-
sante, que cada analista reinvente o modo como a psicanálise pode durar.
(Lacan, 1979, p. 219-220)
Isto não significa que a questão tenha sido encerrada. Ao con-
trário, segue o desafio, a todos que se inscrevem sob o “significan-
te” psicanálise, de criar maneiras de aferir onde e quando — em que
momento — se dá a passagem da posição de analisante à de analista.
Esta questão se apresenta a Lacan desde muito cedo; na última aula
do Seminário 1 (1953-54), ele diz: “É tão extravagante em relação à
realidade dizer eu sou psicanalista quanto eu sou rei”. Vai ao cerne da
questão afirmando que não há nada que possa servir de medida das
capacidades: “As legitimações simbólicas em função de que um ho-
mem assume o que lhe é conferido, por outros, escapam inteiramente
ao registro das habilitações capacitárias” (p. 317). Há instituições que
propõem uma reinvenção do mecanismo do passe, outras criam ou-
tros dispositivos discursivos, mas é fato que ninguém tem como passar
incólume à questão: seguimos acossados entre evangélicos a fundar
cursos e supostos órgãos como conselhos de psicanálise, a corpora-
ção médica que tal qual nos primórdios da psicanálise, segue tentando
aprovar o “ato médico”, o Estado sendo cooptado a designar qual o
método verdadeiramente científico para cuidar de tal ou qual distúr-
bio. Se o sujeito aparece sempre representado por um significante em
relação a outro, teremos sempre aberto um campo deslizante frente à
questão da legitimidade. E que sobre isto pairem incertezas podemos
dizer que é o melhor dos casos.

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Somos todos Theodor Reik! 133

Para encerrar, duas citações de Lacan (2016a) sobre Freud:


Freud estava convencido que ele fazia ciência; [...] Mas o que ele fez é
uma espécie de construção genial. Uma prática, e uma prática que fun-
ciona. (p. 52)
O curioso é que Freud pensava que fazia ciência, ele estava em vias de
produzir uma certa prática que pode ser caracterizada como a última flor
da medicina. Esta última flor encontrou refúgio aqui porque a medicina
tinha numerosos meios de operar, inteiramente repertoriados com ante-
cedência, regulados como o papel para a música, e ela teve de encarar o
fato de que havia sintomas que não tinham nada a ver com o corpo, só
com o fato de que o ser humano é afligido, se se pode dizer, pela lingua-
gem. Por essa linguagem ele é afligido e ele faz suplência [...]. (Lacan,
2016b, p. 29)
E podemos dizer, sintoma! Sinthoma!

Referências

Freud, S. (1937a). Construções em análise. Fundamentos da clínica psicanalítica. In:


Obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
______. (1937b). A análise finita e a infinita. Fundamentos da clínica psicanalítica. In:
Obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. (Tema traba-
lhado por Sergio Laia em texto anexo ao final desse mesmo volume.)
Lacan, J. (1953-54). O seminário. Livro 1. Os escritos técnicos de Freud. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1986.
______. A transmissão – Encerramento o 9º Congresso da Escola Freudiana de Paris,
9/7/1978. Correio da APPOA. Publicado originalmente em Lettres de L’École, n. 25,
p. 219-220, 1979.
______. Lacan in North America. Entrevista com os estudantes na Yale University, 24
de novembro de 1975. Frederico Denez; Gustavo Capobianco Volaco (Orgs.). Porto
Alegre: Editora Fi, 2016a.

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134 Sidnei Goldberg e Rosane Ramalho

Lacan, J. Lacan in North America, Conferência de 24 de novembro de 1975, Yale


University. Frederico Denez; Gustavo Capobianco Volaco (Orgs.). Porto Alegre:
Editora Fi, 2016b.
Roudinesco, E. Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo. Rio de Janeiro: Zahar,
2016.

O oficio do psicanalista II.indd 134 08/02/2019 14:45:03


O desser e a impossível profissão

Sonia Alberti
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-Brasil

Quando Freud, em 1926, publica seu texto sobre a questão da psi-


canálise leiga, já deixa claro que o psicanalista é leigo, no mais am-
plo sentido da palavra, ou seja, não se inscreve em nenhuma profissão
existente, menos ainda numa profissão de fé. Pudemos retomar a ín-
tegra do apêndice desse texto — por ele redigido um ano depois —,
nos anexos de nosso primeiro livro, Ofício do psicanalista: formação
vs. regulamentação. O “ofício”, aqui, faz toda a diferença que nunca é
demais ressaltar. Até porque o Movimento Articulação das Entidades
Psicanalíticas brasileiras surgiu no ato de contrariar toda e qualquer
tentativa de regulamentar o exercício da psicanálise para além do que
já está regulamentado a partir de seu interior, com Freud, quando ele
determinava que no tratamento psicanalítico somente duas regras se im-
põem: por parte do analisante, a associação livre, por parte do analista,
a abstinência. Isso quer dizer que toda e qualquer regra que possa ser
tentada em relação à psicanálise ameaçaria, necessariamente, sua pró-
pria regulação, já que não é possível manter a total liberdade associa-
tiva, menos ainda a estrita abstinência, se outras regras se impusessem

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136 Sonia Alberti

ao psicanalista. Freud (1927) também já nos alertava para isso, como


pude retomar no Prefácio do primeiro livro, “qualquer tentativa de re-
gulamentação da psicanálise que venha de fora a deixará num futuro
sombrio e fatal” (apud Alberti, 2009, p. 12).
Em consequência, tampouco é possível que se exija do psicana-
lista qualquer formação se não aquela que a própria psicanálise exige,
e que chamamos “formação do psicanalista”, sustentada no tripé psi-
canálise, supervisão e cursos — estes, de espectro tão amplo quanto
possível, em particular, estudos clínicos. Eis o que uma entidade que
visa à formação de analistas oferece e por oferecê-lo pode integrar o
movimento que produz este livro.
Na realidade, pensar o ofício do psicanalista como uma atividade
profissional sempre adveio de tentativas de regulamentar a psicanálise
totalmente “à revelia dos psicanalistas” (Amendoeira, 2009, p. 27). Já
pudemos observar que
A psicanálise é um ofício, não uma profissão a que se chega com um
diploma. Como praticamente todas as atividades exercidas no Brasil, ela
está incluída na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), versão
2002. [...] A CBO não regulamenta, apenas reconhece as ocupações por
meio de pesquisa de campo, em que os pesquisadores identificam as ocu-
pações existentes no mercado de trabalho, descrevem-nas, nomeiam-nas
e lhes dão um código identificatório. Assim, a CBO trata do reconhe-
cimento da existência de determinada ocupação e não de sua regula-
mentação profissional. A regulamentação pressupõe o estabelecimento
de qualificação, critérios e condições para o exercício de atividade ou
ocupação especializada, que exige determinado preparo profissional.
(Lannes, 2009, p. 35)
Como pode escrever Lannes (2009), na própria Classificação
Brasileira de Ocupações (CBO) do Ministério do Trabalho lê-se, ex-
plicitamente, que “a ocupação psicanalista não é uma especialização,
é uma formação que segue princípios, processos e procedimentos

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O desser e a impossível profissão 137

definidos pelas instituições reconhecidas internacionalmente, podendo


o psicanalista ter diferentes formações, como: psicólogo, psiquiatra,
médico, filósofo etc.”. Na contramão de “critérios” para “determinado
preparo profissional”, o ofício do psicanalista demanda “uma formação
que segue princípios, processos e procedimentos definidos pelas ins-
tituições reconhecidas internacionalmente” (p. 35), seja para intitular
um psicanalista aquele que tenha recebido formação assim reconhecida,
seja para orientar toda uma instituição de formação. Isso se conjuga à
observação que Freud fazia em 1926 quando, na contramão de uma
militância pela profissão de psicanalistas, se perguntava para quê, que
necessidade haveria de o psicanalista buscar um reconhecimento pro-
fissional? Seria para distingui-lo dos charlatões? É no capítulo seis que
o define: “É charlatão aquele que assume um tratamento sem possuir
os conhecimentos e as capacidades necessárias” (Freud, 1926, p. 321),1
concluindo: se naquela época eram os médicos que buscavam ritualizar
a profissão de psicanalistas, eram eles mesmos aqueles que mais prati-
cavam o charlatanismo, pois eram eles que “frequentemente, exercem
o tratamento psicanalítico sem tê-lo aprendido e sem compreendê-lo”
(idem, ibid.). E, no entanto, da história da psicanálise sabemos que foi
justamente naquela época que os médicos quiseram — e instituíram, na
IPA — o monopólio da prática psicanalítica para os diplomados em me-
dicina. Aliás, como também sabemos, o texto de 1926 — e seu anexo
de 1927 — foi redigido, por Freud, na tentativa que derrubar esse ato

1. “Kurpfuscher ist, wer eine Behandlung unternimmt, ohne die dazu erforderlichen
Kenntnisse und Fähigkeiten zu besitzen. Auf dieser Definition fußend, wage ich
die Behauptung, daß – nicht nur in den europäischen Ländern – die Ärzte zu den
Kurpfuschern in der Analyse ein überwiegendes Kontingent stellen. Sie üben sehr
häufig die analytische Behandlung aus, ohne sie gelernt zu haben und ohne sie zu
verstehen”. http://gutenberg.spiegel.de/buch/die-frage-der-laienanalyse-928/6

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138 Sonia Alberti

institucional. Para aprender e compreender o tratamento psicanalítico


há apenas um modo: fazer uma psicanálise com um psicanalista, para
além disso, fazer supervisão e estudar.
Daí a importante questão: o que é um psicanalista? Pois se é neces-
sário fazer um tratamento com um, quem é ele? Se não há uma resposta
imediata para essa pergunta, se ele não se define sob a insígnia de uma
profissão, se até mesmo um médico formado pode, nesse contexto espe-
cífico, ser dito um charlatão — e não é por qualquer pessoa, e sim pelo
fundador da psicanálise, ele próprio um médico — então que resposta
dar a essa questão?
Ela não é dada a priori. Cada psicanalista precisa poder respon-
dê-lo à sua maneira, a partir da formação psicanalítica que recebeu, da
clínica que sustenta, do que pode sustentar com seu ato, ou seja, como
diz Lacan, “de um antes e de um depois” (Lacan, 1967-68, p. 378). O
“antes” implica a passagem de analisante a analista, o “depois”, os efei-
tos do ato analítico que o trabalho vivo de transmissão da psicanálise
produz nos analisantes. Tanto do “antes” quanto do “depois” é possível
dar seu testemunho, no contexto de uma entidade psicanalítica que as-
sume a árdua tarefa de oferecer a formação do psicanalista.
E o que são essas entidades? Em seu primeiro seminário, Lacan
nos remete ao texto de Santo Agostinho, em que este introduz o se-
guinte questionamento: quando é que um discípulo aprende verdadei-
ramente? É quando ele examina em si mesmo se o que escutou de
seus mestres é verdadeiro, e o faz examinando sua verdade interior.
Havendo coincidência, ele poderá louvar seus mestres, mas quando o
faz, ignora que os mestres aos quais endereça seus louvores são muito
mais ensinados do que ensinantes (Santo Agostinho). Se há uma rela-
ção da psicanálise com a verdade, e se essa verdade, em psicanálise, é
tal como foi definida por Freud na articulação com a ficção (cf. Freud,
1917), com o que a encobre como já expressava o conceito grego

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O desser e a impossível profissão 139

aletheia que inclui no desvelamento da verdade seu próprio velamen-


to, então há sempre algo a saber, há um furo no saber, há um não saber
a partir do qual se ensina. Daí as três profissões impossíveis a que se
referiu Freud, governar, educar e psicanalisar, impossível do qual o
psicanalista precisa estar advertido para não cair no engodo, na crença
de uma certeza prévia, mas ser capaz “de se deixar levar onde quer que
fosse que essa experiência houvesse de levá-lo” (Elia, 2009, p. 80).
Que isso tem a ver com o reconhecimento do rochedo da castração,
como o chamava Freud (1937), não há dúvidas, reconhecimento esse
que Freud propôs para um final de análise. Fazer com o impossível é
usá-lo como instrumento de trabalho.
Quando não há esse reconhecimento da castração, a impotência
humana se torna uma profissão de fé que pode levar à ilusão do ideal
profissional, nos diz Lacan (1962-63) e completa: “Tudo o que se abriga
atrás da dignidade profissional sempre é essa falta central que é a impo-
tência. A impotência, se podemos dizer, em sua fórmula a mais geral, é
aquela que leva o homem a gozar apenas de sua relação como o suporte
do + φ [da positivação do falo], quer dizer, uma potência enganadora”
(p. 311). Ele já o observava quando se debatia contra a standadização da
sessão em análise, como se regular a sessão e cronometrar o seu tempo
de duração pudessem garantir à psicanálise uma correção (Lacan, 1953,
p. 313). Ensinar a psicanálise nessas bases é como ensinar numa escola
de dentistas, enfermeiros qualificados (Lacan, 1957, p. 459), mas a for-
mação do psicanalista em nada se identifica com esse ensino profissio-
nalizante. O próprio ensino da psicanálise é sua transmissão, ou seja, a
transmissão de um discurso, e “não há formação do analista concebível
fora da manutenção do dizer” (Lacan, 1972 p. 454). O dizer é singular,
o psicanalista é singular, efeito de sua própria análise cuja história é sin-
gular e, enquanto tal e somente a esse título, pode acrescentar alguma
coisa à comunidade e ao saber dos psicanalistas de uma forma geral.

