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“Language is a skin: I rub my language against the other. It is as if T had words instead of fingers, or fingers at the tip of my words” Roland Barthes “the limits of my language mean the limits of my world” Witgenstein “a word is a microcosm of human consciousness Vygotsky Na Literatura, diversos autores mencionam como a Linguagem influencia a nossa experiéncia do mundo: Nabokov, apesar da sua origem, escrevia em inglés para ser menos emotivo e mais racional; ideia com a qual coincidem escritores como Murakami ou Eva Hoffman, que nos fala sobre a possibilidade de se reesctever uma nova identidade ao existir numa outra lingua. Para os amantes dos livros fica ainda o exemplo do Newspeak, a lingua falada no universo distépico de 1984, cujo propésito era gerar um discurso dicotémico, a preto branco, de forma a limitar e conter a riqueza e diversidade do pensamento, diminuindo também a capacidade de raciocinio critico nos seus falantes, Nos dominios da Psicologia ¢ Psicolinguistica tém existido diversas perspetivas sobre a relagdo entre a Linguagem e o Pensamento, Para comportamentalistas como Watson 0 pensamento néo seria mais do que a Linguagem, estando circunserito aos pequenos movimentos motores do aparelho de fonagdo na laringe. Autores como Fodor ou Chomsky consideraram tratar-se de faculdades e processos independents. © conceito da gramética universal de Chomsky defende a existéncia da Linguagem como uma predisposi¢do inata no homem, independente de outros processos e contextos. J a proposta de Fodor sobre a modulatidade da mente sugere a existéncia de médulos diferentes em fungio da sua especializagdo cognitiva no processamento de diferentes tipos de informagdo. Na area do Desenvolvimento, autores como Piaget ou Vygotsky concebem a Linguagem ¢ Pensamento como dominios cognitivos que interagem entre sim, Para Vygotsky, trata-se de fenémenos que convergem, na medida em que a lingua como instrumento de comunicagao na zona de desenvolvimento proximal permitiria 0 desenvolvimento de fungdes cognitivas superiores. J4 para Piaget, o desenvolvimento da competéncia linguistica estaria condicionado ao prévio desenvolvimento cognitivo a0 longo dos vatios estidios (Harley, 2014). Existe ainda a perspectiva do Determinismo e Relativismo Linguistico, com origem, na Sapir-Whorf Hyphotesis (SWH) mi recentemente retomada por investigadores como Lera Boroditsky, ou Keysar © colegas (2012), com a sua hipétese do Foreign Language Effect (FLE). De acordo com esta perspetiva a Linguagem nao € apenas um mero reflexo do pensamento, ou um instrumento para 0 veicular; mas tem a capacidade de moldar os nossos processos cognitivos. A forma como percecionamos, categorizamos, armazenamos as nossas representagdes sobre o mundo, ¢ também a forma como raciocinamos, depende da lingua falada (Boroditsky, 2011). Enuneiada pelos linguistas norte-americanos Edward Sapir e Benjamin Whorf, na primeira metade do século pasado, a Sapir-Whorf Hypothesis (SWH) anunciow a existénc de uma relatividade lingufstica, na medida em que vemos 0 mundo através de uum filtro linguistico dado pela nossa lingua matema, © exemplo classico seria 0 do léxico para a palavra neve: falantes com um Iéxico mais rico relacionado 4 neve devem ter uma percegio mais sofisticada ¢ detalhada desta como fenémeno, quando comparados com falantes que apenas tém uma palavra para a designar (Boroditsky, 2011; Stemberg, 2011). Apesar desta ideia ter sido acolhida primeiro com entusiasmo e, posteriormente, com um olhar eritico, dada a falta de evide cia empirica para a sustentar, a verdade & que acabou por servir de base para a reflexdo e sustentagdo tedrica de investigagdes futuras, como & © caso do artigo que iremos discutir. Publicado em 2012, "The Foreign-Language Effect: Thinking in a Foreign Tongue Reduces Decision Biases", de Keysar e colegas, parte da hipotese de que a lingua utilizada afetaria a forma como raciocinamos ¢ tomamos decisdes. Aplicando a premissa mais geral da SWH ao contexto mais particular da tomada de