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A Mulher em Flagrante

Leon Eliachar

Edição integral, não contém ilustrações


Círculo do Livro
Digitalizado, revisado e formatado por SusanaCap
1ª. edição
Ao meu filho
SÉRGIO,
que começou a sorrir.

2ª. edição
Ao meu filho
SÉRGIO,
que começou a desconfiar.

3ª. edição
Ao meu filho
SÉRGIO,
que começou a entender.

4ª. edição
Ao meu filho
SÉRGIO,
que começou a agir.
Introdu ção

Aqui estão expostos pequenos dramas e comédias


da mulher moderna. Nem sempre dramas, nem sempre
comédias — mas irremediavelmente humanos. Algumas
dessas mulheres são quase reais, outras, quase fictícias.
Coloquei-me exatamente nessa difícil linha que divide as
duas coisas. Confesso que nem mesmo elas, as
mulheres, sabem onde termina uma e onde começa a
outra. Qualquer semelhança, portanto, é aquilo que
todos nós sabemos.

O AUTOR

A outra

Amâncio tinha outra mulher. Toda a vizinhança


sabia, menos ela, Iracema, que era a verdadeira.
Chegara a duvidar se a mulher verdadeira é a que é
casada, com juiz de paz e tudo direitinho, ou se é a
outra, que aparece sem mais nem menos e toma o
marido das outras. Sempre fora uma boa esposa,
econômica, doméstica, não era dada a extravagâncias —
no fim deu nisso que todo mundo dizia. Não sabia até
que ponto um homem pode fingir dentro de casa, sem
que a mulher perceba. Amâncio continuava,
aparentemente, o mesmo homem. Em casa não faltava
nada, nem mesmo carinho. Talvez fosse veneno das
amigas:
— Deixa de ser boba, você não quer acreditar
porque é ingênua. Todo mundo sabe que seu marido não
é fiel. Segue até mulher na rua.
Uma amiga mais íntima chegou a dizer
frontalmente:
— Não tenho nada com a sua vida, só lhe digo
isso porque somos amigas há mais de doze anos. Mas o
seu marido tem outra mulher. E digo mais: se você
bobear, ele vai trocar você pela outra.
Iracema não queria dar ouvidos. Sempre viveu
bem com o marido, não era agora que ia dar trela pras
fofoquices dos invejosos. “É despeito de quem fala”,
pensava consigo mesma. Mas no íntimo, muito lá no
íntimo, não se mostrava assim tão conformada.
— Que é que posso fazer?
Até o porteiro do edifício já olhava pra ela como se
ela fosse uma boboca, passada pra trás pelo marido.
Talvez até ele estivesse levando algum pra ficar na
moita, mas o seu ar zombeteiro, quando ela o
cumprimentava, já estava atravessando os limites da
sua paciência. Os tormentos não paravam:
— Faz macumba, sua boba.
Ela fez tudo que podia fazer: macumba, prece,
cartomante, pitonisa, promessa, nada deu certo. Chegou
ao cúmulo de dar trotes pelo telefone e de fazer ameaças
com cartas anônimas. Estava se sentindo ridícula ante a
certeza dos outros e a sua dúvida. Por mais que
quisesse se afastar da idéia de que o marido a traía, os
boatos e os cochichos acabaram vencendo e trazendo à
tona o seu amor-próprio. Era preciso tomar uma atitude
e só tendo provas concretas poderia ter coragem pra
falar com o marido.
— Põe um detetive atrás dele. Uma vez aconteceu
isso com uma conhecida minha e. . .
Ouviu dezenas de casos, todos semelhantes. Não
agüentava mais ouvir as histórias das outras, sempre
atribuídas a uma amiga ou uma conhecida. Nunca era
com elas mesmas.
— Vivo muito bem com o meu marido, mas se
isso que está acontecendo com você fosse comigo, não
sei não.
Iracema não resistiu à pressão. Uma tarde, bateu
o telefone pra uma agência dessas que resolvem
problemas: “Serviço rápido e eficiente, mantendo
completo sigilo”. Nem sequer deu o seu nome, inventou
um qualquer, o próprio detetive disse que assim era
melhor, que a agência não fazia questão, pra inspirar
mais confiança.
— Às oito está bom?
— Não, senhor, às oito meu marido está em casa.
Prefiro às quatro.
— Qual o endereço, por favor?
— Prefiro num lugar distante da minha casa.
— Compreendo, minha senhora.
— No barzinho Lagoa, que ele nunca passa por lá.
— Combinado, às quatro em ponto. Como é que a
senhora vai vestida?
— Bem simples. Uma saia cinza e uma blusa
branca, com um broche do lado esquerdo.
— Perfeito. Eu vou de terno cinza.
Iracema foi viva, achou melhor ir toda de verde,
pra despistar. Às quatro em ponto, lá estava ela,
tomando um guaraná, quando entrou o marido:
— Você aqui, Amâncio?
Ele puxou uma carteirinha do bolso:
— Nunca lhe disse nada, mas nas horas vagas
sou detetive particular.
E começou a bronca:
— E você? Que é que está fazendo aqui a esta
hora da tarde?
Iracema não teve saída. Voltaram discutindo o
caminho todo, ele acusando, ela se defendendo.

O precavido

Há seis meses que foram morar no prédio novo e


há seis meses que Eurico não botava os pés na rua. A
mulher vivia reclamando.
— Quando é que você vai trabalhar, Eurico? Ele
repetia sempre o seu ponto de vista:
— Quem quis morar na Zona Sul foi você,
não fui eu. Já lhe disse que tenho medo de ir pra
rua, porque é muito perigoso. Os jornais estão aí pra
não me deixar mentir.
E abria sempre nas seções policiais e exibia pra
mulher:
— Olha aí: “Padeiro esfaqueou freguês porque
reclamou o troco”... “Barbeiro degolou a manicure na
porta do açougue”... “Chofer de ônibus estrangulou o
guarda-civil pra não pagar a multa”... “Passageiro
assaltado e despido pelo motorista de praça”...
Eurico não só tinha medo de sair como estava
ficando maníaco. Passava o dia inteiro cortando jornais
e colando nas paredes as manchetes policiais. Em
criança, quis ser detetive, mas desistiu da idéia quando
um amigo lhe disse:
— Sabe quem morreu? O Sócrates.
— Quem?
— O Sócrates, aquele nosso amigo que era
detetive.
— Morreu de quê?
— No cumprimento do dever. Deu um flagrante
na mulher de um coronel e levou bala.
Desse dia em diante, preferiu ser corretor de
imóveis. Nada de flagrantes, nada de se meter com a
vida dos outros. Cada um que cuidasse da sua — e já
não era pouco. Mas não perdeu a mania de ler as seções
policiais. Tinha verdadeira adoração por crime e quanto
mais complicado melhor. Até que veio morar na Zona
Sul, influenciado pela mulher. No dia em que botou os
pés dentro do apartamento, exclamou:
— Agora vai ser fogo pra sair daqui, Arlete.
Estamos morando bem na fonte das manchetes. Isto
aqui é uma verdadeira “universidade do crime”.
Sujeito que mora na Zona Sul, ou mata ou morre.
Foi assim que comprou o seu primeiro revólver.
Mas nunca teve coragem de atirar, nem pra caçar
passarinho. Tinha pena de matar bicho, muito menos
gente. Mas a mulher já não agüentava mais aquele
homem o dia inteiro dentro de casa, de pijama,
recortando e colando manchetes pelas paredes: “Vizinha
do sexto assalta a vizinha do quinto”... “Matou o
transeunte por causa de meio quilo de carne”...
“Encontrado boiando na praia duas semanas depois de
ter desaparecido”...
Eurico era antes de tudo um revoltado. Tinha
estudado pra melhorar a ação da polícia e a principal
conclusão a que chegou foi que a polícia era deficitária
de policiais. “Se fosse deputado”, dizia, “ia fazer um
projeto pra erguer um monumento ao cadáver
desconhecido.''
— A polícia não tem culpa. O saldo de cri-
minosos encalhados na rua é muito maior que o
estoque de policiais enfileirados nos distritos.
Mas a mulher não suportava mais nem as suas
manchetes nem as suas teorias:
— Amanhã faz seis meses e dois dias que você
está aqui dentro, Eurico. Vai pra rua de qualquer
maneira, nem que seja pra comprar cigarro.
Dito e feito. Eurico relutou um pouco, mas acabou
saindo. Mal chegou na porta do edifício, ouviu quatro
disparos. Não deu tempo de correr, um balaço o acertou
no pé. Quando a vizinhança veio socorrê-lo, deu por
falta da carteira. Disse pra mulher:
— Está vendo? E não venha me dizer que não
tenho razão.
Arlete não teve outra saída:
— Foi coincidência. Ele gritou:
— Coincidência você vai ver de agora em diante
pra me tirar de dentro de casa. Nunca mais.
Dois meses depois, deu ladrão em sua casa e
roubou todas as jóias da mulher. Eurico nem viu, estava
colando manchetes no quarto da empregada.
Visita inesperada
Solange era uma mulher esquisita: tinha os olhos
da Elizabeth Taylor, a boca da Sophia Loren, a voz da
Barbra Streisand, o corpo da Rachel Welch, o andar da
Margot Hemingway, os cabelos da Farrah Fawcett
Majors. Tudo imitação, naturalmente, inclusive as jóias,
adquiridas no Cartier, em Paris, pra sentir-se um pouco
Farah Diba. De seu mesmo só tinha o Puma vermelho,
que fechou com cuidado depois de estacionar no Posto
5. Entrou cautelosamente no edifício e chegou ao quinto
andar, um pouco nervosa. Quando tocou a campainha,
um mordomo veio atendê-la, mandou que esperasse no
imenso living, cujo principal quadro era o mar autêntico
de Copacabana, tomando uma cor indefinida através do
rayban do jardim de inverno. Acendeu um cigarro e a
piteira de ouro mal se equilibrava em seus dedos
trêmulos. Quando o homem entrou na sala, ela se
adiantou:
— Quem me falou muito bem do senhor foi a
Elvira, lembra-se?
Ele beijou-lhe a mão:
— Como vai ela?
Cerrou as cortinas de bambu, botou um disco no
estéreo:
— Deite-se ali, fique inteiramente à vontade.
Solange obedeceu. Ele deitou-se ao seu lado,
começou a beijá-la freneticamente. Ela levantou-se:
— Acho que há algum equívoco.
Ele segurou-a fortemente, deitou-a de novo e
continuou a beijá-la. Ela conseguiu escapulir, correu
para a porta, recompôs-se:
— Pensei que o senhor fosse um psicanalista! Ele
ajeitou a gravata:
— Correto. Sou um psicanalista.
Ela disse, enquanto passava o batom:
— Mas a Elvira não me explicou os seus
métodos.
Ele perturbou-se:
— A senhora disse Elvira? Mil perdões, eu havia
entendido Zulmira.
Abriu novamente as cortinas, apanhou um papel e
uma caneta, começou a fazer perguntas.
O biquíni

Elza pediu dinheiro ao marido pra comprar um


maio, pois o verão estava chegando. Ele lhe deu cem
cruzeiros:
— Com o troco você pode tomar um sorvete. Ela
desafiou-o:
— Cem cruzeiros não dá nem pro sorvete,
quanto mais pro maio.
Ele meteu a mão no bolso, puxou um maço de
notas, fechou a cara:
— Então diz, de quanto é que você precisa. Ela
não se afobou:
— No mínimo, uns oitocentos. Depende do
modelo.
Ele contou quatro notas de cem, jogou em cima da
mesa com má vontade:
— Vê se te ajeitas com isso, agora não tenho mais.
Mostrou a carteira vazia:
— Olha aí, fiquei limpo.
À noite, antes do jantar, ele perguntou:
— Como é, comprou o maio? E ela:
— Só uma parte.
Ele não entendeu, pediu pra ver, ela foi buscar. —
Mas é iiiiiiiiiiiiiisso?
Ela exibia nas mãos um biquíni. Procurou esticá-
lo ao máximo, não dava jeito. Ele insistiu:
— Cadê o resto?
— “Isto” foi o que seu dinheiro deu pra comprar,
o “resto” custa mais quatrocentos.
Ele se enfureceu:
— Depois sou eu o louco. Com oitocentos
cruzeiros, compro um biquíni, mas com uma mulher
dentro.
Bateu a porta com força, gritou de dentro do
quarto:
— Se quiser que vá assim mesmo que o papai aqui
não trabalha na Casa da Moeda.
Elza deu uma gargalhada. No dia seguinte, na
hora do café, colocou a “peça única” do biquíni, pôs os
óculos escuros, pegou a bolsa e a barraca, passou na
frente do marido, em direção à porta da rua. Ele
engasgou:
— Aonde é que você vai assim?
— À praia, é claro.
Ele meteu a mão no bolso, deu-lhe mais qua-
trocentos cruzeiros.
O viciado
Era todo o dia a mesma conversa:
— Rodrigues, você está fumando demais. Pra
agradar a mulher, ele fazia o que podia pra diminuir o
número de cigarros. Sempre que acendia um, ela o
fulminava com os olhos.
— Rodrigues, você precisa fumar menos. Quando
ela começou a reclamar, ele fumava três maços por dia.
Agora já estava reduzido a apenas dezessete cigarros por
dia. Isaura (era esse o nome de sua mulher) chegou ao
cúmulo de contar os seus cigarros. Quando atingisse o
limite estipulado por ela, não podia fumar mais: só no
dia seguinte. E não parava de falar:
— Cigarro dá câncer, meu filho. Faço isso em seu
próprio benefício.
O pobre do Rodrigues era um torturado. Chegou a
três cigarros por dia: um depois do café, outro depois do
almoço e outro depois do jantar. O pior era o último, que
ele adiava, adiava, e acabava fumando muito antes de ir
pra cama. Depois passava a noite andando pela casa,
feito um louco, inteiramente desesperado, quase
arrancando os cabelos. O cigarro em cima da mesa,
como um desafio.
— Você nem parece um homem, dominado desse
jeito pelo vício.
Triste mesmo era a sua submissão. Rodrigues já
andava cabisbaixo, não sentia forças pra enfrentar a
decisão firme da mulher. Chegou a consultar um
médico, que lhe disse:
— A culpa foi toda sua, meu caro. Não devia ter se
deixado dominar dessa forma pela sua mulher. Agora o
problema é seu: ou abandona o cigarro ou abandona a
mulher.
Voltou pra casa pensando nisso. Ou o cigarro ou a
mulher. Depois do jantar, fumou o seu cigarrinho com
calma, como quem vai tomar uma atitude. Amassou a
guimba no cinzeiro, meteu a mão no maço pra tirar
outro.
— Que foi isso, Rodrigues? Você enlouqueceu?
Ele levantou-se e falou firme:
— Vou provar a mim mesmo que curei o meu
vício.
— Vai jogar o maço fora?
Ele chegou a tremer, antes de falar:
— Meu vício era você, Isaura. A hora que você
quiser, a porta da rua é ali.
Acendeu o cigarro e começou a fumar, todinhos,
um atrás do outro.

A vizinha

Ricardo conheceu Rosita na janela: ela morava no


quinto andar, ele no sexto, bem em frente. Toda vez que
ele chegava, ela baixava a persiana. Depois de algum
tempo, não baixou mais, começou até a sorrir e a
cumprimentá-lo. Ricardo fazia sinalzinho com a mão, ela
respondia, conversavam por mímica durante horas. À
noite, trancava a janela e sumia. Nunca havia uma luz
acesa, Ricardo vivia intrigado, não sabia se ela era
casada ou solteira, ou viúva ou lá o que fosse. No verão
ela ficava de short o dia inteiro e muitas vezes chegou a
mudar de roupa e só depois fechava a janela, fingindo
ignorar que estava aberta. Ricardo não resistia: seus
olhos eram hóspedes permanentes da vizinha. Fez tudo
pra transferir o namoro da janela para a porta, mas não
conseguiu. Rosita era muito esquiva, muito enigmática,
embora soubesse que ele costumava vê-la
completamente nua. Uma noite, Ricardo decidiu bater à
porta, tomou-se de coragem e foi até lá.
Quando tocou a campainha, sentiu que o olho
mágico estava se mexendo. Quis desistir, mas a porta se
entreabriu e ouviu uma voz de homem:
— Quem é?
Ricardo ficou imobilizado. A porta foi se abrindo,
devagarinho, e surgiu o rosto de Rosita. Tomou fôlego.
— Sou eu. Tem alguém aí? Ela falou:
— Não, estou sozinha. Ricardo insistiu, meio
incrédulo:
— Ouvi uma voz de homem. Ela esclareceu:
— Sou eu mesma, minha voz é assim. Ricardo
saiu correndo, desceu as escadas de quatro em quatro
lances, passou três meses sem aparecer na janela.

Vida nova

Há vinte e cinco anos que Alcebíades vinha


sempre na mesma batida. Chegava em casa, dizia pra
mulher:
— Estou exausto.
Ela servia o jantar, tentava com toda habilidade:
— Vamos ao cinema, meu bem? Ele respondia
com voz melancólica:
— Deixa pra manhã, meu amor. Hoje eu trouxe
serviço pra fazer em casa.
Era a rotina infalível. Trabalhava o dia todo,
chegava morto de cansado, trancava-se no escritório e
trabalhava até de madrugada. Há vinte anos que Matilde
não punha o pé num cinema, a última fita que viu foi
com Shirley Temple, no tempo que ainda era menina.
Quando se falava em cinema, Matilde dava os maiores
vexames, relembrando Jean Harlow, Mae West, Carole
Lombard, Greta Garbo, Alice Faye, Myrna Loy.
— Você está mais por fora que rótulo de garrafa —
dizia um primo seu que trabalhava na tevê.
Matilde era paciente e cultivava a sua paciência
com amor e carinho. Passava as noites sem dormir,
bolando uma fórmula de afastar Alcebíades do trabalho.
Pelo menos do trabalho em casa. Ele era compreensivo,
tinha a maior boa vontade com a mulher, mas o tempo
era curto demais, nunca dava pra terminar o crescente
acúmulo de serviço. Despejava a pasta em cima da
mesa, folheava aquela papelada toda, mergulhava no
mundo dos cálculos, somava, multiplicava, dividia,
subtraía, escrevia cartas, deixava tudo arrumadinho, de
manhã cedo levava tudo pronto, pra voltar logo mais à
noite com nova carga.
— Estou exausto. Trouxe serviço pra fazer em
casa.
Matilde teve uma idéia, há cinco meses vinha
martelando na cabeça de Alcebíades:
— Você precisa treinar um pouco de boxe.
— Na minha idade?
— Cinqüenta anos é a metade de uma vida. Você
passou a metade metido entre papéis. Agora precisa se
dedicar um pouco ao esporte.
A doçura com que Matilde falava, a ingenuidade
com que argumentava, impediam que Alcebíades a
chamasse de criança. Mas era justamente isso que ela
era: uma criança de quase quarenta anos.
— Você não percebe, meu bem, que não tenho
mais resistência para essas coisas?
— Faça um esforço, meu amor. Será para o bem
de nós dois.
Alcebíades acabou se convencendo. Meteu na
cuca que passou a vida inteira sem dar muita atenção a
Matilde, não custava lhe satisfazer esse desejo. Entrou
para uma academia de boxe, começou o seu treininho:
— Me acorda cedo, amanhã.
— Por quê?
— É uma surpresa.
Passou dois meses treinando, pulando corda,
dando murros em saco, correndo a pé, tomando
ducha.
— Vamos ao cinema hoje, meu bem?
— Hoje não posso, preciso levantar cedo
amanhã.
— Mas que mistério é esse, Alcebíades?
— Já lhe disse que é uma surpresa. Você vai
gostar.
Uma noite, Alcebíades chegou em casa com outra
disposição. Veio acompanhado de um senhor alto e
forte, apresentou-o à mulher. Pediu um jantar com
muita salada e vitamina. De sobremesa, só frutas.
Depois foram para o living, tomaram cafezinho,
conversaram algum tempo, o assunto não saiu de Jack
Dempsey, Joe Louis e Cassius Clay. Finalmente, veio a
surpresa:
— Querida, agora sou boxeador profissional.
Matilde sorriu, vitoriosa:
— Ah, quer dizer que este senhor é o seu em-
presário?
— Não, querida, este é o meu treinador.
— Que ótimo, então vamos todos ao cinema?
— Hoje não posso, querida.
Meteram-se dentro do quarto e começaram a se
esmurrar. Alcebíades não havia perdido o hábito de
trazer serviço pra casa.