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Qualquer tentativa de regulamentar a psicanálise implicará a per-


da do psicanalista, esse objeto que Freud criou para fazer valer o di-
zer de cada sujeito que pode vir a procurar um psicanalista para falar.
Regulamentá-lo como profissão apagará sua singularidade e tornará o
psicanalista profissional um ator sem ato. “Autorizar-se [analista] não é
autorri(tuali)zar-se” (Lacan, 1973, p. 308).
Mas para estar à altura do ato psicanalítico é preciso que o analista
não seja sujeito do conhecimento — como o é um profissional —, mas
“instrumento de revelação” (Barillot, 2008), objeto que o analisante irá
deixar cair quando terminar. Como então seria possível manter a sober-
ba de um suporte do + φ de uma ilusória profissão se o resultado que se
almeja não vai além do desser que o analista testemunha — e transmite
— de seu próprio final de análise?
Ao contrário de um profissional, o psicanalista é ninguém, daí seu
horror ao próprio ato, como o observa Lacan numa carta de 1980 ao
jornal Le Monde. Mas se não for assim, ele não é psicanalista.

Referências

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Lannes, E., Lopes, A., Rocha, E. (Orgs.). Ofício do psicanalista: formação vs. regula-
mentação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009. p. 7-20.
Amendoeira, W. A articulação das entidades psicanalíticas brasileiras. In: Alberti, S.,
Amendoeira, W., Lannes, E., Lopes, A., Rocha, E. (Orgs.). Ofício do psicanalista: for-
mação vs. regulamentação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009. p. 23-32.
Barillot, P. Particularité de l’acte analytique. Disponível em: <https://champlacanien-
france.net/sites/default/files/barillot.pdf>. Acesso em: 15 out. 2018.
Elia, L. Leiga por rigor: o que é impossível regulamentar na psicanálise? In: Alberti,
S., Amendoeira, W., Lannes, E., Lopes, A., Rocha, E. (Orgs.). Ofício do psicanalista:
formação vs, regulamentação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009. p. 79-88.

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O desser e a impossível profissão 141

Freud, S. (1917). Uma recordação de infância em Poesia e verdade. In: Obras comple-
tas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. V. 14, p. 263-278. Disponível em: <http://
gutenberg.spiegel.de/buch/kleine-schriften-i-7123/13>. Acesso em: 15 out. 2018).
______. (1926). Die Frage der Laienanalyse: Unterredungen mit einem Unparteiischen.
In: Studienausgabe. Frankfurt a.M., S. Fischer Verlag, vol. Behandlungstechnik, 1975.
pp. 271-350. (Tradução: A questão da análise leiga: diálogo com um interlocutor impar-
cial. In: Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. V. 17. pp. 124-217).
______. (1927). Pós-escrito de “A psicanálise leiga”. In: Alberti, S., Amendoeira, W.,
Lannes, E., Lopes, A., Rocha, E. (Orgs.). Ofício do psicanalista: formação vs. regula-
mentação. Trad. de Eduardo Vidal. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.
______. (1937). Die endliche und unendliche Analyse. In: Studienausgabe. Frankfurt
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Lacan, J. (1953). Função e campo da fala e da linguagem. In: Escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1998. p. 238-324.
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Santo Agostnho. Capítulo XIV: L’Homme parle au dehors, le Christ enseigne au dedans.
I n: Du Maître. §45. Tradução para o francês do Abade Raulx. Disponível em: <http://
www.abbaye-saint-benoit.ch/saints/augustin/maitre/index.htm#_Toc14686863>.
Acesso em: 15 out. 2018.

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Apêndice

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MANIFESTO DAS ENTIDADES
BRASILEIRAS DE PSICANÁLISE

Há cerca de noventa anos a formação de psicanalistas está baseada


em três atividades complementares e indissociáveis entre si: a análise
pessoal, os cursos teóricos e a supervisão dos casos clínicos.
Esta tríade configura a formação como um ofício, e o psicanalista
aprende e ganha qualificação em oficinas — os institutos de formação
— nos quais, artesanalmente, no contato com outros analistas, desen-
volve sua análise pessoal, realiza seus seminários para o aprendizado
teórico e técnico e tem o seu trabalho supervisionado. A formação de
cada psicanalista é um processo permanente, que se amplia no seu diá-
logo com os textos clássicos e com os produzidos por outros analistas,
confrontados com a sua experiência pessoal na relação com seus anali-
sandos, mesmo quando já está qualificado como psicanalista. Esta qua-
lificação, portanto, não se ajusta aos modelos que podem sofrer algum
tipo de certificação por instituições de ensino ou órgãos reguladores
públicos; se existe um indicador, ele será, com certeza, o de qual é a
instituição que forma, quem são seus componentes, que padrões são
seguidos. Gradualmente esse campo se expandiu e surgiram institui-
ções que se propõem a formar analistas, com variações nos requisitos e
na modelagem do processo de formação, mas mantendo os princípios
gerais como estabelecidos no início do século passado e ampliando a

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146 Ofício do psicanalista II

parcela dos analistas, filiados a várias outras escolas, que se dedicam ao


estudo e à prática da psicanálise.
Ao longo dos anos esse campo estabeleceu e mantém suas tradi-
ções, com uma prática onde se preserva o patrimônio da psicanálise e
onde se organiza um campo de assistência, representado pelo tratamen-
to às pessoas que nos procuram. As instituições psicanalíticas têm a res-
ponsabilidade social de formar psicanalistas competentes, conferir-lhes
autonomia para o exercício de sua função, responsabilizando-os quanto
à ética de seus atos.
Por estes motivos a psicanálise não é regulamentada como pro-
fissão no Brasil e em nenhum outro país. Mesmo entre os psicanalistas
existem muitas controvérsias e discussões, embasadas no processo de
formação e na natureza do exercício da prática clínica, sobre as possibi-
lidades de sua regulamentação.
Nos últimos cinquenta anos várias tentativas, geralmente apresen-
tadas por parlamentares, têm sido feitas para alcançar uma regulamen-
tação que, à primeira vista, protegeria os psicanalistas e a população que
recorre ao tratamento psicanalítico. Todas foram rejeitadas pela comu-
nidade psicanalítica brasileira, ou por não atenderem às especificidades
intrínsecas à psicanálise ou porque representavam somente interesses
particulares de grupos e não visavam o bem-estar da população.
No momento está na ordem do dia mais uma dessas tentativas: o
Projeto de Lei nº 3.944 de 13 de dezembro de 2000, de autoria do depu-
tado Eber Silva, do Rio de Janeiro.
Este projeto é, no seu todo, inaproveitável. Parte de premissas ab-
solutamente equivocadas e estipula procedimentos incompatíveis com
a essência do ofício e da formação de seus praticantes, abrindo mão do
que consideramos o passo inicial de qualquer tentativa séria de abordar
esta questão — ouvir a comunidade brasileira de psicanalistas, através
das Sociedades e entidades que os formam e representam. A psicanálise

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Apêndice 147

exercida no Brasil desfruta de um reconhecimento, no país e no exte-


rior, conquistado pela seriedade com que preserva e transmite o patri-
mônio legado por Freud.
Os psicanalistas não reclamam nenhuma regulamentação do
Estado. A psicanálise progride há mais de um século graças a princípios
e métodos rigorosos e um corpo teórico que tem a proposta de Sigmund
Freud como fundamento.
Aqui estão as principais entidades representativas que formam este
campo e que assumem plenamente o compromisso com a sociedade e
com a população, buscando proteger o que sabemos ser o importante e
essencial para todos nós — a presença efetiva da psicanálise no Brasil.
1. Associação Brasileira de Psicanálise
2. Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
3. Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro
4. Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro
5. Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro
6. Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre
7. Sociedade Psicanalítica do Recife
8. Sociedade Psicanalítica de Pelotas
9. Sociedade Psicanalítica de Brasília
10. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
11. Grupo de Estudos Psicanalíticos de Ribeirão Preto
12. Grupo de Estudos Psicanalíticos de Mato Grosso do Sul
13. Núcleo Psicanalítico de Belo Horizonte
14. Núcleo Psicanalítico de Marília e região
15. Núcleo Psicanalítico de Natal
16. Núcleo Psicanalítico de Fortaleza
17. Núcleo Psicanalítico de Maceió
18. Núcleo Psicanalítico de Vitória
19. Círculo Brasileiro de Psicanálise

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148 Ofício do psicanalista II

20. Círculo Psicanalítico da Bahia


21. Círculo Psicanalítico de Pernambuco
22. Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul
23. Círculo Psicanalítico de Sergipe
24. Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
25. Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro
26. Grupo de Estudos Psicanalíticos – MG
27. Instituto de Estudos Psicanalíticos – MG
28. Sociedade Psicanalítica da Paraíba
29. Departamento Formação em Psicanálise, Instituto Sedes Sapientiae-SP
30. Departamento de Psicanálise, Instituto Sedes Sapientiae-SP
31. Departamento de Psicanálise da Criança, Instituto Sedes Sapientiae-SP
32. Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro
33. Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro
34. Escola Brasileira de Psicanálise – Escola do Campo Freudiano
35. Escola de Psicanálise Letra Freudiana
36. Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle
37. Corpo Freudiano do Rio de Janeiro – Escola de Psicanálise
38. Práxis Lacaniana/Formação em Escola
39. Laço Analítico Escola de Psicanálise RJ
40. Laço Analítico Escola de Psicanálise Varginha (MG)
41. Laço Analítico Escola de Psicanálise Cuiabá (MT)
42. Associação Fóruns do Campo Lacaniano
43. Escola Lacaniana de Psicanálise – RJ
44. Escola Lacaniana de Psicanálise de Brasília
45. Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória
46. Percurso Psicanalítico de Brasília
47. Intersecção Psicanalítica do Brasil
48. Associação de Psicanálise de Brasília
49. Movimento Psicanalítico D’Escola (ES)

