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O que (não) sabemos sobre o Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho de Goiás e

o nascimento do Movimento Antimanicomial em Goiás.


Uma degravação do vídeo disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=wupSeH8VSOo
Mesa Redonda dentro do I Colóquio Nacional da História da Loucura na Luta
Antimanicomial - de 15 a 20 de maio de 2022.
Promovido e realizado pelo GP La Folie (PUC Goiás/ CNPq)
e Projeto Memória da Saúde Mental (UFG)

Degravação por Nathália Ribeiro Silva (Iniciação Científica)


Revisão e Supervisão da degravação: Eduardo Sugizaki (Orientador da IC da
Nathalia)

Éder de Paula: A década de 80 vai acabar ficando como um marco, porque se


avolumam ali as denúncias em relação ao modelo hospitalocêntrico e ele coincide
com o processo de redemocratização do país, a possibilidade de se divulgar e de se
discutir.
Começa a tomar um corpo maior e dar um corpo também aos movimentos
antimanicomiais que nasciam tanto nacionalmente, quanto em seus respectivos
estados. E uma coisa que nas pesquisas mesmo, inclusive com os jornais, eu não
consegui encontrar um marco e te pergunto se por acaso, se não houve marco
institucionalizado, mas de memória mesmo, se há em Goiás um momento de
denúncia mais forte, de algo sobre a instituição que desencadeia ainda mais o
movimento ou se ele realmente vai acontecer sem que haja esse marco de
denúncia, de escancarar o problema.

Heloiza Helena Massanaro: No meu entendimento, há um momento que


exatamente acaba acontecendo o fechamento do hospital, porque a gente percebe
que inicialmente, acho que até tem um pouco haver com a entrada no hospital de
alguns outros profissionais, não médicos e enfermeiros. O ambiente era frequentado
por médicos e enfermeiros e a gente percebe que há uma mudança quando entram
outros profissionais, entre eles a psicologia.
Quando a Católica [Universidade Católica de Goiás, hoje PUC Goiás]
implanta, se não me engano, no início dos anos 70, a criação do curso de
psicologia. Poucos anos depois já têm estagiários e alguns estagiários naquela
instituição começam a mexer um pouco com ela com um programa, que era um
programa de incentivo dentro da [psicologia] comportamental, era um sistema de
fichas de incentivo, que faziam com que as pessoas que tinham aquelas fichas
podiam comprar o que eles tanto gostavam, como batom, cigarro, coisas desse tipo
que eram disponibilizadas para essa compra e que também não provocasse outras
preocupações dentro do hospital.
Essas fichas, então, trouxeram alguma coisa nova. [O curso de Psicologia]
Traz também para o hospital um grupo de estudos que acontecia aberto a outros
estudantes, de diversas profissões. Então, tinham alguns momentos mais formais e
doutorais, mas tinham outros momentos mais críticos e reflexivos que começam
naquele espaço ali. E logo então, a gente percebe que outras experiências foram
construídas e uma delas foi o Hospital Dia, que foi só abrir uma portinha ali dentro
do hospital mesmo que dava pra fora, em que alguns pacientes que estavam mais
estabilizados a participar, inicialmente 20, começaram a fazer esse programa, era
um programa assim bem estruturado, sabe? Do tipo, a família tem que levar tal hora
e tem que buscar no final da tarde, agora não me lembro o horário mais, mas enfim,
levava de manhã e buscava a tarde.
Dentro do Hospital Dia também era uma programação padrão, mesma
programação para todos; e mais, já era uma coisa de diferente, já tinha uma saída,
um ato com a família, já tinha o externo. E isso, acho que nos coloca a pensar, a
refletir, a querer saber mais dados, a buscar informação. Eu me lembro que, eu não
trabalhava lá, mas já tinha muita curiosidade, perguntava muito, quando fazíamos
os seminários e eventos mais da militância, a gente buscava dados para saber
dessas coisas. Então, foram movimentos que foram acontecendo dentro do hospital,
a partir dos anos 70 e poucos, e que na década de 80 isso fica mais forte e a gente
começa [a perceber] que aquele modelo institucional não serve.
A estrutura estava precária e ruim, uma construção descuidada, a mim
parece que ela nunca recebeu reformas. Foi construído e pronto. A gente via que o
reboco, a tinta, o piso estava bastante antigo e parte de dentro dos pátios muito
descuidada, com sujeira, lodo, gramado, calçada, bastante árido. Não tinha uma
árvore, um vaso, um muro pintado colorido, não. Tudo era bastante cinza. Então, a
gente começa a questionar não só essa estrutura física, mas de trabalho, a falta de
terapias específicas, começa a dizer que aquele modelo não funciona.
A gente começa a perceber que o governo faz uma leitura muito proposital da
nossa fala, do tipo, “Não serve? Então derruba", mas não era isso que a gente falou,
então, hoje em dia que tenho uma preocupação em fazer uma crítica a qualquer um
dos serviços. É muita crítica a se fazer, mas a gente precisa ter um cuidado enorme,
porque em outros momentos ele já fez isso e pegou partes da nossa fala e segue
seus propósitos. Então, ao invés de entender que aquilo que a gente tava dizendo
era que precisávamos de reforma, que a gente podia transformar aquilo em um
centro de convivência, ele destrói. Segue seu propósito. A gente entendeu
rapidamente e denunciou, mas não adiantou mais, ele destruiu com a patrola.