O segredo

Jorge chegou da rua irritado, descarregou em


cima da mulher:
— Não agüento mais as despesas. O ônibus subiu,
o cigarro aumentou, os impostos se multiplicam, o
cafezinho não pára, só o meu lucro não cresce.
A mulher simplificou tudo:
— Por que você não faz greve?
Ele quis rir, mas a vontade era pouca, acabou
gritando:
— Se eu fizer greve, Ester, morremos os dois de
fome. Não vê que a minha profissão é liberal? Se eu não
trabalhar, não ganho nada. Ainda não inventaram o
sindicato particular pra defender os direitos individuais.
Além do mais, greve particular não pega, se a gente não
trabalha, perde a clientela.
Ester virou o rosto, começou a abrir os embrulhos
de compras:
— Olha, você se queixa, mas as costureiras estão
cobrando os olhos da cara. Esse vestidinho aqui,
simples, simples, só de feitio foi quinhentas pratas, fora
a fazenda. E esta sandália italiana, feita no Brasil, foi
seiscentos e cinqüenta, a italiana mesmo custa mil e
quinhentos, pra fazer economia comprei duas nacionais.
E esta bolsa, olha aí, sem nada, nenhum enfeite,
novecentos e um, tive de implorar pro homem deixar por
novecentos, você me conhece, passo qualquer vexame
pra fazer poupar o seu dinheirinho. E esta calcinha de
lycra...
— Chega! Não quero ver nem ouvir mais nada. Me
arrebento feito um cão pra fazer frente à inflação e você
me aparece com esse luxo todo. Cadê a mesada que lhe
dei?
Ester abriu a bolsa e contou as notas:
— Está aqui. Ainda tem duzentos e vinte
cruzeiros e oitenta centavos. E ainda estamos no dia 15.
Jorge se queimou:
— E onde é que você vai arranjar o resto? Ela fez
ar de superioridade:
— Pode deixar que me ajeito. Nunca lhe pedi mais
do que você me dá, pedi?
Jorge não se conteve:
— Então me explica esse milagre que o papai aqui
também quer fazer, tá, meu bem?
Ester deu uma gargalhada, foi pro quarto com os
embrulhos, meteu tudo dentro do armário. Jorge ficou
andando de um lado para o outro, impaciente. Chamou
várias vezes, a mulher não respondeu. Duas horas
depois, ela apareceu, elegantemente vestida, cercada de
perfume por todos os lados. Jorge impediu sua
passagem:
— Aonde é que você vai assim toda bacana? Ela
ajeitou o broche de ouro, piscou os olhos com os cílios
postiços, falou com voz pausada:
— Vou buscar o resto da mesada, meu caro. Você
não queria saber o milagre? Pois fique sabendo que o
santo de casa também faz milagre. Entra aí no quarto,
tem um vestido que é o seu tamanho exato, por que não
tenta?
Ester bateu a porta e deixou Jorge trancado no
seu silêncio e na sua humilhação. Pegou uma garrafa de
uísque e durante muito tempo passou bebendo, diante
do vestido vazio. Duas horas depois, abriu a porta do
apartamento com dificuldade. Quando ia entrar no
elevador tropeçou e caiu em cima da vizinha que
chegava:
— Que é isso, Dr. Jorge? Com salto sete e meio o
senhor precisa andar com mais cuidado. Além disso,
anágua não se usa mais e a sua está aparecendo.
Morto de vergonha, Jorge voltou pra casa e foi se
olhar no espelho. Tinha esquecido de raspar o bigode.
Decisão

Dona Gertrudes quase caiu pra trás quando a


filha lhe disse:
— Estou apaixonada pelo Zacarias, mamãe.
— Mas ele é casado, minha filha.
— E daí? Quem não é casado hoje em dia,
mamãe?
Dona Gertrudes engasgou com a sopa, deixou cair
o talher no chão:
— Que idéias são essas, minha filha? Onde é que
você está aprendendo essas coisas?
— A senhora bem sabe o que penso do casamento.
Dona Gertrudes não tinha muita saída, diante do
argumento decisivo da filha:
— Veja o seu caso, mamãe. A senhora não é
casada com o papai e vive muito feliz com ele, não vive?
Dona Gertrudes tentou explicar:
— Mas o seu caso é diferente.
— Não há diferença alguma, quando duas pessoas
se gostam.
Não houve jeito de demover a idéia da filha. Ela
estava presa demais às suas convicções pra estar
voltando atrás assim sem mais nem menos. Armando, o
pai, ouvia o diálogo sem dizer uma palavra.
Soprava a sopa, tranqüilo, enquanto mãe e filha
iam perdendo a calma.
— Não permitirei que você tenha ligação alguma
com esse homem.
— Isso é o que a senhora pensa — respondeu,
retirando-se da mesa.
Dona Gertrudes perdeu o apetite, trocou idéias
com o companheiro. Nunca pensaram que isso fosse
acontecer, logo à sua filha. Armando foi positivo:
— Quem sabe eles serão felizes, meu bem? Dona
Gertrudes ficou indignada:
— Até você, Armando? Onde é que você está com a
cabeça? Já imaginou a sua filha “juntada” com um
homem?
Armando calou a boca, preferiu não discutir.
Chegou a pensar que sua companheira se sentisse
infeliz por não ser casada com ele, com certidão e tudo.
Para ele, bastava serem felizes, se compreenderem, se
respeitarem, coisas que muito papel de cartório não dá a
ninguém. Dona Gertrudes insistia:
— O que dirão os outros?
A filha voltou com duas maletas nas mãos, a
tempo de rebater a última frase da mãe.
— Os “outros”, sempre os “outros”. Que é que os
“outros” têm a ver com a minha vida?
Dona Gertrudes tentou convencê-la:
— Você não sabe o que está dizendo, minha filha.
Nossas vidas sempre dependem mais dos outros do que
de nós mesmos. Por mais que a gente se considere
independente, temos sempre satisfações a dar aos
“outros”. Não se esqueça de que vivemos numa
sociedade e é ela quem dita as normas da vida.
A filha não quis ouvir tudo, deu um beijo na mãe,
outro no pai, e foi saindo:
— Vou para um hotel. Sinto que não há mais
clima pra mim dentro desta casa.
Dona Gertrudes enxugou uma lágrima. Seu
Armando baixou a cabeça. Ninguém disse uma palavra.
Quando ia saindo, a empregada entrou, como numa
peça de teatro:
— Telefone pra senhora. É o Dr. Zacarias.
Correu pro telefone, falou quase quinze minutos,
quando desligou estava com a fisionomia completamente
mudada. Trouxe as maletas de volta:
— Zacarias vai viajar hoje para a Europa. Disse
que vai passar lá dois anos, estão satisfeitos?
Dona Gertrudes e seu Armando correram para
abraçá-la. A filha estava trêmula, não deu o braço a
torcer:
— Vocês me aceitam de volta? Meu ponto de vista
continua sendo o mesmo: marido pra mim, só homem
casado.
— Está bem, minha filha, está bem. Mas por que
você não foi com ele?
Caindo em prantos, ela respondeu:
— Ele foi com a mulher, mamãe. Fez as pazes com
ela ontem à noite.
Um silêncio pesado caiu no ambiente e ficaram os
três, calados, tomando a sopa fria.

O jantar

Vejam que situação. Um jantar com lugares


marcados, todos sentados, e foi logo nascer um
furúnculo no Amadeu, justamente no lugar onde o
impedia de sentar. Sujeito com furúnculo só deve aceitar
convite pra jantar americano. Lugar marcado é fogo,
nunca se sabe se daqui até lá vai nascer um furúnculo.
É contra a etiqueta desmarcar em cima da hora um
convite que já foi confirmado há quase uma semana.
Amadeu não teve outro jeito senão ir. Pegou a mulher
pelo braço, entrou no táxi:
— Ui!
— Que foi, Amadeu?
— Nada, não.
— Ah.
Na porta, ela ajudou-o a descer, o que já foi chato.
Os dois eram metidos a respeitar os pequenos detalhes
que tornam mais insuportável o convívio social. A bíblia
de ambos era o livro de Amy Vanderbilt, e só cometiam
gafes quando nenhum dos presentes sabia qual o certo e
qual o errado, muito embora eles sempre estivessem
certos.
— Vai você na frente, Amadeu. Ele ia.
— Desse lado, não, Amadeu. O cavalheiro deve
ficar desse lado.
— Mas desse eu não posso, meu bem.
Lá em cima, emendaram os sorrisos num só.
Tinham o apelido de “casal simpatia”, tal a força que
faziam pra serem simpáticos. Muitas vezes, sua simpatia
hostilizava aos menos íntimos. Dona Violeta os recebeu
de braços abertos, dentro do seu imenso decote. Estava
chiquérrima:
— Quero lhes apresentar o conde e a condessa,
— Prazer.
— Ui!
Amadeu não podia se curvar pra beijar a mão das
senhoras.
— Ui!
Se evitasse, era pior, porque sua mulher lhe dava
discretamente uma joelhada bem em cima do furúnculo.
— Aaaaaaaaaaaaaaai!
Pior foi depois, na hora do jantar. Estavam todos à
mesa e o lugar do Amadeu vazio.
— Você não vem, Amadeu? — insistia dona
Violeta.
— Vou já. Um minutinho só, que vou lavar as
mãos.
Começaram a pilheriar com ele, surgiram as
brincadeiras maliciosas, alguns chegaram a bater com
os talheres no prato, como nos filmes de penitenciária. E
o Amadeu, nada. O garçom já estava ficando impaciente,
e quando um garçom de casa de família fica impaciente,
imaginem a própria família. A mulher do Amadeu já não
agüentava mais de vergonha, levantou-se furiosa e foi
diretamente ao banheiro:
— Amadeu, você vai ou não sair daí de dentro?
Silêncio.
— Como é, Amadeu, está todo mundo esperando
por você!
Silêncio.
— Amadeu! Ó Amadeu! Responda, pelo amor de
Deus.
Sua mulher já estava em pânico, quando os
convidados levantaram da mesa e foram ao seu en-
contro. Alguém sugeriu:
— Acho melhor arrombar a porta.
Foi o que fizeram. A torneira do lavatório estava
aberta, havia um chumaço de algodão no chão. Só não
encontraram o Amadeu, que havia escapulido pela
janelinha. O vexame foi tão grande que ninguém
entendeu nada, voltaram todos mudos para a mesa e
dona Violeta mandou servir o jantar. Só que agora havia
dois lugares vazios.

“Strip-tease”

Clarice exibiu a foto do marido, descreveu todos os


seus cacoetes, frisou que só tinha ternos azul-marinho e
cinza. E esclareceu:
— Quero que o senhor siga este homem durante
uma semana, pra saber onde é que ele passa as noites.
O detetive botou a fotografia no bolso, levantou a
gola do paletó, acendeu o charuto, falou grosso:
— Pode deixar comigo, madama. Uma semana
depois, veio prestar contas:
— Seu marido passa as noites na Boate Pigalle,
vendo strip-tease.
— Sozinho?
— Sozinho.
Ela agradeceu, perguntou quanto era, pagou. À
noite, na hora do jantar, quando o marido sentou-se à
mesa, Clarice engatilhou um blue na vitrola. E enquanto
ia servindo os pratos, foi tirando a roupa, peça por peça.
Na hora do cafezinho, já estava nua, completamente
nua, fumando um cigarrinho e rodando o guardanapo
na mão. O telefone tocou, ela atendeu com voz sensual:
— Alôôôôôôôô! Do outro lado:
— Se a senhora quiser conferir, madama, seu
marido está aqui na Boate Pigalle, de terno azul-
marinho. Hoje ele veio acompanhado.
Ela desligou. Olhou para o marido, tentou
enrolar-se com o guardanapo, disse:
— Foi engano.
Escondeu-se debaixo da mesa, começou a chorar.

A solução

Marilene completou dezoito anos, disse para o pai:


— De hoje em diante, vou trabalhar. Quero ser
uma moça independente.
E mergulhou no mundo dos anúncios classifi-
cados, deixando-se envolver pela avalancha de pro-
messas: “Procura-se moça bonita para serviço de futuro
imediato”. Só quando chegou lá foi que viu que o seu
futuro não era tão imediato assim. “Procura-se moça
que tenha sorriso bonito, olhos bonitos, lábios bonitos e
cabelos bonitos, para fotografias.” Só então descobriu
que não era fotogênica. “Procura-se jovem de dezoito
anos para fazer companhia a um senhor de cinqüenta.
Exigem-se referências.” Marilene entendia cada vez
menos de anúncios: não atinava por que um velho de
cinqüenta exigia referências de uma moça de dezoito.
Lápis vermelho na mão, gilete na outra, ia riscando e
recortando as futuras decepções. Saía cedo de casa,
voltava exausta, dizia para o pai:
— Até agora, nada. E o pai:
— Filha minha só é independente depois que
recebe o primeiro salário.
Em menos de uma semana, Marilene abandonou
o ilusório mundo dos “procura-se” e passou a se dedicar
ao complicado mundo dos “oferece-se”. Dias e dias
bolando a forma de redigir o seu próprio anúncio:
“Oferece-se, moça de dezoito anos”, parou um pouco,
pensou em que atividade gostaria de se empregar. Seu
sonho era ser manequim, desfilar para as grandes casas
de moda, mas não tinha altura. Pensou em ser
datilografa, mas não sabia escrever à máquina. Pensou
em ser secretária de uma firma americana, mas não
sabia inglês. Pensou em ser artista de cinema, mas não
tinha vocação. Pensou em ser decoradora, mas não
tinha a menor aptidão para a arte. Olhou de novo para o
anúncio que estava redigindo, concluiu:
— Vai assim mesmo.
No dia seguinte, saiu o anúncio: “Oferece-se, moça
de dezoito anos”. Seu telefone não parou. Hoje, Marilene
é uma moça completamente independente, com mais de
quinze empregos.

O jogo da verdade

Foi num desses jantares informais em que a dona


da casa pede pra todos irem à vontade, mas exige que
compareçam às nove em ponto, por causa da
empregada. Donde se conclui que toda empregada é
formal e tem lá seus horários. Antes de servir o jantar,
estavam todos bebericando, trocando as mesmas frases
de gentileza:
— Aceita um uísque?
— Obrigado.
— Com água?
— Só com gelo.
Enquanto a empregada ia colocando os pratos e
as travessas na mesa, os homens falavam sobre o tempo
(“até que enfim o verão chegou”) e as mulheres sobre o
custo de vida (“é um absurdo, minha filha, assim não sei
onde vamos parar”). Só à meia-noite foi servido o “jantar
americano”, cada um fez o seu prato, comeu o que quis,
não foi obrigado a participar daquelas conversas chatas
de “assunto único” dos jantares à francesa. Outra
vantagem: na hora de comer, ninguém conversou com
ninguém, cada um procurou o seu cantinho pra digerir
tranqüilamente, voltou pra repetir o prato:
— Esse stroganoff está uma delícia, dona Fátima.
Dona Fátima não parava, andava de um lado para
o outro:
— Mais um pedacinho de pão, seu Inácio? Outra
cervejinha, seu François?
Só depois do jantar foi que a reunião começou a
se animar. Nessa altura, os convidados perceberam que
todos tinham algo em comum: acabaram de matar uma
fome bárbara e passaram o tempo todo observando um o
apetite do outro. Veio a rodadinha de café, surgiram as
primeiras piadinhas pra dar o tom de intimidade. Nesse
ponto, o seu Gonzaga era o mais atirado:
— Café frio, hein, dona Fátima? A senhora pode
tirar o gelo do meu?
Dona Fátima se divertia. Formaram-se grupinhos,
aqui e ali, ela não descansava, preocupada em construir
um ambiente para um bom papo. Ligou a vitrola, ligou a
televisão, ligou o ar-condicionado, diminuiu a luz — esse
movimento todo poderia ser o pretexto pra um princípio
de conversa. Foi então que o seu Gonzaga sugeriu o jogo
da verdade.
— O que é isso? — perguntou uma senhora
sofisticada da piteira até a pulseira do tornozelo es-
querdo.
Uma senhora de seus quarenta anos foi quem
explicou:
— É uma brincadeira ótima que passou num filme
francês. A gente faz a pergunta que quiser e a pessoa
interrogada não pode mentir. Todos são obrigados a
perguntar e todos são obrigados a responder. Uma vez
dentro da brincadeira, ninguém pode sair.
O marido deu-lhe um beliscão disfarçado que todo
mundo percebeu, menos ela — que continuou
insistindo:
— Quem topa? Quem topa? Eu topo, vamos
começar?
O marido ameaçou se retirar, ela segurou-o pelo
vinco das calças:
— Você fica aí que vai se divertir muito. Seu
Gonzaga esfregou as mãos, eufórico. Dona
Fátima vibrou, emocionada, sentindo que a sua
reuniãozinha ia pegar fogo. Começou o bate-boca, as
perguntas mais cretinas tomaram conta do ambiente,
algumas damas encabuladas escondiam o rosto, aos
poucos foram se desinibindo:
— Você gostaria de ter um amante?
— Só se fosse você.
— Você já traiu seu marido?
— Uma vez só, mas ele nunca soube.
— Você casou por amor?
— Não. Por dinheiro.
Dona Fátima servia uísque a torto e a direito, não
podia ver copo vazio.
— Você já enganou sua mulher?
— Nunca. Ela sabe de todos os meus casos. Lá
pelas três da madrugada, estava todo mundo abatido,
sabendo verdades que estavam escondidas há muito
tempo, verdades que todos sentiam necessidade de
desabafar e outras que pela emoção momentânea mais
tarde seriam motivo de brigas e arrependimento. A
brincadeira estava no fim, chamaram o seu Gonzaga
para dar uma injeção de ânimo.
— Cadê o seu Gonzaga?
Ninguém o encontrou. A empregada avisou que ele
havia saído há cinco minutos. Foi um corre-corre
tremendo, falou-se do seu charme, do seu espírito
esportivo, mas nenhum dos presentes era amigo dele.
Nem mesmo o conheciam, nem sequer o haviam
convidado para o jantar, inclusive dona Fátima. Todos
riram, sonolentos, porque o seu Gonzaga foi o único que
conseguiu levar pra casa a verdade de todos eles.

Surpresa

Clarice apagou a luzinha de cabeceira:


— Amanhã me acorda às oito horas, meu bem. O
marido estranhou:
— Que foi que houve?
— É que vou ao cabeleireiro.
No tempo de namoro, era só quando tinham
algum jantar de cerimônia, com colunista social.
Durante o noivado, qualquer teatrinho era pretexto pra
exibir a cabecinha nos intervalos. Aliás, só ia mesmo ao
teatro por causa dos intervalos. Pouco antes de casar,
passou a achar que mesmo pra ir ao cinema era preciso
mudar de penteado. Descobriu que é nos cinemas
justamente onde melhor reparam nos penteados,
principalmente pra quem senta atrás dela. Ele já estava
acostumado. Mas essa de levantar às oito da matina pra
ir ao cabeleireiro era inteiramente “pra frente”. Não
resistiu.
— Por que tão cedo?
Ela acendeu novamente a luz:
— Será que pra tudo você quer uma explicação?
Ele bocejou:
— Se você quiser dar, dá, se não quiser, até
amanhã e passe bem.
Ela sorriu:
— Não precisa ficar zangado, é que ia lhe fazer
uma surpresa. Não se lembra mais?
— De quê?
— É que amanhã completamos dois dias de
casados. Não merece um penteado novo?
Deu-lhe um beijo na testa e apagou a luz. Ele
passou a noite em claro, pensando numa fórmula pra
não lhe desmanchar os cabelos.

A corrente

Lindolfo apanhou o envelope debaixo da porta.


Olhou de um lado e de outro, não reconheceu a letra
nem encontrou o nome do remetente. Abriu e viu um
pedaço de papel batido à máquina, devia ser uma
segunda via, pois estava batido com carbono. Pensou
que fosse o lançamento de algum produto de algum
industrial pão-duro que, pra não gastar dinheiro em
propaganda de jornal, usa a tática de anunciar debaixo
da porta, “diretamente ao consumidor”. Dizia: “Envie
treze cópias desta mensagem a treze pessoas de suas
relações, em dias pares, e treze em dias ímpares, a
qualquer pessoa que você não conheça”.
— Só faltava essa — falou consigo mesmo. Sorriu
com raiva de ter perdido tempo, ia rasgar, quando
leu: “Não rasgue esta 'corrente'. Outras pessoas já o
fizeram e se deram mal”. Logo abaixo, uma lista de
pessoas conhecidas que morreram, a maioria das quais
figuras históricas, que Lindolfo nunca poderia averiguar
se de fato haviam ou não “quebrado” a corrente. Desta
vez deu um sorriso irônico, chamou a mulher:
— Olha aí, Lurdes, você que é supersticiosa, copia
esse troço vinte e seis vezes.
— O quê?
Lurdes leu com todo o cuidado:
— Você não vai copiar?
— Tá brincando.
— Isso dá uma ziquizira que vou te contar. Uma
amiga minha rasgou e perdeu uma perna debaixo do
trem.
— Coincidência.
— Sei lá. Essas coisas a gente nunca pode
saber.
Lindolfo ficou meio cismado. Foi pro escritório,
pediu à secretária:
— Tira vinte e seis cópias e deixa em cima da
minha mesa.
A secretária botou o papel na máquina, levantou-
se:
— Seu Lindolfo, isto é uma corrente.
— Eu sei, e daí?
Ela fez ar de entendida.
— É que o senhor tem de copiar de próprio punho.
Lindolfo trancou-se no gabinete, avisou pelo
telespeak:
— Não estou pra ninguém, ouviu?
Tirou o paletó, ligou o ar-condicionado, começou a
tirar cópia. Lá pras cinco da tarde, estava tudo
prontinho. Só faltava sobrescritar os envelopes. Pegou o
caderninho de telefones, nenhum tinha endereço, teve
vontade de telefonar pra saber; na certa haveriam de
perguntar “pra que é” e ele ficaria encabulado de
explicar que era pra enviar uma “correntinha” sem
compromisso. Procurou no catálogo, um por uni, os
nomes do caderninho, achou graça: a maioria dos seus
amigos tinha telefone e não tinha endereço. Pediu
auxílio pra telefonista, ela mandou que ele procurasse
no catálogo. Foi duro arranjar onze, faltavam dois.
Decidiu mandar um pra secretária mesmo, que era ali
pertinho, só não sabia o sobrenome dela e ficou com
vergonha de perguntar. Ligou pro Departamento de
Pessoal, antes de desligar ouviu um risinho de quem vai
fazer a maior fofoca, na certa pensando que ele estivesse
interessado na secretária. Ficou faltando um, chamou o
contínuo:
— Traga aqui um amigo seu e me apresente.
— Como?
— Isso mesmo que eu disse. Traga aqui um amigo
seu e me apresente.
Meia hora depois o contínuo trouxe o ascen-
sorista.
— Não posso demorar, doutor, que o elevador está
parado no terceiro.
Conversaram, tomaram cafezinho, contaram
anedotas. Agora, sim, o ascensorista era “um homem de
suas relações”. Perguntou o seu nome e endereço, ficou
de lhe fazer uma visita qualquer dia desses. Completou
o último envelope, agora só faltavam treze para treze
pessoas desconhecidas. Leu de novo o papelzinho em
cima da mesa: “corrente da felicidade”. Pensou:
— Vá ser feliz assim no raio que o parta. Rasgou
tudo, jogou pela janela. Alguém cuspiu lá de cima, bem
na sua testa. Sentiu um arrependimento íntimo de ter
rasgado, bateu a janela com toda força, bem em cima do
dedo mindinho.