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Apêndice 149

50. Traço Freudiano Veredas Lacanianas (PE)


51. Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica
52. Centro de Estudos Freudianos de Recife
53. Reuniões Psicanalíticas (SP)
54. Associação Psicanalítica de Curitiba
55. Formação Freudiana – RJ
56. Aleph Psicanálise Transmissão
57. Espaço Moebius Psicanálise – BA
58. Escola Lacaniana da Bahia
59. Formações Clínicas do Campo Lacaniano – RJ
60. Escola de Psicanálise de Campinas
61. Movimento Psicanalítico Cuiabano – MT
62. Associação Psicanalítica de Porto Alegre
63. Recorte de Psicanálise – Porto Alegre
64. Espaço Psicanalítico de Brasília
65. Núcleo de Estudos Sigmund Freud – RS
66. Projeto Freudiano (Aracaju)
67. GREP8
Como o manifesto é das entidades brasileiras de psicanálise, as
entidades abaixo o subscrevem como apoios:

1. Conselho Federal de Psicologia


2. Conselho Federal Medicina
3. ABPsiquiatria
4. Núcleo de Estudos e Pesquisa em Psicanálise e Ciências Humanas
da Universidade Federal de Sergipe
5. Laboratório de Psicopatologia Fundamental do Programa de Estudos
Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo – PUC-SP
6. Rede Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental

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150 Ofício do psicanalista II

7. Departamento de Psicodinâmica: Intervenção Institucional e Clínica


de Adultos do Instituto Sedes Sapientiae – SP
8. Programa de Pós Graduação em Psicanálise da UERJ
9. Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de
Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
10. Centro de Estudos em Psicoterapia, de Florianópolis – SC

Manifesto das entidades


psicanalíticas brasileiras
Texto aprovado na reunião de março de 2004

Há mais de cem anos, Sigmund Freud trouxe uma contribuição


inestimável para a humanidade, inventando um dispositivo de investi-
gação e tratamento clínico, a psicanálise, que permanece até hoje como
a mais importante e séria abordagem do psiquismo humano. Ao mesmo
tempo em que esclareceu estrutura do psiquismo, acolheu de maneira
criativa e inédita o sofrimento de pessoas que sem esse recurso seriam
reduzidas ao silêncio e estariam sujeitas a dificuldades cada vez mais
graves. Após esse ato de invenção, o mundo nunca mais foi o mesmo,
e a psicanálise de tal forma marcou a cultura que nem sempre é ime-
diato reconhecermos a sua influência, que atingiu as artes, a ciência, a
política, as regras do convívio, a educação, e muitos outros domínios e
instituições humanas.
É essencial, portanto, que esse instrumento que Freud nos legou
seja tratado com cuidado, para que não se percam os seus melhores
efeitos ao se desvirtuarem os seus princípios.
Uma das questões mais sensíveis da história da psicanálise diz res-
peito às condições legais do seu exercício, que têm provocado discussões

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151

bastante intensas, praticamente desde o começo, e em geral desencadea-


das a partir de iniciativas — dos Governos ou dos Parlamentos — que
visam dar à psicanálise um estatuto de profissão.
No nosso país não tem sido diferente, e a cada vez os psicanalis-
tas têm vindo a público explicar em que consiste o seu ofício, como
são formados aqueles que o exercem, e por que a psicanálise resiste à
regulamentação.
A ocasião mais recente foi há pouco mais de três anos, quando
psicanalistas de diferentes tendências e orientações, e representando
dezenas de instituições psicanalíticas estabelecidas, de notório reco-
nhecimento público, se reuniram para, juntamente com entidades re-
presentativas dos médicos e psicólogos, fazer frente a um projeto que,
finalmente, foi recusado pelos deputados antes de ir a plenário.
Na época, preocupava-nos também a criação no Brasil de cur-
sos que, embora se utilizassem de uma referência expressa à doutrina
freudiana, eram notoriamente inspirados por grupos religiosos, que,
faltando-lhes qualquer participação prévia no já secular movimento
psicanalítico, se propunham a formar profissionais-psicanalistas, sem
se mostrarem capazes de garantir que eles tivessem o necessário emba-
samento, adquirido através da imprescindível experiência ética de uma
longa análise pessoal, acrescida de uma exigente formação teórica e
de uma assídua supervisão de casos clínicos. Tampouco eram claras as
suas posições em relação aos princípios que regem a nossa prática.
A partir dessa época, vimos seguindo atentamente as iniciativas
que, no parlamento brasileiro ou fora dele, visam à regulamentação do
nosso ofício, transformando-o em profissão, pelos riscos que trazem
para os princípios que defendemos.
Há pouco tempo, tomamos conhecimento de mais um projeto de
lei, desta vez de autoria do deputado Simão Sessim, do Rio de Janeiro,
de número 2347, datado de 22 de outubro de 2003, que se inscreve

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152 Ofício do psicanalista II

numa série de outros que ao longo do tempo foram recusados pelos


parlamentares brasileiros, ao constatarem que esses projetos, uma vez
aprovados, e seja qual for a boa vontade que está nas suas origens,
agravariam os males que pretendem sanar: historicamente, ou por que
subestimam a necessária singularidade da formação de um psicanalista,
ou por que confiam essa formação à Universidade, sem atentarem para
o fato de que ela não pode dispor dos necessários instrumentos para
levar a cabo essa tarefa, malgrado, por outro lado, nossa Universidade
prestar incontáveis bons serviços ao nosso país, em vastos campos.
Associamo-nos, portanto, a todos os movimentos de resistência à
tentativa de normatização dos ofícios que relevam fundamentalmente
as implicações subjetivas de cada um, e vimos em público reafirmar a
psicanálise no seu compromisso de sustentar a singularidade das pes-
soas que pedem a sua ajuda, assim como daquelas que a exercem, con-
siderando sua relação e compromisso com a cultura e a sociedade onde
vivem.

(Assinaram todas as entidades psicanalíticas representadas no


Movimento da Articulação)

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Anexos

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AO
EXCELENTÍSSIMO SENHOR
SENADOR ALMEIDA LIMA
Proponente do Projeto de Lei do Senado n. 64, de 2009.

Nós, abaixo assinados, vimos mui respeitosamente encami-


nhar a Vossa Excelência, pedido oficial da Articulação das Entidades
Psicanalíticas Brasileiras, para que seja retirada a Psicanálise do Projeto
de Lei do Senado, n. 64, de 2009.
A Articulação é um movimento interinstitucional que promove
reuniões trimestrais de seus representantes, desde 2000, visando acom-
panhar as questões que possam interessar ao nosso campo de trabalho.
Nesse sentido, recentemente, editamos um livro, como criação coleti-
va, chamado Ofício do psicanalista: formação vs. regulamentação (em
anexo).
Entre outras iniciativas, temos visto o esforço feito por parlamen-
tares de regulamentar várias categorias profissionais de trabalhadores
brasileiros. Assim entendemos a apresentação do Projeto de Lei n. 64,
de 2009, que encampa um amplo conjunto de ocupações sob o nome de
“atividades de terapeutas”. Lendo o projeto com atenção, constatamos,
para nossa surpresa, que a Psicanálise foi incluída na lista de atividades
que o projeto pretende regulamentar.

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156 Ofício do psicanalista II

A Psicanálise é um método de investigação do inconsciente, cria-


do por Sigmund Freud no final do século XIX. Usando a “livre associa-
ção de ideias” e a “atenção livremente flutuante”, Freud pode constatar
como somos afetados pelo jogo de forças psíquicas das quais não temos
consciência. Suas observações modificaram a compreensão do homem
sobre si mesmo. Essa nova escuta e o corpo teórico-clínico que se for-
mou, e ainda se forma através dela, interagem com outros saberes que o
ser humano tem conquistado como a Medicina, a Psicologia, as artes, a
Pedagogia, a Antropologia e outras áreas.
A complexidade do campo psicanalítico impõe que aquele que
pretenda se ocupar desse ofício passe por uma formação específica,
cada vez mais exigente. Desde Freud, há mais de um século, fundaram-
-se instituições particulares que cuidam dessa transmissão. Elas assu-
miram a responsabilidade de evitar que a Psicanálise fosse distorcida e
praticada por pessoas não qualificadas. A história do movimento psica-
nalítico e o lugar que ocupa na cultura o confirmam. Desde a criação
da Psicanálise, a formação de psicanalistas baseia-se em três atividades
complementares e indissociáveis: a análise pessoal, o estudo da teoria e
a prática clínica supervisionada. Esse tripé oferece àquele que a busca
uma formação baseada em experiência vivida. Nos institutos de forma-
ção, ele entra em contato com outros analistas que já passaram ou estão
passando pelo processo, desenvolve sua análise pessoal, participa de
seminários teóricos e clínicos e tem seu trabalho supervisionado.
A formação de cada psicanalista é um processo permanente e sin-
gular, que sempre se amplia no diálogo com os textos clássicos e os
atuais, produzidos por colegas, e na experiência pessoal vivenciada
com seus analisandos. A formação de um psicanalista e a capacitação
para o exercício desse ofício requerem do analista que ele possa estar
numa posição que dê lugar à verdade do outro. Freud nos mostrou que
a Psicanálise não é uma prática de convencimento. Sendo um ofício e

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anexos 157

uma prática — e não uma profissão —, a Psicanálise não se ajusta aos


modelos de profissionalização que recebem algum tipo de certificação
ou diploma, expedidos por instituições de ensino ou órgãos reguladores
públicos. Enfim, o surgimento de um psicanalista depende, essencial-
mente, de sua análise pessoal.
A Psicanálise não é regulamentada como profissão no Brasil e não
o foi até agora porque os parlamentares brasileiros, desde as primeiras
tentativas na década de 1970, reconheceram a complexidade do campo
psicanalítico e resistiram a qualquer decisão que pudesse desfigurar e
mesmo banalizar um ofício que lida tão intimamente com o sentir, o
pensar e o agir humanos.
Os psicanalistas não reclamam nenhuma regulamentação do
Estado. A Psicanálise avança há mais de um século graças a princí-
pios e métodos rigorosos e a um corpo teórico e técnico que tem a
proposta de Sigmund Freud como fundamento. Uma regulamentação
da Psicanálise externa a seu campo geraria um funcionamento contra-
ditório com o surgimento ou a formação de um analista. Dificultaria a
operação em vez de melhorar suas condições. Além disso, a legalização
seria um endosso das práticas daqueles que não compreendem a ética
da Psicanálise.
Sabemos que no momento está em tramitação no Senado, na
Comissão de Assuntos Sociais, o Projeto de Lei n. 64, de 2009 e no
que tange à Psicanálise parte de premissas e estipula procedimentos
incompatíveis com a essência do ofício e a formação de sua prática. É
flagrante a diferença de campos epistemológicos.
Partindo do princípio de que Vossa Excelência considera im-
portante — como passo inicial da abordagem da questão de regula-
mentar ou não, como profissão, o trabalho do psicanalista —, ouvir a
comunidade brasileira de psicanalistas, é que nos permitimos, como
Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, trazer-lhe o

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158 Ofício do psicanalista II

pedido formal de que seja retirada do artigo 6º do Projeto de Lei n.


64/2009 a Psicanálise.
Colocamo-nos à disposição de Vossa Excelência para maiores es-
clarecimentos, se necessários.

Respeitosamente,

Rio de Janeiro, 6 de novembro de 2010.

APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre). Participante do


Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.
Centro de Estudos Lacaneanos/RS. Participante do Movimento Articulação
das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.
Círculo Brasileiro de Psicanálise. Participante do Movimento Articulação
das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.
Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro. Participante do Movimento
Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.
Corpo Freudiano Escola de Psicanálise do Brasil. Participante do Movimento
Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.
Departamento de Formação em Psicanálise do Sedes. Participante do
Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.
Departamento de Psicanálise do Sedes. Participante do Movimento
Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.
Escola Brasileira de Psicanálise. Participante do Movimento Articulação das
Entidades Psicanalíticas Brasileiras.
Escola Lacaniana de Psicanálise RJ. Participante do Movimento Articulação
das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.
Escola Letra Freudiana. Participante do Movimento Articulação das
Entidades Psicanalíticas Brasileiras.

