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Raízes Da Prisão Eterna - Cap 2
Raízes Da Prisão Eterna - Cap 2
Prisão Eterna
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Prólogo
O Sol, avançando para o auge de seu poder, castigava Mürta Rossa com seu
calor abrasador. O ar era quente, carregado de umidade e quase sufocante; fazia arder
o nariz só de ser inspirado com mais força. Como o usual, a fina camada de vapor
pairava preguiçosamente nas vielas sinuosas e ruas da cidade, envolvendo os
transeuntes e acalorando ainda mais o ambiente.
O verão havia enfim chegado, transformando aquele local antes temido e
perigoso em um oceano de turistas — embora, na maioria das vezes, fossem viajantes
em busca de pechinchas imperdíveis. As ruas estavam repletas de lojas, suas tendas
coloridas e carruagens decoradas transbordavam com uma infinidade de mercadorias
tentadoras.
— Antílopes de barriga-serena! — berrou um mercador com entusiasmo. —
Escamas de Serpiscor! Para aqueles que desejam provar o incrível sabor de Mürta
Rossa!
As palavras se perdiam no tumulto das multidões.
— Runas de minsú! — bradou mais alguém. — Runas de baixo a médio
Vínculo!
Distraído, Kraals alcançou o telhado de uma das muitas construções que se
alinhavam ao longo da estreita rua principal. Apoiando-se na balaustrada de pedra,
ele alçou seu corpo e, com olhos investigativos, estudou a cena abaixo. A visão revelou
a rua principal lotada, que se estendia infinitamente à sua esquerda e à sua direita.
Inúmeros transeuntes se moviam agitadamente, como formigas em um formigueiro,
indo e vindo em um frenesi constante.
Kraals sorriu.
Formigas com dinheiro, pensou.
Gabryel Valvano
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Wun voltou a olhar para a rua e franziu o cenho. Dos diversos "ratos" que
passavam para lá e para cá, buscou destacar apenas os sacos de discos que alguns
tinham atado à cintura. Era difícil, mas não impossível. Achava que seria deveras
Gabryel Valvano
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Mais dois…
Buscou a Essência e pediu para que Ela ajudasse-a novamente. Ergueu os
braços, procurando alguma bolsa de fácil acesso, mas nenhuma outra aparecia;
estavam sempre guardadas nos bolsos ou escondidas dentro das largas roupas dos
civis. Esperou alguns minutos, enquanto mantinha latente o verbo de Liberação da
Essência, aguardando o momento perfeito para declará-lo.
— Acho que demos sorte na primeira vez — disse Wun. — Não acho mais
nenhum bobão deixando dinheiro à mostra…
— Uma hora aparece — comentou Frigolin.
Parecia que o garoto havia previsto o futuro, pois nesse instante, surgiu uma
figura musculosa, alta e de semblante carrancudo, carregando um saco de discos em
uma de suas quatro mãos. Seria arriscado, mas...
Wun atraiu. Os Fios saltaram da sua mão e, novamente, desapareceram após
poucos segundos. O saco de discos foi catapultado em sua direção. Agora sagaz, a
jovem abaixou-se e permitiu que o objeto continuasse seu voo até cair no chão sujo
do beco, fazendo com que alguns discos se espalhassem.
Porém, diferente da primeira vez, escutou uma voz grossa vinda da rua adiante:
— Alguém… Quem roubou o meu dinheiro?! — A voz aos poucos começava a
se alterar.
Depois, dois sons de impacto: um golpe e um baque surdo. Em poucos
segundos, uma briga generalizada acometeu a rua do comércio.
Wun lançou um olhar para trás, um sorriso tímido brincando em seus lábios,
enquanto deslizava dois dedos de sua boca da esquerda para a direita, fazendo um
gesto de silêncio. Observou Ceshei, com um sorriso radiante, recolhendo os discos
um a um e guardando-os na bolsa, enquanto os meninos do grupo riam da confusão
e da gritaria que o recente alvo do roubo estava causando no meio da multidão.
A dormência aumentou, Wun pensou, voltando a encarar a rua. Mas, agora só
falta mais um.