Um nome qualquer

Encontraram-se depois de mais de dez anos:


— Afonso!
— Hermenegildo!
Abraçaram-se três vezes seguidas, como fazem
todos os que não se vêem há muito tempo:
— Lembra do Rogério?
— Lembro,
— Morreu a semana passada.
— Coitado.
Conversaram a mesma conversa que conversam
os que não se vêem há muito tempo:
— Que tens feito?
— Lutando. E você?
— Levando a vida.
Quando deram por si, estavam tomando cafezinho
em pé, como fazem sempre os que não se vêem há muito
tempo:
— Você está mais gordo.
— E você, mais magro.
Foram andando, parando, relembrando incidentes
pitorescos, como fazem todos os que não se vêem há
muito tempo:
— E aquele mergulho no rio, atrás do internato,
lembra-se?
— Se me lembro, quase você morre afogado.
— E foi você quem me salvou, nunca esqueci.
Pararam num ponto de ônibus pra se despedir, ficaram
batendo papo mais de meia hora, como fazem todos os
que não se vêem há muito tempo:
— Você casou?
— Casei. E você?
— Mais ou menos. Estou com uma zinha aí, mas
ela é casada.
— Você nunca quis nada com o casamento, hein,
malandro?
— Com essa até que eu casava.
— Como é ela?
— Baixotinha, gordota, tem um sinalzinho no
rosto, mas eu gosto dela assim mesmo.
Afonso ficou apreensivo:
— Como é o nome dela?
— Cláudia.
Afonso ficou mais curioso:
— Ela tem filhos?
— Dois. Um menino de quatro e uma menina de
três.
Afonso só faltou pedir o retrato pra ver, mas não
teve coragem. Apressou a despedida:
— Bem, tenho de ir andando, estou atrasadíssimo.
Tomou o ônibus, foi direto pra casa. No caminho,
foi pensando: “Cláudia... dois filhos... um menino de
quatro... uma menina de três... baixotinha... gordota...
um sinalzinho no rosto...” Era muita coincidência.
Quando entrou em casa, só faltou arrancar a porta. Lá
estava sua mulher no meio da sala, com os dois filhos,
baixotinha, gordota, com um sorriso na cara deste
tamanho:
— Chegou cedo hoje, hein, Afonso?
Ele estava tremendo de ponta a ponta, quando
perguntou:
— Diz depressa um nome de homem.
— Como?
— Depressa, diz um nome de homem. Um nome
qualquer.
Ela nem teve tempo de pensar:
— Hermenegildo.
Ele chegou a cambalear, foi preciso segurar no vão
da porta:
— Quem diria, hein?
Sua mulher não entendia nada:
— Mas o que foi, Afonso? Está sentindo
alguma coisa?
Ele foi categórico:
— Estou sim.
— Está sentindo o quê? Ele arreganhou os dentes:
— Estou sentindo ódio de mim mesmo, por ter
salvo aquele desgraçado. Devia ter deixado ele morrer
afogado.
Cláudia caiu de bruços e como caiu, ficou,
inteiramente desacordada. O médico disse que isso era
normal, estava esperando o terceiro filho.
O presente

A secretária foi quem lembrou:


— Dr. Alfredo, amanhã o senhor completa
quinze anos de casado.
Ele surpreendeu-se:
— É verdade, já havia me esquecido. Que seria
de mim sem você, hein, Consuelo?
Ela deu um sorriso malicioso:
— Quer que escolha o presente para sua
senhora?
Ele foi seco:
— Muito obrigado, presente pra mulher quem
escolhe é o próprio marido.
Fez menção de entrar no consultório, antes de
fechar a porta, voltou-se:
— Aliás, podemos escolher juntos. Um palpite
feminino sempre ajuda.
Acertaram tudo pra depois do expediente.
Pegaram o carro e foram trocando idéias pelo caminho:
um vestido, uma jóia, um par de sapatos, uma peruca,
um objeto de arte. Deu um estalo na secretária:
— Melhor parar num desses grandes magazines
que têm tudo, a gente escolhe com mais calma.
Estacionaram, foram direto ao departamento de
lingerie. Ela ia experimentando as peças, ele ia dando
palpites. Quando ela o chamou pra dentro da cabina pra
ver se gostava do novo tipo de sutiã, ele disse apenas:
— Esse está bom, mas em tamanho menor. Na
saída, o Dr. Alfredo deu de cara com a mulher:
— Você por aquiiiiiiiii?
Houve apresentações, beijinhos, ele pegou a
mulher pelo braço e despediu-se da secretária, que lhe
disse baixinho:
— Acho que o tamanho foi pequeno demais. Em
casa, a mulher morria de curiosidade:
— O que foi que ela disse que foi pequeno demais?
Ele desviou a rota:
— Sei lá, é meio biruta.
Não entregou o presente à mulher, fez-se de
esquecido. Na hora do jantar, havia na mesa um bolo
com quinze velas e um belíssimo par de abotoaduras no
seu prato. Saiu-se com esta:
— Obrigado, querida, nem me lembrava que fazia
anos hoje. Gostei do seu senso de humor em botar
apenas quinze velinhas no bolo.
Ela deu um sopro violento nas velas, desabotoou a
blusa pra exibir o colo seminu:
— Veja, imbecil. Você comprou tamanho 40 e o
meu é 48.
E tacou-lhe o bolo na cara.

No próximo verão

Preguiçoso tava ali. Chamava-se Ermenengardo,


mas se assinava Ermê, porque dava menos trabalho.
Era casado com Jussara, milionária da alta sociedade.
Casado não era bem o termo, porque casar daria muito
trabalho. Decidiram que se amavam, ele não custou
muito a convencê-la que casar era um desperdício de
tempo, afinal se isso exigisse muito trabalho, com
tabelião, igreja, juiz de paz, padre, padrinhos, convites,
recepção, o mais cômodo era ficar mesmo solteiro. Fora
morar no palacete dela, que já estava prontinho e
equipado com dois automóveis, de chofer e tudo.
Ermenengardo gostava de dormir, melhor, não gostava,
mas de todas as posições que ele conhecia, sem dúvida
a horizontal era a que ele se dava melhor. Daí a fúria de
sua mulher:
— Acorda, Ermê, e vê se procura um emprego.
Ele bocejava:
— Trabalhar pra quê? A gente já tem tudo, não
tem?
Ela insistia:
— É por causa da minha família. Não fica bem. . .
Ele interrompia:
— Quer dizer que vim morar com você pra
sustentar a sua família.
Ela aparteava:
— Você é muito cínico. Homem que não
trabalha não é homem.
Ele ironizava:
— É o que dizem, mas não provam. A mulher
voltava à carga:
— Você devia trabalhar, nem que fosse na
televisão. Taí, você podia ser cômico de televisão.
Ele deu uma gargalhada:
— Não sei como. Cômico de televisão, pra vencer,
tem de ser mais de um, inventar uma porção de tipos,
quando um cansa ele vira outro.
— Isto é pretexto de vagabundo. Tem muito artista
de televisão que faz um tipo só, mesmo quando
interpreta novela.
Ele não se deu por achado:
— Não interessa, de qualquer forma televisão dá
muito trabalho.
— Impressão sua, atualmente todos eles tra-
balham em videoteipe e ficam em casa descansando.
Ele deu um bocejo:
— Só de ouvir você falar, já estou pregado, agora
chega.
Ela continuou:
— Você tem de arranjar um emprego,
Ermenengardo. Nem que seja de banhista, pra passar o
dia na praia. Ou então de ascensorista, que fica sentado
no banquinho o dia inteiro. Ou de vendedor de discos,
que passa o tempo ouvindo música. Tem muito emprego
folgado, o que não pode é ficar esticado o dia todo numa
cama.
Ermenengardo sorriu.
— Por quê, estou incomodando? Se estou, avisa
logo que a gente se separa.
Jussara ameaçou um princípio de choro, ele foi
buscar um copo d'água:
— Está vendo? Depois diz que não trabalho. Tô aí
de ama-seca, queria ver como é que você se arranjava se
não fosse eu. Estou quase fazendo um sacrifício,
começando a trabalhar, só pra ver como é que você se
arruma.
— Promete?
— Prometo. Deixa passar esse verão que eu
começo a procurar emprego. No verão não dá pé, melhor
é a gente ir pra fora, pra casa de campo dos seus pais.
— Eles não querem ver você nem pintado.
— Ótimo, vamos só nós dois que ninguém chateia.
Ermenengardo deitou-se, cobriu-se com o
lençol:
— Me acorda às oito, pra jantar, que hoje preciso
dormir mais cedo.
Virou o rosto, começou a roncar.

Carro novo

Seu Juvenal assinou a papelada toda, deixou o


cheque na caixa e botou o recibo no bolso. Acenou para
o mecânico e entrou no conversível novinho em folha:
— Tudo okay?
— Okay. É só entregar essa papeleta no portão.
Juvenal saiu se sentindo outro homem. Veio
assoviando, pensando nos tempos de sua infância de
menino pobre. Primeiro andou em estribo de bonde,
depois passou para o ônibus, depois o lotação e
ultimamente só andava de táxi. Ficou pensando nos
tempos em que ficava na Cinelândia, às cinco da tarde,
esperando condução para voltar pra casa: viu os
rapazinhos grã-finos oferecerem carona pra moças
bonitas. Jurou que no dia em que tivesse carro, só daria
carona pra mulher, mas só mulher feia, sem segundas
intenções. Em casa, disse pra sua:
— Albina, o carro já está na porta. Vamos dar um
passeio.
Saíram, foram até a Barra, na volta comeram um
sanduíche em São Conrado, vieram com a capota
arriada, o vento batendo na cara. Fecharam a porta com
força, pra toda a vizinhança notar. Um homem
motorizado é muito mais homem — era preciso que
todos sentissem isso. No dia seguinte, de paletó e
gravata, saiu para o escritório, disposto a cumprir a
promessa. Até usava chapéu para que ninguém o
levasse a mal. Ninguém pode pensar que um homem de
chapéu está mal-intencionado. Paletó, gravata e chapéu
num conversível, só com muito boas intenções. E, além
de tudo, só mulher feia. Às nove da manhã, pela rua
movimentada, ia bem devagarinho, diminuindo a
marcha nos pontos de ônibus, fazendo sinal pras moças
feias:
— Vai pra cidade?
Todas viraram a cara. Muito acanhado, Juvenal
ajeitava o laço da gravata com a mão esquerda, descia
um pouco a aba do chapéu e tentava na outra esquina,
com mais moderação.
— Ci-da-de?
Ninguém dava bola. Passou o mês inteiro, sem
conseguir dar uma carona. Não conseguia ser útil de
jeito nenhum, todas lhe viravam o rosto,
indelicadamente. Uma chegou a gritar.
— Não se enxerga, velhinho?
Se queimou. Desse dia em diante, pendurou o
paletó e o chapéu no cabide, saiu de camisa esporte,
rifando do pensamento, definitivamente, a idéia de fazer
bem ao próximo. No primeiro sinal, quatro lindos brotos
se atracaram no carro:
— Moço, vai pra cidade?
Do banco de trás ergueu-se uma cabeça e uma
voz:
— Vai pro inferno.
Era sua mulher, ordenando furiosa:
— Faça a manobra na primeira esquina e já para
casa pra apanhar o chapéu.
Desse dia em diante, Juvenal não dormiu mais.
Não sabia se vendia o carro ou se vendia o chapéu.
Tortura

Já era a quinta carta anônima que Teodoro havia


recebido, em menos de uma semana. Podia ser do
porteiro, por despeito e por não ter recebido as festas do
Natal. Mas também podia ser da sua ex-namorada, por
ele ter casado subitamente com outra. Mas bem que
podia ser também da sua própria mulher, como já havia
acontecido num filme francês. Só que ele precisava
descobrir tudo muito antes de acabar a fita. Não
conseguia dormir, desconfiado de um e de outro,
mudando a direção de suas suspeitas a cada instante,
tendo certeza absoluta, aliás não tão absoluta, aliás sem
ter certeza nenhuma, bolas. Todo dia de manhã
perguntava à mulher se o correio já havia chegado,
estava ficando viciado em carta anônima. Quando não
vinha nenhuma, era uma tortura. Queria saber até que
ponto o seu inimigo estava informado. Ou seria amigo?
Quem sabe, na próxima carta, deixaria alguma pista?
Não agüentou mais. Naquela tarde, abriu o quarto da
mulher de repente, certo de que a encontraria
escrevendo, escondida. Ela estava deitada sob as
cobertas. Ele puxou o cobertor, sem mais nem menos.
Depois, o lençol, as fronhas:
— Vamos, diga de uma vez. Onde foi que você
escondeu a caneta?
Ela fez ar de surpresa:
— Que caneta, Teodoro?
Ele começou a remexer tudo. Abriu gavetas,
arrombou armários, revirou vestidos, espalhou sapatos,
rasgou embrulhos. Parecia um demente. Caiu exausto
na cama, soluçando:
— Foi você, sim. Foi você, tenho certeza. Hei de
descobrir tudo, você vai ver. Você ainda me paga por
essa.
Ela ficou quieta, só se levantou para abrir a porta,
quando a campainha tocou. Tornou a deitar-se ao lado
do marido, falou com voz extremamente calma:
— Era o carteiro. Toma, é outra carta pra você.

Trote com hora marcada

Todos os dias, às cinco da tarde, o telefonema


anônimo era infalível. Voz de mulher:
— Sua idiota, seu marido está aqui comigo.
E desligava. Dona Zulmira achava graça, chegava
até a rir, mas por via das dúvidas ligava pro escritório do
marido:
— Seu Macedo está?
Sempre estava, sempre a mesma pergunta:
— Que é que você quer para o jantar, meu amor?
Sempre a mesma resposta:
— Bife com fritas, meu bem.
Trocavam beijinhos, ele dizia que precisava
desligar, tinha muito serviço acumulado. Dona Zulmira
ia para a cozinha, passava o resto da tarde cantando e
assoviando. No dia seguinte, era a rotina:
— Você não se manca, mulher? Seu marido está
aqui comigo.
A curiosidade de dona Zulmira começou a crescer.
No princípio, não fazia muito caso, mas agora estava
doida pra identificar a dona daquela voz e qual o motivo
dos trotes. Há mais de seis meses que era a mesma
coisa: um telefonema apenas por dia e sempre às cinco
da tarde.
— Quem está falando? Alô! Alô!
Ninguém respondia. Uma pequena pausa e lhe
batiam com o fone no ouvido. Depois que dona Zulmira
foi dominada pela curiosidade, não teve mais sossego,
passou a desconfiar de todas as amigas. Logo depois do
telefonema anônimo, ligava para todas elas. Engraçado,
o Macedo estava sempre no escritório e as amigas em
casa. Quem poderia ser?
— Imbecil, você não tem desconfiômetro? Seu
marido está aqui comigo!
Era demais. Desta vez dona Zulmira estava pronta
pra sair, nem sequer ligou para o marido. Pegou um
táxi, foi direto ao seu escritório:
— Seu Macedo está?
O contínuo pediu que esperasse, o patrão estava
muito ocupado. Uma hora depois, a porta do gabinete se
abriu, surgiu uma loura alta, esbelta, vestido tão colante
que se podia adivinhar todas as linhas do corpo. Devia
ser a secretária, pois veio perguntando:
— Quer falar com o Dr. Macedo? Dona Zulmira
não teve dúvidas:
— Não precisa mais, minha filha. Tacou-lhe a
bolsa na cara e saiu. A voz era a mesma dos trotes.

Atitude

Há quatro anos que Alexandre decidiu separar-se


da mulher. Só lhe faltava coragem.
— Escuta, Neuza, tenho uma coisa muito im-
portante a lhe dizer.
— O que é?
Alexandre desviava o seu raciocínio:
— Onde você guardou meu sapato preto? Só
encontrei um pé, o outro sumiu.
Era sempre assim. Na hora de tomar uma atitude,
dava pra trás. A coragem que vinha alimentando
durante o dia todo desfazia-se diante do olhar
apreensivo da mulher. Não sabia se era pena de si
mesmo. Chegou a se achar um covarde, porque o
verdadeiro covarde não é o que tem medo dos outros
mas o que tem medo de si mesmo. Vivia atormentado
pela idéia de que um homem pra ser homem precisa
tomar uma atitude, nem que seja errada. Chegou em
casa mais cedo, tomou banho, foi pra sala de estar,
ficou folheando uma revista, quando a mulher entrou:
— Chegou mais cedo hoje, não foi, Alexandre?
Continuou vendo a revista, respondeu sem mexer a
cabeça:
— Foi.
Depois, levantou-se bruscamente:
— Olha, Neuza, tenho uma coisa atravessada na
garganta há muito tempo e hoje vou desabafar.
Ela achou graça:
— Não vai me dizer que perdeu o seu sapato
novamente. Ou que o almoço estava muito salgado. Ou
que o espelho do banheiro está sujo. Ou que precisamos
mudar de empregada.
Ele continuou sério:
— Não é nada disso.
Ela sentou-se, apanhou a revista que ele jogou na
poltrona:
— Então o que é? Há anos que você chega em
casa, diz que tem uma coisa muito importante pra me
dizer, no fim sai com uma bobagem sem a menor
importância. Francamente, Alexandre, já é hora de você
tomar juízo. Diga o que tem a dizer de uma vez, sem
titubear. Seja homem, tenha ao menos coragem.
Alexandre perdeu completamente o rebolado.
Neuza o olhava firmemente, chegou a sentir uma
tonteira, não encontrou palavras pra começar:
— O negócio é o seguinte...
— Diga de uma vez.
— Vou dizer. Você sabe o meu barbeador elétrico?
— Sei, e daí?
— Sumiu. E só sei fazer a barba com ele. As
lâminas comuns me arranham o rosto todo.
Neuza não resistiu:
— Isso é uma grande insensatez de sua parte,
Alexandre. Seu barbeador estava na gaveta do seu
armário há tanto tempo, pensei que você não quisesse
mais, vendi pra um sujeito que compra objetos usados.
Mas não seja por isso, amanhã é dia do seu aniversário,
aproveito e te dou outro.
Alexandre tremeu:
— Mas não é só isso, meu bem.
— Meu bem? Há quanto tempo você não diz uma
palavra amável. Estou gostando, continue.
Alexandre perdeu a bossa:
— Não é nada não. Neuza perdeu o controle:
— Você quer saber de uma coisa? Já estou farta
de tudo isso, de todas as suas reclamações, não quero
ouvir mais nem uma palavra. Quando você tiver
coragem de falar, me avise.
Neuza saiu da sala no momento em que o telefone
tocou. Alexandre atendeu. Do outro lado, voz feminina:
— Alexandre?
— Sim, sou eu.
— Já disse a ela?
— Ainda não.
Desligaram na sua cara, ele ficou parado no meio
da sala, completamente imbecilizado.

Radiopatrulha

Todas as noites era aquele inferno, na porta do


edifício. Ninguém podia dormir, ouvindo aquele berreiro,
palavrões a torto e a direito, às vezes até briga. Mais de
trinta rapazolas, desocupados, sem ter o que fazer no
dia seguinte, reunidos pra provocar algazarra até de
madrugada. Dois ou três foram parar no distrito, mas os
papais deles eram importantes o suficiente para mandar
soltá-los na mesma hora. Aparentemente, a vizinhança
estava conformada, mas dentro de cada lar não havia
sossego. Elvira, por exemplo, vivia discutindo com o
marido:
— Ernesto, você precisa tomar uma providência.
O marido tirava os olhos do jornal, fazendo pouco-
caso:
— Que providência, Elvira? Dá uma idéia. A
mulher não tinha nenhuma. A única que lhe ocorria era
ligar para a radiopatrulha, mas não dava em nada.
Quando a radiopatrulha chegava, não encontrava
ninguém. Meia hora depois, recomeçava o barulho. A
radiopatrulha tinha menos idéia que a própria Elvira,
que há menos de três dias chegou até a ouvir um
disparo bem na sua janela.
— Ernesto, acho bom você ir lá embaixo tomar
uma providência.
O marido ficou surpreso, a coisa estava ficando
quente pro seu lado:
— Eeeeeeeeeeu ir lá embaixo? Elvira foi severa:
— Sim, você. Esses rapazes fazem o que querem
porque não tem nenhum homem na redondeza.
Ernesto ficou de pé e ergueu os braços, irritado:
— Ofensas, não, Elvira, vamos com calma. Ela
instigou mais a ira do marido:
— Isso não é ofensa, é a pura verdade. Se você é
homem, prove que é e vai lá embaixo dar um jeito nisso.
Temos uma filha moça que nem pode mais entrar em
casa, sujeita a abusos de toda ordem. Ao menos se porte
como um pai.
Ernesto baixou as mãos, logo em seguida curvou a
cabeça:
— Mas que é que você quer que eu faça com os
meninos, Elvira? Também já fui moço, é preciso
compreender a juventude de hoje. Os culpados são os
pais. Isso é um problema social, querida, os tempos
mudaram muito.
Elvira não esmoreceu:
— Você está é com medo, Ernesto, confesse. Ele
perdeu a paciência, deu um murro violento na mesa:
— Chega! Não quero mais ouvir falar nesse
assunto!
Elvira continuou provocando:
— Claro que não, assim é muito mais cômodo.
Você só é valente aqui em cima, quero ver é lá embaixo.
Ernesto não respondeu. Foi ao quarto, voltou
colocando um revólver na cintura. Elvira ficou em
pânico:
— Aonde é que você vai com essa arma,
homem?
Ernesto falou de cabeça erguida:
— Vou lá embaixo acabar de vez com essa
balbúrdia.
Elvira segurou-o violentamente, ele correu pra
janela, ela atracou-se com ele, puxa daqui, puxa dali,
“me solte”, “armado você não vai”, “vou e está acabado”,
a arma disparou. Ambos ficaram paralisados. Elvira
ficou pálida. Ernesto deu-lhe um copo d'água,
abraçaram-se, beijaram-se, acalmaram-se.
— Deixa isso pra lá.
Lá embaixo, tudo ficou calmo. A rapaziada,
apavorada com o estampido, deu no pé. Nessa noite, fez-
se o mais completo silêncio, até que alguém bateu na
porta:
— Quem é?
— Radiopatrulha.
Houve queixa da vizinhança, a polícia passou a
noite inteira no apartamento, fazendo averiguações.

