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CONFERÊNCIA

OO sistema
sistemapenitenciário
penitenciário
brasileiro:
brasileiro: panorama geral
panorama
geral

8 R. CEJ, Brasília, n. 15, p. 8-11, set./dez. 2001


José Carlos Dias*
Conferencista

RESUMO

Considera importante o Poder Judiciário enfrentar questões que dizem respeito ao Direito Penal, principalmente quando se trata do sistema penitenciário brasileiro e do
combate ao crime. Defende a idéia de que é preciso punição para todos, tanto para o pobre quanto para o rico, mas gradualmente, de acordo com a gravidade do crime,
de forma que a reprimenda seja justa.
Apregoa que as penas alternativas vêm despertando interesse de juízes e promotores em alguns Estados brasileiros, mas ainda de forma muito mitigada. Acredita que as
mesmas oferecem maior chance de recuperação ao preso, pois, segundo ele, cadeia não é estabelecimento de ensino.

PALAVRAS-CHAVE
Poder Judiciário; Direito Penal; sistema penitenciário; pena alternativa.

J uízes, muitas vezes acostumados Por isso propus, para horror de democracia existe, e nela colocarmos
à rotina do julgamento, à burocra- muitos, a discriminação de muitas con- um preso padrão da classe alta, que
cia de uma Justiça que não desa- dutas consideradas criminosas e a fal- nos possibilite afirmar que cadeia tam-
brocha, vão a fundo numa reflexão crí- ta de penalização de outras. É neces- bém é para o rico; o que queremos é
tica para discutir verdades e menti- sário que haja um enfrentamento cora- punição para todos, mas gradualmen-
ras do sistema penitenciário. Portan- joso das distinções entre condutas, te, de acordo com o necessário para
to, esse tema sugere um desafio, mar- como, por exemplo, quando se trata, que a reprimenda seja justa.
ca uma ousadia. Talvez, jamais, o Po- na questão do tráfico, da conduta da- Sustento que a categoria de cri-
der Judiciário tenha assumido a co- quele garoto que é o “aviãozinho”, o mes hediondos é de origem demagó-
ragem de expor um problema que é intermediário na compra de tóxicos, gica, pois o crime é mais ou menos he-
do Estado, envolvendo os três Pode- tendo o tratamento penal equivalente diondo conforme as circunstâncias a
res, e da sociedade brasileira, que ao do grande traficante internacional, serem avaliadas pelo juiz para fins de
sofre as conseqüências de um siste- ambos praticando crime hediondo de dosimetria da pena.
ma penal obsoleto, retrógrado, covar- acordo com a nossa legislação. Hoje podemos observar que,
de, que revela a violência aos direi- O Poder Judiciário deve ter – e muitas vezes, o juiz, penalizado em ver
tos humanos. é este ponto que saliento e que enten- que aquele cidadão cumprirá a pena
O Superior Tribunal de Justiça do ser um grande desafio – a coragem em regime fechado e não terá progres-
põe em pauta de julgamento o próprio necessária para esse enfrentamento são, diminui a pena, quando, na reali-
sistema penal brasileiro. Durante esses para que possamos confiar em nossos dade, o correto seria que a impusesse,
quase nove meses em que exerci as juízes. Acredito que o Poder Judiciário graduando-a de acordo com as cir-
funções de Ministro da Justiça, foi mi- deve ter aumentado as suas prerroga- cunstâncias mais ou menos hediondas,
nha preocupação fundamental o am- tivas na execução penal, dando vigor porque crime adorável não há; todo
plo debate, em todos os níveis, do pro- ao princípio da individualização da crime é uma conduta anti-social.
blema de segurança, a partir de uma pena, deixando ao seu alvitre, ao seu Posteriormente, o juiz da execu-
nova visão garantista do nosso siste- bom senso e ao seu equilíbrio, somen- ção acompanhará o preso, cujo passa-
ma penal, propondo a abolição de ex- te quando indispensável, a realização do, julgado pelo Poder Judiciário, é
pedientes que emprestam ao Direito do exame criminológico para a mudan- posto em dia. A partir daí, ele apostará
Penal simbólico a importância de ser ça de regime, e permitindo ao juiz até em seu futuro, e o Estado e a socieda-
um fator individatório da conduta hu- mesmo a antecipação de benefícios de apostarão nele. Portanto, não deve
mana, quando, em verdade, é o opos- durante a fase de execução, como a o rótulo vir aderido ao condenado,
to que se dá. liberdade condicional ou a conversão como um estigma, tirando-lhe o estí-
O Direito Penal mínimo, cuja da pena em liberdade vigiada com a mulo de progredir e alcançar mais de-
bandeira balançamos muito durante prestação de serviços para a comuni- pressa sua liberdade.
esse período, inspirou muitas das dade, o que significa conceder dina- Assim, um grande desafio ao
idéias encampadas pela comissão de mismo à execução da pena. É preciso Judiciário é prover seus membros de
juristas, por mim nomeada, para a coragem para fazê-lo. conhecimentos que os habilitem a se
elaboração do diagnóstico do siste- O que se pretende com isso é tornar os vigilantes, os tutores do
ma penal brasileiro. Por meio dele po- manter no cárcere somente o crimino- acompanhamento da pena, presen-
de-se demonstrar eficiência, eficácia, so perigoso, que não pode conviver tes na prisão, a desvendar os nove-
reservando ao Estado formas alterna- conosco, por representar um perigo fí- los que surgem na formação de gru-
tivas de punição que nem precisam, sico, gerar estímulos para aquele que pos e quadrilhas. Precisamos de juí-
obrigatoriamente, passar pelo Direi- se pretende reaproveitar como cidadão zes e promotores dentro da prisão,
to Penal, e que pune, com o rigor de- e enxugar o sistema penitenciário. vivenciando o drama que nelas ocor-
vido, conforme a gravidade das con- Não precisamos de cadeia para, re e acompanhando a execução da
dutas anti-sociais. de vez em quando, demonstrar que a pena. O juiz da execução penal há