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Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Participante do
Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.
FEBRAPSI (Federação Brasileira de Psicanálise). Participante do Movimento
das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.
Laço Analítico Escola de Psicanálise. Participante do Movimento Articulação
das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.
Praxis Lacaniana/Formação em Escola. Participante do Movimento das
Entidades Psicanaliticas Brasileiras.
Sigmund Freud Associação Psicanalítica – SIG. Participante do Movimento
Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras
Tempo Freudiano Associação Psicanalítica. Participante do Movimento
Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.

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Psicanálise não pode ser exercida
como profissão no Brasil
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Publicado por Tribunal Regional Federal da 1ª Região

há 5 anos

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O TRF da 1ª Região negou permissão à Sociedade Psicanalítica


Ortodoxa do Brasil para desempenho de atividades de psicanálise de for-
ma profissional no país. A 7ª Turma do Tribunal chegou ao entendimento
unânime após julgar apelação da instituição contra sentença que julgou
improcedente o seu pedido para declarar seu direito a ministrar cursos,
realizar debates, seminários, conferências sobre psicanálise e praticá-la
em termos profissionais em todo o território nacional.
O artigo 5º da Constituição Federal de 1988 prevê, no rol dos di-
reitos e garantias fundamentais, o livre exercício profissional, desde que
o profissional atenda as qualificações profissionais definidas por lei. No

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162 Ofício do psicanalista II

caso, a profissão de psicanalista não foi regulamentada, mas isso não


desincumbe o profissional das exigências legais, pois é uma especia-
lidade da área de Psicologia, conforme prevê a Lei n.º 4.119/62, que
regulamenta a profissão de psicólogo.
O desembargador federal Luciano Tolentino Amaral, relator do
processo na turma, destacou que além de a formação em Psicanálise
não integrar ainda o elenco dos currículos de graduação aprovados na
forma da legislação vigente, a instituição apelante não é sociedade de
ensino regularmente credenciada nos órgãos competentes para ministrar
e manter qualquer tipo de curso, tanto menos em todo o território nacio-
nal. Inexiste lei que regulamente especificamente a atividade de psica-
nalista, o que não enseja a abertura para qualquer pessoa atuar no ramo,
uma vez que é especialidade da área de Psicologia, conforme o art. 13,
1º da Lei 4.119/62, que regulamenta a profissão de psicólogo. Assim, as
supostas atividades de um psicanalista se enquadram nas competências
dos psicólogos, razão pela qual não existe um tratamento normativo
que a rege como profissão autônoma (TRF2, AC 200350010024277,
T5 especializada, rel. desembargadora federal Maria Amelia Senos de
Carvalho, e-DJF2R 24.07.2012), votou o magistrado, citando jurispru-
dência do TRF da 2.ª Região sobre o tema.
Assim, o relator negou provimento à apelação.
Processo n.º 0025214-81.1998.4.01.3400
Data do julgamento: 25/11/2013
Publicação no Diário Oficial (e-dJF1): 06/12/2013
TS

Assessoria de Comunicação Social

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anexos 163

Tribunal Regional Federal da 1.ª Região

Segunda instância da Justiça Federal. Compreende os estados do Acre,


Amapá, Amazonas, Bahia, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais,
Pará, Piauí, Rondônia, Roraima e Tocantins, além do Distrito Federal.
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Disponível em: <http://trf-1.jusbrasil.com.br/noticias/112338528/
psicanalise-nao-pode-ser-exercida-como-profissao-no-brasil>.

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A psicanálise e as psicoterapias

O movimento que se denomina Articulação das Entidades


Psicanalíticas vem a público para tomar a sua posição e prosseguir
no debate sobre a regulamentação da psicanálise. Nós o fazemos, em
primeiro lugar, autorizados pela participação de cada uma das 67 enti-
dades; entre elas estão a quase totalidade das instituições tradicionais e
que possuem grande número de membros associados. A autoridade de
nossos argumentos vem do trabalho que nossas instituições realizam
há muitos anos na clínica e na transmissão da psicanálise, e é daí que
temos tomado a decidida posição contrária a toda e qualquer medi-
da de regulamentação do ofício de psicanalista, pois sustentamos com
Freud que nossa prática é leiga, o que quer dizer que seus conceitos
e dispositivos operadores pertencem a um campo de saber inédito na
cultura.
Entendemos que qualquer enquadramento da psicanálise a regula-
mentos acadêmicos ou profissionais compromete as condições de seu
exercício e de sua transmissão, e ressaltamos que a psicanálise no úl-
timo século se desenvolveu à margem de qualquer regulamentação, na
base do confronto de ideias e práticas, tendo sido deste modo que pene-
trou na cultura ocidental, incidindo e recebendo a incidência de campos
diversos como a ciência política e as artes, a medicina e a educação, as

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166 Ofício do psicanalista II

ciências jurídicas, a linguística, a psicologia, sem no entanto se confun-


dir com qualquer deles.
Nos anos recentes surgiram iniciativas promovidas por alguns gru-
pos de inspiração religiosa. O que visavam com a autorização do uso do
nome “psicanálise”, talvez pelo prestígio e reconhecimento social que
tem no Brasil, para fins de iniciativas “regulamentadoras” de atividades
sem qualquer vinculação com a práxis freudiana?
Agora estamos diante de mais uma investida de regulamentação.
Tomamos conhecimento com preocupação da fundação da Associação
Brasileira de Psicoterapia que pretende se instituir como referência na-
cional para regulamentar a prática das psicoterapias. O problema é a
inclusão da psicanálise nessa associação. Sabemos de iniciativas se-
melhantes em outros países que subordinaram o funcionamento das
instituições psicanalíticas e da própria prática da psicanálise às nor-
mas gerais das psicoterapias. As causas que movem a fundação daquela
Associação são completamente estranhas ao nosso campo e se bali-
zam em problemas do mercado consumidor, em fragmentações epis-
temológicas e na demanda do estabelecimento de critérios unívocos
de eficácia para a pretensa instrumentalização do Poder Público e dos
seguros-saúde.
A alegada fragmentação epistemológica, conforme documento do
grupo de trabalho que circulou pela internet, é uma questão típica das
psicoterapias, que nada tem a ver conosco. A psicanálise pode sofrer
de toda sorte de problemas, menos deste. Ela dispõe de seus próprios
conceitos fundamentais trabalhados na sua extensão, tem um objeto de-
finido e um trabalho a oferecer.
Freud lutou para separar o campo psicanalítico da ciência médica
estrita, assim como da psicologia, pois se a psicanálise se fundamenta
numa clínica — a da transferência, seus efeitos não são previsíveis e
quantificáveis e dependem de um fator singular — o ato do sujeito, que

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anexos 167

está estritamente ligado à dimensão ética, quando o sujeito poderá re-


conhecer ou não o desejo inconsciente como sua verdade. Tendo expli-
citado esta diferença, fica claro que a iniciativa de constituição de uma
associação de psicoterapia é alheia ao campo psicanalítico.

Articulação das Entidades Psicanalíticas (setembro 2004).

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Brasil, 20 de junho de 2013.

Excelentíssima Senhora
Presidenta da República
Dilma Roussef,

Vimos por meio desta solicitar uma especial atenção de Vossa


Excelência quanto ao texto aprovado pelo Senado Federal anteontem,
18.06.2013, intitulado o “Ato Médico”, aprovação que ocorreu em ca-
ráter simbólico pela maioria dos Senadores presentes sob alegação de
“urgência” que não entendemos, justamente nesta semana em que todas
as atenções estão voltadas para as recentes manifestações populares e
para a Copa das Confederações, aproveitando ainda votação contrária
à orientação do Conselho Federal de Psicologia visando um tratamento
corretivo da homossexualidade, também tramitada esta semana, e que
retira de profissionais qualificados, por não serem médicos, o direito de
orientarem suas clínicas conforme os diagnósticos por eles atribuídos.
Representamos, em nível Nacional, o Movimento intitulado
Articulação das Entidades Psicanalíticas brasileiras, que associa as
Instituições Brasileiras que formam Psicanalistas e se reconhecem como
tal, mutuamente, e nos opomos ao texto ora aprovado pelo Senado pois
entendemos que esse Projeto de Lei fere o princípio de integralidade
do Sistema Único de Saúde (SUS), hierarquizando as relações entre os
diversos campos profissionais que atuam em equipe em instituições de
saúde pública, reservando aos médicos um lugar privilegiado em de-
trimento dos outros campos de saber. No que tange aos psicanalistas,
esta lei não só desconhece como desrespeita a formação do psicanalista
que, sendo ou não médico – a maioria dos psicanalistas brasileiros é não

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170 Ofício do psicanalista II

médica –, é submetido a uma formação de enorme rigor teórico e clínico


que o faz capacitado a orientar sua conduta clínica de maneira autônoma
e independente, não necessitando tutela de qualquer natureza para tal.
Escrevemos esta carta na tentativa de sensibilizar Vossa Excelência
para o problema, tendo em vista o fato de que, ora aprovado pelo
Senado, necessita apenas da assinatura de Vossa Excelência para efeti-
var-se, contrariando a vontade e a capacidade de um enorme número de
pessoal não médico do qual depende atualmente o atendimento clínico
da população brasileira.
Tomamos a liberdade de indicar os artigos que nos parecem aten-
tar gravemente à autonomia e independência dos profissionais não
médicos no texto discutido no Senado:

1) artigo 4o., incisos I, X, XI:


“Art. 4º São atividades privativas do médico: I – formulação do diagnós-
tico nosológico e respectiva prescrição terapêutica [...]1 X – determinação do
prognóstico relativo ao diagnóstico nosológico; XI- XI – indicação de interna-
ção e alta médica nos serviços de atenção à saúde;
2) artigo 5o., incisos I e II:
“Art. 5º São privativos de médico: I – direção e chefia de serviços médi-
cos2; II – perícia e auditoria médicas, coordenação e supervisão vinculadas, de
forma imediata e direta, às atividades privativas de médico;

1. Que, conforme mais abaixo no texto do Projeto tem como uma de suas definições as
alterações psicopatológicas, o que contraria a competência, conforme alguns autores
(inclusive o próprio médico que criou a Psicanálise, Sigmund Freud), mais do psica-
nalista do que do médico: “III – alterações anatômicas ou psicopatológicas”.
2. Na medida em que não fica claro o que é um “Serviço médico”, podendo este inclusive
ser todo um ambulatório, uma enfermaria, um dispositivo clínico de saúde – inclusive
mental –, esse inciso é um retrocesso em relação ao que já se instituiu no Brasil, no
sentido de hoje haver CAPS que funcionam sob a coordenação e supervisão de não

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anexos 171

Colocamo-nos ao dispor de Vossa Excelência para esclarecermos


quaisquer pontos que julgue necessários nesse sentido, pelos e-mails:
anasigal@terra.com.br; sonialberti@gmail.com, ou ainda, mauricioles-
sa2@gmail.com, e nos subscrevemos,

Com grande respeito e com admiração,

APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre). Participante do


Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.
Centro de Estudos Lacaneanos/RS. Participante do Movimento Articulação
das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.
Círculo Brasileiro de Psicanálise. Participante do Movimento Articulação
das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.
Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro. Participante do Movimento
Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.
Corpo Freudiano Escola de Psicanálise do Brasil. Participante do Movimento
Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.
Departamento de Formação em Psicanálise do Sedes. Participante do
Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.
Departamento de Psicanálise do Sedes. Participante do Movimento
Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.
Escola Brasileira de Psicanálise. Participante do Movimento Articulação das
Entidades Psicanalíticas Brasileiras.

médicos, assim como ambulatórios, enfermarias em hospitais universitários, perfei-


tamente coordenáveis por professores não médicos e trabalhando com os médicos.
Aliás, esse inciso entra em contradição até com o que o próprio texto do Projeto de
Lei observa em Parágrafo Único: “Parágrafo único. A direção administrativa de servi-
ços de saúde não constitui função privativa de médico”. Ora, se não constitui então
por que o texto do inciso a inclui?