Favela

Sebastião tinha uma só mania, gostava de ler


história em quadrinhos. Ler não é bem verdade, man-
dava que lessem pra ele, porque era analfabeto de pai e
mãe, mesmo sem nunca ter tido pai nem mãe. Quando
lhe perguntaram como foi que nasceu dizia:
— Sei lá. Me largaram por aí, num terreno baldio,
embrulhado num jornal.
Era uma ironia do destino, nasceu dentro de um
jornal, mas não sabia ler. Talvez viesse daí o seu gosto
pelas histórias em quadrinhos. Jurava que quando se
tornasse homem seria um imitador de Rafles, aquele que
roubava dos ricos para dar aos pobres. Só que Sebastião
era um pouco diferente: roubava dos pobres pra dar aos
ricos.
— Dr. Evaristo, vim trazer aqui uma
lembrancinha de Natal.
Não falhava. Tirava o que podia do pessoal lá do
morro, fazia um embrulho bem caprichado e ia fazer
média com os endinheirados. Vivia assim há muitos
anos. Um presentinho aqui, outro ali, começou a fazer
conhecimentos. Era o que todos chamavam de “grande
praça”. Sabia dividir o seu tempo: à noite roubava o que
podia, durante o dia se encarregava dos presentes. Um
dia o pegaram dentro do barraco vizinho, fazendo uma
“limpeza”.
— Deixe isso aí, Tião.
Ele não teve outra alternativa, puxou a navalha.
— Entra se é homem.
A luta não demorou muito. Tião esticou ali
mesmo, o sangue correu por baixo da porta. Ninguém
viu, ninguém comentou, ninguém deu por falta. Crime
no morro não tem testemunha, não tem investigador,
não tem autópsia. Lá em cima, a morte não tem dono.
Um ou dois dias depois, vem o rabecão e leva o corpo.
Com Sebastião também foi assim. Apenas três ou quatro
mulheres passaram uma semana chorando.
Mistério na madrugada

São quatro horas da madrugada e a mulher está


gritando desesperadamente, no meio da rua:
— Quero meu filho! Quero meu filho! Algumas
luzes vão se acendendo, iluminando uma ou outra
janela. A maioria não ouve nada ou não quer ouvir, que
cada um já tem seus problemas pra resolver no dia
seguinte. Aliás, hoje já é dia seguinte, pois o leiteiro já
está distribuindo o leite. A mulher continua gritando:
— Quero meu filho! Quero meu filho! Gente de
camisola espia através da persiana, a curiosidade é mais
forte que o sono. Alguém grita lá do alto:
— Isso lá é hora de se procurar um filho? Não são
propriamente os gritos da mulher que não deixam a
gente dormir, é a raiva da gente ir pra cama sem saber o
que está acontecendo. Um garagista deixa o serviço e se
aproxima, um pedestre perdido estaciona ao lado, um
táxi freia bem pertinho — em menos de dez minutos, dez
pessoas formam uma rodinha em volta da mulher.
Curioso não tem hora; sai não se sabe de onde, fica até
o fim do drama, depois desaparece. Deve ser por isso
que nunca existe testemunha de coisa alguma. A mulher
não explica nada a ninguém, apenas chora e grita. Um
homem pesadão puxa-a pelo braço, mas ela reage,
gritando mais alto:
— Quero meu filho! Quero meu filho!
Seria aquele homem o pai da criança? Os curiosos
esperam uma tragédia, parece até que torcem por isso,
razão por que ninguém chama a radiopatrulha. O
guarda que faz a ronda deve estar no boteco mais
adiante, fora da sua jurisdição. Mais janelas que se
acendem, agora pode-se contar somente duas apagadas,
naturalmente seus inquilinos devem estar fora. A
mulher não pára de gritar, senta-se na calçada, rasga
seu próprio vestido com as mãos. Ninguém sabe quem é
ela nem como é o seu nome: sabe-se apenas que é mãe e
mãe não tem nome. As dez pessoas já são quinhentas, a
mulher não pára de gritar:
— Quero meu filho! Quero meu filho! Abre-se a
porta do edifício em frente, aparece um homem de
pijama, com um menino nos braços:
— Segura aqui, minha senhora, este é meu mas
pode ficar com ele. Agora, pelo amor de Deus, cala a
boca que eu quero dormir!
Entrou, bateu a porta com força. Minutos depois,
a mulher desapareceu, a multidão foi se dispersando, a
rua foi retomando o seu ar silencioso. Ficou apenas um
menino, na calçada, que começou a chorar:
— Quero meu pai! Quero meu pai!

A bola

Já era a terceira vez que a garotada quebrava a


sua vidraça com a bola. A mulher não perdoava:
— Galvão, eu bem lhe avisei que não devíamos
morar no térreo.
— Não pude fazer nada, Carolina, os outros
apartamentos já estavam alugados.
Desta vez a bola havia quebrado também uma
jarra de porcelana inglesa, presente de casamento da
sogra:
— Só quero ver a desculpa que você vai dar à
mamãe.
Ele apanhou a bola debaixo da poltrona pra
devolver.
— Galvão, pelo amor de Deus, você vai mesmo
devolver essa bola?
Ele parou perto da janela.
— Claro que vou. Ou você acha que devo ficar com
a bola dos meninos?
Carolina se enfezou:
— Não acho coisa nenhuma, mas que você devia
dar uns puxões de orelha nesses moleques, lá isso
devia.
Galvão não pensou duas vezes. Quando ia atirar a
bola pra rua, uma pedra passou-lhe de raspão pelo
ouvido esquerdo, indo bater bem no espelho da sala.
Carolina abriu o berreiro:
— Ai, meu Santo Antônio, lá se foi o meu espelho
de cristal.
Galvão ficou imóvel, com a bola na mão, sem
saber se olhava pra fora ou pra dentro. Carolina atiçou,
enquanto catava os cacos no chão:
— Essa criançada ainda acaba com a nossa casa.
Vê se toma uma atitude de homem, Galvão.
Ele saiu decidido, com a bola na mão, a garotada
dispersou. Correu atrás do menorzinho, enquanto os
outros gritavam:
— Pega! Pega! Pega, ladrão!
Quando deu por si, Galvão estava sendo per-
seguido por um bando de gente. Desistiu de pegar o
menino, saiu em disparada, de um momento para outro
transformou-se de perseguidor em perseguido. Até que
alguém o segurou. Ele ainda estava com a bola na mão,
apertando-a contra o peito, fechado num círculo de
gente. Um dos meninos gritou:
— Ele roubou a nossa bola. Alguém incentivou:
— Lincha! Lincha!
Os primeiros sopapos atingiram Galvão no ombro
e nas costas. Deixou cair a bola, fez menção de apanhá-
la: levou o primeiro soco no queixo. Não pôde reagir,
dois homens imobilizaram seus braços:
— O senhor não tem vergonha, deste tamanhão
tirando o brinquedo dos meninos?
Um velho em manga de camisa falou:
— Ele já é manjado por aqui. Não é a primeira vez
que assalta as crianças!
Uma senhora grávida fechou a cara:
— Vai ver que foi ele quem roubou o velocípede do
meu filho.
Outra senhora se aproximou:
— Semana passada deu ladrão lá em casa, tenho
certeza que foi ele.
Os meninos pegaram a bola, saíram chutando
pela calçada. Galvão tentou explicar, mas a aglomeração
estava cada vez maior. Não apareceu ninguém a seu
favor, nem mesmo um conhecido que passou do outro
lado da rua e fingiu que não o viu. Galvão pediu que
chamassem um guarda, não foi nem preciso, o primeiro
que apareceu foi logo dizendo, mal-encarado:
— Que foi que houve?
Galvão não pôde explicar, os populares contaram
cada um, um pedaço. O guarda pegou-o pelo braço, foi
direto ao botequim, telefonou pra radiopatrulha. Galvão
tentou falar.
— Seu guarda...
— O senhor explica tudo ao delegado, meu chapa.
Duas horas depois, chegou em casa, todo amar-
rotado. Carolina lhe deu uma camisa limpa e uma
toalha:
— Que foi isso, Galvão?
Ele encheu o peito, foi lavar o rosto:
— Fui obrigado a tomar uma atitude. De agora
em diante não cai mais bola aqui dentro, isso eu
garanto.
No dia seguinte, mandou colocar uma grade de
ferro na janela.

O anúncio

Dona Cristina tinha um hábito: tirar os jornais


das mãos do marido, deitar na cama e recortar os
anúncios. “Hi-fi de ocasião, modelo 78, com três alto-
falantes, pickup automático, controle de agudo e grave
isoladamente, móvel de imbuia, vende-se por motivo de
viagem.” Dona Cristina sabia da vida de todo mundo.
Tinha certeza que esse tal dono da vitrola não ia viajar
nunca, pois há dois anos que botava o mesmo anúncio,
só variava o modelo, que mudava de ano. Já aquele
loteamento do Recreio dos Bandeirantes estava sendo
anunciado também há muito tempo e só variava o preço.
Dona Cristina chorava horrores, quando pensava que já
podia ser proprietária, não de um terreninho, mas de
todo o Recreio, caso tivesse comprado há alguns anos
atrás. De vez em quando, alertava o marido:
— Escuta esse aqui, Rangel: “Loja para banco,
vendemos no Castelo, com cento e cinqüenta metros
quadrados de área construída, entrega imediata”.
O marido ficava abismado com as idéias da
mulher:
— Mas eu não tenho dinheiro, minha filha. Ela:
— Eu sempre disse que você era um fracassado.
As melhores oportunidades você perde de bobo.
Banco é um negócio que dá dinheiro, se outros fazem
por que é que você não pode fazer?
O pobre Rangel não tinha saída, baixava a cabeça,
humilhado, primeiro sintoma de um terrível complexo de
inferioridade que começava a dominar a sua alma. Dona
Cristina continuava devorando os anúncios, pra chatear
o marido:
— Esse é bom, Rangel, olha: “Piano Koller, preço
de ocasião, quinze mil e quinhentos cruzeiros, facilita-se
parte do pagamento”. Está aí, esse servia pra mim,
preciso me distrair um pouco.
O marido respondia:
— Primeiro que não tenho os quinze mil e
quinhentos, querida. Segundo que neste apartamento
pequeno não cabe nem mais um banquinho,
muito menos um piano.
Ela não desistia:
— Se você acha que esse apartamento é pequeno,
por que não muda pra um maior? Olha, aqui está um,
em Laranjeiras, com três quartos, duas salas,
armários embutidos, cozinha completa, área de serviço,
dependência de empregada, garagem, apenas dois
milhões. É a nossa chance.
Rangel ficava cada vez mais deprimido. De fato,
não podia comprar o piano, não podia comprar o
apartamento, não podia comprar terreno, nem sequer
podia montar um banco. A mulher insistia:
— Ao menos um Volkswagen você devia ter,
Rangel. Todo mundo tem. Escuta, aqui estão anun-
ciando um, modelo 76, terceira série, rodas de mag-
nésio, apenas trinta e sete mil quilômetros rodados.
Ele não agüentava mais. Já estava ficando pálido,
perdendo o estímulo pelas coisas, sentia-se um inútil,
crescia a cada instante aquela idéia terrível do fracasso.
Pra ter tudo o que a mulher desejava, precisaria
trabalhar vinte e quatro horas por dia, no mínimo
durante uns quinze anos. Falou com voz enfraquecida:
— Me empresta esse jornal, meu bem. Ela se
entusiasmou:
— Você também vai ler anúncios? Ele disse:
— Vou.
Passou uma hora mergulhado na leitura, recortou
um anúncio, botou no bolso, levantou-se e beijou a
mulher.
— Daqui a uma hora estou de volta.
Dona Cristina sorriu. Na certa ele foi comprar o
piano que ela queria. Na rua, Rangel fez sinal pro
ônibus, foi sentar no último banco. Puxou o anúncio do
bolso e conferiu mais uma vez o endereço do
psicanalista.

Chuva

A chuva ainda é dos raros fatores que faz o


homem marcar um encontro consigo mesmo. Fica vendo
as gotas na vidraça, sem reflexo, e nada faz senão olhar
para o seu próprio interior. Se analisa, se contempla por
dentro, mantém um diálogo surdo com a própria
consciência. Em dia de chuva, o homem se fecha em seu
próprio círculo, não sabe exatamente onde começa nem
onde acaba. Não vive propriamente: medita sobre o que
viveu, sobre o que viverá ou, o que é mais certo, sobre o
que poderia estar vivendo.
Quando o homem se detém pra pensar no passado
é que o seu presente não está indo muito bem. Imagina
uma porção de coisas que poderia ter feito e — que não
fez. Qualquer atitudezinha diferente que tivesse tomado,
teria mudado todo o curso de sua vida. O homem
nasceu pra se arrepender. Foi nessa atitude
contemplativa que Isabel surpreendeu Antônio, deitado
no divã, fumando calmamente o seu cigarro, diante da
janela embaçada pela chuva. Estavam casados há dez
anos e a rotina já havia dominado a atmosfera da casa.
Que espera um casal, depois de dez anos de união,
senão a rotina? E preciso que ambos, marido e mulher,
estejam preparados para percorrer essa longa e
interminável traje-tória da monotonia. O amor será
como o cigarro, cujo sabor só se sente nas primeiras
tragadas, o resto do maço é puro hábito? Isabel queria
saber o que se passava na cabeça de Antônio. Botou as
mãos na cintura, falou secamente:
— Que é que você está pensando, Antônio? Ele
não fez um gesto, respondeu com o cigarro na boca:
— Nada.
Ela foi agressiva:
— Um homem não fica com essa cara de palerma,
quando não está pensando em nada.
Antônio não deu muita importância. Já estava
habituado às agressividades da mulher, a única coisa
que ela não podia mesmo era se meter dentro da sua
cabeça. O resto dava palpite em tudo. Antônio descobriu
que o homem, mesmo casado, precisa ter vida própria.
Decidiu que todos os dias, de quatro às cinco da tarde,
acenderia um cigarro, colocaria uns discos na vitrola e
ficaria pensando. Viveria no seu mundo, seu só,
ninguém poderia interferir.
— Fala, imbecil, está tramando alguma coisa?
Antônio aumentou o volume da vitrola e os
sons se misturaram aos gritos da mulher. Lá no
fundo da sua cabeça, havia um silêncio de paz. Pensava
tranqüilo e já não ouvia nem a vitrola, nem a mulher,
apenas o ruído da chuva na vidraça. Só ele existia,
naquele momento.

Vôo 299

Herculano ia tomar o avião para São Paulo, a


maleta estava pronta, quando a empregada trouxe o
jornal da tarde. Herculano mostrou a manchete para a
mulher: "CATÁSTROFE AÉREA". Começou a retirar as camisas
e recolocá-las no armário. A mulher foi enérgica:
— Não vai me dizer que está com medo de voar.
Ele não teve outra explicação:
— Não é bem medo, é receio.
Ela não viu muita diferença na explicação. Ele
continuou:
— Sempre que há um desastre de avião, os
pilotos ficam mais nervosos. Deve ser por isso que os
acidentes aéreos acontecem um atrás do outro.
A mulher tentou ironizar:
— Nesse caso, não haveria avião que chegasse.
Ele decidiu:
— Não quero discutir o assunto. Pegue o telefone
e diga que não vou.
Ela fez um apelo:
— Você bem sabe que estamos precisando
desse dinheiro. Dentro de dois meses teremos mais um
filhinho.
Ele abraçou-a:
— É justamente por isso que não vou. Quero vê-
lo nascer.
Durante o almoço, ela fez um sermão. Citou o
caso de gente famosa que vive viajando pelo mundo todo
mês. Citou o Sinatra, o Pitanguy, o Ibrahim, todos
milionários de tanto voar e nunca lhes aconteceu nada.
Concluiu:
— Se quiser ficar rico tem de andar de avião.
Herculano foi ao quarto, a mulher foi atrás.
Ele deitou na cama, ela arrumou a maleta de
novo:
— Esse avião vai sair de qualquer maneira,
Herculano. Afinal de contas é você o comandante.
E entregou-lhe o uniforme.

Feliz Páscoa

Quando o carregador botou a poltrona no meio da


sala, Leocádio estrilou:
— De onde veio isso?
O carregador puxou uma papeleta do bolso e
mostrou:
— Aqui não é o apartamento 604? Leocádio
conferiu. O endereço estava certo, o
número do apartamento estava certo, seu nome
estava certo. Só que ele não tinha encomendado pol-
trona nenhuma. Disse:
— Na certa é algum presente de Páscoa. O
carregador resmungou:
— Se é presente não sei, mas que o doutor tem de
pagar três mil e oitocentos cruzeiros, lá isso que tem.
Leocádio botou os óculos:
— O quê? Três-mil-e-oi-to-cen-tos? O carregador
tentou aliviá-lo:
— Até que o doutor está com sorte. Mês que vem
vai haver um aumento.
Leocádio não achou graça. Tirou os óculos,
chamou a empregada:
— Maria, onde é que está a patroa? Maria veio
enxugando as mãos no avental.
— Sei não senhor.
— Ela não disse pra onde ia?
Maria apanhou um pedaço de papel no bolso do
avental:
— Ela saiu cedinho, disse que ia fazer compras,
deixou isso aqui.
Leocádio colocou os óculos de novo, leu o bilhete:
"Querido, saí pra fazer pequenas compras de Páscoa,
volto na hora do jantar. Beijinhos da sua Laís".
Leocádio amassou o papel na mão:
— Só o que faltava. "Pequenas compras de
Páscoa."
Virando-se para o carregador:
— Eu nem preciso de poltrona, não sei nem onde
botar "isso".
A campainha da porta tocou, Maria veio com o
recado:
— Tem um senhor aí com uma geladeira. Leocádio
botou as mãos na cabeça:
— Essa não!
Conferiu a nota, tudo direitinho, nome, endereço e
preço.
— O quê? Quatro mil e duzentos?
— O patrão disse que o doutor pode pagar mesmo
em cheque.
Leocádio estava enlouquecendo:
— Onde diabo andará metida essa mulher? E
gritando pra cozinha:
— Maria, liga pra Judith, pra Glórinha, pra Dulce,
pra Helena e pra Vanda, pra ver se a dona Laís está lá.
Se não estiver, vá até o cabeleireiro e diga a ela pra vir já
pra casa. É urgente.
Maria ia saindo, esbarrou com um homem na
porta:
— Seu Leocádio, tem um homem aí com uma
encomenda pro senhor.
Leocádio foi ver.
— Um fogão?
Em menos de meia hora, havia mais de vinte
mensageiros com encomendas pro Sr. Leocádio. À
noitinha, chegou a mulher, toda perfumada, com um
cabelão deste tamanho. Entrou toda sorridente:
— Já pagou tudo, Leocádio? Ele quase teve um
ataque:
— Você está louca? Onde é que vamos meter tudo
isso?
A mulher procurou acalmá-lo:
— Seu bobinho, você está pensando que isso é pra
gente? É tudo pra dar de presente.
Leocádio caiu duro. O médico disse que não era
nada, que precisava repousar uma semana em alguma
casa de saúde. Dona Laís baixou a cabeça:
— Coitado do Leocádio, sempre teve um coração
fraco.
Passou a noite enfeitando os embrulhos.