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Texto sem revisão do autor.

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de ser vocacionado com a questão der Legislativo, que sofre pressões e
penitenciária e, por isso, preparado influências da sociedade que, de tan-
para o exercício de tal vocação. to medo, deixa de lutar por essas mu-
A questão das penas alternati- danças; e do próprio Poder Judiciá-
vas, que mereceram ênfase em minha
O Direito Penal mínimo, rio, que também não está isento des-
gestão, vem despertando o interesse (...), inspirou muitas sas pressões.
de juízes e promotores em alguns Es- Enfim, precisamos estabelecer
tados, mas ainda de forma muito mi- das idéias encampadas neste País, como norma fundamental,
tigada pelo Brasil afora. O Ceará, o Rio pela comissão de que não haverá segurança para o ci-
Grande do Sul e o Paraná, por exem- dadão se não tivermos a consciência
plo, estão adiante – não pretendo fazer juristas, (...), para a de que devemos legislar para as pes-
discriminação –, e outros estados es- elaboração do soas de bem, para os cidadãos hones-
tão caminhando nessa direção. tos, e não pressupor sempre que exis-
A Dra. Elizabeth Sussekind está diagnóstico do sistema ta, por parte de todos, a vontade de
realizando um trabalho importante – ini- penal brasileiro. Por fraudar, de prejudicar.
ciado durante minha gestão – com a Há leis e projetos de leis que
criação da Central Nacional de Apoio meio dele pode-se violentam a estrutura democrática e
e Acompanhamento das Penas e Me-
didas Alternativas.
demonstrar eficiência, rompem com aqueles direitos funda-
mentais que são sacramentados pela
Em alguns Estados, há uma re- eficácia, reservando ao Constituição como cláusulas pétreas.
sistência muito grande, talvez porque Por exemplo, quando se tenta tirar do
a população esteja querendo que o Es-
Estado formas Poder Judiciário o poder exclusivo de
tado se vingue, prendendo quem não alternativas de punição invadir a intimidade da pessoa, que-
merece ser preso, imaginando que com brando-lhe o sigilo bancário. Por que
isso estará aumentando seu nível de que nem precisam, tirar o filtro do Judiciário em questão
segurança, intimidando as pessoas. obrigatoriamente, tão importante, permitindo que outros
Não tenho dúvida de que a funcionários possam obter formas de
pena alternativa oferece uma chance passar pelo Direito coação e de extorsão sobre os cida-
muito maior de recuperação. Não acre- Penal, e que pune, com dãos? Estou profundamente preocupa-
dito em cadeia como estabelecimento do com a aprovação da Lei n. 10.217 –
de ensino. Isso é uma falácia. A pena o rigor devido, conforme cujo projeto combati –, que estabele-
não foi criada como forma de transfor- a gravidade das ce a possibilidade de vir a ser autoriza-
mar o cidadão, a pessoa. Fala-se em da judicialmente a infiltração de agen-
“reeducando”, quando nem educando condutas anti-sociais. tes policiais ou de seguranças, que
ele é. Na maior parte dos casos, o pre- desta forma se investem de poder de
so nunca teve educação. Fala-se em polícia, em organizações criminosas
alguém que está lá para aprender a vi- e pena de interdição de direitos. Não para obtenção de prova judicial. É a
