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Capitulo 6. _ As Principais Fitofisionomias. do Bioma Cerrado José Felipe Ribeiro Bruno Machado Teles Walter As principais fitofisionomias do bioma Cerrado Os biomas do Brasil! Por quase dois séculos, numerosos autores tém proposto diferentes divisdes para os grandes biomas ou dominios fitogeogréficos do Brasil, cujo pioneiro foi Martius (1840/1869, 1943), seguido por Caminholi (1877), Lofgren (1896), Rodrigues (1989 ~ original de 1903), Ihering (1907), Goeldi (1909), Sampaio (1929, 1930, 1935), Campos (1943, 2001), Dansereau (1948), Santos (1951), Beard (1955), Aubréville (1959, 1961), Magnanini (1961a, 1961b), Ab’ Saber (1971, 2003), Hueck (1972), Eiten (1972, 1978, 1983, 1992, 1994b), Romariz. (1974), Cabrera e _ Willink (1980), Fernandes e Bezerra (1990), JX . Cerrado . Campos Sulinos . Florestas Atlantica ~ ede Araucaria Caatinga Floresta Amazénica 3. Pantanal vers Filho ¢ Ginelda Dugan oma, ver nae de dap 9. 153 Veloso (1992), IBGE (1993, 2004) e Rizzini (1997). Em escala continental, a maioria das divisdes apresenta circunscriga0 semelhante, modificando-se na abrangéncia e nos detalhes em fung&o dos critérios adotados. Todas sao variantes da primeira divisio de dominios floristicos do Brasil, delineada por Carl Friedrich Philipp von Martius em 1824 (Martius, 1840/ 1869, 1943). Como nao hé unanimidade para nenhuma das divisdes fitogeograficas do territério brasileiro, consideramos aqui a ocorréncia de seis grandes biomas*: 0 Cerrado, os Campos Sulinos, as Florestas Atlantica e de Araucéria, a Caatinga, a Floresta Amaz6nica e o Pantanal (Fig. 1). Essa 154 divisio ¢ uma adaptagao do mapa da vegetagao do Brasil (IBGE, 1993) e de mapas subseqtientes (IBGE, 2004), como o mapa de vegetagao produzido pela Embrapa Monitoramento por Satélite (2006). A localizagao geografica de cada bioma é condicionada predominantemente pelos fatores climaticos, como a temperatura, a pluvio- sidade ¢ a umidade relativa, e, em menor escala, pelo tipo de substrato. O Cerrado caractetiza-se pela presenga de invernos secos ¢ verdes chuvosos, um clima clas- sificado predominantemente como Aw de Képpen (tropical chuvoso). Possui média anual de precipitagao da ordem de 1.500 mm, variando de 750 mm a 2.000 mm (Adamoli et al., 1987). ‘As chuvas sao praticamente concentradas de outubro a margo (estagao chuvosa), ¢ a tempera- tura média do més mais frio é superior a 18 °C. contraste entre as superficies mais baixas (inferiores a 300 m), as longas chapadas entre 900 m e 1.600 m ¢ a extensa distribuicao em latitude conferem ao Cerrado uma diversificagaio térmica bastante grande. Por outro lado, 0 mecanismo atmosférico geral determina uma marcha estacional de precipitagdio semelhante em toda a regio, criando nela uma tendéncia de uniformidade pluviométrica (Nimer, 1989):"ha uma estacao seca e outra chuvosa bem definidas. Ao sul do bioma, em areas de clima mais ameno, pode ocorrer o clima Cwa (Eiten, 1994b), que também caracteriza os locais mais altos da regiaio central, acima de 1.200 m de altitude. O Cerrado ocorte apenas onde nao ha geadas ou onde estas nao sao freqilentes (Fiten, 1994b). clima caracteristico dos Campos Sulinos é subtropical imido, com algumas dreas de clima temperado. Na classificagtio de Képpen é Cfa, com o clima Cfb ocorrendo nas areas de altitudes menores (Biten, 1994b). A precipitagdo anual média varia entre 1.300 mm e 1.700 mm, concentrada nos meses de inverno, com as temperaturas elevadas no veriio e baixas no inverno, muitas vezes acentuadas por ventos fortes (Porto, 2002). Os Campos Sulinos recebem muitas designagdes, como “zona das coxilhas”, “campinas meridionais”, “campanha gaticha”, “campos da campanha” ou “pampas” (Porto, 2002; Ab’ Saber, 2003), sendo designados “estepe” por Veloso (1992) e “pradarias” por Ab’Saber ~ buigdo dessas florestas em larga faixa latitudinal Cerrado: evologia e ora (2003), ja tendo sido interpretados também como “savana” (ver discuss em Marchiori, 2004). Praticamente confinados ao Rio Grande do Sul, além do planalto catarinense, parecem ser antes de