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172 Ofício do psicanalista II

Escola Lacaniana de Psicanálise RJ. Participante do Movimento Articulação


das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.
Escola Letra Freudiana. Participante do Movimento Articulação das
Entidades Psicanalíticas Brasileiras.
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Participante do
Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.
FEBRAPSI (Federação Brasileira de Psicanálise). Participante do Movimento
das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.
Laço Analítico Escola de Psicanálise. Participante do Movimento Articulação
das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.
Praxis Lacaniana/Formação em Escola. Participante do Movimento das
Entidades Psicanaliticas Brasileiras.
Sigmund Freud Associação Psicanalítica – SIG. Participante do Movimento
Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras
Tempo Freudiano Associação Psicanalítica. Participante do Movimento
Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.

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Anulação do Conselho Federal de
Psicanálise
Mar 25

Posted by admin in Informações | No Comments

Olá! Em 17/02 a ministra Ellen Gracie, do Superior Tribunal Federal, ne-


gou o seguimento do Recurso Extraordinário interposto pelo Conselho Federal
de Psicanálise do Brasil. Com isso o referido Conselho está impedido de prati-
car os atos consubstanciados em seu “Estatuto Social”, bem como, de utilizar
o título de Conselho Federal. Essa decisão mantém a anterior, [...]

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Tags: Conselho Federal de Psicanálise, ministra Ellen Gracie, Psicanálise,


Psicologia, STF

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À

EXCELENTÍSSIMA SENHORA
SENADORA FÁTIMA BEZERRA,

Assunto: Projeto de Lei do Senado nº 174, de 2017

Nós, abaixo assinados e reunidos no Movimento da Articulação


das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, vimos mui respeitosamente
encaminhar a Vossa Excelência pedido oficial, para que seja retirada a
Psicanálise do PROJETO DE LEI DO SENADO nº 174, de 2017.
A Articulação das Entidades Psicanalíticas é um movimento
interinstitucional que promove reuniões trimestrais de seus represen-
tantes, desde 2000, visando acompanhar as questões que possam inte-
ressar ao nosso campo de trabalho. Nesse sentido, editamos um livro,
como criação coletiva, chamado Ofício do Psicanalista: formação vs.
regulamentação do qual podemos lhe enviar um exemplar, se puder
nos orientar sobre o endereço a ser utilizado para esse fim.
Entre outras iniciativas, temos visto o esforço feito por parla-
mentares de regulamentar várias categorias profissionais de trabalha-
dores brasileiros. Assim entendemos a apresentação do PROJETO
DE LEI DO SENADO nº 174, de 2017, que encampa um amplo
conjunto de ocupações sob o nome de “atividades de terapeutas”.
Lendo o projeto com atenção, constatamos, para nossa surpresa, que

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176 Ofício do psicanalista II

a Psicanálise foi incluída na lista de atividades que o projeto pretende


regulamentar.
A Psicanálise é um método de investigação do inconsciente, cria-
do por Sigmund Freud no final do século XIX. Usando a “livre associa-
ção de ideias” e a “atenção livremente flutuante”, Freud pôde constatar
como somos afetados pelo jogo de forças psíquicas das quais não temos
consciência.
Suas observações modificaram a compreensão do homem sobre
si mesmo. Essa nova escuta e o corpo teórico-clínico que se formou,
e ainda se forma através dela, interagem com outros saberes que o ser
humano tem conquistado como a Medicina, a Psicologia, as artes, a
Pedagogia, a Antropologia e outras áreas.
A complexidade do campo psicanalítico impõe que aquele que
pretenda se ocupar desse ofício passe por uma formação específica,
cada vez mais exigente. Desde Freud, há mais de um século, fundaram-
-se instituições próprias do campo que cuidam dessa transmissão. Elas
assumiram a responsabilidade de formar analistas qualificados para a
prática da Psicanálise. A história do movimento psicanalítico e o lugar
que ocupa na cultura o confirmam. Desde a criação da Psicanálise, a
formação de psicanalistas baseia-se em três atividades complementares
e indissociáveis: a análise pessoal, o estudo da teoria e a prática clínica
supervisionada. Esse tripé oferece àquele que a busca uma formação
baseada em experiência vivida. Nos institutos de formação, ele entra
em contato com outros analistas que já passaram ou estão passando
pelo processo, desenvolve sua análise pessoal, participa de seminários
teóricos e clínicos e tem seu trabalho supervisionado.
A formação de cada psicanalista é um processo permanente e sin-
gular, que sempre se amplia no diálogo com os textos clássicos e os
atuais, produzidos por colegas, e na experiência pessoal vivenciada
com seus analisandos. A formação de um psicanalista e a capacitação

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anexos 177

para o exercício desse ofício requerem do analista que ele possa estar
numa posição que dê lugar à verdade do outro. Freud nos mostrou que
a Psicanálise não é uma prática de convencimento. Sendo um ofício e
uma prática — e não uma profissão —, a Psicanálise não se ajusta aos
modelos de profissionalização que recebem algum tipo de certificação
ou diploma, expedidos por instituições de ensino ou órgãos regulado-
res públicos. Enfim, o surgimento de um psicanalista depende, essen-
cialmente, de sua análise pessoal.
A Psicanálise não é regulamentada como profissão no Brasil e não
o foi até agora porque os parlamentares brasileiros, desde as primeiras
tentativas na década de 1970, reconheceram a complexidade do campo
psicanalítico e resistiram a qualquer decisão que pudesse desfigurar e
mesmo banalizar um ofício que lida tão intimamente com o sentir, o
pensar e o agir humanos e verificaram que os institutos de formação de
psicanalistas já são, per se, órgãos que a garantem, reconhecendo-se,
como tais, entre eles.
Os psicanalistas não reclamam nenhuma regulamentação do
Estado. A Psicanálise persiste há mais de um século graças a princí-
pios e métodos rigorosos e a um corpo teórico e técnico que tem a
proposta de Sigmund Freud como fundamento. Uma regulamentação
da Psicanálise externa a seu campo geraria um funcionamento contra-
ditório com o surgimento ou a formação de um analista. Dificultaria a
operação em vez de melhorar suas condições. Além disso, a legalização
forneceria inevitavelmente um endosso formal das práticas daqueles
que não necessariamente se submetem em ato à ética da Psicanálise.
Sabemos que no momento está em tramitação no Senado, na
Comissão de Assuntos Sociais, o PROJETO DE LEI DO SENADO nº
174, de 2017 e no que tange à Psicanálise parte de premissas e estipu-
la procedimentos incompatíveis com a essência do ofício e a formação
de sua prática. É flagrante a diferença de campos epistemológicos. Não

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178 Ofício do psicanalista II

opinamos sobre outras terapias terem sua regulamentação estabelecida,


mas nos opomos a que a psicanálise esteja incluída entre elas, reforçando
que seus fundamentos clínicos e epistemológicos desaconselham pro-
fundamente a sua regulamentação como profissão. Agrupar a psicanálise
a essas outras propostas seria não apenas incongruente e equivocado,
mas revelador de um profundo desconhecimento das particularidades
do campo psicanalítico e, nesse sentido, um desserviço à causa pública.
Partindo do princípio de que Vossa Excelência considera impor-
tante — como passo inicial da abordagem da questão de regulamentar
ou não, como profissão, o trabalho do psicanalista — ouvir a comuni-
dade brasileira de psicanalistas é que nos permitimos, como instituições
integrantes do Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas
Brasileiras, trazer-lhe o pedido formal de que seja retirada do texto do
PL 174 a Psicanálise em todas as suas modalidades.
Agradecendo a leitura e o comprometimento com a questão, colo-
camo-nos à disposição de Vossa Excelência para maiores esclarecimen-
tos, se necessários.
Respeitosamente,

Rio de Janeiro, 14 de setembro de 2017

Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras

Ana Maria Sigal – CRP 06/13702, pelo Departamento de Psicanálise do


Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo. (anasigal@terra.com.br)
Anchyses Jobim Lopes – CRM 52/33.538-8, pelo Círculo Brasileiro de
Psicanálise, Rio de Janeiro. (anchyses@terra.com.br)
Antônia da Conceição Portela Magalhães – CRP 05/5808, pela Praxis
Lacaniana/Formação em Escola, Rio de Janeiro. (antonipmagalhaes@
gmail.com)

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anexos 179

Bárbara Conte – CRP 07/1004, pela Sigmund Freud Associação


Psicanalítica – SIG, Porto Alegre. (barbara.conte@globo.com)
Denise Maurano Mello – CRP 05/4182, pelo Corpo Freudiano do Rio
de Janeiro. (dmaurano@corpofreudiano.com.br)
Edson Lannes – CRM 52/16343, pelo Círculo Psicanalítico do Rio de
Janeiro. (adm_cprj@cprj.com.br)
Fernanda da Costa Leite de Paula Machado – CRP 05/31148, pelo
Tempo Freudiano Associação Psicanalítica, Rio de Janeiro. (fernan-
dapmac@gmail.com)
Fernanda Theophilo da Costa Moura – CRP 05/11426, pelo Tempo
Freudiano Associação Psicanalítica RJ. (costamouraf@gmail.com)
Francisca Mariana Abreu Mayerhoffer – AMT-RJ/412-1, pelo Laço
Analítico Escola de Psicanálise, Rio de Janeiro. (mariana0307@hot-
mail.com)
Francisco Leonel Fernandes – CRP 05/4620, pelo Tempo Freudiano
Associação Psicanalítica, Rio de Janeiro. (francisco.lff@gmail.com)
Gêisa de Carvalho Silva Ferreira – CRP 04/1507, pelo Aleph-Escola de
Psicanálise, Belo Horizonte. (ferreirageisa@gmail.com)
Gustavo Antonio de Paiva Soares – CRM 12871/CREMERS, pelo Centro
de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre. (gpsoares@terra.com.br)
Maria Helena Saleme – CRP 06/4241, pela Formação Psicanalítica
Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo. (sa-leme@uol.com.br)
Maria Ida Fontenelle – pela Associação Psicanalítica de Porto Alegre –
APPOA/DF, Brasília. (mifontenelle@uol.com.br).
Maria Teresa Melloni – CRP 05/2313, pela Escola Lacaniana de
Psicanálise. (mtsmelloni@gmail.com.br)
Mauricio de Andrade Lessa – CRP 05/20365, pela Escola Letra
Freudiana, Rio de Janeiro. (mauriciolessa2@gmail.com)

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180 Ofício do psicanalista II

Patricia Sá – CRP 02/29.411 pela Escola Letra Freudiana, Rio de


Janeiro. (patriciasa@globo.com)
Patrick Werner dos Anjos – CRP 05/41492, pelo Corpo Freudiano, Rio
de Janeiro. (patrick.clinica@gmail.com)
Rosane Monteiro Ramalho – CRP: 05/37937, pela APPOA – Associação
Psicanalítica de Porto Alegre. (rosaneram@gmail.com)
Rosane Müller Costa – CRP 11/0169 pela FEBRAPSI – Federação
Brasileira de Psicanálise. (rosanemullerbr@gmail.com)
Samyra Assad – CRP 04/6085, pela Escola Brasileira de Psicanálise.
(samyra@uai.com.br)
Sonia Alberti – CRP 05/2486 pela Escola de Psicanálise dos Fóruns do
Campo Lacaniano. (sonialberti@gmail.com)

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Caros Colegas do Conselho Federal de Psicologia,

Como deve ser do conhecimento de vocês, desde o ano 2000, o


Conselho Federal de Psicologia, inicialmente junto com o Conselho
Federal de Medicina, desenvolve uma parceria com a Articulação das
Entidades Psicanalíticas brasileiras no que tange à luta contra even-
tuais projetos de lei no Congresso Nacional, destinados a promover uma
regulamentação de práticas psicoterápicas ou mesmo psicanalíticas,
orientadas ideológica e religiosamente por interesses que nem de longe
tangenciam aqueles proclamados pela ética profissional do exercício da
psicologia ou da medicina. A Articulação das Entidades Psicanalíticas
brasileiras se reúne ininterruptamente desde então e acaba de receber
a notícia de que novo projeto de lei foi inscrito no Senado, Projeto de
Lei do Senado n. 174, de 2017, visando, novamente, uma regulamen-
tação do exercício de algumas práticas — dentre elas as psicoterápicas
e psicanalíticas — sem qualquer relação com o que a comunidade pro-
fissional, de formação científica, julga ser de garante para essa mesma
prática. O projeto está publicado no site: http://www25.senado.leg.br/
web/atividade/materias/-/materia/129523 e é de autoria de um senador
de Roraima, Telmário Mota — que recentemente mudou para o PTB
—, visando regulamentar “a profissão de terapeuta naturista, nas moda-
lidades medicina oriental, terapia ayurvédica, outras terapias naturais, e
terapias psicanalíticas e psicopedagógicas” (sic, grifo nosso).