Éder: É muito interessante a sua fala, porque eu recentemente fiz um capítulo de


livro utilizando algumas reportagens do popular, justamente pensando nesse
período final, dos anos de 1993 e 1997. Eu percebo que a gente não tem um marco,
mas bem nesse caminho que você falou mesmo, a entrada de outras especialidades
dentro do hospital vai criando e construindo um movimento que passa a fazer um
questionamento, vai se avolumando de tal forma que ao mesmo tempo gera a
necessidade de se pedir uma reforma e o governo tratar como uma necessidade de
derrubar.
Quando a gente fala do Adauto, ele é algo que se quer esquecer. Então,
dentro desse movimento da história de se produzir esquecimento e de se utilizar,
dar sentidos à memória. Nessa dinâmica, queria saber de você mesmo, como você
vê essa atitude do governo do estado de Goiás? Porque é possível acompanhar
que existiram algumas propostas, você falou do grupo de estudos, existia alguma
proposta do grupo lá dentro de transformar o Adauto em um centro de pesquisa,
existia outra proposta em transformar ele em um museu. E aí, existiu a proposta da
sociedade goiana de agropecuária de adquirir e transformar aquilo em uma parte da
pecuária. E dentro das possibilidades, o governo derruba e ressignifica o espaço o
crer.
Então, queria saber sua opinião mesmo sobre esse apagamento proposital
do governo de se colocar debaixo dos escombros e por baixo de um outro prédio,
histórias de vida, da própria saúde e inclusive, de vidas e da instituição que é gerida
pelo próprio estado.
Heloiza: Eu fico muito indignada. Aquele espaço todo lá, aquele terreno todo era
uma fazenda de uma pessoa que tinha um filho com transtornos mentais, não sei
exatamente o que era, mas era um documento que a gente encontrou na Secretaria
Estadual de Saúde, na Coordenação de Saúde Mental e que depois sumiu. Só
posso falar como folclore, eu acho. Porque, apenas algumas pessoas viram o
documento. Lá a fazenda foi cedida para que se tornasse um espaço de cuidado
para essas pessoas, naquela época havia também em alguns lugares do país que
estavam sendo implantadas essas fazendas. Espaços rurais para os cuidados de
pessoas com transtornos mentais e essa pessoa teve essa intenção. Doou um
pedaço da sua fazenda para essa ação.
Esse pedaço acabou se transformando em tantas outras coisas, de saúde
mental não tem mais absolutamente nada lá. Ficou depois algum tempo o Pronto
Socorro Psiquiátrico Wassily Chuc, que também foi desalojado para ficar em um
aluguel. Um absurdo mesmo o que o Governo de Goiás tem feito coisas assim,
desrespeitando a vontade do povo, inclusive do doador do terreno.
A gente viu que o interesse era claramente econômico, era realmente um
projeto que eles já tinham ali, e já tinham cedido os pedaços também para a
cavalaria, para a Secretaria da Fazenda. Eles já tinham realmente picotado o
terreno do Adauto Botelho e termina então, aquele pedaço para o CRER e o último
agora o Pronto Socorro Psiquiátrico também já foi incorporado lá nos seus projetos
financeiros.
As cenas são interessantíssimas hoje, que eu considero que foi um
movimento muito importante, que naquele momento a gente fez o SOS Saúde
Mental. Nós tínhamos a Olívia Vieira e a Denise de Carvalho que eram militantes
ferrenhas, a Denise era deputada, foi inclusive a primeira a fazer um projeto de
saúde mental aqui no estado [de Goiás]. Um projeto que teve muita dificuldade, não
foi aprovado, ficou lá rolando anos até que ela saiu [do mandato de vereadora].
Depois, o deputado Mauro Rubem [no mandato de deputado estadual] apresentou,
em seus dois mandatos, e o projeto era sempre engavetado. E agora no dia 7 de
abril, o Caiado simplesmente assinou uma lei da saúde mental aqui em Goiás do
jeito que ele quis, não discutiu com ninguém do movimento social e é um projeto
que cabe tudo, principalmente para facilitar os manicômios atuais que são as
comunidades terapêuticas.
A gente percebe como o governo tem manobras para nos decepcionar
bastante, estamos aí resistindo e refletindo sobre as nossas ações e o significado
do [Hospital Psiquiátrico] Adauto [Botelho de Goiânia] para que a gente possa estar
sempre construindo do nosso lado, mas entendendo que nós também já
construímos muito. Dos anos 80 para cá, nós já temos 2180 CAPS e ainda outros
tantos serviços de arte, cultura e atenção básica integrada. Temos muito que
podemos construir e reinventar.