Já estava se sentindo mais familiarizada com o processo de comunicação com a
Essência, e a segunda vez foi notavelmente mais rápida do que a primeira. Até mesmo
os estranhos fios haviam desaparecido mais rápido daquela vez.
A terceira vai ser ainda mais rápida!, afirmou para si mesma, empolgada.
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Então, emanando confiança, Wun preparou-se para declarar uma última vez.
O processo durou menos de três segundos. Sentiu que tinha talento, que havia
nascido com o dom. Ela observou a saída do beco, esperando que outro alvo
desavisado não demorasse a aparecer. No entanto, havia pouco espaço para
vislumbrar os civis, uma vez que a grande maioria deles estava ocupada se debatendo
e se espremendo na confusão.
De repente, uma figura desajeitada surgiu na entrada do beco: um humano
acima do peso, vestindo um uniforme de cozinheiro manchado de laranja. Ele
obstruiu a visão concentrada da menina que, assustada com a repentina aparição,
liberou acidentalmente a magia até então latente.
Ela gelou, acreditando que o homem voaria contra ela num instante.
Entretanto, Wun era apenas uma pré-adolescente e, como tal, era mais leve do que
um adulto. Desse modo, ao contrário do que imaginava que aconteceria — que o
senhor seria atraído até ela —, foi Wun quem sentiu que estava sendo arrastada até o
homem. Ela retesou a panturrilha, tentando retardar a atração bizarra e invisível que a
fazia deslizar centímetros para frente.
E, de súbito, a garota sentiu seu tronco impelir na direção do senhor. Em um
piscar de olhos, Wun foi lançada em um arco pelo ar, até colidir com o mercador. A
colisão a deixou atordoada, caída no chão imundo do beco. O homem, por outro
lado, cambaleou para trás, segurando o estômago, visivelmente assustado com o que
acontecera. Afinal, uma jovem voando repentinamente em sua direção é uma
experiência difícil de assimilar.
— Masss o quê?! — exclamou o cozinheiro. Olhou para as outras duas crianças
mais atrás.
— Estávamos brincando, feioso — mentiu Frigolin, pondo as mãos no bolso.
— Você nos atrapalhou.
Kraals e Rioran saltaram do telhado e deslizaram pelas paredes, habilmente
apoiando-se nos canos, tijolos e saliências da construção com uma agilidade invejável.
Quando estavam próximos o suficiente do chão, deram um salto preciso e
aterrissaram com firmeza. Em seguida, empunharam suas armas improvisadas.
— E oss ssacos de disscos voando eram asssombrassões? — indagou de modo
retórico o senhor. — Olhem, se vocês fizeram o que estou pensando, estão em
apuros.
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Sem perder tempo, o grupo virou e correu na tentativa de escapar para o outro
lado do beco. No entanto, os jovens foram detidos por uma figura ainda mais
imponente e amedrontadora: um Sentinela se postava diante deles, como sempre,
completamente envolvido por uma impressionante armadura.
A couraça ostentava um tom pálido, quase etéreo, como se fosse forjada de
uma liga de metais divinos. Cada peça da armadura era meticulosamente trabalhada,
repleta de entalhes dourados que contavam histórias antigas. Os padrões
serpenteavam pelas placas da armadura de maneira intrincada, formando desenhos
complexos e belos. A luz do Sol refletia suavemente nos entalhes, criando um brilho
quase angelical que contrastava com a tonalidade geral da armadura.
Wun olhou para trás, percebendo que tanto o ser que os perseguia quanto o
cozinheiro haviam desaparecido.
O Sentinela ajoelhou-se lentamente diante do grupo, e sua voz saiu abafada
pelo elmo quando indagou:
— Quem de vocês...?
As crianças trocaram olhares entre si, sem compreender completamente a
pergunta do guarda real.
— Nós não roubamos nada, senhor Sentinela — mentiu Rioran, erguendo as
mãos com medo evidente. — Estávamos apenas brincando…
No entanto, Wun sentiu que não era disso que o guarda falava. A garota de
cabelos curtos ergueu o olhar para o céu. Lembrando-se do ocorrido recente com o
cozinheiro, uma dúvida reluziu em sua mente. Seria impossível empurrar o chão para
baixo, então…
Será que...