O amigo das oito e meia

Eram oito e meia da noite, quando a campainha


da porta tocou e Lúcia foi atender. Primeiro olhou pelo
olho mágico, mas a curiosidade era maior que o
buraquinho, acabou abrindo a porta toda. Era um
homem magro, mal vestido, barbado e sujo:
— Seu marido está?
— Quem deseja falar com ele?
— Um amigo.
Lúcia ficou um pouco desconfiada, nunca pensou
que seu marido tivesse um amigo dessa espécie. Ficou
até com medo, tentou fechar a porta. O homem escorou
com o pé e falou em tom rude:
— Ele não está?
Lúcia sentiu um arrepio:
— Não, não está.
O homem empurrou a porta violentamente, quase
jogou Lúcia no chão, entrou:
— Então eu espero aqui.
Lúcia estava trêmula, decidiu mentir:
— Mas... meu marido não vem hoje. . . está
viajando.
O homem riu:
— Melhor assim.
Lúcia ia gritar, o homem tapou-lhe a boca com a
mão, puxou um revólver:
— Se abrir a boca não terá mais oportunidade de
fechá-la.
Empurrou-a bruscamente em cima de uma pol-
trona:
— Onde estão as jóias? Lúcia começou a chorar:
— Não tenho jóias.
O homem puxou-a pelo vestido, rasgando-lhe o
decote, depois torceu-lhe o braço impiedosamente:
— Mostre logo onde estão as jóias. Não tenho
tempo a perder.
Lúcia foi para o quarto, abriu o armário, apontou
uma gaveta:
— Estão ali.
O homem apanhou tudo, botou numa sacola que
trazia dentro do casaco, enxugou a testa com um lenço:
— E o dinheiro, onde está? Lúcia estava
apavorada:
— Ainda não está satisfeito? Só aí o senhor leva
mais de oito milhões em jóias.
O homem apontou o revólver, furioso:
— Não quero saber de conversa, mostre o dinheiro
e pronto.
Lúcia remexeu os bolsos do marido, conseguiu
setecentos cruzeiros, o homem botou no bolso. Per-
guntou:
— Onde é o telefone?
— É ali.
Arrancou os fios, foi saindo de costas. Bateu a
porta, correu pelas escadas, ouvindo ainda os gritos da
mulher: "Pega! Pega ladrão! Socorro! Socorro!" Ninguém
deu a menor bola, dois ou três vizinhos entreabriram a
porta mais por curiosidade do que por outra coisa, não
viram nada, fecharam de novo. O porteiro não viu o
homem sair porque estava no café. Apenas o marido de
Lúcia saiu do banheiro enrolado numa toalha:
— Que foi? Que foi que houve? Lúcia caiu em
prantos:
— Entrou um ladrão aqui, roubou todas as
minhas jóias, levou todo o seu dinheiro e você nem
nada.
O marido se ajeitou dentro da toalha que
ameaçava cair:
— Eu bem que ouvi alguma coisa estranha, mas
estava tomando banho.
Lúcia cobriu o rosto com as mãos:
— Covarde!
O marido ligou para a polícia, falou cinco minutos
com o delegado, disse para a mulher:
— Pode deixar que o delegado é meu amigo e
prometeu trazer as suas jóias de volta.
Lúcia apontou o fio do telefone cortado, foi acabar
de chorar no quarto.

Psicanálise

Percínio sofria de solidão. Tinha várias mulheres,


mas a verdade é que nenhuma era dele mesmo — pelo
menos oficialmente. O resultado é que, à noite, ficava
sozinho em casa e isso era uma tortura. Não tanto para
ele, como supunha, mas principalmente para os seus
amigos, aos quais passava a noite telefonando:
— É o Armando?
— É.
— Aqui é o Percínio.
— Não brinca, rapaz, são quatro da matina e
amanhã preciso acordar cedo.
Tentava outro:
— João? É o Percínio.
— Que é que manda?
— Estava dormindo?
— Adivinha.
Morria de vergonha, mas a tortura da solidão era
mais forte que o vexame de acordar os amigos.
Ultimamente, a coisa começou a ficar mais grave: não
conseguia discar os números certos.
— É o Bebeto?
— Aqui não mora ninguém com esse nome.
Tentava de novo, acabava ligando pra outro.
— O Herberto está?
— Vê se não enche. Aqui não tem Herberto
nenhum.
Começou a desconfiar que ninguém queria mais
falar com ele. Isso agravava mais ainda o seu problema
de solidão. Pra confirmar essa hipótese, chamou a
companhia telefônica pra consertar seu aparelho.
— Seu telefone está ótimo, não tem defeito
nenhum.
Depois, nem a seção de consertos queria atendê-
lo. Já começava a se sentir um chato. Tentou arranjar
uma dama de companhia, mas todas que apareciam
diziam que não queriam trabalhar com rapaz solteiro, já
tinham bastante experiência disso. Não adiantava pagar
bem. Tentou arranjar um acompanhante, choveram os
trotes, diziam os piores palavrões, teve de retirar o
telefone por algum tempo, agravando mais a sua
solidão: agora não tinha chance de ouvir nem a própria
voz. Lhe ocorreu então arranjar um mordomo, que era
um emprego mais decente, ninguém poderia dizer nada.
Quem não agüentou foi o mordomo:
— O senhor não vai dormir, patrão? Já são seis
horas da manhã.
Durou um dia e uma noite, pediu as contas e foi
embora. Percínio não encontrava solução para o seu
problema, sua solidão era tão acentuada que sofria de
insônia. Cada vez mais só, decidiu consultar um
psicanalista.
— O senhor tem medo de escuro?
— Não.
— Seus pais não lhe davam carinho?
— Sim.
— Teve muitos amigos na infância?
— Alguns.
— Foi preso alguma vez?
— Nunca.
— Lembra-se de ter tido alguma emoção muito
forte?
— Não.
— Foi expulso alguma vez da escola?
— Não.
— Está desempregado?
— Não.
— O senhor me parece um homem normal.
Percínio chegou a implorar.
— Juro que não sou, doutor. Eu juro.
O psicanalista ficou um pouco perturbado, não
compreendeu a insistência do paciente:
— Volte amanhã, às onze.
— Da noite, doutor?
— Não senhor, da manhã.
— Dê um jeitinho pra noite, doutor, tá bem? Eu
pago o dobro.
— O senhor está louco.
— Eu não disse, doutor? Eu não disse?
Daí em diante quem não dormiu mais foi o
psicanalista. Toda vez que ia dar alta, Percínio suplicava
em prantos:
— Só mais uma consultinha, doutor, por favor.
Pra eu ficar bem bonzinho.
O psicanalista já estava de olheiras, já tinha
brigado com a mulher, já havia perdido toda a clientela,
já estava até com alguns tiques nervosos. Percínio sorria
um sorriso sinistro:
— Agora, mais do que nunca, o senhor precisa de
mim, doutor.
Conseguira inverter o problema: agora era ele o
benevolente.

Biribento

Seu nome era Pedro, mas podia ser José ou


Geraldo. Morava no Leme, mas podia morar em
Copacabana ou Ipanema. Era casado, mas podia ser
solteiro, viúvo ou desquitado. Seu apartamento era
alugado e, este sim, não podia ser próprio de jeito
nenhum — porque Pedro era teso. Durante o dia,
passava as horas procurando emprego e não dava uma
dentro, sempre se justificava pra si mesmo que este era
muito puxado, aquele rendia pouco e daquele outro não
manjava nada. O que ele sabia fazer bem era jogar
biriba e discutir com a mulher. Jogava por causa da
mulher e discutia com a mulher por causa do biriba.
Sempre que perdia, culpava a mulher de não ter
comprado o bagaço. "Mulher que se preza", dizia,
"sempre compra o bagaço." Aí começava o bate-boca. No
fim da noite, perdiam sempre, a mulher contava os
níqueis da bolsa pra pagar o prejuízo a tostão o ponto.
Já desciam no elevador discutindo, ele sempre
bronqueando porque ela havia dado aquela canastra
real, ela dizendo que não ia sair do "bate" por causa
dele. Começava tudo de novo: "Mulher que é mulher,
sempre sai do 'bate' por causa do marido", dizia. Um dia
ela se encheu:
— Quer saber de uma coisa? Arranje outra
parceira que eu não agüento mais. Tudo sou eu,
você é um gênio.
Faziam as pazes, beijinho pra cá, curinguinha pra
lá, quando menos esperavam já estavam no fim do mês.
A mulher mostrava a conta do padeiro, do leiteiro, do
armazém, do açougue, da farmácia, da tinturaria. Ele
olhava, olhava, metia a mão no bolso e lhe entregava o
dinheiro:
— Toma lá trezentos cruzeiros. Agora daí você tira
quinhentos.
Era jogador de biriba até a alma. Todo mês, dava
menos duzentos.
Debutante

A discussão começou por causa de uma bobagem:


Lúcia fazia quinze anos. Estava uma moça, como diziam
as visitas que a conheceram pequenina. O grande sonho
da mãe é que ela fosse debutante, daí aproximá-la ao
máximo dos colunistas, pra ver se era citada em jornal.
Volta e meia, dava festinhas em casa e convidava um ou
dois jornalistas — mas nunca nenhum foi. No dia em
que a moça disse que estava namorando um colunista,
sua mãe ficou radiante. Todas as noites, lá chegava ele,
pontualmente, no seu conversível e buzinava janela
adentro. No dia em que não ia, a mãe só faltava morrer:
— Vai ver, ele enjoou de você, minha filha. A filha
explicava que não era nada disso, que
colunista é assim mesmo, tem uma vida
atribulada, que o seu estava preparando o próximo baile
das debutantes.
— Ele convidou você pra debutar?
— Até agora, não.
Mas veio o dia fatídico. Quando Lúcia deu a
notícia em casa, o pai explodiu:
— Isso é uma pouca-vergonha. Não quero minha
filha metida nesse negócio de society.
Falou, falou, falou, por fim cedeu. Um mês depois,
Lúcia desfilava dentro de um organza branco e sorria
feliz para os fotógrafos. O colunista delirava, a mãe
chorava, o pai chegou a ficar emocionado. Mas os
retratos de Lúcia, nos jornais e nas revistas, haveriam
de alterar-lhe a personalidade. Chegaram até a publicar
o preço de seu vestido, como se ela fosse candidata de
concurso de fantasia do Municipal. Lúcia mudou
todinha, dos pés à cabeça: esnobava os pais, esnobava
as amiguinhas e chegou até a esnobar o próprio
colunista que a lançou. Foi o fim. Seus pais passaram a
discutir dia e noite por sua causa: o pai achava que a
menina estava perdida, enquanto a mãe defendia a tese
de que ser debutante é uma credencial muito importante
para o futuro de uma moça. Três meses depois,
separaram-se. Foi até um alívio: mãe e filha passaram a
freqüentar tudo quanto é coquetel, boate, viver a vida
moderna como ela deve ser vivida, sem a interferência de
nenhum chato pra dar palpite dentro de casa. Agora, o
sonho de Lúcia é ser uma das "dez mais elegantes" de
outro colunista.

Testemunha

Todos os dias Péricles saía de casa, despedia-se da


mulher:
— Vou ver o que há por aí.
À noite, quando voltava, contava tudo:
— Hoje vi um desastre bárbaro. O ônibus
imprensou um Ford contra um Chevrolet, foi preciso
virem os bombeiros pra tirarem o motorista. A culpa foi
do chofer do ônibus, tive de ir ao distrito pra depor.
A mulher não se conformava. Não havia um dia
em que Péricles não chegasse tarde por ter ido ao
distrito prestar depoimento. Se alguém perguntasse em
que é que ele trabalhava, era capaz de jurar que era
"testemunha profissional". Uma vez chegou até a brincar
com ele, chamando-o assim. Se queimou:
— Não brinca, mulher, isso ainda pode dar galho.
Da última vez, apareceu de pileque. Eram cinco
horas da madrugada e ela ainda estava acordada,
esperando:
— Desta vez, Péricles, o que foi que você viu?
Ele pediu um Alka-Seltzer:
— Deixa pra amanhã, hoje estou cansado.
A mulher insistiu:
— Amanhã você conta outra novidade, quero a de
hoje.
Ele começou.
— Estive no distrito, até agora. Ela debochou:
— Até aí morreu Neves. . .
Ele não deu muita importância, continuou:
— Assisti a um caso de adultério. Sabe a
Gildinha? Pois é, pegaram ela com um homem dentro de
um hotel suspeito, na Lapa.
A mulher ficou intrigada:
— Como foi que você viu, Péricles?
Ele emborcou direto na cama, cobriu-se com o
lençol:
— Pelo amor de Deus, deixa pra amanhã.
A mulher insistiu, puxou o lençol. Péricles so-
luçava descontroladamente, cobrindo o rosto com as
mãos.

Pisca-pisca

Doralice estava enrustida de uma saturação


interior. Nem ela sabia o que era isso, mas o seu
psicanalista chegou a insinuar que ela estava farta de si
mesma. Tinha quarenta anos, viúva, isso era normal.
Melhor dito: normal que se sentisse assim anormal. A
vantagem que os psicanalistas levam sobre os não-
psicanalistas é que os primeiros explicam e justificam as
anormalidades, que convencionalmente chamam de
desajustamento. O Dr. Pinks, na décima oitava
consulta, chegou a fazer mais confidencias que a própria
paciente:
— A senhora precisa fugir dessa solidão que
domina a sua vida.
Doralice esclareceu que não era uma mulher só.
Além de um cachorrinho de estimação, recebia,
semanalmente, a visita de um amigo que morava em São
Paulo:
— Acontece, doutor, que o Paulinho não se dá
muito bem com o Mimi.
E explicava:
— Mimi é o cachorrinho. O Paulinho é quem
mora em São Paulo, vem ao Rio só pra me ver. O doutor
não acha fantástico?
A maneira como Doralice falava, num misto
de ingenuidade e birutice, fascinava o dr. Pinks.
Nesse dia ele se conteve:
— De todas as clientes que tenho, a senhora é a
que mais me agrada.
Ela piscou os olhos, demoradamente:
— Pode me chamar de você, doutor. Ele piscou
muito mais que ela:
— Você também pode me chamar de você.
Ficaram os dois, piscando, piscando, sem poder
parar. O Dr. Pinks esclareceu que o nervo ótico de
ambos era sensivelmente subordinado às suas emoções
afetivas:
— Tenho certeza de que estamos apaixonados.
Isso resolverá o seu problema de solidão.
Doralice vibrou de entusiasmo:
— Isso é um pedido de casamento?
O Dr. Pinks retomou a sua feição de médico:
— Impossível, minha senhora. Isso criaria um
problema para a minha mulher.
Ambos pararam de piscar ao mesmo tempo.

O choque

Denise esperou o pai sair, procurou a mãe para


uma conversa íntima:
— Estou apaixonada, mamãe. Vou me casar no
mês que vem.
A mãe só faltou desmaiar:
— Que é isso, minha filha. Você tem apenas treze
anos.
A menina foi inflexível:
— E daí? Sei de muito mais coisas do que a
senhora imagina.
O impacto foi forte demais. A mãe foi à cozinha,
tomou água com açúcar, puxou Denise pelo braço,
entraram no quarto, trancou a porta com a chave:
— Vamos com calma, minha filha. Conte o que
houve.
Denise apanhou uma escova, começou a alisar os
cabelos diante do espelho:
— Não houve nada, mamãe. Apenas estou
apaixonada e vou me casar.
A mãe foi enérgica:
— Você não sai daqui de dentro enquanto não me
disser o que foi que aconteceu.
Denise continuou penteando os cabelos:
— Não aconteceu nada, mamãe. Já sou uma
mulher e faço o que me dá na telha, tá bom?
A mãe não se conteve:
— Você enlouqueceu, não tenho mais dúvida. Vou
telefonar já para o psiquiatra do teu pai.
Denise interferiu:
— Não faça isso, eu lhe peço. Procure com-
preender.
Acometida de forte crise nervosa, a mãe pegou o
telefone, começou a discar. A menina insistia:
— Ele é casado, mamãe, mas não gosta mais da
mulher. Disse que vai divorciar pra casar comigo.
Procure compreender, mamãe.
Mãos trêmulas, a mãe não acertava com o
número. Olhava para a menina, penalizada. Tornou a
discar:
— Que pena, minha filha. Tão jovem e ter de
acabar nas mãos de um psiquiatra.
A menina arregalou os olhos:
— Como é que a senhora soube, mamãe? É
justamente ele.
Meia hora depois, uma ambulância parava na
porta pra socorrer a pobre senhora, vítima de um
enfarte. Seu trauma foi tão grande, que até hoje está
sendo tratada — pelo genro.
Talento

Quando completou dezoito anos, Ingrid saiu de


casa com a disposição de entrar para o teatro:
— Hei de vencer, custe o que custar.
Não foi mole. Durante dois meses freqüentou tudo
quanto é restaurante onde vão jantar os artistas, depois
do espetáculo. Só que ela não jantava: roubava uma
batatinha aqui, outra ali, e ia fazendo os contatos, que
hoje chamam de relações públicas. Até que um dia
surgiu a primeira oportunidade e arranjou seu primeiro
emprego: tinha de bater palmas, de vez em quando, pra
incentivar a platéia. Mas não durou muito: uma vez
bateu palma fora de hora e acabou indo pra rua. Pra
arranjar colocação em outro teatro, foi duro, pois essa é
uma das raras profissões que não possibilitam a tal
carta de apresentação.
— Mesmo assim, hei de arranjar.
E arranjou mesmo, porque sempre aparece um
brincalhão pra tirar partido da agonia alheia. O fato é
que Ingrid conseguiu uma carta nos seguintes termos:
"Prezado diretor, pela presente quero lhe recomendar o
extraordinário talento da jovem portadora desta carta,
excelente batedora de palmas de nossa 'claque', com
uma folha de serviços digna dos maiores elogios. Graças
às suas palmas, sempre estridentes e oportunas, nossas
peças têm sido muito bem aceitas, tanto pelo público
como pela crítica, mais pelo público, pois a nossa crítica
ainda não se acostumou a gostar das peças aplaudidas.
De qualquer forma, como o nosso objetivo direto é o pú-
blico, peço-lhe que ouça com atenção as palmas desta
jovem, cujo futuro está em suas mãos (dela, é claro)''.
— O senhor acha mesmo que posso fazer
carreira?
Ingrid tremia, quando o diretor lhe pediu para
bater palmas.
— O senhor gostou mesmo?
— Demais. Agora pode vestir a saia e passe para
a outra sala pra assinar o contrato: a senhorita será a
nossa principal vedete.
O que é o destino. Ingrid ingressou no teatro
através das mãos, mas o seu talento estava todo nas
pernas.

Dez centavos

Eurípedes era caixa de banco, contava dinheiro o


dia inteiro; em casa, não tinha o que contar. Já partia
para o terceiro filho e não acreditava muito que o décimo
terceiro salário desse jeito nisso. Nem o décimo terceiro
nem qualquer outro tipo de salário que inventassem.
Chegava em casa, dizia:
— Hoje deu uma diferença de dez centavos. A
mulher:
— Deixa de ser mesquinho, perder a noite por
causa de dez centavos.
— Não sou eu, é o banco.
— São uns miseráveis. Por isso é que ficam ricos.
Fazem questão de dez centavos. Não duvido muito que
você seja demitido por isso, são capazes até de dizer que
você deu um desfalque.
Ela tinha razão. Não era a primeira vez que dava
diferença de dez centavos. Se a quantia fosse maior,
seria mais fácil de descobrir, mas dez centavos era duro.
Tinha de somar e subtrair tudo de novo, centenas e
centenas de cheques, milhares e milhares de notas. O
Godofredo se gabava:
— Sou caixa há vinte anos e comigo nunca deu
uma diferença.
O Godofredo era a sua maior diferença. No fundo,
Eurípedes tinha uma certa inveja dele, mas não
confessava isso nem a si mesmo. Godofredo era solteiro,
podia se dar ao luxo de usar camisas de linho, sempre
limpas, com gravatas italianas de pura seda. Na saída,
pegava o seu carrinho na esquina e ia dar carona na
Cinelândia. O salário era o mesmo, mas qualquer um
podia jurar que o Godofredo ganhava dez vezes mais.
Talvez fosse esse complexo, essa mágoa, esse quase
ódio, que fizessem Eurípedes errar no balanço, ao fim do
dia. Queixava-se à mulher:
— Não sei o que é, Laura. Alguma coisa anda
errada comigo. Há um mês que dá uma diferença de dez
centavos.
A mulher era de uma boa fé irritante:
— Trinta dias a dez centavos, são três cruzeiros.
Toma aí os três cruzeiros, entrega ao gerente e não se
fala mais nisso. Não agüento mais a sua palidez. Você
está ficando anêmico, Eurípedes. Um dia desses você
estoura e os seus filhos não terão nem o que comer.
Eurípedes estava ficando doente. Não suportava
mais ver a cara do Godofredo, no guichê pegado ao seu,
sempre sorrindo, fechando a caixa cedinho:
— Té amanhã, Eurípedes.
E ele ficava fazendo serão, contando e recontando
até cair exausto. Sempre dez centavos de diferença.
Nessa noite, procurou o gerente:
— Não sei onde está o erro, dr. Gabriel. Há um
mês que dá uma diferença de dez centavos. Talvez seja a
máquina de calcular.
O gerente era frio, mais calculista que a própria
máquina:
— Você está brincando, rapaz? Máquina não erra.
O defeito está em você mesmo.
Depois caiu em si:
— Que foi que você disse? Há um mês que está
dando diferença de dez centavos? Você está louco, isso
pode arruinar o prestígio do banco. Iremos todos à
falência.
Foi convocada uma reunião de emergência para
estudar o ativo e o passivo do banco. Verificaram os
balancetes, consultaram os livros de empréstimo e de
investimentos. Passaram a vista nos depósitos e nas
retiradas, nos títulos em cobrança, nos títulos
descontados, nas contas de compensação, nos juros.
Um economista pediu a palavra:
— Juros? É verdade. Se já existe uma diferença de
três cruzeiros, mais os juros, a diferença só tende a
crescer. Isso desequilibrará completamente a estrutura
do banco. Um desastre. É preciso encontrar com a
máxima urgência essa diferença.
No dia seguinte, Eurípedes foi demitido. Quando
saiu, foi despedir-se dos colegas, inclusive do Godofredo,
que ficou rindo e jogando para o alto uma moedinha de
dez centavos. Eurípedes chegou em casa mais cedo, a
mulher exclamou:
— Que foi isso, encontraram a diferença e lhe
deram um prêmio?
Eurípedes preferiu não conversar. Passou a noite
rindo com os meninos, como há muito tempo não fazia.
O atleta

Gustavo decidiu ficar forte, de estalo. Já estava


farto de ver as fotografias de Mr. Mundo coladas no
armário de sua mulher. Uma vez chegou a revidar e
forrou todo seu escritório com fotografias de Sônia
Braga, Vera Fischer, Betty Faria, Sandra Bréa, Sylvia
Kristel, Margaux Hemingway, etc., etc. Não havia parede
que chegasse, colou fotografia até no teto. Quando a
mulher viu, rasgou e jogou no lixo. Botou as mãos na
cintura:
— Se você tem peito, tenta fazer essa brincadeira
de novo. Quero ver!
Nessa noite, não dormiu. De manhã cedinho, saiu
pra comprar halteres. Rodou, rodou, acabou entrando
numa casa especializada:
— Me dá cento e oitenta quilos de halteres. O
empregado separou os pesos, colocou nas barras:
— Quer que embrulhe?
Gustavo baixou a cabeça, humilhado:
— Se eu pudesse carregar tudo isso, não precisava
nem comprar.
O empregado concordou, meio encabulado.
Gustavo deu o endereço, foi pra casa esperar. Quando a
mulher chegou, ele estava de camiseta, na varanda,
levantando o pesinho menor, de dois quilos, com certa
dificuldade. Em oito meses, já era outro homem, forte,
corpulento. Voltou à loja, com um embrulho na mão:
— Vim aqui devolver os cento e oitenta quilos de
halteres que o senhor me vendeu.
O empregado era o mesmo:
— Qual o motivo?
Gustavo apontou o embrulho, com o peito es-
tufado:
— Estão com defeito.
O empregado pediu desculpas, devolveu o di-
nheiro. Gustavo voltou pra casa, sorridente, a mulher
perguntou se ele não queria colar fotografias de mulher
de maio que ela deixava.
— Não interessa mais, minha filha. Agora é ao
vivo.
Vestiu uma camisa esporte, bem apertada, te-
lefonou pra uma mulher e saiu.
— Não me espere pro jantar que estou fazendo
regime.