O oficio do psicanalista II.indd 181 08/02/2019 14:45:05


182 Ofício do psicanalista II

Essa não é a primeira tentativa da Bancada Evangélica no Senado


Federal buscar uma regulamentação da psicoterapia e da psicanálise
para que os membros dessas comunidades se apropriarem de uma práti-
ca, um saber e uma clínica que, há mais de um século, exige uma forma-
ção fundamentalmente laica, que imprime uma necessária neutralidade
no exercício da profissão. A tentativa anterior se deu com um projeto de
lei impetrado pelo deputado Simão Sessim, em 2003, e pode ser barrada
pela ação conjunta dos Conselhos Federais de Psicologia, de Medicina
e do movimento da Articulação das Entidades Psicanalíticas brasileiras,
razão de tomarmos a liberdade de lhes escrever no momento, solicitan-
do a retomada de ações conjuntas no sentido de, novamente, unirmos
forças junto ao Congresso Nacional para impedir que esse novo projeto
siga adiante. Como das outras vezes, é de absoluta clareza para todos
os participantes de nosso movimento da Articulação que, qualquer que
seja a tentativa de uma regulamentação do trabalho do psicanalista, os
únicos que teriam a ganhar com isso seriam aqueles que nós, psicanalis-
tas brasileiros das mais diferentes instituições psicanalíticas — que nem
sempre estão de acordo entre si, mas quanto a isso são unânimes —,
não consideram psicanalistas com formação suficiente para o exercí-
cio dessa prática cujas regras são exclusivamente aquelas adotadas por
Sigmund Freud, criador da psicanálise: a da associação livre daquele
que nos vem consultar e a da abstinência do psicanalista. Qualquer ou-
tra regra, regulamentação, é contrária à prática psicanalítica.
Na expectativa de podermos contar novamente com a presença e
participação desse Conselho em nossa luta para fazer prevalecer uma
psicanálise nos moldes como a queria Sigmund Freud e que hoje somos
nós a defender,
Rio de Janeiro, 13 de setembro de 2017.

Cordialmente,

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anexos 183

Pela Articulação das Entidades Psicanalíticas brasileiras:

Entidade Representante1

Aleph-Escola de Psicanálise Gêisa de Carvalho Silva Ferreira


Associação Psicanalítica de Porto
Alegre – APPOA Rosane Ramalho
Maria Ida Fontenelle
Centro de Estudos Psicanalíticos
de Porto Alegre (CEPdePA). Gustavo Antonio de Paiva Soares
Círculo Brasileiro de Psicanálise Anchyses Jobim Lopes
Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro Edson Soares Lannes
Corpo Freudiano Denise Maurano Mello
Patrick Werner dos Anjos

Departamento de Psicanalise do
Instituto Sedes Sapientiae Ana Maria Sigal
Escola Brasileira de Psicanálise Samyra Assad
Escola de Psicanálise dos Fóruns
do Campo Lacaniano Sonia Alberti
Escola Lacaniana de Psicanalise Maria Teresa Saraiva Melloni
Escola Letra Freudiana Mauricio de Andrade Lessa
Patricia Sá
Federação Brasileira de Psicanálise
– FEBRAPSI Rosane Müller Costa
Formação Psicanalítica Instituto
Sedes Sapientiae Maria Helena Saleme

1. Representante da Entidade no Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas


Brasileiras

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184 Ofício do psicanalista II

Laço Analítico Escola de Psicanálise Francisca M. Abreu Mayerhoffer


Práxis Lacaniana/Formação em Escola Antônia da Conceição Portela
Magalhães
Sigmund Freud Associação
Psicanalítica – SIG Bárbara Conte
Tempo Freudiano Associação
Psicanalítica Fernanda T. da Costa-Moura

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Notícias
30/11/2017 - 16:37

CFP apoia Articulação das


Entidades Psicanalíticas
Brasileiras
Diálogo do movimento com parlamentares tenta impedir
aprovação de PL que regulamenta exercício de terapeuta na-
turista

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186 Ofício do psicanalista II

O Conselho Federal de Psicologia (CFP) é a favor da reformu-


lação de Projeto de Lei n. 174, de 2017, que tramita no Senado e que
inclui em seu texto a Psicanálise como terapia naturista. De autoria do
senador Telmário Mota (PTB/RR), o projeto pretende regulamentar o
exercício da profissão de terapeuta naturista, nas modalidades de medi-
cina oriental, terapia ayurvédica e outras terapias naturais. O problema
é que inclui, erroneamente, no texto os termos “terapias psicanalíticas
e psicopedagógicas”.
“Consideramos totalmente inadequada essa intenção de regula-
mentação, devido ao fato da Psicanálise se constituir num campo de
conhecimento próprio, com conceitos, parâmetros e métodos próprios,
não passíveis de regulamentação. O fundamental nesta situação é que
a palavra seja dada aos psicanalistas e a suas instituições”, explica o
conselheiro do CFP, Paulo Maldos.
De acordo com a psicanalista e representante do curso de
Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae no Movimento de Articulação
das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, Ana Sigal, o estudo e a prática
da Psicanálise exige um saber estruturado com base em conhecimentos
claramente estipulados, ou seja, “existe toda uma teoria, com cerca de
cem anos de existência”.
“Não temos crítica nenhuma sobre as demais terapias citadas no
projeto, mas só não consideramos que elas tenham o mesmo nível epis-
temológico, a mesma base de conhecimento da Psicanálise”, explica a
psicanalista.
Opine sobre a matéria no Senado – Os profissionais da Psicologia
podem opinar sobre o PL n. 174/2017 a partir de uma enquete no site
E-Cidadania.

Saiba mais
A Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras é um co-
letivo integrado por 17 instituições: Aleph-Escola de Psicanálise;

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anexos 187

Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa); Centro de Estudos


Psicanalíticos de Porto Alegre (CEPdePA); Círculo Brasileiro de
Psicanálise; Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro; Corpo Freudiano;
Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae; Escola
Brasileira de Psicanálise; Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo
Lacaniano; Escola Lacaniana de Psicanálise; Escola Letra Freudiana;
Federação Brasileira de Psicanálise (Febrapsi); Formação Psicanalítica
Instituto Sedes Sapientiae; Laço Analítico Escola de Psicanálise;
Práxis Lacaniana/Formação em Escola; Sigmund Freud Associação
Psicanalítica (SIG); e Tempo Freudiano Associação Psicanalítica.

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Entrevista

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QUESTÕES À “ARTICULAÇÃO”

Texto publicado na Revista La Psychanalyse, n. 6, p. 77-87, 2006.


Toulouse/França.
Entrevista realizada por Marie-Jean Sauret,
um dos editores da revista.

Quando do simpósio nacional Psicanálise e Psicoterapia no Campo


da Saúde Mental que teve lugar no Rio, de 31 de agosto a 3 de setembro
de 2005,1 participaram vários membros da Articulação das associações
de psicanálise no Brasil. A Articulação das Entidades Psicanalíticas
Brasileiras é uma iniciativa que reúne analistas de diferentes associa-
ções, da IPA a grupos lacanianos que não têm o hábito de se frequenta-
rem do nosso lado do Atlântico, e merece ser conhecida. Não se trata
de uma associação, nem mesmo de um grupo de fato, simplesmente de
uma iniciativa, um movimento que tem como único objetivo sustentar o
discurso psicanalítico, a importância da pluralidade das associações de

1. Simpósio do qual participou o colega Marie-Jean Sauret, que fez esta entrevista
pela revista Psychanalyse. Foi durante o simpósio que ele tomou conhecimento da
Articulação das Entidades Psicanalíticas, o que despertou nele o interesse por esta
entrevista. (N. da T.)

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192 Ofício do psicanalista II

psicanálise e, enfim, a orientação freudiana. O que surpreende é ouvir


não um comunicado comum, mas tomadas de posição singulares de
vários membros desse coletivo que, sem se preocuparem com uma falsa
homogeneidade, conseguem fazer escutar uma posição comum, uma
espécie de lógica coletiva em ato. É essa trama das singularidades que
gostaríamos de dar a ler aos leitores de Psychanalyse.
Psychanalyse: Seria possível fazer um breve histórico sobre as
razões da Articulação, de seu funcionamento, resultados e precisar as
pessoas e os grupos de referência? Como os membros se cooptaram?
É possível acolher novas pessoas? Esse “não grupo” tem alguma base
associativa declarada (estatutos etc.)?
Tempo Freudiano Associação Psicanalítica (Tempo):2 A Articulação
começou a se reunir para dar enfrentamento às tentativas de regulamenta-
ção da psicanálise promovidas inicialmente por grupos de evangélicos que
fundaram cursos de psicanálise em várias cidades brasileiras...
Sonia Alberti (Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo
Lacaniano – EPFCL): ... Cursos não reconhecidos pelos psicanalis-
tas e visando todo um campo de investimento financeiro — vários se
interessavam em dar esses cursos que, no entanto, não tinham reco-
nhecimento oficial, o que só permitia a distribuição de diplomas não
oficiais —; esses grupos religiosos acreditavam poder regulamentar a
psicanálise de tal modo que eles passariam a ter o direito legal de pro-
movê-la. Isso seria uma psicanálise legalizada, sem qualquer compro-
metimento, no entanto, com a causa freudiana!

2. Durante a entrevista, Eduardo Rocha, Fernanda Costa Moura e Idália de Goes inter-
vieram pelo Tempo. Em relação às outras associações, por terem sido representadas
por um único interlocutor, é o nome dele que figura como autor da resposta (o nome
da associação é então indicado entre parênteses).

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entrevista 193

Marisa Queiroz (Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio


de Janeiro – SPCRJ): A formação do psicanalista é antes de tudo
um processo complexo e “metamórfico”, não apenas um saber
intelectual...
(Tempo): Na Articulação também se reúnem representantes do
Conselho Federal de Psicologia (CFP) além de diversas instituições psi-
canalíticas com o objetivo comum de lutar contra as formas de regula-
mentação da psicanálise, que não aquelas propostas por Freud.
Wilson Amendoeira (Associação Brasileira de Psicanálise –
ABP):3 O CFP é uma autarquia jurídica, de direito público, que deve
orientar, disciplinar e fiscalizar o exercício dos psicólogos no Brasil. A
bem dizer, desde 1998, a ABP, em associação com o CFP, a colaboração
do CFM (Conselho Federal de Medicina) e da Associação Brasileira de
Psiquiatria, conduz os trabalhos contra a propaganda enganosa sobre
uma profissão de psicanalista e, em conjunto, essas organizações deci-
diram convidar instituições psicanalíticas para reforçar esse trabalho.
As entidades do campo psicanalítico que foram convidadas congrega-
vam grande parte dos profissionais que se dedicam seriamente ao estu-
do e à prática da psicanálise, apesar das divergências teóricas sobre a
formação...
(Tempo): Não há grupos ou pessoas de referência, mas se com-
partilha a responsabilidade pelas ações entre os que tiveram maior dis-
ponibilidade a cada vez. A reunião do grupo inicialmente se deu por
convite de uns para outros e, depois, por demanda de alguma instituição
apresentada por outra(s) já participante(s).