— Se agarrem em mim — disse Wun, sua voz quase inaudível, enquanto todos
se afastavam lentamente do Sentinela.
Ceshei e Rioran a olharam com confusão, mas seguiram suas instruções.
Kraals a segurou firmemente, enquanto Frigolin parecia não ter ouvido.
— Me respondam. — O Sentinela insistiu, sua voz começando a mostrar sinais
de irritação.
Wun buscou a Essência.
— Frigolin... — chamou, tentando falar o mais baixo possível.
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— Ela poderia ter matado TODOS NÓS! — O garoto se alterou. Sua voz
fraquejando com a perda de sua melhor amiga. — Como você não está surtando,
Kraals?
— Desculpa, desculpa, desculpa…
Wun sentiu o formigamento. Dessa vez, por todo o corpo. Parecia deixá-la
mais fraca, mais sonolenta. Sua respiração, apesar de frenética, se tornou curta e
entrecortada; os pulmões pareciam estar minúsculos.
Rioran sentou-se e levou a mão à testa, olhando para o chão, perdido em
pensamentos.
— O Sentinela sabe que estamos aqui, Rioran. — Kraals comentou. O rapaz
encarou Wun e notou seu estado. Logo, tentou tranquilizá-la: — A ideia não foi de
todo mal, Wunny. Só… deu azar.
— Ela… — começou Rioran, estupefato. — Ela deixou Frigolin para trás… —
Seu rosto se contorceu de dor. Apertou o braço machucado.
— Depois a gente discute! — Kraals tentou erguer o amigo. — Agora temos
que focar em fug…
Um forte impacto se fez ouvir na retaguarda dos garotos. Kraals saltou sobre si
mesmo e deu alguns passos para trás, virando-se para encarar o ser responsável pelo
estrondo.
— Astuta, pequena — murmurou a voz cortante do Sentinela, fazendo Wun
se levantar em desespero. Por detrás de uma translúcida nuvem de poeira, a
imponente silhueta do guarda se ergueu, olhando fixamente para a garota de cabelos
negros. A superfície do telhado estava agora levemente rachada pelas suas
inquebráveis botas de A’nzi. — Parece ser do tipo que aprende rápido… É mesmo
uma pena.
Wun olhou para os amigos, as bordas de sua visão escurecendo à medida que o
desespero a envolvia. Não conseguia pensar, não conseguia respirar, nem mesmo
enxergar.
— Nos deixe em paz! — Escutou Kraals dizer, a voz distante, ecoando
incessantemente.
Fuja…, suplicou o subconsciente da garota. É você que ele quer. So-…
Sobreviva…
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Procurou dentro de si aquela força. Aquela que não entendia, que não
conhecia direito. Aquela que a fez matar sua amiga e fazia todo o seu corpo formigar.
Aquela que apertava seu peito, mirrava seu pulmão e aos poucos tirava sua
consciência.
Ao menos uma última vez. Só… mais… uma…
Quando se deu conta, Wun sentiu um impacto nas costas, e seus pés já não
tocavam mais o chão. Não conseguia mover sequer um músculo, nem mesmo abrir os
olhos. Apenas escutava, da mesma maneira reverberada e distante que a voz de Kraals,
os passos metálicos da sua iminente morte, trajada com uma armadura branca e
dourada.
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Enfim, no topo do telhado, palco para tal tragédia, restaram somente os corpos
dos amigos de Kraals. O local onde o jovem estava deitado continha apenas vestígios
de suas roupas, agora espalhadas desordenadamente pelo chão. Alguns dias depois,
quando o odor dos cadáveres de Wun e Ceshei se tornou menos suportável e as
autoridades foram acionadas para recuperar os corpos, Kraals foi oficialmente
declarado desaparecido.
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Capítulo Um
hesitar, foi até a entrada do casebre e abriu a porta. O frio noturno atingiu-o como
um sopro gélido; uma rajada cortante que penetrava as vestes e envolvia cada
centímetro de sua pele. Antes que o frio pudesse invadir completamente o aconchego
do chalé, ele fechou a porta com um estrondo abafado.