Manicura

Letícia era a alma do salão, passava o dia se-


gurando as mãos de vários homens, à noite fazia doce,
quando o seu amiguinho queria segurar a sua mão. Era
viúva, tinha dois filhos pra educar, ambos na escola.
Sua freguesia era enorme, não porque ela fizesse bem as
unhas, mas especialmente porque sabia da vida de todo
mundo e não parava de falar. Era divertido ouvir os
rumores de desquites, as fofocas das damas da
sociedade.
— Você devia ser colunista, isso sim. Letícia
mostrava todos os dentes. Ou quase
todos, já que grande parte tinha sido substituída
por alguns pedaços de ouro que ela não se constrangia
em exibir.
— Não sei escrever. Se soubesse, não teria tempo
de saber das coisas. Sei porque me contam enquanto
fazem as unhas.
Agora Letícia dava uma notícia a todos, em
primeira mão. Primeira é modo de dizer, porque foi de
tanto pedir a mão dos outros que um dia pediram a sua.
— Mês que vem vou casar.
Todos ficaram muito felizes, mas ninguém co-
mentou nada, porque Letícia não era notícia. Ela não
escondia a sua felicidade, só falava nisso. Havia um mês
que não tinha outro assunto, o que vinha, de certo
modo, espantando os clientes. Letícia não sabia explicar
essa súbita mudança, ninguém mais esperava por ela,
ninguém se importava se ela estava ocupada ou não. Até
que um dia uma amiga lhe abriu os olhos,
inconscientemente.
— Você já está enchendo com essa história do seu
casamento com o Júlio.
Nesse dia, não dormiu. Falou claramente com seu
pretendente:
— Precisamos apressar esse casamento, minha
produção caiu muito ultimamente e não ganho o
suficiente pra manter os meninos na escola. — Júlio
ficou surpreso:
— Pra que essa pressa, meu bem? Pelos meus
planos, só pretendia me casar no fim do ano. Ainda falta
muito.
Letícia recebeu um choque:
— Então você está de embromação comigo. Eu
sabia que não devia lhe dar certas facilidades. Os
homens são sempre assim, quando conseguem o que
querem, acabam dando o fora na gente.
Júlio tentou dissuadi-la:
— Você está enganada, meu amor. Gosto de você e
vou me casar com você. Tenha um pouco de paciência,
estou acabando de construir um edifício no Leblon e já
reservei a cobertura pra nós.
Letícia chorou muito:
— Então vamos lá ver o tal edifício. Júlio escapou
com uma desculpa:
— Ainda nem começaram as obras, tem só o
terreno.
— Então vamos ver o terreno. Foram.
— Isso não fica pronto em menos de três anos,
Júlio.
Não houve jeito de entrarem num acordo.
Letícia devolveu a aliança de noivado, terminou
tudo. No dia seguinte, chegou bem cedo no salão. Aos
poucos foi reconquistando a freguesia perdida. Quando
lhe perguntavam, ocasionalmente, se já havia casado,
ela baixava a cabeça:
— Vamos mudar de assunto.
Nunca mais falou da sua vida. Nem da de
ninguém.

Leitura tem hora

Coutinho tinha vários hábitos, mas esse de levar o


jornal pro banheiro irritava a mulher.
— Vê se não lê tudo que daqui a pouco eu quero
entrar aí.
Coutinho não dava muita importância:
— Todo mundo lê no banheiro, e daí? Já é tão
monótono ficar aqui dentro que a leitura sempre ajuda a
passar o tempo.
A mulher não se conformava. Volta e meia, batia
na porta.
— Tem gente.
Ela bronqueava do lado de fora:
— Vai demorar muito? Quantas páginas ainda
faltam?
Aos domingos era fogo. Levava todos os ma-
tutinos, cheios de suplementos literários, imobiliários,
femininos, econômicos, esportivos, políticos, entrava no
banheiro de manhã e só saía à noite. A mulher ficava
indócil, andando de um lado para o outro:
— Ó Coutinho, assim é demais!
E era mesmo. Tanto que na primeira oportu-
nidade, a mulher contratou um bombeiro para pequenas
obras. Coutinho ficou furioso:
— Que é que você vai fazer?
O bombeiro passou o dia inteiro dentro do
banheiro, dando marteladas. Coutinho chegou a pensar
que a mulher ia mandar colocar estantes ao lado do
chuveiro ou porta-revistas dentro do boxe. Mas foi pior.
À noite, quando chegou em casa, veio a surpresa. A
mulher abriu a porta do escritório:
— Olhe, mandei fazer pra você. Só pra você.
Coutinho ficou branco. No meio do escritório, bem ao
lado da escrivaninha, estava instalado o wc.
— Agora você pode ficar à vontade, querido. Saiu
e bateu a porta. Meia hora depois, voltou especialmente
pra dar uma gozação no marido. A porta ainda estava
trancada, ela bateu de mansinho. Lá de dentro uma voz
irritada:
— Tem gente!
Briga de rua

O trânsito ficou paralisado durante alguns mi-


nutos: todos queriam ver a briga, dentro do botequim.
Um homem agredia outro, violentamente. O agressor era
forte, corpulento, enquanto o que se tornou vítima
estava visivelmente embriagado. Ninguém se intrometeu:
todos assistiam à luta, como se fosse um programa de
boxe da televisão. Que é que domina o ser humano
diante da tragédia: o medo de interferir onde não foi
chamado? A necessidade interior de ver a desgraça
alheia? O homem sempre pagou um alto preço pra ver
briga, mas sempre duvidando se era mesmo pra valer ou
não. Em briga de rua, os lutadores não recebem nada:
ao contrário, põem em risco a própria vida e sabem que
os que assistem dariam tudo pra ver um deles cair
morto. O homem embriagado levou um soco mais de
jeito e caiu no chão. O corpulento sorriu com ares de
vitória, como se estivesse esperando aplausos das
pessoas que assistiam. Parecia um camelô da
brutalidade, empenhado em fazer a apologia da
violência. Ninguém sabia se o agressor tinha ou não
direito de espancar o seu adversário. Houve uma revolta
coletiva, quando ele puxou um facão da cintura. O
homem estendido no chão, tristemente derrotado, não
podia sequer se levantar — mas o agressor entendeu
que precisava dar mais espetáculo para a platéia. Foi aí
que ele perdeu a razão: houve um recuo de todos. Se
antes ninguém quis interferir, muito menos agora. Ficou
no ar aquele minuto de silêncio e de espanto que separa
a vida da morte. Agora era o imprevisível. Uma mulher
disse para o marido, em tom de censura:
— Você vai deixar que ele mate o outro? Faça
alguma coisa, Bebeto.
O marido murchou dentro de si mesmo, não
encontrou explicação para o seu gesto de covardia.
Apenas afagou com a mão a cabecinha de seu filho de
dois anos e apertou o acelerador. E enquanto o carro
deslizava, paralelo ao mar, disse baixinho para a
mulher:
— Amanhã a gente vê o desfecho, pelos
jornais.
E acelerou mais ainda, para que a paisagem
corresse mais depressa pelo vidro do carro. Disparava ao
encontro da vida.

Pesadelo

Adalberto atendeu o telefone, dormindo:


— Alô.
Do outro lado, voz de homem:
— Sua mulher fugiu, imbecil.
Adalberto fez esforço pra acordar, chegou a
formular um palavrão no consciente, mas não deu
tempo, desligaram. Virou para o outro lado, sua mulher
não estava na cama. Viu gavetas abertas, armário
desarranjado, algumas peças de roupa espalhadas pelo
chão. Gritou:
— Isabel! Isabel!
Ninguém respondeu. Olhou o relógio de cabeceira,
quatro horas da madrugada. Deu de cara com um papel
no travesseiro da mulher. Leu: "Não me espere esta
noite. Leia este bilhete todos os dias, antes de dormir".
Amassou o papel, virou para o outro lado.
— Só me faltava essa.
O telefone tocou, novamente. Adalberto não
atendeu. Esticou a perna em diagonal, ocupou a cama
toda, como há muito tempo não conseguia fazer. Meteu
a cara no travesseiro, o ruído do telefone, insistente, foi
desaparecendo, até sumir. Adalberto dormiu falando:
— Que bom... Que bom... Que bom...
Acordou ao meio-dia, com uma cotovelada:
— Pára de delirar, Adalberto. Era a mulher.
— Ué, você está aí?
— Estou sim, e quero saber que história é essa de
"que bom" que você está dizendo há mais de meia hora.
— Foi um telefonema.
— Você está louco, Adalberto? Nós nem temos
telefone.
— Então foi sonho.
Levantou bocejando, foi ao banheiro escovar os
dentes, voltou:
— E o bilhete?
— Que bilhete, homem? Você teve algum pe-
sadelo?
— Pesadelo estou tendo agora, meu bem.
— Estou dizendo. Não é a primeira vez que o
aconselho a não beber.
E entregou-lhe o saco de gelo:
— Toma.
Quando a mulher saiu do quarto, Adalberto viu o
pedaço de papel amassado entre os lençóis. Leu: "Não
me espere esta noite. Leia este bilhete todos os dias,
antes de dormir". Rasgou em pedacinhos, jogou para o
alto, pôs o gelo na cabeça.
O bilhete

Quando lhe perguntavam de que mais gostava,


Florêncio acendia o cachimbo e dizia:
— Do que gosto mesmo é de um pretexto. Todos
se surpreendiam:
— Pretexto pra quê? Ele não esclarecia:
— Pra tudo.
De vez em quando, era surpreendido divagando
nessa idéia. Melhor, nessa idéia fixa:
— Tudo na vida é pretexto. Vejam só: ano-novo é
pretexto pra pileque... Carnaval é pretexto pra
desrecalque... Dia das Mães é pretexto pra vender mais
mercadoria... Natal é pretexto pra ganhar presente...
Dia do Trabalho é pretexto pra não trabalhar... Ninguém
me tira isso da cabeça, tudo é pretexto.
Florêncio não era bem um filósofo. A maioria dos
seus amigos o levava sempre na troça:
— Casamento é pretexto pra quê, Florêncio? Ele
tinha sempre uma resposta engatilhada:
— Pra não ficar solteiro.
As pilhérias se sucediam em todos os lugares onde
ele estivesse:
— E o biquíni também é pretexto?
— É. O biquíni é pretexto pra mulher fingir que
não está nua.
— E o celibato, Florêncio, é pretexto?
— Claro. O celibato é pretexto pro homem viver
sempre acompanhado.
— Escuta, Florêncio, mulher é pretexto?
— Pra muito homem, é.
Ninguém podia com ele. Vivia e respirava pre-
textos e mesmo quando alguém lhe dizia que não tinha
pretexto pra alguma coisa, ele respondia que era
pretexto. Alguns diziam que estava ficando biruta, que
não ia muito bem da bola, mas ele não ligava a mínima:
— A inveja também é um pretexto.
Todos os anos, no seu aniversário, reunia um
grupo de amigos pra comemorar. Quando fazia os
convites, frisava antes que era um pretexto. Pretexto pra
bater papo, pra tomar um traguinho, pra trocar idéias,
às vezes até pra ganhar uma lembrancinha. Alguns
faziam a mesma brincadeira:
— Trouxe pra você um pretexto. Um pretexto pra
não trazer nada.
Florêncio compreendia e perdoava toda sorte de
gozação.
Um belo dia, Florêncio sumiu. Não era visto em
lugar nenhum. Seu espírito alegre, brincalhão, estava
fazendo falta. Telefonaram pra ele, mas ninguém
atendia. Talvez tivesse ido pra fora, talvez quisesse ficar
um pouco isolado, talvez qualquer coisa, porque o
próprio "talvez" não deixa de ser um pretexto. Dois
amigos mais íntimos foram procurá-lo, quem sabe o
telefone estava com defeito? Bateram à porta, ninguém
respondeu. Chamaram o porteiro e decidiram abrir o
seu apartamento, estavam desconfiados de que alguma
coisa estranha havia acontecido. Mais tarde diriam ao
Florêncio que essa intuição também não passava de um
pretexto.
Entraram, não houve erro: Florêncio estava
deitado no sofá, pálido e imóvel. Tomaram-lhe o pulso.
— Está morto.
Foi um corre-corre dos diabos. O médico legista
optou por suicídio, confirmando o bilhete que estava
dentro de um envelope, em cima da mesa: "Não culpo
ninguém por minha morte. Estou cansado de viver num
mundo onde só o pretexto é que conta".
Não estava cansado coisa nenhuma, foi a con-
clusão a que chegou o comissário, depois de examinar
bem a letra do falecido, insinuando a hipótese de um
assassinato.
— Tem rabo-de-saia metido nisso — disse um
detetive mais lúcido.
Pelo menos era um pretexto pra se iniciar um
inquérito policial.

A ópera

À noite iriam ao Municipal, pra ver a ópera. Era


um inferno, toda vez que o Homero queria ir a algum
lugar: provocava um corre-corre dos diabos. A mulher ia
ao cabeleireiro e ficava horas, mandava preparar a
roupa de manhã cedo, lavava a cabeça, tomava banho
de sais aromáticos, e lá pelas seis ou sete horas não
havia jantar nem nada, pois ela começava o ritual da
vestimenta. Passava as calcinhas a ferro, trocava de
sutiã duas ou três vezes, mudava de combinação,
resmungava porque rasgava as meias, punha o vestido,
interrompia a leitura do marido pra ele abotoar as suas
costas, entrava no quarto, saía do quarto, entrava no
banheiro, saía do banheiro, remexia as gavetas, fechava
as cortinas pra se vestir, abria as cortinas pra se pintar,
perguntava onde estavam seus sapatos pretos, calçava,
depois perguntava pelos sapatos prateados, calçava,
depois acabava botando o bege, que era apertado, mas
pelo menos era o mais novo. Ficava horas falando
sozinha que não tinha roupa nenhuma e que toda vez
que tinha de ir a algum lugar era sempre avisada em
cima da hora: programas assim deviam ser avisados no
mínimo com três dias de antecedência, pra não chegar
lá e passar vergonha.
— A mulher bem-vestida é o cartão de visitas do
marido — dizia.
E não parava de falar, diante do espelho, abrindo
e fechando frascos de perfumes e experimentando todos
outra vez pra ver qual o cheiro que combinava melhor
com a cor do vestido e dos cabelos. Depois de pronta,
ainda queria que o marido caísse pasmado aos seus pés,
diante de tanta beleza. Nem a própria ópera tinha tanto
trabalho quanto ela pra se preparar. Parecia que o
espetáculo era ela e não a ópera. Sua maior mágoa era
na saída do teatro: todos comentavam a ópera e nem
sequer sabiam que ela estava lá. Sua ambição era
chamar a atenção de todos, ninguém perderia por
esperar. E ameaçava o marido:
— Você não me dá bola, um dia desses outro me
pega, você vai ver.
Quando o marido lhe perguntava se havia gostado
da ópera, ela dizia:
— Gostei mais do segundo intervalo, tinha um
cara que não tirou o olho de cima de mim. Ele sabia que
eu ia.
Olha que ópera é um negócio difícil de entender, e
Homero entendia todas. Só não entendia a mulher.

Desencalhe

Pedro conheceu Laura numa dessas festas cha-


madas de "bossa nova". Havia violão, vitrola, uísque,
tuíste, roque, muito broto, tudo de frente para o mar. Os
pares ficavam na varanda, olhando a lua, quando tinha
lua. Acontece que quando Pedro conheceu Laura, foi
numa noite sem lua: ele não percebeu que ela era uma
moça cheia de espinhas no rosto, nem ela reparou que
ele estava com a roupa toda suja de graxa. Começou
assim:
— Você é linda.
— E você é muito simpático e elegante.
Combinaram outros encontros, todos na mesma
casa, na mesma varanda, sempre de frente para o mar.
E enquanto não veio a lua, o namoro foi progredindo. Na
primeira noite de lua, os dois já estavam apaixonados,
nem ele percebeu que ela tinha espinhas, nem ela
desconfiou que ele estava com a mesma roupa suja de
graxa. Daí em diante, começaram a se encontrar
também à luz do sol, indo à praia, aos clubes, até que
chegou o dia dele ser apresentado à família dela. Na
semana anterior, ele mandou a roupa pra tinturaria, ela
passou creme no rosto — até que faziam um casal
simpático. Ficaram noivos, mais por insistência da
família dela que de qualquer outra coisa. Tinham todos
medo que a menina encalhasse.
— Vim pedir a mão de sua filha. O pai fez pilhéria:
— Vai levar a mão, sim senhor, mas tem de levar o
resto dela também.
O pai era um pouco grosso, mas achava que isso
tirava os possíveis complexos da menina. Houve festa,
abriram champanha. No primeiro ano, correu tudo
muito bem, apenas um detalhe: Pedro chegava sempre
tarde pra jantar na casa da noiva, dava sempre a mesma
desculpa:
— O elevador enguiçou.
Todos achavam muita graça, diziam até que o
rapaz era bastante espirituoso. Laura foi ficando com a
pulga atrás da orelha:
— Você tem carro, Pedro?
— Claro que não.
— Que negócio é esse do elevador enguiçar? É
muita coincidência, na hora de você vir pra cá, o
elevador enguiçar.
Só então, Pedro explicou:
— Não é nada, às vezes o elevador enguiça de
manhã.
— E você fica preso dentro dele?
— Absolutamente. É que sou mecânico de
elevador. Toda vez que enguiça, me chamam pra
consertar.
Laura ficou desolada, contou tudo aos pais. A mãe
deixou cair uma lágrima, o pai limitou-se a dizer:
— Seu futuro marido é um grande brincalhão,
hein, minha filha?
E deu uma bruta gargalhada.
De pernas para o ar
Há uma semana que Pompeu chegava em casa e
encontrava a esposa de cabeça pra baixo:
— Que é isso, Nininha? Ela nem se mexia:
— Estou praticando ioga.
Ele ficou intrigado, mas aceitou a explicação.
Afinal, se ela se sentia melhor assim, o problema era
dela. Já ouvira falar, inclusive, que era moda as moças
da sociedade praticarem esse estranho processo de
relaxamento muscular. Segundo os praticantes, a ioga
faz viver mais tempo e melhor, conservando a aparência
sempre jovem. Além do quê, traz uma completa paz
interior.
— Nininha, vai ficar aí muito tempo nessa
posição?
Ela respondia compenetrada:
— Só mais duas horinhas.
Pompeu foi se conformando. Passou a almoçar na
hora do jantar e a jantar na hora do café. Se Nininha
estava se sentindo melhor, não era justo que ele
atrapalhasse. Só era chato quando ela chegava perto das
visitas pra exibir as formas, esticando as pernas para os
lados e se largando no chão. Depois, jogava os cabelos
pra trás e sorria:
— Sinceramente, não acham que estou mais
jovem?
Pompeu morria de vergonha, mas não podia fazer
nada. Pelo contrário, até ajudava a mulher nos seus
argumentos:
— Essa tal de ioga está lhe fazendo muito bem.
Nininha está outra.
Ninguém dizia nada. Alguns discutiam o assunto e
pra se mostrarem entendidos, falavam em hatha-ioga,
laya-ioga, mas a conversa não tomava profundidade:
— Tenho uma amiga que conseguiu rejuvenescer
por esse processo. Ela tem quarenta e oito anos e agora
só aparenta quarenta e sete.
Todos riam. Só quem não achava muita graça era
o Pompeu, que a cada dia via a sua casa mais invertida.
Sempre uma novidade, agora eram os quadros que
estavam todos virados.
— Mas o que é isso, Nininha? Não acha que está
exagerando?
Ela não se moveu:
— Tenho quadro é pra olhar. E não vou perder
esse prazer só porque você cismou que quadro tem de
ficar de cabeça pra cima. Isso é uma convenção que já
está superada.
— É uma questão de lógica, Nininha.
— Nada tem lógica, Pompeu. E vou provar isso a
você, hoje mesmo.
À noite, convidou uma porção de pintores para um
jantar. Só foram dois — mas ambos foram pródigos em
elogios aos quadros, um deles chegou a oferecer uma
fortuna pelo maiorzinho. Nenhum deles percebeu que
estavam todos virados. Pompeu teve vontade de rir, mais
tarde confessou à mulher:
— Já imaginou, Nininha, se você vende o quadro
e na hora dele ser pendurado o sujeito percebe que caiu
no "conto do quadro"?
Nininha não achou graça. Antes de dormir, foi
fazer sua iogazinha dentro do quarto. Pompeu já estava
perdendo a paciência:
— Você não vem dormir?
— Vou já.
Em menos de dois meses, a casa toda às avessas.
Cadeiras, poltronas, mesas, lustres, cinzeiros, televisão,
jarras, plantas, tudo. Na hora das refeições, era um
inferno, até os pratos a empregada tinha ordem pra
colocar com os fundos pra cima. Não fosse a lucidez e a
segurança de Nininha, Pompeu seria capaz de jurar que
ela estava meio lelé. No entanto, era ela quem passava o
dia se queixando às amigas:
— Não entendo o que se dá com o Pompeu,
quando nos casamos passava o dia todo em casa, agora
é só rua.
Só por isso, resolveu fazer-lhe uma surpresa,
tinha certeza que ele gostaria. Quando Pompeu chegou
do trabalho, foi recebê-lo na porta, em pé, isto é, de
cabeça pra cima. Correu para abraçá-lo, levou com o pé
na cara.
— Seu estúpido, idiota.
É que, nesse dia, Pompeu resolveu lhe fazer
também uma surpresa — entrou em casa de pernas
para o ar.