ver em sociedade. Como é possível cul- tenho dúvida de que em um crime fi- mesma lei que permite que haja a es-
tivarmos o anseio à liberdade sem que nanceiro é muito mais eficaz uma con- pionagem eletrônica ou a gravação
ela exista? Portanto, a prisão existe denação por interdição de direitos, ambiental sem o pressuposto de que é
como um instituto de segurança soci- proibindo o réu de exercer direção de necessário haver elementos suficientes
al. Tem de ser rigorosa, porém absolu- instituição financeira por quatro anos, de suspeita para que se realizem es-
tamente garantidora dos direitos fun- do que um simbólico sursis. É preciso sas provas. A casa de qualquer um está
damentais da pessoa. Já que tem de que haja respostas eficazes para que sujeita a ser objeto de espionagem sob
existir, que se aposte num trabalho sé- se alcancem os objetivos da paz soci- o pretexto de que é preciso combater
rio, de educação, de profissionalização, al, da ordem e da justiça. o crime organizado.
e não em algo repetitivo que não leve à É fundamental afirmar que uma Devemos ter essa preocupa-
expectativa de cidadania. política social que combata a exclusão ção. Precisamos de um Poder Judi-
O prestador de serviços à comu- e que gere a inserção no processo pro- ciário vigilante, analisando o conteú-
nidade custa ao Estado cerca de 2% dutivo e o acesso à cultura é, sem dúvi- do constitucional das leis, para que
do que custa um preso. Isso se falar- da, mais eficaz. Ela estabelece a justi- se estabeleça, realmente, um critério
mos somente em custeio, esquecendo ça e previne a ordem, dando seguran- rigoroso. É preciso respeitar o cida-
o valor do investimento em presídios, ça ao cidadão. O Estado pode e deve dão. Temos de combater o crime. De-
que é altíssimo. Como ministro, dizia estar presente por meio de instrumen- vemos combatê-lo com energia. Te-
que cada metro quadrado de concre- tos que garantam o acesso à cultura, mos de lutar contra o crime organiza-
to que se gasta na construção de mu- ao lazer, à defesa da cidadania. Há al- do com rigor. Não nos atormenta a
ralhas, de presídios, representa muitos ternativas que estão sendo cogitadas, idéia de que este crime organizado
metros quadrados que se deixa de discutidas, algumas implantadas em esteja permeando o Estado brasilei-
gastar em obras sociais, equipamen- vários Estados da Federação, que mos- ro, alcançando os Poderes constituí-
tos, casas populares, no exercício de tram um Estado presente, não obriga- dos? Claro, isso nos alarma. Mas não
políticas públicas que semeiam a cons- toriamente repressivo, mas abrindo podemos, em razão desses fatos, aten-
ciência cidadã e que, portanto, são espaços, discussões, gerando formas tar contra a liberdade individual.
muito mais úteis que os caminhos orto- de resolução de conflitos, muitas ve- Penso que este é o momento.
doxos do Direito Penal para combater zes pelos próprios moradores e pelas Para todos nós, juízes, advogados, pro-
a violência. entidades de bairro. motores, pessoas ligadas ao sistema
Falou-se aqui em prestação de Para mudanças, é preciso a penitenciário, políticos e estudantes, é
serviços à comunidade, pena de multa conscientização da sociedade, do Po- hora de reflexão sobre o que se está