Como era de se esperar, Frigolin e Aldric haviam retornado.
— Frigolin! — Rioran chamou, acenando com um sorriso de alívio no rosto.
O homem sobre o cavalo tinha uma estatura mediana. Estava enrolado em
roupas folgadas e descontraídas, que refletiam a simplicidade de sua aparência geral.
Seu cabelo castanho fluía em uma cascata sobre ombros largos, complementando
uma barba rala de mesma tonalidade.
Frigolin virou o rosto na direção do chamado e, ao avistar o amigo, desmontou
do cavalo rapidamente, dirigindo-se até ele com passos decididos. Em uma das mãos,
carregava um pequeno saco de pano. Conforme se aproximava, uma extensa cicatriz
vertical tornava-se visível, começando no queixo e subindo até o inferior dos lábios.
Apesar do cansaço evidente em seus olhos, sua expressão era serena e alegre.
— Como a sapeca está? — indagou.
— Nada bem… — respondeu um pai preocupado, andando até a janela e
olhando para onde a filha dormia. — Conseguiu os oyros?
— Aqui estão! — exclamou Frigolin, entregando a sacola ao amigo. Do bolso,
retirou um cachimbo de prata envelhecido e o acendeu. — Confesso que foi mais
difícil encontrá-las do que eu imaginava. Estão ficando escassas, Rioran... Mas você
me conhece: o que eu não encontro, não existe. — Frigolin deu uma risada, sugando
a fumaça e soprando-a tranquilamente no ar frio das montanhas.
Junto do fumo, um cheiro leve de álcool invadiu as narinas de Rioran.
Entretanto, não se importou. Agradecido, cerrou os lábios e deu um tapinha fraco
nas costas do amigo.
— Muito obrigado — falou. — Me pergunto quando irei retribuir todo o seu
apoio.
O outro riu sem jeito, fixando os olhos na parede de pinheiros ao redor.
— Já retribui — disse após alguns segundos. — Pode acreditar… Ah! Aliás,
tome isso aqui. — Retirou um odre preso à sua cintura e o entregou para Rioran,
que bebericou sem ao menos ponderar o que havia nele.
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Era água. A ausência de sabor fez com que ele hesitasse por um segundo, mas
logo se recordou de que também sentia sede, além do cansaço e do frio.
— Você… parece mal — comentou o outro, com olhos abatidos.
Geralmente Rioran tinha uma aparência saudável. Seus ombros eram largos,
sustentando braços bem torneados. Os cabelos, loiros e sedosos, costumavam ser
amarrados para trás, revelando um belo rosto quadrado com uma barba rala. Mesmo
considerando suas cicatrizes, a mais marcante sendo a que cortava sua bochecha por
inteiro, sua aparência robusta geralmente transmitia vigor e vitalidade. Contudo, nos
últimos dias, algo estava diferente.
Rioran respirou fundo e se amparou no guarda-corpo da varanda. Com
cuidado, abriu a sacola e segurou uma erva de oyros. Era amarelada, com manchas
brancas, e possuía um formato ondulado, uma visão confortável aos olhos. Ele
deslizou os dedos pelas suas ondulações, imerso em pensamentos.
— Acha que isso vai dar jeito? — indagou Rioran, mudando de assunto.
Ergueu a erva na direção da Lua, enxergando através dela a forte luz pálida que
emanava de Yirieda.
— Mas é claro que vai! Não há febre que resista a uma boa sopa temperada
com esse troço. Amanhã ela estará de pé, pulando pelo acampamento e atazanando a
gente de novo.
— A febre já é o que menos me preocupa, Fig… — Rioran tomou o charuto da
mão do parceiro, que aceitou serenamente. — Eu temo que… Violla esteja com o
parasita — admitiu, coçando a barba loira. — E se ela estiver, quem garante que
outro de nós também não esteja?