origem edafica do que climatica (Porto, 2002; Marchiori, 2004). A Floresta Atlantica ocorre praticamente de norte (na Regiao Nordeste) a sul do Brasil, ocupando essencialmente o sistema costeiro do pais. Pela porgdo sul, do sudeste do Estado de Minas Gerais ao Rio Grande do Sul, ela é entre- meada pelas Florestas de Araucéria, designadas por Veloso (1992) como ‘Floresta Ombréfila Mista, expressiio esta muito empregada pelos autores contemporaneos da Regio Sul. A distri- proporciona variagdes climaticas intensas, sendo que, na classificagao de Képpen, encontram-se desde climas Aw e Af até Cwa, Cwb, Cfa e Cfb. A pluviosidade pode variar de 800 mm a 4.500 mm (Eiten, 1994b) ¢ em alguns locais depende exclusivamente da chuva orogrifica. Por estarem na regidio mais densamente povoada do Pafs, essas florestas também foram as mais degradadas em comparagio com o seu estado primitivo na época da chegada dos colonizadores & América, em especial a faixa Atlantica. A Caatinga ¢ 0 bioma de clima mais seco do Brasil (BSh ~ tropical semi-drido; ¢ Aw), apresentando precipitag’io média anual que varia de 250 mm a 800 mm, raramente atingindo 1.000 mm (Andrade-Lima, 1981; Eiten, 1994b; Fernandes, 1999). Na estago seca, cujo periodo éde 7.29 meses, a média mensal de temperatura & de 27 °C, sendo pouco inferior na estagdo chuvosa, que dura de 3 a 5 meses, havendo em média cerca de 5 °C de variagdo térmica entre dia e noite (Andrade-Lima, 1981; Fernandes, 1999). Aspectos climéticos da Regitio Nordeste estiio condicionados por sua enorme extensio territorial e pelas variagdes no relevo, associados a uma conjungao de diferentes sistemas de — circulagdo atmosférica. A complexidade de interagdes, principalmente entre relevo, latitude e longitude (continental e costeira) com os sistemas zonais e regionais de circulagao atmos- férica, nao se traduz em grandes diferenciagdes térmicas, mas sim em diferentes regimes de pluviosidade (Nimer, 1989). S As principals fofisionomias do bioma Cerrado A Floresta Amazénica encontra-se sob um clima tropical, com pluviosidade média em tomo, de 2,500 mm (variagio de 1.700 mma3.250 mm). Compreende clima tipicamente quente, com temperaturas em torno de 26 °C, que € sempre amido ao noroeste (clima Af), ou com pequena estagiio seca (clima Am) na maior parte do bioma (Eiten, 1994b). Em determinadas Areas ao norte, como em Roraima, so registradas pluviosidades menores que a média regional (em torno de 1.500 mm), onde o clima é classificado como ‘Aw. O bioma Amazénia encontra-se em grande parte nas linhas de instabilidade tropical que acarretam fortes chuvas. Em razio do forte aquecimento diurno, tais chuvas geralmente caem no final da tarde e inicio da noite, em decorréncia das correntes convectivas da radiagaio telirica (Nimer, 1989). © Pantanal apresenta pluviosidade média variando de 1,000 mm a 1.400 mm (Aw), com ocorréncia eventual de geadas em julho e agosto (Allem ¢ Valls, 1987). Semelhante ao Cerrado, ha duas estagdes bem definidas, representadas por invernos secos ¢ verdes chuvosos, sendo que 80% das chuvas acontecem no periodo de novembro a margo. A vegetagao é bastante dependente do sistema hidrografico variavel da Bacia do Alto Paraguai, fundamentalmente na sua margem esquerda, que predomina em uma paisagem de declividade praticamente nula em planicies deprimidas. Situado-no centro da 155 América do Sul, a altitude varia entre 80 m e 160 m. O Pantanal é penetrado pelo Chaco (um _ bioma que cobre o norte da Argentina, parte da Bolivia e do Paraguai) em um pequeno trecho no sudoeste de Mato Grosso do Sul, embora essa intrusdo no Brasil fique restrita 4 regidio de Porto Murtinho (Adamoli, 1982; Prado et al., 1992; Prado, 1993a, 1993b). ‘A Tabela | apresenta um resumo dos valores anuais médios de pluviosidade e temperatura desses biomas brasileiros, destacando-se o clima predominante de acordo com a classificagao climatica de Koppen. Em cada bioma ha um tipo de vegetagao ou fitofisionomia predominante, que ocupa a maior parte da rea, e que é determinada primariamente pelo clima. Outras fitofisionomias também sio