O seguro

O corretor exibia eufórico as apólices na mão:


— O seguro do seu carro vence hoje, às dezessete
horas e vinte e três minutos.
Euclides sabia que vivia num mundo de precisão
cronométrica, vão ser minuciosos assim no raio que os
parta. Perguntou as horas e o corretor consultou o seu
relógio de bolso, todo de ouro, com correntinha de ouro:
— São onze horas e quarenta e sete minutos.
Perdão, quarenta e oito.
Euclides fez os cálculos numa folha de papel:
— Quer dizer que ainda tenho seis horas e quinze
minutos pra dar uma batida?
O corretor se apavorou:
— Não faça isso. O senhor tem um desconto de
vinte por cento, justamente porque não bateu nenhuma
vez durante o ano todo.
Euclides gastou toda a sua satisfação e o seu
orgulho num único sorriso:
— E em quanto fica?
O corretor puxou uma caneta de ouro, rabiscou
um bloquinho com moldura de ouro, multiplicou,
somou, dividiu, subtraiu, mostrou-lhe o resultado:
— Para o senhor, fica tudo em seis mil cruzeiros.
— Quanto?
— S-e-i-s-m-i-l.
Seu sorriso murchou na hora. Disse que era um
absurdo, que pra pagar tudo isso teria de ficar uns três
meses sem comer, sem botar gasolina no carro, sem
pagar a conta de telefone e inda corria o risco de ser
despejado do seu apartamento por falta de pagamento.
O corretor foi sádico:
— Lhe aconselho a fazer, pois no mês que vem o
seguro vai aumentar mais sessenta por cento.
Coçou a cabeça, revoltou-se com o cinismo da-
quele corretor folheado a ouro, desistiu. O corretor
guardou toda a papelada numa pasta de crocodilo com
plaqueta de ouro, despediu-se:
— Pensou bem. Das dezessete e vinte e três em
diante, corre tudo por sua conta.
Euclides não conseguia trabalhar. Passou o resto
da tarde fazendo contas, foi ao banco consultar o seu
saldo: mil duzentos e oitenta e oito cruzeiros. Pediu três
mil emprestados à mulher, meteu um vale de mil
setecentos e doze no emprego, partiu furioso para a
companhia. Tirou o carro da garagem com todo o
cuidado, veio pela rua cheio de não-me-toques,
afastando-se até das sombras dos ônibus. Um deles,
mais afoito, o pegou de mal jeito, melhor, de bom jeito, e
jogou-o contra um poste. Nem quis olhar. Abriu a porta
com dificuldade, correu pro telefone mais próximo e
ligou para o seguro. Mandaram esperar um momento,
voltou uma voz quase automática:
— Lamentamos informar que o seu seguro expirou
às dezessete e vinte e três. São precisamente dezessete
horas e vinte e quatro minutos.
Incompatibilidade

Everardo gostava de praia. Gostava não era bem o


termo, era fanático. Dia em que não ia à praia, ficava de
mau humor, agressivo, engrossava por qualquer motivo
— e até sem motivo. Diariamente, das oito às dez, ia dar
o seu mergulhinho, pegar o seu "jacaré", dar uma
caminhada. Batia um papo com o banhista do posto,
uma conversa inconseqüente que vinha se arrastando
há quase dez anos. Aos domingos, levava a mulher e os
filhos, ficavam até mais tarde. Não gostava de praia aos
domingos, era como se uma porção de gente estranha
estivesse invadindo a sua casa. Não sabia explicar, mas
a assiduidade lhe dava a impressão de que a praia era
mais sua que dos outros. Aos domingos, era aquela
multidão de intrusos a sujar a areia com cascas de
frutas e embalagens de sorvetes, como se estivessem
jogando cinza no seu tapete persa. A felicidade
domingueira dos outros era uma tortura para ele, es-
pecialmente porque vivia preocupado com a sua mulher:
— Puxa o decote pra cima, meu bem. Ela não dava
muita importância:
— Você está ficando antiquado, Everardo.
Nem parece que foi criado em beira de praia.
Se fosse só isso, não era nada. Everardo era mais
chato que bichinho de areia:
— Senta direito, dobra as pernas pra cá, abaixa o
joelho...
A mulher fingia de paciente, estendia a toalha pra
deitar e tomar sol. Everardo tava ali, de marcação:
— Vai deitar assim, virada pra cima? Deita de
bruços.
Era um inferno. Toda vez que ia cair n'água, lá
estava o Everardo:
— Também vou.
Quando saíam da água, o Everardo vinha res-
mungando:
— Olha o decote.
Quando ela pegava o vidrinho de óleo, o Everardo
parecia que saía de dentro do frasco:
— Não me diga que vai tirar as alças pra passar
óleo.
Não havia gesto que ela fizesse, que o Everardo
não interferisse. Passavam o tempo todo discutindo, ele
enchendo e ela sem a menor liberdade de movimentos.
— Fica em pé que está chegando gente. Você não
pode ficar sentada com esse maio indecente. Daqui de
cima se vê tudo.
Ela levantava e sentava a todo instante, como se
fosse controlada por um botão mágico. De vez em
quando, reclamava:
— Se você não gosta desse maio, por que não
me compra outro?
Ele se defendia:
— Esse ainda está novo. É só tomar um pouco de
cuidado.
Quando passava um sorveteiro, o Everardo pagava
a rodada. As crianças iam cair n'água, o Everardo ficava
ali de plantão, ao lado da mulher:
— Vai tomar o sorvete com a mão esquerda? Acho
mais prudente segurar com a direita, a alça esquerda
está um pouco frouxa.
Já estava ficando insuportável. A mulher decidiu
fazer uma surpresa, comprou um maio novo com as
suas economias. Quando chegaram na praia, o Everardo
não sabia de nada. Ela começou a tirar a saída, depois o
short, o pobre do Everardo quase caiu duro: ela exibia
um biquíni desses que só se vê em fotografia de Festival
de Cannes. O coitado ficou olhando, boquiaberto, sem
saber se mandava puxar pra baixo ou pra cima ou pros
lados. Qualquer puxãozinho que desse, cobria um
pedaço e descobria outro. Everardo ficou mudo, quando
ela perguntou:
— Que tal, gostou?
Em casa, pegou uma tesoura e picou tudinho.
Depois avisou à mulher que a única solução era a
separação. Ela perguntou:
— Separação de quê? Do biquíni?
Ele não gostou da ironia. Iniciou a ação de di-
vórcio por "incompatibilidade de praia".

Em busca do ronco
perdido

De noite era aquele inferno: dona Eulália não


suportava mais o ronco do marido. Do segundo marido,
bem entendido, pois era viúva e casada de novo. No
psicanalista, ela confessou o seu drama:
— É que sinto saudades do ronco do primeiro
marido, doutor.
Era um caso inédito, para o qual Freud não havia
deixado a menor brecha. Sugerir uma sessão espírita
três vezes por semana era o cúmulo do ridículo, mas o
Dr. Wolfstang não estava propenso a encontrar solução
melhor. Há quatro semanas que não dormia e achou
que, se não decidisse, quem acabaria no divã seria ele.
Seu grande problema era saber se dona Eulália aceitaria
ou não a sugestão.
— A senhora acredita em espiritismo? Ela
levantou, assustada:
— O senhor por acaso não quer insinuar que o
ronco do meu segundo marido não é dele, é do primeiro.
— Absolutamente.
— Ainda bem, porque ronco como aquele eu
nunca vi. Sinto até falta, doutor. Vou lhe dizer mais: na
minha primeira lua-de-mel, eu não podia dormir, porque
o meu marido roncava. Agora não consigo dormir,
porque o meu segundo marido também ronca.
Não havia jeito. O Dr. Wolfstang passou mais
quatro semanas folheando livros, já estava se tornando
um especialista em roncos. Tão especialista que um dia
aventurou:
— A solução é a senhora trazer aqui o seu
segundo marido.
Foi aí que o problema começou a ficar grave:
— Meu segundo marido morreu há dois anos,
doutor. Eu nunca lhe contei isso?
O Dr. Wolfstang desmaiou. Quando a enfermeira
entrou no consultório, dona Eulália estava abraçada
com ele, ambos deitados no chão. Ela explicou:
— Não leve a mal, minha filha, mas é que ele tem
o ronco igualzinho ao do meu primeiro marido.
A enfermeira saiu gritando pelo corredor e
conseguiu atravessar uma porta de vidro, fechada.
A vidraça

Felício passava o dia inteiro na janela. Era de-


mais. De nove da manhã às seis da tarde, não fazia
outra coisa. Sandra, sua mulher, vivia se queixando. O
que mais a torturava não era bem o fato do marido
despencar lá de cima, era a tortura de pensar que um
dia teria de enfrentar a fila dos infelizes que precisam
receber a miserável pensão.
— Felício, toma cuidado. Isso não é vida de
homem.
Mas Felício não sabia fazer outra coisa a não ser
limpar vidraças.
— Você não acha muito mais prático ser
encerador? Pelo menos é em terra firme.
Ele dizia:
— Não sei encerar. Ela argumentava:
— É a mesma coisa, só que em vez de trabalhar
em pé, trabalha ajoelhado. Um serviço é na vertical, o
outro na horizontal.
Felício não se conformava. Desde pequeno se
habituara a esse trabalho, começando por baixo, em
portas, até galgar as janelas de altos edifícios. Já tinha
quase cinco mil horas de vôo, como os aviadores. Jurou
pra mulher que, no dia do seu aniversário, mudaria de
profissão.
— É hoje, Felício.
— É hoje, o quê?
— Dia dos seus anos.
— Ah, é verdade.
Ela começou a preparar o bolo, ele resolveu fazer a
limpeza da própria casa:
— Vou limpar as vidraças. E ela:
— Está bem, mas é a última vez. Você prometeu.
Trepou na janela, botou o pé pro lado de fora,
começou a esfregar a flanela. Na cozinha, Sandra
cantava, feliz da vida. De repente, um grito vindo da rua.
Sandra largou as panelas, correu pra sala, não viu
Felício na janela. Chegou no parapeito, olhou pra baixo,
uma pequena multidão cercava um corpo estendido na
calçada. Nem esperou o elevador, foi mesmo pela
escada:
— Dá licença, dá licença.
Era Felício que estava imóvel. Abraçou-se a ele,
chorou:
— Meu Deus, logo hoje?
Felício tinha os olhos abertos, fixos num ponto
abstrato. Seus lábios entreabertos pareciam sorrir.
Chegou um guarda, revistou-lhe os bolsos. Sandra
disse:
— É meu marido.
O guarda apanhou um papel, que estava saindo
do bolso esquerdo da calça. Enquanto lia, Sandra
passou os olhos, trêmula. Dizia: "Não disse que ia ser a
última vez?" Alguém acendeu uma vela. Quatro horas
depois, veio o rabecão. Sandra passou a noite no distrito
— como suspeita.

Desafio

Porfírio estava casado há pouco tempo, mas os


domingos eram sagrados: gostava de passar o dia em
casa pra ler os anúncios de filmes eróticos e recortar
fotografias de mulher nua da Playboy. Era um hábito
que tinha desde os tempos de solteiro que nem o
casamento havia curado. Mostrava pra mulher:
— Olha esta frase, que estouro. Recortava e colava
no escritório, quem entrava na sua casa, ficava horas
lendo as paredes:
"Realismo proibido."
"Tudo. . . E ainda mais."
"As mais belas e frívolas rainhas nudistas dos
cabarés da meia-noite."
"Tornei-me uma vagabunda."
"A sofredora sem roupa."
"Sua última tanga."
"Não perca: vinte e oito strip-teases... na íntegra!"
"A desejada do México."
"A mulher que não parou de amar."
Mas isso não bastava. Nos dias chamados úteis,
chegava sempre tarde em casa e o diálogo era o mesmo:
— Aonde você foi hoje, João?
Ele chegava a tremer a voz pra responder. Baixava
a cabeça, fingindo de encabulado e balbuciava
emocionado:
— Fui ver um filme erótico. Só pra fazer hora.
— Fazer hora pra quê, me explica que até hoje não
entendi.
João também não se explicava, nem de dia nem de
noite. Casado há mais de oito meses, a mulher já estava
cansada de esperar. O jeito mesmo foi desafiá-lo:
— Pra mim, chega de conversa. Se chegar
tarde amanhã, vou entrar para o novo cinema brasileiro.
E fica logo avisado, vou ser a estrela do filme, entendeu?
E se não entendeu eu explico: estrela do cinema novo
tem de aparecer sem roupa, e onde tiver uma cama ela
está ali firme, em todas as cenas, entendeu?
Dia seguinte, ele chegou bem cedo. Ela sorriu:
— Ficou com medo, hein?
Ele deu uma gargalhada e puxou um papel do
bolso:
— Pelo contrário, trouxe o contrato pra você
assinar.
E colou a cópia na parede.

O binóculo

Que é que um homem pode ter dentro da cabeça,


se passa o dia inteiro com um binóculo na cara,
espiando as vizinhas? Godofredo era um desses que se o
IBOPE quisesse fazer pesquisa, ia dar o seguinte
resultado: 72 por cento dos homens espiam as vizinhas
com binóculo, mesmo os casados; 11 por cento
gostariam de espiar, mas não têm dinheiro pra comprar
binóculo; 9 por cento são contra o uso do binóculo,
preferem ver menor mas a olho nu; 7 por cento são
contra o próprio IBOPE e 1 por cento só larga o binóculo
pra ir no banheiro. Godofredo era desses. Mal chegava
em casa, não dava nem boa-noite, corria pro binóculo e
se pendurava nele. Só que a mulher se chateou tanto
com os trotes que recebia ("como é, não vai desligar o
binóculo desse marmanjo?") que decidiu vender o seu
brinquedinho:
— Onde está meu binóculo, Marieta? Ela mostrou
só o recibo:
— Está aqui, vendi pro seu Jacó por quinze
cruzeiros. Ele sempre vem aqui pra comprar objetos
usados.
Quase a estrangulou:
— Você está louca? Esse binóculo está valendo
no mínimo uns quatrocentos.
Ela conseguiu se livrar das suas mãos:
— Louco é você, vou já telefonar pro hospício pra
eles virem te apanhar. Onde é que já se viu isso, só por
causa de um binóculo.
Ele foi se acalmando:
— Está bem, então dá um jeito de conseguir o
meu binóculo de volta.
Ela disse que sim, que tivesse calma. Foi para o
quarto, começou a tirar a roupa. Quando se deitou na
cama, o telefone tocou:
— Dona Marieta, aqui é o seu Jacó. A senhora me
vendeu o binóculo sem lentes, mas eu mandei colocar e
ficou ótimo. Estou aqui em frente vendo a senhora
todinha falando no telefone, mesmo atrás da cortina.
Quando o marido entrou, ela desligou.
— Quem era?
— O seu Jacó, reclamando que o binóculo não
tinha lentes.
O marido abriu uma gargalhada. Dona Marieta
não esperou muito, abriu a cortina da janela e ficaram
rindo os dois durante mais de dez minutos.

Fim de semana

Há algum tempo que Arnaldo andava desconfiado,


mas acumulava tudo pra discutir no fim da semana:
— Isso assim é que não pode continuar. Marilene
reagia:
— Isso o quê, Arnaldo? Desembucha. Ele fazia
mistério:
— Pensa que sou bobo, é? Pois fique sabendo
que estou a par de tudo.
Ela desafiava:
— Tudo o quê?
— Tudo. Tudinho, os mínimos detalhes. Ela
zombava:
— Olha, não vem de detetive pra cima de mim
que você acaba entrando pelo cano. Só estou avisando.
A coisa foi esquentando. Cada fim de semana se
tornava pior que o outro. Os vizinhos batiam nas
paredes, ameaçavam pelo telefone, uma vez deu até
radiopatrulha, chegaram a ir ao distrito. Abraçaram-se,
sorriram, contaram piadas, o comissário os mandou
embora. Os primeiros dias transcorreram normais,
parecia que tudo havia se reajustado, como quem troca
de fusíveis. Mas no primeiro fim de semana, a discussão
recomeçou. As mesmas descon- fianças, as mesmas
ameaças, os mesmos gritos. Só que desta vez a coisa
não deu pé pra contornar. Arnaldo já havia comprado
um revólver e quando Marilene o chamou, hostilizou, ele
mostrou a arma, orgulhoso:
— Veja bem, isto é pra você. Ela ironizou:
— É muita gentileza da sua parte, mas não
pretendo matar você.
Ele esclareceu:
— Quem pretende sou eu.
— Ah, é? Deu pra suicida, agora, depois de velho?
Não houve mais jeito. Marilene passara dos
limites:
— Infeliz. Atira se é homem.
Arnaldo apontou a arma e com a mão trêmula
ajeitou o dedo no gatilho. Marilene frisou:
— Atira se é homem, anda. Vou repetir: "se é
homem".
A palavra "homem", pronunciada com tanta ênfase
pela mulher, deixou-o completamente descontrolado.
Guardou a arma no bolso, bateu a porta, saiu soluçando
em direção ao bar da esquina, com um novo problema.

