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A preocupação que norteia este trabalho é a que, de há alguns anos a esta parte, se
vem apresentando à respectiva autora, como a mais saudável perspectiva que se depara à
procura do conhecimento nos modelos ocidentais de ensino superior, à entrada século XXI.
Depois de a segunda metade do século XX ter trazido ao ensino e à investigação uma ruptura
do cânone curricular tradicional, que foi indispensável, numa certa fase, para possibilitar o
acolhimento das culturas minoritárias, de classe socioeconómica, de género, e étnicas,
tornadas crescentemente visíveis a partir do pós-guerra de 39-45, desembocámos numa
pulverização de culturas de grupo, e de “superespecializações”, cada uma delas
desenvolvendo-se aparte das restantes, às vezes de modo autista, com os seus membros e
mentores falando principalmente uns para os outros - pregando, de facto, para quem já está
convertido. Em prol do progresso real da humanidade, urge agora, no dealbar do século
XXI, colocar de novo a ênfase na natureza una do conhecimento, compreender que as análises
só são produtivas quando seguidas de uma síntese, que tudo coloque em perspectiva; investir,
assim, em pontes de diálogo entre os saberes dos vários grupos e das várias especializações;
perguntar a cada grupo o que, de melhor, de entre aquilo que é seu, quer trazer para a mesa
comum da cultura do Ocidente, a que, virtualmente, todos estamos sentados.
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Alfred Lewis – originalmente, Alfredo Luís – nasceu na Ilha das Flores em 1902 e,
como muitos dos seus conterrâneos, emigrou para a Califórnia no início da idade adulta.
Desde a sua emigração para a Califórnia, sem conhecimento da língua inglesa, decorreram
décadas até que, pelo final dos anos quarenta, começasse a trazer a lume contos e poemas
seus, em inglês, em publicações americanas de prestígio. Em 1951, surge Home Is an Island,
um primeiro romance, de um autor alheio à mainstream americana, que,
surpreendentemente, aparece publicado por uma editora da envergadura da Random House.
Segundo Nelson Vieira1, Home Is an Island estaria votado a grande sucesso, com recensões
no New York Times, e uma tradução posterior em Braille. Mas atendo-nos ao próprio sucesso,
no que respeita à casa editora, podemos perguntar-nos o que terá levado a Random House
a acreditar neste romance de experiência de pré-emigração – além do mais, o primeiro, do
seu autor? Que ingredientes de Home Is an Island calavam fundo junto do ethos americano
da época, a ponto de justificar o risco financeiro da sua publicação?
Comecemos por tomar em conta o espírito de conformidade dos anos cinquenta, que
leva a que, nesta fase, as questões levantadas pela diferença social e cultural ainda sejam,
tanto quanto possível, ignoradas: de facto, a própria noção da existência de identidades de
grupo só começaria a surgir na sociedade americana a meio desta década, com os trabalhos de
Erik Erikson, e ao tempo da publicação de Home Is an Island, a vida nos subúrbios das cidades
americanas encorajava associações homogéneas, espírito de pertença, fazendo prevalecer,
indiscutivelmente, a cultura da mainstream. Deve notar-se que, não obstante a leitura possível
de Home Is an Island como repositório etnográfico dos costumes e maneiras de estar e de
sentir locais, que poderá, ao tempo da sua publicação, ter ido ao encontro das expectativas de
leitores de ascendência açoriana, a consonância com o espírito americano de conformidade,
na época, surge de forma recorrente ao longo da obra, e, às vezes, surge de forma que se
suspeita ter sido deliberada. Cite-se, a propósito, a passagem em que o narrador se refere ao
modo como é sentida a Primeira Guerra Mundial na pequena comunidade da Beira:
“The year had been good, the harvest bountiful. But there was little happiness in
any house in Beira, the thought of death was ever present. Portugal was now at
war with Germany. The United States of America - José saw the might of that country
cross the seas daily.”2
1
Nelson H. Vieira, “Alfred Lewis’s Home Is an Island: Implications of an Invented Style”, in Gávea-Brown: A
Bilingual Journal of Portuguese-American Letters and Studies / Revista Bilingue de Letras e Estudos Luso-
Americanos, Vol. I, NºI, Jan-June, 1980, 18-25, 19.
2
Alfred Lewis, Home Is an Island, New York, Random House, 1951, 270.
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3
Idem, 57.
4
Ibidem.
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Na pequena comunidade da Beira, que vive desperta para os valores espirituais, e sob
um peso extremo de religiosidade, os sonhos parecem, contudo, colocados nos valores
visíveis e materiais da América:
“Have you ever heard of electricity, of the automobile, of wide paved roads flung
across thousands of kilometers? Of a land where the very poor may have sugar in
their coffee, and eat white bread everyday?… Gold, gold - America is full of it!”6
– diz José a Aunt Maria. No entanto, a sua primeira visão da América, enquanto criança
muito nova, tinha sido outra:
“. . . his father spoke of that fabulous country called America. In those days America
was only a name - a very pleasant one, to be sure. It meant that perhaps, on the other
side of the sea, there existed a land where all little boys had lots of candy to eat,
where coffee and sugar were always plentiful.”7
Assim, a América que para o José adolescente é ouro, para o José criança era candy.
O que quer dizer que, por muito que seja equacionada com a aquisição de bens materiais, a
5
Home Is an Island, 101.
6
Idem, 9.
7
Idem, 7.