decisdo, fornece evidi sobre as consequéncias cognitivas de pensar numa lingua estrangeira, ou na nossa lingua ‘materna. No caso do FLE, este efeito empirico do uso de uma lingua estrangeira para enquadrar dilemas ou problemas, significaria menos enviesamento © mais decisdes racionais. O efeito implica que usar uma lingua estrangeira pode induzir uma mudanga cognitiva no sentido de promover o pensamento analitico, deliberado € lento, por oposigdo ao intuitivo, répido © mais propenso a erros ¢ faldcias. Enquanto que a SWH & ‘uma teoria mais alargada sobre a influéncia da lingua na cognigao ¢ em diversos processos cognitivos, o FLE ¢ um fenémeno especifico no dominio dos vieses no julgamento © tomada de decisao, Este artigo proporcionou as primeiras evidéncias empiricas de que a lingua seria um fator de moderagdo no processamento cognitivo associado & tomada de decisdio como proceso do Pensamento. Para isso os seus autores, Keysar, Hayakawa e An, realizaram seis experimentos baseados na Prospect Theory, de Kahneman & Tversky, segundo a qual 08 individuos nao so racionais na forma como tomam decisdes em situagdes de ris 0, dado que estas sdo influenciadas por fatores psicolégicos e emocionais. Quatro dos experimentos testaram o impacto do F sobre o Framing Effect (efeito de enquadramento) nas atitudes de risco, segundo o qual a forma como um problema & apresentado pode moldar a nossa percesao de risco e recompensa, levando a escolhas distintas. Por exemplo, se destacarmos uma opgiio como tendo grande probabilidade de sucesso, as pessoas se sentirdo mais inclinadas a assumir riscos em busca dessa recompensa, No entanto, se enquadrarmos a mesma situago como uma possivel perda, as pessoas tendem a evitar riscos e optam por alternativas mais s guras. As outras duas experigncias testaram o impacto do uso de uma lingua estrangeira sobre a myopic loss aversion (aversdo & perda por miopia), vigs cognitivo no qual priorizamos evitar perdas imediatas, mesmo que isso possa acarretar perdas maiores a longo prazo. Segundo apontam os autores, poder-se-ia esperar que o aumento da carga cognitiva € o stress associado ao uso de uma lingua estrangeira agravassem o impacto dos enviesamentos. Contudo, os resultados demonstraram que 0 uso da lingua estrangeira favoreceu decisies mais analiticas e menos suscetiveis aos efeitos descritos acima, Na discussdo, os autores apontam possiveis causas para estes resultados contraintuitivos. Por um lado, o recurso & lingua estrangeira implicaria uma mudanga para um processamento mais deliberado, resultando em decisdes mais sisteméticas, no sentido de que seria a dificuldade no processamento que conduziria ao raciocinio analitico. Por outro lado, a utilizagio da lingua estrangeira significaria um distanciamento emocional, que faria com que a pessoa se apartasse de pensamentos intuitivos aquando da tomada de decisdo. Os investigadores entendem que esta tltima explicagdo ¢ o mecanismo principal do FLE pelo seguinte raciocinio: as emogdes tém um forte impacto nas nossas decisdes e as reagdes emocionais podem induzirnos a tomar decisdes menos sisteméticas. Assim, considerando que varios estudos demonstraram uma menor reatividade emocional a palavras apresentadas em lingua estrangeira, a redu io do enviesamento poderia decorrer justamente da menor emotividade associada aos efeitos de enquadramento e a aversdo & perda por miopia. Quando isto ocorre as pessoas utilizam mais processos analiticos. Mas qual a importancia deste artigo do ponto de vista do seu contributo para 0 conhecimento teérico sobre a relagao entre a Linguagem e 0 Pensamento e qual a aplicagao pritica deste estudo, fora do campo da Psicologia Cognitiva ¢ da Linguistica? Em primeiro lugar, devemos apontar que esta investigagdo foi basilar para estudos posteriores sobre os efeitos da linguagem no contexto social e do bilinguismo, avangando com 0 modelo te6rico do Foreign Language Effect. Ou seja, teve 0 mérito de fornecer dados empiricos e um modelo ou explicagdo teérica para os enquadrar. Estudos nos anos 70 forneceram evidéncias empiricas