O sócio

Gilberto propôs ao amigo:


— Vou alugar um apartamento ali no Posto 2, de
frente para a montanha, quarto e sala separados, você
topa?
Etelvino era muito ingênuo:
— Mas eu moro com a minha mulher, que é que
eu vou fazer num apartamento tão pequeno?
Gilberto mostrou os dentes com malícia:
— Vai me dizer que não tem um contrabandozinho
de vez em quando?
Etelvino quase corou:
— Nunca havia pensado nisso. Gilberto foi
positivo:
— Mas já está na idade de pensar, meu caro. Veja
bem, são sete mil cruzeiros por mês, mais a empregada
e alguns móveis de emergência que a gente compra a
prazo, dá dez: cinco mil pra cada um, que tal?
Etelvino ficou espantado:
— É muita grana, Gilberto.
— Mas vale, meu caro. Cinquinho por mês e você
não tem mais problema de lugar, falou? Pense até
amanhã, preciso de um sujeito de confiança.
Etelvino chegou em casa diferente. Olhou pra
mulher, beijou os filhos, nunca houve um lar tão feliz
quanto o seu. Josefa era mulher pura demais pra ser
enganada, não tinha coragem. Quando o telefone bateu,
no dia seguinte de manhã, era o Gilberto:
— Como é, já pensou? Vou assinar o contrato
hoje à tarde.
Etelvino foi no impulso, sem mesmo saber o que
estava dizendo:
— Feito. Um abração pra você, depois a gente se
fala.
Na mesma tarde Gilberto lhe deu a chave e foram
juntos ver o apartamento. Gilberto vibrava:
— Olha só que lugar discreto. Aqui você pára o
carro à vontade que ninguém vê. Já conversei o porteiro,
são mais quinhentos por mês pra ele ficar na dele,
morou?
Etelvino não tinha prática dessas coisas. Casado
há dez anos, sempre foi um marido fiel, almoçava e
jantava com a mulher, iam juntos ao cinema, ao teatro,
lá uma vez ou outra uma boate, pra comemorar a data
do casamento. Fora isso era só trabalho, trabalho,
trabalho. Nunca teve tempo pra outra coisa, nunca se
meteu numa aventura. Gilberto estava lhe abrindo os
olhos:
— É preciso sair da rotina, meu caro. Um
negócinho extra de vez em quando não faz mal a
ninguém. A gente até valoriza a mulher da gente. É
humano, ora essa.
Etelvino foi se deixando levar, botou a chave no
bolso, orgulhoso. Agora sim, era um homem igual aos
outros. Já podia contar as suas vantagenzinhas, exibir
maliciosamente a chave, pedir pros colegas ficarem na
moita, não contarem nada a ninguém. Quando menos
esperou, começou a se sentir um conquistador
irresistível, nunca pensou que fosse tão fácil. Foi preciso
que o Gilberto o advertisse:
— Olha, assim é demais. Vamos dividir, às
segundas, quartas e sextas o apartamento é seu. Às
terças, quintas e sábados é meu. Tá bem?
Etelvino concordou. Três vezes por semana,
passou a chegar tarde em casa, a mulher não dizia
nada. Coitada, nem desconfiava. Isso irritou Etelvino,
que um dia chegou de estalo e disse pra mulher:
— Você é muito boba, Josefa. Há mais de seis
meses que estou enganando você.
Ela ficou impassível:
— Eu sei. É num apartamento pequeno, de frente
para a montanha, tem uma jarra vermelha bem na
entrada.
Etelvino tonteou, foi preciso segurar na parede.
Essa da "jarra vermelha" foi demais.
— Como é que você sabe?
— O seu amigo, o Gilberto, me levou lá uma tarde.
Etelvino não teve coragem de perguntar mais
nada. Passou a noite em claro, pensando. No dia
seguinte, botou a chave num envelope e mandou pro
amigo com um bilhete: "Pra mim chega, sócio".
"Réveillon"

Márcio acordou mais cedo que de costume,


chamou a mulher:
— Sabrina, levanta que hoje é dia 31. Ela deu um
bocejo, virou pro outro lado:
— E daí, faz alguma diferença? Parece até que
nunca viu dia 31 na vida. — Márcio insistiu, puxou as
cobertas. Sabrina procurou cobrir-se com o baby-doll,
como se estivesse envergonhada.
Ele achou graça:
— Anda depressa, vai escovar os dentes que tenho
grandes planos para hoje à noite.
Sabrina não entendeu, não sabia se o sono não a
deixava raciocinar direito ou se o Márcio acordara
mudado. Que era o mesmo, lá isso é que não era.
— Que foi que houve?
— Nada, não. É que pretendo passar um réveillon
completamente diferente, este ano.
Sabrina saltou da cama, num pulo. Vinte minutos
depois estavam na mesa, tomando café:
— Quais são os seus planos, Márcio? Ele apontou
o telefone:
— Liga pro Copacabana e reserva uma mesa pra
nós dois.
— Mas agora? Não deve ter mais lugar nenhum. A
essa hora está tudo lotado.
— Fala com o Oscar, diz que é o Márcio, que ele
arranja.
Dez minutos depois, Sabrina deu a resposta:
— Está tudo lotado, não tem espaço pra botar
mesa. E esse tal de Oscar foi pra fora.
— É truque pra não se chatear com os pedidos de
última hora. Azar o dele, o prejuízo não é meu.
Sabrina achou graça.
— De que é que você está rindo?
— Da sua idéia. Você só rompeu o ano comigo
uma vez, lembra-se?
Márcio fez cara de encabulado:
— Se me lembro. Três meses depois nós casamos.
Sabrina fez flashback no pensamento, como fazem
nos filmes, ficou relembrando. À meia-noite em ponto,
quando as luzes se apagaram, ela sentiu que alguém a
beijava violentamente. Quando as luzes se acenderam,
nem percebeu, ainda estava de olhos fechados. Só deu
pelo espetáculo que estava representando, quando ouviu
palmas e assovios em volta. Seu pai e sua mãe a
olhavam com tal repreensão que ela só teve tempo de
apresentar o desconhecido: "Papai, este é o... este é o..."
— e ele mesmo completou: ''Márcio, às suas ordens".
— Que é que você está pensando, Sabrina? Ela
acordou do seu flasbback.
— Há meia hora que estou falando e você fica aí
parada, sem dizer nada.
— É que estava pensando no nosso primeiro
encontro. Foi tão romântico, não foi?
— Foi.
— Lembra-se quando lhe apresentei papai?
— Lembro de tudo, meu bem, mas agora vamos
tratar do futuro, deixe o passado pra lá, tá?
— Tá.
— Então põe a champanha no gelo.
— Não vamos a lugar nenhum?
— Não. Vamos ficar aqui em casa e convidar todos
aqueles que assoviaram e bateram palmas no dia em
que nos conhecemos.
— Que romântico. Grande idéia.
Dito e feito. À meia-noite, estavam todos lá.
Quando apagaram as luzes, Márcio e Sabrina se bei-
jaram. As luzes custaram a acender, Márcio apertou o
interruptor. Foi o maior vexame: só ele e Sabrina
vestidos, o resto, todo mundo nu.

A viúva

Botou um vestido preto, pegou um táxi na


esquina:
— Cemitério São João Batista.
No portão principal, pediu ao chofer que es-
perasse.
— Vai demorar, madama?
Disse que não. Ia dar uma choradinha rápida, há
muitos anos que não visitava o falecido. Entrou pelas
aléias, não se lembrava nem onde era o túmulo.
Recordou-se do dia do enterro, a família toda
acompanhando o féretro, o caixão baixando à sepultura,
os discursos enaltecendo as qualidades do morto, a sua
desesperada alucinação agarrando-se ao defunto e não
se conformando em deixá-lo partir, a sua tentativa de
suicídio poucos dias depois, a sua recuperação numa
clínica durante quase seis meses, pensando que fosse
ficar louca. Depois de oito anos, era a primeira vez que
voltava ao cemitério. Sem saber explicar por quê, dera-
lhe a saudade naquele dia. Talvez porque tivesse brigado
com o namorado, próximo ao Dia de Finados.
Finalmente, encontrou o túmulo, parou trêmula ao seu
lado. Nem uma vela na mão, nenhum ramo de flores;
sentia-se nua, diante da presença do marido morto.
Tentou recordar-se de alguma coisa, mas o tempo já
havia se encarregado de apagar todos os vestígios do
passado. Ajoelhou-se, fez uma prece por sua alma,
pediu perdão.
— Desculpe, Mário, mas as flores encareceram
tanto depois que você se foi!
Enxugou uma lágrima, voltou lentamente para o
táxi:
— Me deixe no mesmo lugar de onde vim.
Quando o táxi parou, o chofer olhou o taxímetro:
— São cinqüenta e oito cruzeiros e setenta
centavos, madama.
Remexeu a bolsa, juntou nota por nota, restou
apenas um cruzeiro. Saiu pensando, revoltada, que
nenhum homem valia tanto.

Eleições

Ouviam no rádio os primeiros resultados das


apurações, quando o locutor anunciou a diferença de
um voto a favor do candidato da oposição. Deodato ficou
uma bala, quase espancou a mulher:
— Você me traiu, miserável. Garanto que esse voto
foi o seu.
A mulher caiu em prantos, veio a família toda
para acalmá-la, tentaram de todos os modos con-
temporizar a situação. Deodato estava bêbado:
— Esses seus chiliques não pegam mais. Esse
voto não te perdôo nunca, ouviu? Nunca.
A crise de choro foi até às dez da noite. Os
vizinhos queriam dormir, os parentes queriam ir
embora, o marido abriu a décima nona garrafa de
cerveja, bateu forte sobre a mesa, quebrando o copo e
sujando o chão:
— Chega de cena, Aurora. Se você pensa que não
sei da sua simpatia por esse candidato está muito
enganada, entendeu? Aquele carnaval não me sai da
cabeça.
Aurora não respondeu. Foi à cozinha, apanhou
um pedaço de pano, veio limpar o tapete, silencio-
samente. Deodato não saía de junto do rádio. O locutor
entrou de supetão para uma notícia extraordinária:
"Atenção, muita atenção! Foi cancelado um voto em
favor do candidato oposicionista!" Deodato delirou.
Bateu violentamente no quarto da mulher, enquanto ela
abria a porta, ele disse só isso: — Bem feito! Bem feito!
Anularam o seu voto!
Abriu outra garrafa de cerveja, caiu de bruços
sobre a mesa e roncou a noite inteira, como um bode.

O flagrante

Isso de falar era o menos, que Aristóteles não dava


bola pro disse-me-disse. Mas por acaso, os cochichos e
boatos se confirmaram de tal forma que ele não tinha
mais por onde escapar: precisava tomar uma atitude.
Não havia mais a menor dúvida: sua mulher o enganava
com outro, no edifício da esquina, a um palmo do seu
nariz. Trazia tudo no bolso: endereço, nome do cara,
hora do encontro, telefone, ficha completa. Pra
confirmar, chegou a telefonar e quem atendeu foi sua
própria mulher. Só faltava o flagrante, isso mesmo, o
flagrante.
Entrou numa loja especializada e pediu a melhor
máquina fotográfica. Não podia falhar. Teleobjetiva,
filtro, mil e uma lentes, estudou durante uma semana,
abertura, velocidade, luz ambiente, tudo certinho. Seu
cuidado era tanto, pra não falhar, que ao invés de
comprar uma máquina bem pequena, dessas de espião
de cinema, comprou um equipamento completo, dez
rolos de filme, flash eletrônico, o diabo. Agora era só sair
em campo, em busca da prova: a fotografia da
infidelidade.
— É hoje — disse pra si mesmo.
Botou todo o equipamento nas costas e foi direto
ao prédio, a tempo ainda de ver sua mulher entrar nele.
Chegou a esfregar as mãos de contentamento: a
satisfação do trabalho que ia realizar superou a angústia
da certeza. Deixou correr alguns minutos, pra dar mais
tempo à sua mulher. Quanto mais à vontade ela
estivesse, melhor seria o flagrante. Acariciou a máquina
com um sabor amargo de vitória: sentia-se, naquele
momento, muito mais fotógrafo que marido e nenhum
detalhe poderia escapar naquele momento em que
procurava concretizar a verdade do seu drama.
— Está na hora — disse consultando o relógio.
Subiu as escadas, chegou ao sexto andar, con-
sultou o mapa que havia desenhado na véspera.
Perfeito: última porta à esquerda, no fim do corredor.
Caminhou devagarinho, colou o ouvido na porta, não
hesitou um segundo. Arrombou a porta com a violência
de um touro enfurecido, entrou no quarto e os flashes
começaram a pipocar. Um homem e uma mulher,
completamente nus, tentavam se esconder debaixo dos
lençóis, cobrir-se com o travesseiro, um corre-corre dos
diabos. E tome flash. Aristóteles estava histérico, cada
pose era uma sensação estranha de euforia que o deixou
completamente cego. Saiu correndo e foi ele mesmo
revelar os filmes. Quase caiu duro, dentro do
laboratório, quando as imagens foram tomando forma:
nem o homem era quem ele pensava nem a mulher era
sua. Havia entrado no quarto errado. Guardou os nega-
tivos e as cópias, dormiu profundamente até o dia
seguinte.
— Quem deseja falar com ele?
Agora Aristóteles estava tranqüilão, dentro do seu
escritório refrigerado. Quando a porta se abriu, sua
secretária fez entrar uma loura alucinante que, com as
mãos trêmulas, chegou quase a ajoelhar-se diante dele:
— Preciso daqueles negativos de qualquer ma-
neira. Sei que foi o senhor quem bateu as chapas.
Aristóteles limpou os óculos para focar melhor
aquela visão extraordinária e reconheceu, nitidamente, a
mulher das fotos.
— O senhor é detetive?
— Absolutamente.
— Pago qualquer preço pela fotografia. Meu
marido não pode saber nunca do que se passou. Nem
sei explicar por que fiz aquilo, adoro o meu marido, só o
senhor pode me salvar de um escândalo.
Aristóteles não podia acreditar no que via. A
mulher nem deu tempo de raciocinar, foi tirando a
roupa, peça por peça:
— Estou disposta a pagar o preço que o senhor
exigir. . .
Tirou a última peça, deitou-se em cima da mesa:
— Estou inteiramente à sua disposição.
Aristóteles não acreditava no que via. Pensou que fosse
um sonho, tirou os óculos, esfregou os olhos, a imagem
da mulher nua deitada na sua mesa continuava cada
vez mais nítida. Começou a apalpá-la, numa última
tentativa de que tudo aquilo fosse irreal. Neste instante,
a porta do seu escritório se abre repentinamente e entra
sua mulher, de máquina em punho, e começa a pipocar
os flashes nos seus olhos. Em menos de um minuto, a
mulher bateu umas oito chapas. Nessa altura,
Aristóteles já estava escondido debaixo da escrivaninha
e ainda pôde ver os pés da sua mulher se retirando da
sala e gritando:
— Sempre me disseram e eu nunca acreditei. Mas
agora, não resta a menor dúvida: consegui o flagrante
que queria, seu canalha!

O pileque

Aírton saiu da boate cambaleando, não viu


quando um automóvel quase o pegou. Não viu, mas
ouviu:
— Sai da frente, ô palhaço!
Riu sozinho, porque nem levou susto. Olhou para
o alto, viu uma porção de janelas iluminadas, como se
fossem manchetes da solidão que domina Copacabana,
às quatro da madrugada. Queria ir pra casa, mas não se
lembrava onde morava. Seus amigos quiseram colocá-lo
num táxi:
— Deixa que sei ir sozinho.
Veio andando, andando, sem rumo certo, duas
moças o abordaram:
— Está sem sono, meu bem?
Airton disse um palavrão, ouviu dois, saiu res-
mungando, esbarrou num guarda:
— Tem fogo aí, ô meu chapa?
O guarda acendeu seu cigarro, aproveitou pra filar
um, tentou puxar um papo mas Airton preferiu
continuar andando. Agora o dia já estava clareando, o
sol vermelho esticava as sombras de algumas pessoas
que começavam a sair e ele ainda nem tinha voltado.
Sentou-se no degrau de um edifício, chegou um homem
pra reclamar, dizendo que era contra o regulamento.
Airton achou graça do regulamento, porque o homem
era um lavador de automóveis e estava completamente
nu. Levantou-se, sem discutir, levou de sobra os
respingos da mangueira, mas não perdeu a pose:
— Quanto é a lavagem?
Continuou andando, entrou num boteco:
— Média, pão e manteiga.
Comeu devagarinho, pagou, misturou-se com a
multidão de homens e mulheres apressados que ten-
tavam condução para o trabalho. Sentiu-se diferente dos
outros, quis ficar com pena deles, mas acabou com pena
de si mesmo, quando percebeu que estava com um dia
de atraso: os outros já estavam vivendo o dia seguinte e
ele ainda estava no ontem.
— Táxi! Táxi!
Saltou na porta de casa, decidido de que este seria
o seu último pileque. Abriu a porta com cuidado, entrou
devagarinho, sem fazer o menor ruído. A mulher já
estava na cozinha, preparando o café das crianças:
— É você, Airton? Não teve outro jeito:
— Sou eu. Tive de fazer serão novamente, acabei
num bar com os amigos, juro que foi a última vez, meu
bem.
A mulher não disse uma palavra, deu-lhe um copo
de leite:
— Acho bom você dormir um pouco, deve estar
muito cansado.
Ele passou pelo quarto dos meninos, deu um beijo
na testa de cada um. O menorzinho acordou, bocejando:
— Você já vai trabalhar, papai?
Sentiu vergonha de ser marido, de ser pai, de ser
chefe de família. Retirou-se para o seu quarto, vestiu o
pijama, cerrou as cortinas, para que a escuridão
envolvesse o seu drama. Ficou pensando em Nina, sua
amante, comparou-a com a mulher. Há três anos que a
conhecera e há duas semanas que havia decidido
romper, definitivamente, para salvar o seu lar. Mas não
conseguia esquecê-la, daí ter apelado para a bebida.
Saía sozinho todas as noites, voltava de madrugada, não
sabia sequer se a mulher aceitava suas desculpas ou se
o aceitava assim mesmo como era porque o amava
muito. Não conseguia dormir, não conseguia trabalhar,
não conseguia mais nada. Deitava-se às oito da manhã,
levantava-se às duas. Há quinze dias não almoçava nem
jantava em casa e sua família não merecia isso. No
escritório, resistia à tentação de uma reconciliação com
a "outra":
— Diz que não estou.
À noite era um desajustado, um homem
incompatibilizado consigo mesmo, tentando lavar com a
bebida um passado ainda recente. Entrava nas boates,
juntava o seu drama a outros dramas semelhantes, na
efervescência do álcool. Todos sorriam, mas ninguém
levava o sorriso pra casa. Pior que o cansaço, a insônia.
Levantou-se, trocou novamente de roupa, foi tomar café
com a mulher:
— Você não vai dormir, meu bem? Sentiu-se forte
com a doçura e a compreensão da mulher:
— Não tenho sono, preciso decidir um negócio
muito importante hoje.
Tomaram café, ele saiu apressado. À noite, trouxe
balas para os filhos e flores para a mulher. Jantaram
juntos, com luz de vela. De madrugada, ao lado de seis
garrafas de champanha vazias, os dois estavam caídos,
também vazios. Acordaram quase juntos, com o primeiro
raio de sol. Ela apertou sua mão, com um sorriso feliz,
ele disse, sem virar o rosto do chão:
— Meu Deus, já é dia claro, tenho de voltar pra
casa!

Mamãe sabe tudo

Às duas da madrugada, o telefone tocou, Raul


estendeu o braço e atendeu sonolento:
— Alô... Sim... Está bem... Desligou. Sua mulher
perguntou:
— Quem foi? Ele bocejou:
— Ninguém.
A mulher não se conformou:
— Ninguém, uma conversa. Telefonema a essa
hora da madrugada só pode ser de mulher. Você arranja
seus casinhos e depois quem paga o pato sou eu, que
não posso dormir.
Raul não estava disposto a discutir:
— Está bem, minha filha, está bem. São minhas
mulheres que não me deixam em paz. Não sei por que
fui nascer boa-pinta. Ninguém me resiste, é um inferno.
Não deu tempo pra falar mais, o telefone tocou de
novo. A mulher se apressou:
— Deixa que eu atendo.
Meteu a mão no telefone com violência:
— Alô.
Do outro lado, uma voz feminina:
— Olha aqui, sua sirigaita, se você não
abandonar o meu amor até amanhã às dez horas da
noite vai levar um tiro na cara, ouviu?
— O quê?
Desligaram. A mulher ficou com o fone na mão,
feito uma boba, sem saber que atitude tomar. Raul
achou graça:
— Que foi que disseram?
Ela descarregou toda a sua raiva em cima do
telefone, jogando-o no gancho:
— Que é que podiam dizer? Graçolas. Raul deu
uma gargalhada:
— Você leva tudo muito a sério, meu bem. Ela não
se conformou:
— Pois fique sabendo que fui ameaçada de morte.
E tudo por sua causa, vê se pode. Vá arrumando suas
malas e desapareça da minha frente antes das dez horas
de amanhã.
Raul levantou-se, surpreso:
— Que idéia louca é essa, meu bem?
— Idéia das suas mulheres, meu caro. Não fui eu
quem inventou essa história, porque você bem sabe que
não tenho imaginação pra tanto.
Raul coçou a cabeça:
— É alguma brincadeira de mau gosto. A mulher
desafiou:
— Vai me dizer que você não sabe quem foi. Ele
foi positivo:
— Não sei mesmo. Ela ficou uma bala:
— Então são tantas assim que você nem se
lembra, hein? Pois vai arrumar suas malas já e suma da
minha frente. Não quero complicações por sua causa.
Seus casinhos você resolve lá fora, já chegam os
problemas que tenho aqui dentro.
Raul não disse uma palavra. Abriu as gavetas,
começou a separar suas roupas e foi guardando na
mala. Perguntou pela escova de sapatos, pelas
abotoaduras, pela gravata cinza, ela ficou sentada na
cama, olhando. Ele arrumou tudo direitinho, botou um
terno muito alinhado, foi pentear os cabelos no
banheiro, voltou assoviando. Pegou a mala, foi saindo.
Ela gritou:
— Aonde é que você vai?
— Vou embora, você não mandou? Ela bateu o pé
no chão:
— Era só o que faltava. Vai ficar aqui até
amanhã, pra ver o que acontece.
Ele estava decidido:
— Já estou farto de arrumar a mala, meu bem.
Todo dia é a mesma cena e você se arrepende. Desta vez
vou mesmo.
Bateu a porta e saiu. Ela pegou o telefone, discou
chorando:
— Mamãe? O Raul foi embora de novo.

A mulher que era fã


demais

Irina era uma mulher muito sentimental. Depois


que o James Dean morreu, chegou a usar luto durante
dois meses. Foi preciso que os parentes combinassem
uma reunião pra resolver o impasse, pois não era justo
que humilhasse o marido dessa forma. De uns tempos
pra cá, pegara a mania por outro galã e todas as noites
dizia para o marido:
— Jair, procura aí no jornal uma fita do Paul
Newman.
O marido revirava tudo, não encontrava:
— Só tem uma, mas é lá no Méier. Ela esfregava
as mãos:
— Então vamos. Vou me vestir. Começava a
discussão. Ele dizia que estava cansado, ela dizia que
era mentira, que ele estava era com ciúmes. Ele dizia
que não agüentava mais essa vida, ela dizia que ele
mudara depois de casado, pois antes sabia
perfeitamente que ela tinha tara pelo Paul Newman. Ele
corrigia:
— Mentira sua. Você tinha tara pelo James Dean.
Pra ela não fazia diferença:
— O James Dean morreu, agora gosto do Paul
Newman, e daí?
Conselho de família, pra ver se entravam num
acordo. O negócio já estava ficando feio. Era tanta briga
que a família começou a tomar posição, antes estavam
todos do seu lado, agora já estavam contra:
— Você precisa compreender melhor a sua
mulher, Jair. Afinal, um pouco de paciência não faz mal
a ninguém. Assim como ela gosta de Paul Newman,
podia gostar de sorvete.
— Essa não.
— Vai ver é desejo dela, quem sabe está esperando
bebê?
Jair quase teve um troço:
— É verdade, meu benzinho? Ela chorou no seu
ombro:
— É, meu amor.
A partir daquele momento, era fita de Paul
Newman até dizer chega. No último mês, com uma
barriga enorme, era Paul Newman todo dia — nem que
fosse a mesma fita. Finalmente, veio o desfecho e o
parteiro anunciou:
— Menina!
Foi muito chato. Tinha a cara do Paul Newman.

***

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