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debatendo aqui a respeito do proble- that punishment should be equal, on the same
ma penitenciário. Isso é apenas uma measure, for the poor and for the rich.
fatia de um grande problema que é a It affirms that alternative penalties have
been catching the attention of judges and
estrutura do Direito neste País.
prosecuting attorneys in some Brazilian states,
Precisamos vitalizar o Poder Ju- but still on a very mitigate manner. The author
diciário. A sociedade olhando e julgan- believes that they offer a greater chance of
do o Poder Judiciário, para ver como rehabilitation of the inmate because, according
ele está julgando. É indiscutível que o to him, penitentiaries are not educational
Poder Judiciário, que julga, condena e institutions.
absolve os cidadãos está enfrentando
KEYWORDS – Judiciary Power;
um enorme desafio. Ele se colocou na Criminal Law; penitentiary system; alternative
pauta de julgamento. O réu é o siste- penalty.
ma penal brasileiro, é a forma como o
Direito Penal está sendo aplicado, in-
chado, como se fora um espantalho.
São as leis amedrontadoras, as penas
escabrosas, a prisão que amontoa as
pessoas, não diria como animais, por-
que os animais não devem ser trata-
dos assim, mas, enfim, a forma como
são tratadas. Tudo isso merece uma
reflexão.
Peço que reflitam um pouco so-
bre a valorização do juiz de execução
penal como juiz especializado, huma-
nista, que vê o preso como gente, como
alguém que ele quer resgatar para a
sociedade, sobre quem ele vai anali-
sar e estudar, sem necessidade de fi-
car amarrado à burocracia de laudos
que se repetem sempre e que, muitas
vezes, inviabilizam a liberdade, que é
a expectativa maior. Enfim, dando-se
ao juiz o poder de continuar sentenci-
ando durante a execução para que a
liberdade venha a ser uma recompen-
sa ao esforço. Que haja também o re-
conhecimento da remissão pelo estu-
do. Mas que isso não seja por força de
um gesto de liberalidade, mas que es-
teja na lei, da mesma forma que o tra-
balho. Temos de estimular as pessoas
para que elas cresçam, porque, afinal,
não há dúvida de que, se o cidadão
preso for analfabeto ou quase analfa-
beto, existirá aí um co-autor: o Estado,
a sociedade. Essa pessoa não teve es-
cola. O Estado não lhe proveu o ensi-
no. Portanto, é absurdo que, agora, se
ela está querendo aprender, estudar,
isso não sirva para mitigar sua pena.
Sonho ver um Estado de Direito
com um Direito plantado em fortes vi-
gas constitucionais de respeito aos ci-
dadãos.

ABSTRACT

This paper considers the importance


of having the Judiciary Power facing matters
related to Criminal Law, especially when they
refer to the Brazilian penitentiary system and José Carlos Dias é advogado criminalista e
the deterrence of crime. It defends the idea ex-Ministro da Justiça.

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