3. Conjunto das associações da IPA no Brasil, atualmente FEBRAPSI (Federação


Brasileira de Psicanálise).

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194 Ofício do psicanalista II

(W. Amendoeira): ... e sem nenhuma interferência do Estado ou


dos poderes constitucionalmente constituídos.
(S. Alberti): Dessa forma, as instituições que fazem parte são es-
tritamente aquelas que têm afinidades enquanto instituições que for-
mam psicanalistas.
(Tempo): Portanto, a Articulação não tem uma base associativa
declarada, isto é, não tem estatutos e esta é uma questão aberta, pois al-
guns querem essa base enquanto outros entendem que isto é justamente
a singularidade de nosso grupo. Trabalhando dessa forma conseguiu-se
sensibilizar parlamentares, discutir com grupos diversos e manifestar
nossa posição em veículos da imprensa. Com isso os projetos regula-
mentadores não foram adiante.
Psychanalyse: Vocês dão a impressão de que, apesar da situação
econômica difícil, o laço social se sustenta no Brasil, e que a psicanálise
não somente é menos maltratada do que na Europa, mas que ela ocupa
melhor o terreno do que a psicologia, a psiquiatria e a psicoterapia. No
entanto, o legislador pretende submetê-la a uma regulamentação, da
mesma forma como isso está acontecendo nos países desenvolvidos.
Será que vocês estão tão distantes assim da lógica que trama o discurso
capitalista?
(Tempo): O significante “psicanálise” no Brasil é bastante difun-
dido e confundido com quaisquer formas de psicoterapias, quando não
com quaisquer terapias psicológicas, o que torna pouco claro o seu lu-
gar na nossa cultura. Também aqui observamos um avanço das terapias
químicas e cognitivas...
(W. Amendoeira): A história da psicanálise no Brasil começa
com a apresentação feita pelo psiquiatra Juliano Moreira, na Escola de
Medicina, na Bahia, em 1899. Há, assim, uma tradição acadêmica da

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entrevista 195

psicanálise e, ao mesmo tempo, um espírito de vanguarda. Desde os


anos 1960, por um lado, em função da atmosfera libertadora e desalie-
nante em voga, e, de outro, o emprego da psicanálise na saúde mental
— por exemplo, nas comunidades terapêuticas em hospitais psiquiátri-
cos — garantiram à psicanálise uma função humanizadora.
(S. Alberti): Ao mesmo tempo, é preciso dizê-lo, zonas de sombra
caíram sobre a história do Brasil, como é bem conhecido, com psica-
nalistas que se aliaram à política da ditadura de direita naqueles mes-
mos anos 1960-70... o que foi denunciado por alguns colegas que não
seguiram a ordem da IPA de se calarem. Escândalo denunciado, aliás,
durante uma mesa-redonda numa universidade no Rio! O que demons-
tra, novamente, a importância da academia na história da psicanálise no
Brasil. Na época, também houve um primeiro projeto para a regulamen-
tação da psicanálise que visava restringi-la aos médicos... em função do
temor da perda do mercado, mas também como tentativa de manter a
psicanálise longe dos estudantes e dos movimentos de esquerda — ten-
dência que se manteve durante a última ditadura.
(Tempo): Atualmente, o interesse pela regulamentação vem de
grupos de fora da psicanálise, aparentemente interessados em se apro-
veitar da difusão do significante “psicanálise” para fins de ampliação de
mercado consumidor “psicorreligioso”. Também surgiu no último ano
uma iniciativa que tramitava pela via da regulamentação das psicotera-
pias, aí já por obra dos conselhos de psicologia.
(W. Amendoeira): No momento, acredito que a grande pressão
sobre o campo se dará pela ação sistematizada e ampla das seguradoras
de saúde, embora não haja uma tradição de que o seguro-saúde sofra
encargos com tratamentos psicanalíticos ou mesmo psicoterápicos. Em
termos mais imediatos deveremos ter, como ocorreram e ocorrem em

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196 Ofício do psicanalista II

outros países, as demandas judiciais sobre resultados de um tratamento,


a má prática por parte dos profissionais, e quejandas desta natureza.
Se considerarmos a psicanálise fora dos consultórios que já vem
sendo colocada em prática através de experiências consolidadas, como
a assistência aos programas materno-infantis e outras inovadoras, como
a participação nos projetos e políticas públicas de atendimento à infân-
cia, à terceira idade, nas escolas, em pesquisas, na literatura, na arte e
na música, então é quase natural que despertem iniciativas que engen-
drem tentativas de controle e até de manipulação por segmentos sociais,
como temos visto e enfrentado. Se adicionarmos os milhares de pessoas
que, ao longo dos anos, se beneficiaram da psicanálise propriamente
dita, vislumbraremos um panorama bastante vigoroso que tem nos ca-
pacitado ao embate e ao, até agora, sucesso.
(S. Alberti): A Articulação trabalha para que jamais se esqueça
que a psicanálise não é uma psicoterapia propriamente dita e não pode,
portanto, ser regulamentada no conjunto das psicoterapias, mesmo se
a ideia de fazê-lo é uma tentativa de sustentar uma ética humanitária
contra o puro e simples proveito econômico.
(M. Queiroz): Sabemos que o processo da formação do psicanalis-
ta é longo, exige muitos estudos, uma longa análise e muita supervisão
e que, sobretudo, exige muita ética.
(S. Alberti): Sim, e a ética da psicanálise não é humanitária, Lacan
o ensinou muito bem! De todo modo, tudo isso mostra que a psicaná-
lise, no Brasil, jamais esteve separada dos movimentos sociais e polí-
ticos, que houve colegas associados aos movimentos de avant garde
enquanto outros acreditavam poder operar por uma psicanálise purifica-
da de toda ideologia — posição evidentemente enganadora e propícia a
silenciar os ecos sobre os maiores horrores, como a tortura —, que fre-
quentemente ela tinha o que dizer e que ela é profundamente enraizada

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entrevista 197

em nossa cultura e em nossa história desde o início! Provavelmente até


mesmo anterior à chegada, no Brasil, do capitalismo contemporâneo...
a nós cabe velar pela sua continuidade!
Psychanalyse: Então a Articulação nasceu para que se faça ouvir
melhor a recusa de toda regulamentação com a qual os poderes públicos
ameaçam a psicanálise. O que os levou a fazer, desde a origem, outra
coisa que os Estados Gerais da Psicanálise ou um grupo de contato
constituído por responsáveis entre associações? Como vocês consegui-
ram atravessar as dificuldades de língua entre lacanianos e não lacania-
nos, aliás, entre lacanianos eles mesmos?
Denise Maurano (Corpo Freudiano Escola de Psicanálise –
Corpo): A recusa de toda regulamentação não é um acordo desde a
origem, penso que é uma conquista. Uma conquista totalmente frágil,
pois há sempre sugestões para uma regulamentação, mesmo da parte
das instituições presentes no grupo da Articulação. Mas essa posição,
baseada no medo de uma medida governamental, não tem força de ar-
gumento, a meu ver, nesse momento.
Penso que os Estados Gerais ainda são uma iniciativa que se
preocupa com problemas internos aos movimentos institucionais da
psicanálise, com suas disputas. A Articulação foi criada por causa de
uma ameaça verdadeiramente externa, na origem, vinda de iniciativas
de certos religiosos que invadiam o campo da prática psicanalítica e
desejavam então a regulamentação que, aliás, seria muito mais facili-
tadora para eles do que aos próprios psicanalistas. Como precisávamos
de força para enfrentar o projeto que caminhava para o Congresso,
foi preciso convocar as associações, e não os psicanalistas individua-
lizados. Dessa maneira, a dificuldade da língua foi rapidamente atra-
vessada. Quando há uma ameaça externa é mais fácil. Em seguida,
com o convívio e o forte caráter latino de nossa cultura, que abre para

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198 Ofício do psicanalista II

disponibilidade lúdica no contato — em função de nossa experiência


com a mestiçagem e a multiplicidade –, nossa Articulação pôde au-
mentar seu espaço.
(Tempo): Em nossa reunião os participantes debatem seus pontos
de vista, expõem como os colegas de suas instituições vêem a maté-
ria e procuram afinar um discurso comum que preserve esse objetivo
maior. A Articulação não se sustenta em discussões sobre prática ou
teoria psicanalítica e nem sobre a formação que cada instituição põe
em marcha. Isso é de responsabilidade de cada uma. O que nos inte-
ressa é afinar nossa posição, a partir da própria psicanálise, de opo-
sição às regulamentações do campo. É este objetivo pragmático que
talvez nos ajude a sustentar certa articulação, dentro de nossas imensas
diversidades.
(W. Amendoeira): Falamos muito!
(S. Alberti): Em nossas reuniões, que têm uma regularidade média
de quatro vezes por ano — exceto quando há alguma coisa de muito
urgente a decidir e que necessite uma reunião suplementar —, falar é
o que mais fazemos! Falamos mais do que decidimos! Desde sempre
é essa a maneira pela qual os seres falantes conseguem fazer alguma
coisa! Mesmo quando o sentimento de irresolução está presente, o que
é frequente... provavelmente é esse o modo que encontramos para for-
talecer a psicanálise cem anos depois de sua criação... mesmo se isso
pode parecer ingênuo... A psicanálise nos ensina que falar é a melhor
coisa a fazer quando há problemas! Se isso não funciona, então a pró-
pria psicanálise terá problemas em sua eficácia, pois está inscrito em
seu modo de funcionamento o mais fundamental...!
(W. Amendoeira): As dificuldades decorrentes das diferenças de
pensamento entre lacanianos e não lacanianos só podem evoluir no

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entrevista 199

sentido do entendimento através de conversa, muita conversa, que pos-


sibilite a emersão da verdade com que cada um dos atores se aproxima
do outro e do movimento da Articulação, pois o grupo lacaniano, talvez
por razões históricas de seu movimento, vê o equacionamento das di-
ficuldades do campo como se tudo fosse a regulamentação do irregu-
lamentável, a psicanálise, ou como a possibilidade impossível de que
alguém ou uma instituição possa definir o que esta seja ou pode vir a
ser, razão pela qual quase sempre voltamos a essa questão.
Psychanalyse: Aparentemente, a Articulação não se ocupa dos
psicoterapeutas ameaçados com a legislação. Talvez essa seja uma di-
ferença em relação às duas posições majoritárias na França: a primeira,
que propõe uma aliança com os psicoterapeutas para dar peso maior à
resistência ao governo, enquanto a segunda pretenderia que os psica-
nalistas não médicos e não psicólogos pudessem se beneficiar da legis-
lação sobre os psicoterapeutas — o que, aliás, eles conseguiram. Seria
possível precisar a posição da Articulação sobre esse ponto?
(D. Maurano): A psicoterapia é uma das atribuições dos psicó-
logos, psiquiatras e de outras categorias no campo da saúde mental.
Eles são regulamentados por seus conselhos específicos (CFP e CFM,
por exemplo). Atualmente vemos surgir uma Associação Brasileira de
Psicoterapeutas...
(S. Alberti): Ela foi criada há dois anos, por uma iniciativa susten-
tada pelo CFP..., por várias razões, entre as quais, sobretudo, as deonto-
lógicas — a preocupação de fazer frente ao charlatanismo; as políticas
— as dificuldades de um diálogo com os médicos; as econômicas — di-
ficuldades de diálogo com as empresas privadas de seguro-saúde, e pela
vigilância do mercado. Todas essas preocupações são completamente
externas à psicanálise!