Ronivaldo Rego: Goiás está em uma espécie de vanguarda ao que acontece em


termos nacionais, por exemplo, esse caso em 1991. Como era a dinâmica desses
movimentos? Como o SOS Saúde Mental, em que medida ele foi impactado? Os
médicos e enfermeiros foram impactados por esse ingresso e como esses
profissionais estavam juntos no interior dessa luta de outro formato de saúde
mental?

Heloiza: O SOS Saúde Mental surge a partir desses debates que a gente fazia
dentro da própria instituição, geralmente nos períodos noturnos, tinha uma
programação mensal bastante interessante. Em algum momento, essas discussões
provocam e o governo anuncia então que vai fechar. Esse próprio grupo é aquecido
pela presença de Olivia Vieira, Mauro Rubem, Denise de Carvalho, parlamentares
que estavam nos apoiando e ainda a Associação de Usuários [da Saúde Mental -
AUSSM], que já estava também funcionando. Os trabalhadores eram poucos, como
é o Dr. Luiz Pires, era um psiquiatra de mente mais aberta naquela época, que foi
um dos idealizadores do Hospital Dia. Então, ele caminhava até certo ponto com a
gente. Alguns poucos, porque a gente sabia que os que nos apoiaram muitas vezes
precisavam ficar meio escondidos porque a pressão é grande. A entidade deles
[organização de classe da psiquiatria em Goiás] é muito forte, e tem um propósito
de manter o manicômio.
A gente percebe que tinha enfermeiras também, a Salete [QUAL?Maria
Salete Silva Pontieri], Edilene Vianei, Denise Munaai, professoras da católica, que
também caminhavam com a gente nessa época. Da psicologia também, nós
trabalhadores e militantes estávamos ali juntos, alguns por conta desse trabalho do
Conselho Federal [de Psicologia], que falei inicialmente.
Acho que esse grupo do SOS Adauto Botelho provocou vários debates,
matérias no jornal, aliás uma foto de jornal muito linda, o Mauro Rubens em cima da
patrola. Ele era ousado, fazia os enfrentamentos, não foi só no Parque Oeste, não,
mas lá também ele fazia isso de subir na patrola. Foi um enfrentamento dessa
ordem, mas muito rápido porque o governo fez muito rápido a desocupação, logo
ele instituiu um interventor, que foi o psiquiatra do Ministério da Saúde, o Dr. Ciro
Calil e ele começa então, a fazer as retiradas, identificar famílias que pudessem
receber as pessoas, mas sem nenhum tempo para preparo, discutir, criar o
ambiente, como a gente hoje fez de volta pra casa. Um despejo mesmo, você tem
família? Vai para sua casa.
O que isso resultou? Algum tempo depois, a gente achou essas pessoas na
rua, então houve depois uma busca de pessoas com transtorno mental vivendo nas
ruas. Muitas pessoas. Algumas que tinham problemas de deficiência mental, foram
dirigidas para [a Vila] São Cottolengo [Município de Trindade - Goiás], das
instituições que aceitaram, Jataí e Rio Verde, que tem instituições conveniadas. Um
esparramamento muito rápido e os últimos ficaram dentro lá do Pronto Socorro
Psiquiátrico Wassily Chuc e tinha na época 60 leitos, muito leitos na época.
Colocou uma patrola para funcionar rapidinho, antes que a gente
conseguisse articular forças nacionais, que a gente já buscava socorros dessa
ordem. Nos restou depois acompanhar.
[olha alguém está dizendo…] O Ronaldo Caiado está fazendo as coisas
sozinho… é uma pena que ele é médico…
Ronivaldo: Qual o papel dos usuários, da população externa do Hospital? Se
organizaram, qual a importância deles, especialmente o movimento dos usuários.