sobre os efeitos das diferengas linguisticas entre diferentes culturas na perceso e categorizagdo de cores, ou sobre a meméria (Harley, 2014). Outros, como os de Elizabeth Loftus, sobre os erros de meméria associados as testemunhas oculares, evidenciaram o impacto da forma como o discurso era apresentado no processo de recuperago da meméria sobre um evento. Keysar e colegas foram capazes de nos dotar de evidéncias empiricas sobre a influéncia da linguagem em aspetos esp {ficos do processamento cognitivo, nomeadamente do pensamento ¢ da tomada de decisio, articulando a perspetiva tedrica da SWH com os estudos sobre os efeitos de enquadramento e enviesamento cognitivo na tomada de decisdo de Kanheman e Tversky. Quase um século depois, este estudo providenciou novos dados para um melhor entendimento da proposta do relativismo linguistico da SWH, ao sugerir que a lingua utilizada afeta como raciocinamos, como tomamos decisdes e como o podemos fazer de uma forma mais deliberada, consciente € menos enviesada. Os erros sistematicos que cometemos quando decidimos com recurso a heuristicas podem ser reduzidos, segundo estes investigadores, se utilizarmos uma segunda lingua para abordar os problemas, facto que aporta também uma nova luz sobre os mecanismos cognitivos de base & tomada de decisdo e o papel da linguagem em diminuir os nossos vieses. Segundo uma meta-analise de 2021 publicada por Circi e colegas, envolvendo 17 2 verificousse tanto na tomada de di estudos € 47 experiéncias, o FL io moral (Bialek et al., 2019) como nos dominios relatives aversdo ao risco, Varios estudos replicaram 0 fenémeno da lingua estrangeira nos efeitos de enquadramento, de aversio ao risco (Costa et al, 2014; Hayakawa et al. 2017; Winskel et al, 2016), no viés da causalidade (Diaz- Lago & Matute, 2018), ou no seif-serving bias (Van Hugten & van Witteloostujin, 2018), (© que nos faz realmente considerar a linguagem como um elemento importante na construgdo da realidade social, com consequéncias praticas em areas como a educagdo, a comunicagdo ¢ 0 marketing, a gestdo, a politica, ou até mesmo o futuro da democracia e da sustentabilidade. Numa revistio de literatura MeFarlane S. et al. (2020) reportam que os participantes que pensavam ativamente na lingua estrangeira eram menos sensiveis a0 enquadramento do problema, independentemente dos factos subjacentes; mas também a outras heuristicas © falicias. O uso da lingua nfo nativa reduziria varios tipos de enviesamento tais como a faldcia Hor Hand (faldcia da “mao quente), em que os individuos tendem a acreditar que um bom evento seguird outros bons eventos e as ilus de causalidade, em que os individuos concluem, de forma etrada, que um acontecimento causou outro apenas porque decorreu primeiro. Participantes que consideraram eventos na sua lingua ndo nativa estavam menos predispostos a atribuir sentimentos negativos a acontecimentos de “azar” (e.g. partir um espelho) e menos sentimentos positivos a um acontecimento de “sorte” (e.g. encontrar um trevo de quatro folhas). Na tiltima década diversos investigadores tém dado respostas to interessantes quanto contraintuitivas & pergunta de partida de Keysar e colegas “Would you make the same decisions in a foreign language as you would in your native tongue?” Por exemplo, Geipel et al. (2018), num estudo sobre as barreiras ao consumo sustentavel, perceberam que os participantes que liam a descrigdo de produtos sustentveis, mas pouco apeteciveis, estavam mais disponiveis para os consumir quando as deserigdes eram apresentadas numa lingua estrangeira, Recentemente, em 2022, uma equipa integrada por Geipel e o proprio Keysar verificaram maior adesto a vacinagdo contra a Covid-19 quando as informagées sobre seguranga € pro chinesa (Geipel et al, 2022). Finalmente, enquanto futuros psicélogos, surge-nos uma tiltima questao sobre dimentos foram apresentadas em inglés para uma populagio contributo deste estudo para a resolugdo de um problema da vida real: serd que os efeitos descritos na literatura e no nosso estudo sobre a Foreign Language Effect