— Está brincando? Esses monstrinhos não resistem ao frio. Não há como eles
sobreviverem aqui nessa época… Além disso — olhou para a Lua —, não há porque
Yirieda puni-lo.
Rioran meneou a cabeça e riu baixo.
— Discordo da última parte — comentou, puxando e soltando fumaça.
— Ah, pare com isso! Falo sério.
— Há muitos motivos para Ela me punir... Na verdade, nos punir. Inclusive, se
olhar nossa situação, creio que já esteja fazendo isso. Mal se resolve um problema e
mais três surgem... — suspirou, reflexivo. — Já ouviu falar dos dotipes e suas caudas?
Corte-a e veja nascer duas no lugar.
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Sozinho, Rioran observou seu colega se afastando, permitindo-se mais uma vez
mergulhar em seus pensamentos. Seus olhos se voltaram para o céu, para as estrelas
cintilantes. Sentiu as minúsculas gotas do relento frio tocarem seu rosto. Respirou
profundamente, tentando acalmar seus sentimentos. Por que estou assim, tão
preocupado?
Recordou-se das palavras enigmáticas de sua mãe, suas metáforas que, a cada
dia difícil, ganhavam mais significado. Fechou os olhos e evocou a imagem do "barco"
e do "rio". Depositou suas preocupações e pressentimentos sombrios no "barco",
confiando no "rio" para levá-los embora, fluindo serenamente a cada longa respiração.
Após alguns momentos, uma sensação de tranquilidade começou a se
instaurar. Observou os casebres e os pinheiros do lado de fora por um instante antes
de se virar e retornar ao aconchego do chalé. Ao adentrar, foi recebido pelo delicioso
aroma da sopa de legumes, o que pareceu intensificar sua sensação de calma.
Rapidamente despejou as ervas de oyros na panela, alimentando uma confiança
serena em sua mente: Violla ficará bem.
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tonalidade castanha apenas um pouco mais escura que sua pele. Usava um chapéu
cor de creme e vestia roupas que lembravam um peão: uma simples camisa
azul-escura com suspensórios e uma calça larga manchada de sangue de coelho.
— Seguros da polícia — continuou, pegando um cantil de couro escorado no
tronco onde se apoiava —, seguros dos Aço Sombrio e seguros do parasita. — Bebeu
do cantil, gargarejou a bebida e cuspiu de lado. Ergueu uma das mãos solenemente e
falou: — Eu voto para ficarmos.
— E eu para que partamos — contrapôs Rioran, contraindo a testa.
— Parece que você é o único que quer ficar, Rhis — comentou Frigolin,
calmamente.
— Talvez eu seja o único são, colega.
De repente, Giussei também ergueu uma das mãos. Com a outra, gesticulou
em nutarin.
A mulher tinha a pele negra e cabelos curtos raspados, adornados com linhas
onduladas nas laterais. Seus olhos eram deslumbrantes, de um alaranjado cativante,
apertados pelo costumeiro fechamento parcial das pálpebras, quase de maneira
sedutora. Uma enorme cicatriz horizontal marcava seu pescoço.
Sua vestimenta também era simples: uma camisa larga de cor creme, com
mangas soltas. Um manto marrom extenso pendia de seus ombros, enquanto um
cinto de couro segurava a veste inferior, uma calça folgada da mesma tonalidade da
camisa. Destacavam-se dois belos brincos dourados, em formato de retângulo
vertical, ornamentados com um símbolo triangular no centro.
Por razões desconhecidas, ela não falava. Embora a maioria dos membros
restantes da gangue se conhecesse desde a pré-adolescência, permanecia um mistério
se Giussei havia nascido muda, sofrido sequelas devido a algum evento traumático,
ou se simplesmente optava por manter um silêncio perene diante do grupo.
— Ah, fezes! — resmungou Aldric, rabugento, guardando seu caderno. —
Alguém pode traduzir para mim?
— Ela gosta do lugar e quer ficar. — Rhis disse, apoiando-se nos joelhos. —
Aparentemente, não sou o único que não perdeu a cabeça.
— Façamos o seguinte: — Rioran empertigou-se no tronco, resoluto. —
Quem quiser ficar, que fique. Eu vou embora assim que Violla melhorar.