Heloiza: Acho fundamental a participação deles, eles falam do lugar autêntico, é


muito importante essa participação. Deusdete falava sempre pra gente, sempre tem
que ter um usuário na mesa. Às vezes a gente tinha que fazer um seminário, mas é
um seminário voltado para trabalhadores… “ - Mas então, cadê o usuário?” [dizia a
Deusdete]. A gente falava: “ - Mas Deusdete, e se eles não fizerem?”. e ela
respondia “ - E daí?”. “ - Se surtarem?”,“ - E daí? Deixa surtar na mesa, a gente não
tá falando é disso? Então vamos fazer isso.” É por isso que a gente sempre diz que
ela é nossa mestra. Com certeza, ela tinha essas coisas de uma clareza celular.
Uma coisa que ela traz e nos apresenta.
Ela teve essa aproximação com os usuários de uma forma muito rica, logo
que começamos o movimento, ela se localiza dentro da instituição quando ainda
funcionava. Algumas pessoas conseguiam ter altas, elas tinham esse apoio de
alguns trabalhadores, eles faziam paralelamente, não faziam enquanto trabalho
deles dentro da instituição. Mas, assessoraram essa associação, o grupo de
usuários a se organizarem, garantiram o passe livre, foram ao SETRANSP para
garantir isso, para eles poderem voltar lá no Adauto Botelho e terem esses
encontros esporadicamente. Nesses encontros aprendiam a fazer tapete e pano de
prato, que vendiam, parte ficavam com eles, parte compravam materiais. Iniciativas
dentro de um grupo de profissionais, tinham assistentes sociais, como a Fátima, ela
conta um pouco isso pra gente, eles tinham esses momentos.
Na sequência quando fecha o Adauto Botelho, eles passam a se encontrar
no auditório do Pronto Socorro Psiquiátrico Wassily Chuc, lá eles continuam as
atividades. Só que os profissionais não tinham muitas condições de estar com eles,
como eles precisavam. Aí eles agendam um encontro com o Dr. Elias Rassi, na
época era um Secretário de Saúde, sempre recebeu os usuários no gabinete para
escutá-los. E ele fez muita coisa a partir dessas escutas, por exemplo, trazer para
outro espaço o ambulatório social de psiquiatria. Eles queriam mais atendimento
extra hospitalar, ainda não tinham CAPS e eles precisam de atendimento que não
fosse dentro do pronto socorro e dentro de hospitais psiquiátricos conveniados.
Elias Rassi traz o ambulatório.
Depois, eles conseguem também com o Elias Rassi, uma assessoria para a
associação. Então, a associação passou a ter uma verba para investimento nesses
projetos. Fizeram um projeto para obter uma assessoria política para que eles
pudessem continuar se organizando, articulando. E ainda sendo parceiros do Fórum
Goiano de Saúde Mental, que foi a nossa organização enquanto trabalhadores e
incluímos os usuários, mas eles tinham a deles específica. A nossa é mais
anárquica, mas cabe a todos que querem defender o cuidado em liberdade. A deles
não, era bem organizadinha e formalizada, tem até CNPJ, porque eles tinham que
prestar contas para o projeto [com a Prefeitura de Goiânia]. A Deusdete foi
assessora deles. [segue uma fala sobre a Deusdete; associação começa com
algumas pessoas que ainda estão aqui conosco, outras que já partiram]

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