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América é, de facto, nesta comunidade, a projecção dos sonhos de cada um. É alguma coisa
para ser procurada por poetas. O pai de José, como muitos, voltara pobre, mas a demanda
da América bastava-se a si mesma, como a demanda do Graal: era a procura que contava. A
grande revelação, que décadas mais tarde irá ser magistralmente reencenada por outra
autora de ascendência açoriana, Katherine Vaz, é que, na vida, a dimensão sensual, material,
não tem de se opor ao espírito, como acontece na cosmovisão católica. Como, a certo passo,
diz o pai de José:
“It is well, son. To dream and, yes, to be hungry. The body must crave food in order
to grow. Your mind - dreams are the food of the mind, are they not?”’8
“Meanwhile his mother spoke ardently of Heaven, where also all things were possible
- sugar and coffee mere trifles.9 . . . You must always learn to do without the very things you
want - to resist temptation - in order that you may enter the kingdom of God.”10
É esta retórica da renúncia que José acaba por recusar ao escolher, não, ser Padre
e ficar na Ilha, como a mãe desejava, mas aventurar-se a ir para a América, de acordo
com o desejo meio explícito do pai, na busca de construir para si uma versão mais
palpável de paraíso. De facto, a ideia da continuidade entre bem espiritual e sucesso
material tem sido permanente, na sociedade americana, remontando mesmo à época
da colonização. De acordo com Maria Laura Bettencourt Pires, na visão puritana, “A
prosperidade económica não era uma causa mas sim um resultado da piedade”11 e “A
prosperidade que [os colonos puritanos] atingissem serviria para persuadir os seus
inimigos de que o modo de ‘governar’ puritano era bom”12. Por sua vez, George Brown
Tindall, na sua amplamente conhecida obra de referência America: A Narrative History,
resume assim a postura do início dos anos cinquenta sobre a relação entre bem espiritual
e bem material:
8
Idem, 24.
9
Idem, 18.
10
Ibidem.
11
Maria Laura Bettencourt Pires, Sociedade e Cultura Norte-Americanas, Lisboa, Universidade Aberta, 1996, 94
12
Ibidem.
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A consonância entre esta atitude e a que preside à partida de José para a América,
materializada nos conselhos do pai, é óbvia; também nestes conselhos se misturam as
preocupações materiais com as espirituais: “. . . learn the language. When you do, you may
be able to find a position in a store . . . you’ll soon earn some money”14; e, por outro lado:
“your manners are very important. Be polite and just. Do not do anything shameful. Remember
that.”15 A mãe adverte-o, igualmente: “. . .you must remember your faith. Yes, your God and
Our Holy Mother Church.”16
Por outro lado, essa relação de continuidade remete também, de uma forma mais
intemporal, para aspectos primordiais do ethos americano. São recorrentes, em Home Is an
Island, as referências a um modo de viver simples e solidário, em que a sobrevivência da
13
George Brown Tindall e David Emory Shi, America: a Narrative History: Brief Fourth Edition, New York, W. W.
Norton & Comp., 1997 [1984], 982.
14
Home Is an Island, 300.
15
Ibidem.
16
Home Is an Island, 195.
17
Idem, 195.
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comunidade passa pela entreajuda, sem alardes, de todos os seus membros, tal como tinha
acontecido na América, durante a primeira época de colonização, durante a conquista da
Fronteira do Oeste, de facto, em várias fases ao longo da História. Anote-se o caso
emblemático da feitura do berço de José, que facilmente traz à memória os exemplos
educativos de solidariedade nas narrativas de Laura Ingels Wilder, e que os pais do
protagonista recordam assim: “The log was brought to our patio in a few days. Everyone
came to help . . . They sawed, nailed, polished . . . Many hands and a tree. That’s how your
crib was made.”18 A mesma atitude de solidariedade recorre na construção de um quarto
para José, já mais velho, assunto a propósito do qual se comenta sobre os hábitos da Beira:
“Anyone could start a new project in the simplest way, by saying a word at the
proper time and place, a very indirect reference, just enough to fire the co-operative
spirit of the people. Gain, of course, was never a directing force. Escudos did not
matter so much.”19
17
Idem, 195.
18
Idem, 17.
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Katherine Vaz, que tem também o seu primeiro romance publicado por uma das
principais editoras americanas, a St Martin’s Press, escreve em tempos menos ingénuos, em
que a transparência da relação entre texto e experiência de vida que encontramos em Home
Is an Island, há muito se perdeu, a favor de um entendimento mais sofisticado do texto
literário, enquanto artefacto enformado pela própria linguagem que o constrói, mantendo a
sua relação de primazia com outros textos, e não com a experiência. Como diz Vamberto
Freitas em Mar Cavado: “Com efeito, Saudade é um romance de profundas intertextualidades
com a cultura e literaturas do seu próprio país. ... “22 e, conforme também observa, com
referência ao mesmo romance: “As linguagens de cada um são, na ausência de referenciais
num mundo pós-moderno, as comunidades possíveis”23.
20
Frank X. Gaspar, A Field Guide to the Heavens, Madison, The University of Wisconsin Press, 47.
21
Adelaide Batista e Vamberto Freitas, “Saudade: Language as Survival”, in Arquipélago: Línguas e Literaturas,
XV, 1998, 121-132, 122.
22
Vamberto Freitas, “Saudade de Katherine Vaz: Arte e Memória”, in Mar Cavado: Da Literatura Açoreana e de
Outras Narrativas, Lisboa, Salamandra, 32.
23
Ibidem.
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24
Katherine Vaz, Saudade, New York, St. Martin’s Press, 1994, 193.
25
“Saudade: Language as Survival”, 127-128.
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