podem ser aplicados em contexto clinico? Serd que um paciente, que faga uma autoavaliagdo da sua situagdo numa segunda lingua, no 0 poderd fazer de forma mais racional ¢ menos emocionalmente envolvida, apresentando um melhor prognéstico? A pesquisa nesta drea ainda ¢ recente, apesar de ja ser parte da praxis recorrer a uma segunda Ifngua para o paciente falar sobre experigncias negativas passadas, com menor ativagéio emocional. Contudo, um artigo empirico de 2023 de Ortigosa-Beltran e colegas, verificou, a partir de uma amostra de 128 participantes, o efeito positive na diminuigdo da sintomatologia associada ao trauma quando as pessoas utilizavam uma lingua no materna para falar de experiéncia dificeis da inffncia, Sumariando, de acordo com a nossa leitura, o estudo de Keysar ¢ colegas, 20 prover-nos de evidencia empirica sobre as implicagdes priticas do uso da linguagem na tomada de decisdo, nao s6 contribuiu para reforgar a perspetiva tedrica do relativismo lingufstico mostrar como as palavras podem moldar o pensamento; mas também aponta para novos caminhos e aplicagdes priticas na forma como o homem utiliza a linguagem na sua interagdo com o meio para a sua sobrevivencia, Referéncias Bialek, M., Paruzel-Czachura, M., & Gawronski, B. (2019). Foreign language effects on moral dilemma judgments: An analysis using the CNI model. Journal of Experimental Social Psychology, 85, _— Article 103855. hitps://doi.org/10.1016/.jesp.2019.103855 Boroditsky, L. (2011). How Language Shapes Thought. 65, http://www;jstor.org/stable/26002395 Scientific American, 304(2), 62— Cirei, R., Gatti, D., Russo, V. ef al. The foreign language effect on decision-making: A meta-anal is. -Psychon Bull Rev -28,—UI3I-1141— (2021), https://doi.org/10.3758/513423-020-01871-2 Costa, A., Foucart, A., Arnon, 1, Apat M,, & Apesteguia, J. (2014). “Piensa” twice: On the foreign language effect in de hitps://doi.org/10.1016/.cognition.2013.11.010 Diaz-Lago, M., & Matute, H. (2018). Thinking in a Foreign language reduces the ion making. Cognition, 130(2), 236-254. wsality bias. Quarterly Journal of Experimental Psychology, 72(1), 41-51 https://doi.ong/10.1177/1747021818755326 Geipel, J., Hadjichristidis, C. & Klesse, AK. Barriers to sustainable consumption attenuated by foreign language use. Nat Sustain 1, 31-33 (2018). https://doi.org/10,1038/541893-017-0005-9 Geipel, J., Grant, L.H. & Keysar, B. Use of a language intervention to reduce vaccine hesitaney. Sci Rep 12, 253 (2022). https://doi.org/10.1038/s41598-021-04249-w Harley, T. A. (2014). The psychology of language: From data to theory (Ath ed.). Psychology Press. Hayakawa, S., Tannenbaum, D., Costa, A, Corey, J. D., & Keysar, B. (2017). Thinking more or feeling less? Explaining the foreign-language effect on moral judgment. Psychological Science, 28(10), 1387-1397. https://doi.org/10.1177/0956797617720944 Keysar B., Hayakawa S. L., An S. G. (2012). The Foreign-Language Effect: Thinking in a Foreign Tongue Reduces Decision Biases. Psychological Science, 23(6), 661- 668. doi: 10.1177/0956797611432178 McFarlane S., Perez H.C., Weissglass C. (2020). Thinking in a Non-native Language: A New — Nudge?. Frontiers. in Psychology, —_‘(11:549083. doi: 10.3389/fpsyg.2020.549083. Ortigosa, I, Jaen, 1, & Garcia-Palacios, A. (2022). Processing negative autobiographical memories in. a _— foreign language. medRxiv, 2022-12. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2023.1133915 Stemberg, R., & Stemberg, K. (2011). Cognitive Psychology. Belmont: Wadsworth Publishing Van Hugten, J., & van Witteloostuijn, A. (2018). The foreign language effect on the self= serving bias: A field experiment in the high school classroom. PLOS ONE, 13(2), 1-16. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0192143, Winskel, H., Ratitamkul, ., Brambley, V., Nagarachinda, T., & Tis charoen, S. (2016). Decision-making and the framing effect in a foreign and native language. Journal of Cognitive Psychology, 28(4), 427-436. hetps://doi.org/10.1080/20445911.2016.1139583

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