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200 Ofício do psicanalista II

(D. Maurano): No momento estamos tentando dialogar com os


líderes dessa iniciativa e o que observamos é que eles estão seriamente
implicados com essas questões de mercado dos seguros-saúde. Nossa
posição — que sempre procuramos deixar pública (por exemplo, veri-
ficando as possibilidades de participarmos de reuniões que tratam do
assunto), é de não darmos apoio a essa iniciativa.
(S. Alberti): Sobretudo diante das notícias que nos vinham amiúde
da Europa...
(Tempo): Nossa posição inicialmente era de não envolvimento
com a regulamentação das psicoterapias, porém também passamos a
participar do debate quando percebemos que aí havia desdobramentos
para a psicanálise. Tomamos uma posição, pelo menos até o presente,
de contestar os argumentos regulamentadores das psicoterapias, pois
também nos pareceram pretextos para atingir uma hegemonia do mer-
cado de seguro-saúde. Além do mais, os argumentos são falsos e visam
a um consenso num campo fadado ao dissenso e ao contrassenso.
(EPFCL): Com efeito, essa Associação só admite profissionais in-
dividualmente e sua demanda de deixar fora toda ideia de uma especifi-
cidade no campo terapêutico — ela até sustenta a ideia de que há muito
mais coisas em comum entre as diferentes práticas psicoterápicas do
que diferenças, ou seja, para ela, as diferenças defendidas por alguns
seriam, na realidade, purismos segregacionistas. Para nós, é um belo
exemplo das manobras que um grupo é capaz de realizar para obter
como efeito que cada um caminhe conforme uma ordem prévia, deixan-
do fora toda outra referência que não essa ordem interna... Associamos
essa proposta àquela que orienta o DSM desde sua terceira edição: de
ser ateórico, a-histórico e adoutrinal... Além disso, só admitindo pes-
soas — e não as instituições — essa Associação dá margem a certa
liberdade de escolha individual. Alguns membros dessa Associação de

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entrevista 201

Psicoterapeutas são também membros de uma instituição psicanalítica.


Cabe a cada um tentar resolver seus próprios paradoxos!
Psychanalyse: Seria impossível imaginar que a Articulação so-
breviverá ao final da ameaça de uma regulamentação da psicanálise?
Seria impensável que ela se manterá visando, então, uma razão positiva
— por exemplo a questão da transmissão da psicanálise? Seria possível
dizer alguma coisa sobre o passe e sobre a forma “escola” promovida
por Lacan?
(Tempo): Não acreditamos que a Articulação deva se propor a ter
outro objetivo que não aquele a que se propôs, isto é, se opor às inicia-
tivas de regulamentação do campo. Essa tem sido sua marca original e
potencializadora. É nessa linha de atuação que ela dá uma contribuição
à questão da transmissão da psicanálise.
(M. Queiroz): Este tema, sempre muito discutido nas comunidades
psicanalíticas, tem sido também motivo de preocupação no Movimento
de Articulação das Entidades Psicanalíticas, como consequência de um
movimento atual de grupos que parecem ignorar as premissas básicas
da psicanálise e “formar”, de modo absolutamente equivocado, “profis-
sionais do inconsciente” em cursinhos rápidos — com direito a diplo-
ma, manual com testes para “diagnósticos diferenciais”, questionários
para a primeira entrevista, dicas e ideias para os primeiros socorros
e decoração do consultório — com todas as burocracias que lhes são
necessárias.
(S. Alberti): Já nos debruçamos algumas vezes sobre a questão da
transmissão e da formação a fim de tentar identificar, na enorme plura-
lidade das orientações na Articulação, as linhas em torno das quais seria
possível afirmar a especificidade da psicanálise e de sua prática, para o
mundo fora da psicanálise.

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202 Ofício do psicanalista II

(D. Maurano): A reunião em torno da transmissão da psicanálise


se reduz a uma possível tomada de posição diante da opinião pública
a fim de informá-la sobre as questões fundamentais da psicanálise, o
que reforça sua não regulamentação fora de suas próprias referências.
Assim, ficamos longe do “passe”. Esta é uma questão a ser trabalhada
no interior das escolas, e a Articulação não é, e não se pretende, uma.
(W. Amendoeira): A questão sobre o passe e a “escola”, deixo para
os meus pares lacanianos.
A partir da concepção da Articulação como um movimento que
agrega entidades, independentemente de sua filiação, e como a trans-
missão é um dos pontos nodais em redor do qual se tecem as grandes
diferenças entre as grandes linhas, nas quais se divide hoje o movimento
psicanalítico, creio que como grande razão positiva, para sua manuten-
ção, poderíamos ter a concepção de autorregulação do campo, assim
esboçada: o reconhecimento de uma entidade suprainstitucional, consti-
tuída de representações dos vários campos, linhas e escolas psicanalíti-
cas, que reconhecessem, a partir de critérios mínimos, mas reconhecidos
por todos, as instituições que atendam os padrões a serem estabeleci-
dos em conjunto e que torne pública a relação de instituições que são
reconhecidas por ela como formadoras de psicanalistas, sem qualquer
interferência do Estado, ou de algum dos seus poderes constitucional-
mente constituídos. Acho que este é o primeiro passo possível, outros
demandariam muita reflexão, diálogo, namoro com as questões, duvidar
do nosso saber e, para coroar o bolo, libertação de nossas amarras!
(M. Queiroz): De todo modo, esses grupos, interessados em regu-
lamentar a psicanálise e dar ao analista o cunho de profissão, não pa-
recem conscientes da regra fundamental da psicanálise, ou seja: quem
quer analisar os outros deve, em primeiro lugar, ser ele próprio anali-
sado. Fazendo da função de analista uma profissão, com todos seus

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entrevista 203

aspectos burocráticos, o psicanalista perde sua mais autêntica carac-


terística: O desejo de tornar-se psicanalista.
(S. Alberti): Tudo que diz respeito ao desejo do analista é deixado
fora, nesse caso.
(D. Maurano): Penso que a Articulação só sobreviverá enquanto
fizer frente a essa ameaça de regulamentação. Caso não haja mais essa
ameaça, não há mais uma razão de ser da Articulação. No entanto, pen-
so que é praticamente impossível que tal ameaça desapareça... Uma vez
desencadeada, sempre haverá essa possibilidade.
Psychanalyse: Vista da França, a Articulação parece não uma as-
sociação complementar, aquela que faltaria ao conjunto das associa-
ções. Tampouco surge em suplência da autoridade que poderia fazer
com que as associações psicanalíticas se constituíssem justamente num
conjunto fechado, consistente e finito. Ela tem as características de uma
associação suplementar: quer dizer, de uma associação que faria com
que cada associação fosse ela mesma “descompletada” pela Articulação
desde que um de seus membros fosse convidado a participar dela. Lacan
associa o suplementar àquilo que leva o saber ao fracasso: o feminino, o
sinthome4... Será que vocês inventaram um tipo de associação que é não
somente congruente nesses tempos de ataque contra a psicanálise mas à
altura do que o discurso analítico exige?
(D. Maurano): A ideia da Articulação como uma associação suple-
mentar é perfeita. A revista Psychanalyse captou bem o “espírito da coisa”.

4. Termo que preferimos não traduzir por não haver correspondente em português.
Trata-se de uma forma arcaica do termo “sintoma” em francês, utilizada por Lacan em
seus últimos anos de ensino, quando reviu a teoria psicanalítica do sintoma. Assim
como o gozo feminino, o gozo do sinthome não só está fora da referência fálica como
é um “gozo suplementar”. (N. da T.)

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204 Ofício do psicanalista II

(Tempo): Ainda não produzimos entre nós uma reflexão teórica


sobre nosso modo de funcionamento. No entanto, buscamos operar de
forma pragmática a partir dos quadrantes que a ética psicanalítica ins-
titui, e isso não pode estar desvinculado do discurso analítico e está
presente na forma como nos organizamos.
(S. Alberti): Uma coisa é certa: a Articulação é tão frágil como
tudo o que leva o saber ao fracasso... Já aconteceu de partirmos de uma
reunião com o receio de que isso não funcionaria mais, com questões
sobre a validade da coisa e com a sensação de estarmos perdendo nosso
tempo! No entanto, tal o real, voltamos, voltamos sempre, há mais de
cinco anos! E, mais, somos vários agora a cuidar da Articulação, cuida-
mos dela para que sobreviva!
(Tempo): Nosso objetivo maior é tentar barrar as iniciativas de
regulamentação com um conjunto de colegas que entendem que tais
iniciativas constituem um risco real à transmissão da psicanálise.
Psychanalyse: Qual é a avaliação que vocês fazem dessa expe-
riência? Quais são as perspectivas de vocês?
(Tempo): As nossas perspectivas dependem do interesse das insti-
tuições analíticas de tomarem em mãos a discussão dessas questões no
interior delas mesmas e de tomarem posição.
(D. Maurano): No começo, eu acreditava que seria possível um
acordo entre as instituições em torno da ética da psicanálise, para melhor
sustentar sua transmissão. Mas isso ainda era da ordem de um ideal.
Cedo verifiquei que nem mesmo isso seria possível... Para mim, isso foi
primeiro uma decepção, mas me dei conta de que havia uma caracte-
rística bem precisa em nosso conjunto: a de ter quase que uma missão
de vigilância diante das ameaças externas, o que não é pouco. O tempo
passa e durante nossas reuniões também há efeitos de transmissão entre

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entrevista 205

os membros das diferentes instituições. Isso já é muita coisa! Mas não


se deve esperar muito disso...
(W. Amendoeira): O movimento ganhou impulso por ocasião da
terceira reunião, em abril de 2001, quando se aprovou a redação de um
Manifesto5 subscrito por todas as entidades psicanalíticas presentes, o
qual, após circular por e-mail em todo o país, recebeu 65 assinaturas
institucionais e mais o apoio de dez instituições não psicanalíticas. Este
documento foi encaminhado aos veículos de comunicação e a todos os
deputados das comissões envolvidas com sua avaliação, além de a uma
seleção de parlamentares e ministros de Estado. Após intenso trabalho
direto com os deputados e com jornalistas, participamos de uma audiên-
cia pública na Câmara dos Deputados para defendermos nossa posição
e, então, com a rejeição por parte do relator e com o teor da discussão
na audiência, o projeto foi retirado por seu autor. Desde então conse-
guimos barrar mais uma nova tentativa de outro parlamentar e temos
mantido um acompanhamento cuidadoso de tudo que nos diz respeito
quanto a iniciativas de membros de nosso parlamento, além de todo en-
frentamento possível no que diz respeito ao oferecimento de formações
em psicanálise por entidades não reconhecidas por nós — o universo
das entidades reconhecidas e compostas por filiados que tiveram sua
formação psicanalítica seguindo o que estabelece nosso Manifesto: “a
formação de psicanalistas está baseada em três atividades complemen-
tares e indissociáveis entre si: a análise pessoal, os cursos teóricos e a
supervisão dos casos clínicos” e, além disso, podem fazer recuar sua
genealogia psicanalítica até Sigmund Freud, como fazendo parte da co-
munidade psicanalítica.

5. (Cf. Anexo 1).

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206 Ofício do psicanalista II

No final de 2005 foi aprovada a realização de um grande fórum,


reunindo psicanalistas de todas as filiações, para outubro de 2006,
quando pretendemos auscultar o que pensam os psicanalistas brasilei-
ros sobre esta questão, além de serem informados sobre os temas que
ocupam as reuniões da Articulação e sobre os vários encaminhamentos
que têm surgido no mundo.6
Tradução de Sonia Alberti
Psicanalista membro da Escola de Psicanálise
dos Fóruns do Campo Lacaniano

6. No original em francês segue a esta entrevista um “pós-escrito” que tem por finalida-
de uma breve apresentação do trabalho da Articulação das Entidades Psicanalíticas
para esclarecer possíveis lacunas que a entrevista deixa em aberto. Julgamos desne-
cessária sua publicação aqui já que o livro, por si só, responde bem melhor a essas
possíveis lacunas. (N. da T.)

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Título Ofício do psicanalista II. Por que não regulamentar a
psicanálise
Projeto Gráfico Editora Escuta
Diagramação Editora Escuta
Revisão Ana Maria Barbosa
Formato 15,5 x 19,5 cm
Tipologia Times New Roman (11/13,5)
Papel Cartão 250g (capa)
Luxcream 60g (miolo)
Número de páginas 208
Impressão ???

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