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Capítulo Dois
— Amor…? — chamou. Sua voz entoou um apelo incerto, que se perdeu nos
recantos vazios da habitação, sem resposta alguma.
Rioran tentou manter a calma. Com cuidado, desfez o nó do xale e o estendeu,
deixando-se envolver pelo doce aroma que oscilava entre morangos e cajus. Adorava
aquela coisa. Adorava o odor que aquilo deixava sobre sua mulher mesmo após ela o
remover.
O xale... Beltria costumava usá-lo para acalmar Violla. A menina sempre se
encantara com aquele aroma envolvente, e sua mãe o mantinha por perto para
acalmar os momentos tumultuados das noites. Contudo, Beltria nunca deixava a
criança dormir com ele, temerosa de que Violla pudesse tentar engoli-lo — uma
preocupação que já se mostrara real em diversas ocasiões. Às vezes, o cheiro doce
despertava esse desejo até mesmo em Rioran.
Mas por que ele estava amarrado ali? Claro, Beltria poderia ter facilmente
encontrado outro método para manter o xale próximo a Violla, mesmo sem sua
supervisão. No entanto, diante do repentino desaparecimento, a ideia de que aquilo
poderia ser um "presente de despedida" começava a ganhar forma na mente do rapaz.
Ela pode estar só dando um passeio. Estou sendo paranóico, imaginando coisas.
Não havia razões claras para Beltria fugir. Ela amava Rioran, amava Violla. A
gangue, mesmo não estando no auge, mantinha seus recursos. Tinham comida,
abrigo, e dinheiro para sobreviver — os roubos estavam tendo um considerável
sucesso.
No entanto, tampouco havia justificativa para ela vagar pelas redondezas na
calada da noite. A região onde estavam, apesar de não ser caótica, também não era
completamente segura. As vastas planícies ao redor da estrada de Belliare eram um
tanto... perigosas. A área não era densamente habitada, com apenas ocasionais
vilarejos pontilhando a paisagem verde. Encontros com animais caçando e malfeitores
não era algo raro.
Rioran agiu de repente. Deixou Violla chorando e partiu até um armário no
canto do quarto. Com um movimento rápido, abriu-o e escolheu o único conjunto
de roupas que encontrou nos cabides. Descartando as vestes, pôde visualizar um
grande espelho preso ao fundo do móvel. Encarando seu próprio reflexo, Rioran
estudou atentamente a imagem refletida: um jovem de vinte e três anos o encarava de
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Logo abaixo havia uma gaveta, e Rioran a vasculhou meticulosamente, até que
seus dedos encontraram o contorno familiar de sua balestra. Com cuidado, pegou-a e
deslizou os dedos sobre o entalhe que exibia o nome da gangue que tinha sido sua
vida: Cesura.
Ele a ergueu, avaliando o equilíbrio e o peso da arma. Com um movimento
sutil, conferiu a tensão na corda. Próximo a ela, o estojo onde os projéteis repousavam
estava intacto, as flechas precisamente alinhadas.
Sem hesitar, ele se dirigiu até a porta e a abriu com violência.
Dezenas de cabanas se perfilavam na escuridão, suas paredes tingidas pelo
brilho suave e acanhado das luzes laranjas das lamparinas, cuidadosamente
penduradas nos tetos ou dispostas sobre mesas de madeira nas varandas; um
ambiente familiar, confortável. Ao longe, colinas de estatura moderada se elevavam,
adornadas por vastos campos de gramíneas e arbustos. Tudo estava iluminado pela
notívaga luz da Lua Pálida. Tudo estava silencioso. Tudo estava tranquilo.
Adiante, um alto mastro se destacava. Localizado ao centro do acampamento,
sustentava um grande sino. Caminhos sinuosos se estendiam ao redor, serpenteando
em direção às diversas moradias dos integrantes da gangue. Rioran correu até alcançar
a estrutura. Abaixo do sino, uma corda curta pendia, amarrada à sua bola de badalo,
meneando à suavidade do vento.
Sem hesitar, o rapaz agarrou a corda e tocou o sino. Seu som agudo rompeu a
paz da noite, atravessando o alojamento temporário da Cesura. Em resposta ao
chamado repentino, luzes se acenderam rapidamente e os membros emergiram de
suas cabanas, alguns agarrando armas, outros brandindo lamparinas. Até mesmo
mulheres, crianças e os mais idosos se mostraram ao relento, ansiosos para entender o
alvoroço.
— Beltria desapareceu! — Rioran berrou, interrompendo o toque do sino. Sua
voz rompeu entre eles, carregada de urgência.
Dentro de pouco tempo, uma dúzia de homens se reuniu em volta do mastro,
armados e trazendo consigo os seus cavalos.
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— Dotte certa vez me disse que a confiança é um luxo que não podemos nos
dar; não na vida que levamos, nem nos lugares de onde viemos. — Ele lançou um
olhar para os demais. — Talvez seja uma falha minha, mas… eu confio em cada um de
vocês. Prefiro morrer acreditando na lealdade que compartilhamos à Cesura do que
imaginar um traidor entre nós um dia. A confiança que deposito em Beltria é a
mesma. Então, por que seria diferente com ela?
A imagem do xale surgiu mais uma vez.
Por quê?
A cada ajuste no arreamento, um silêncio novo se estabelecia ao redor dele,
rompido somente pelo eventual relinchar do animal e pelos ruídos do couro e metal.
— Vocês quatro, dividam-se — continuou dando as ordens, findando a
quietude. — Dois permanecerão buscando nas planícies, enquanto os outros
seguirão em direção à Mürta Rossa.
Aldric soltou uma risada breve.
— E se não encontrarmos ela? — indagou um dos membros.
— Então, vamos decidir se ficamos aqui ou se partimos.
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temerosos mais uma vez; afinal, estavam em fuga. Não deveria ser assim. Não para a
Cesura. Há tempos, deixaram de ser uma gangue — aquela temida gangue
dominante de Mürta Rossa —, tornando-se apenas um grupo. Um grupo que fugia
da morte iminente. Um grupo que adiava o inevitável.
Como permitimos que as coisas chegassem a esse ponto? Seria orgulho?
Otimismo…? Rioran refletiu, apertando os braços da filha. Deveria ter largado a
Cesura assim que Violla nasceu... Deveria ter fugido junto de Beltria e vivido uma vida
normal.
No entanto, as angústias de Rioran tiveram um fim abrupto. À frente,
Kaashirin, que antes observava a floresta com serenidade, virou seu rosto em um
instante, revelando uma expressão apavorada.
— Giussei — começou a falar, evitando encarar os arredores; sua voz temerosa
misturando-se ao ritmo dos cascos —, desfaça a magia. Agora.
Rapidamente, Rioran voltou a não enxergar sequer um palmo adiante.
— O que deu em você, chifruda? — Aldric questionou, trocando sua voz
sarcástica por uma que, ao menos aparentava, possuía genuína preocupação.
— Eu deveria ter suspeitado. — Ela sussurrou para si mesma, fitando absorta
as raízes entrelaçadas pelo solo vertente. — Essa névoa. A chuva… Merda!
— Bem, pela sua reação, aparentemente morremos. Que ótimo… — Aldric se
endireitou, girou o corpo e tateou sua bolsa de viagem, retirando dois dedais
peculiares e os encaixando nos dedos médio e indicador.
Ambos tingidos de negro, se estendiam até a base dos dedos em formas
saltitantes que lembravam grandes escamas. Entre as brechas dessas escamas, finas
linhas vermelho-vivas contornavam, formando padrões ondulados que se estendiam
em espirais nas extremidades. Da ponta, uma afiada "unha" de metal emergia,
enquadrando um símbolo complexo no centro; cada uma diferente da outra.
O homem ergueu a mão e virou para Kaashirin.
— Cadê a coisa?
— Não precisa disso. — Ela fez um gesto para que Aldric abaixasse a mão. — É
só… a fauna local.
— Certo. E essa… fauna pode nos matar?
Kaashirin assentiu.
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Capítulo Três
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