encontradas, e a sua ocorréncia esta associada a eventos temporais (tempos geoldgico ¢ ecold- gico) ¢ a variagées locais, como aspectos fisicos € quimicos do solo, geomorfologia e topografia. Neste capitulo so analisados os tipos fitofi- siondmicos que formam o mosaico vegetacional do bioma Cerrado, com referéncia especial a area - continua em destaque na Fig. 1. Vegetagdes em reas periféricas a esta, pelo Brasil e por outros paises da América do Sul, também podem ser tratadas sob a designagao geral de Cerrado, embora geralmente recebam outros nomes regionais, sejam estes de origem popular, sejam académica. Campos Sulinos. 1,300 a 1.700 20,0 | Florestas Atlantica 2.000 a 2.500 211 ede Araucéria Caatinga 500 a 700 24 Floresta AmazOnica 2.000 a 3.000 26,0 - Pantanal 1,000 a 1.400 248 Tropical chuvoso; verdo quente, inverno seco Cfa (Cfo) AL (Aw, Cw, CA) ‘Subtropical amido, com veréo quente Tropical chuvoso; vertio quente BSh(Aw) Tropical semi-drido; verdo quente, seco ‘Af(Am, Aw) Tropical chuvoso; verdio quente Aw Tropical chuvoso; verdio quente, inverno seco 156 i Cerado: eno for O bioma Cerrado Bahia (Eiten, 1994b); e também no Pantanal, onde se mescla fisionomicamente com este bioma (Adamoli, 1982; Allem e Valls, 1987). Planalto Central do Brasil e é 0 segundo maior Fora do Brasil ocupa areas na Bolivia e no = bioma do Pais em Area, apenas superado pela Paraguai, enquanto paisagens semelhantes so Floresta Amazénica. Trata-se de um complexo encontradas no norte da América do Sul na vegetacional, que possui relagdes ecolégicas e Guiana, no Suriname, na Colémbia e Venezuela, fisiondmicas com outras savanas da América onde recebe a consolidada denominagao de Tropical e também da Africa, do Sudeste Llanos. Asitico e da Austrilia (Beard, 1953, 1955;Cole, 4 vegetagtio do bioma Cerrado apresenta 1958, 1960, 1986; Biten, 1972, 1978, 1994b; _fisionomias que englobam formagées florestais, Allem ¢ Valls, 1987). O Cerrado corresponde as _- savanicas e campestres. Em sentido fisiondmico, “Oreades” no sistema de Martius, ¢ ocupa mais floresta representa direas com predominancia de, de 2.000.000 km?, o que representa cerca de 23% — espécies arbéreas, onde ha formagao de dossel, do territério brasileiro. Ocorre em altitudes que continuo ou descontinuo. O termo savana’ refere- variam de cerca de 300 m, a exemplo da Baixada se a areas com drvores arbustos espalhados Cuiabana (MT), a mais de 1.600 m, na Chapada sobre um estrato graminoso, sem a formagao de dos Veadeiros (GO). No bioma, predominam os dossel continuo. JA 0 termo campo designa areas Latossolos, tanto em areas sedimentares quanto com predominio de espécies herbaceas e algumas — em terrenos cristalinos, ocorrendo ainda solos arbustivas, faltando arvores na paisagem: E com conereciondtios em grandes extensdes (Ab’ Saber, : 1983; Lopes, 1984). apresentados no texto. Como érea continua, 0 Cerrado abrange 0s —_A flora do Cerrado ¢ caracteristica e diferen estados de Goids, Tocantins ¢ o Distrito Federal, parte dos estados da Bahia, Cearé, Maranhao, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, biomas (Heringer et al., 1977; Prado e Gibb Piaui, Rondénia e Séo Paulo; ¢ também ocorre 1993; Oliveira-Filho ¢ Ratter, 1995). Além do em areas disjuntas ao norte nos estados do clima, que, segundo Eiten (1994), tem efeitos Amapa, Amazonas, Par e Roraima, e ao sul,em __ indiretos sobre a vegetagao (0 clima agiria sobre pequenas “ilhas” no Parana. No territério brasi- 0 solo), da quimica e da fisica do solo, da dis leiro, portanto, as disjungdes acontecem na _ bilidade de agua e de nutrientes, da geomor Floresta Amaz6nica, regio em que a vegetagzio _logia e da topografia, a distribuigio da flora tem sido tratada por outros termos ou expressdes, condicionada pela latitude, pela freqlléncia « como “savanas amazénicas” (Sanaiotti, 1991; _ queimadas, pela profundidade do lengol freati Miranda e Absy, 2000); na Floresta Atléntica, pelo pastejo e por intimeros fatores ant especialmente na regidio sudeste, nos Estados de (abertura de dreas para atividades agro Sao Paulo e Minas Gerais; na Caatinga, como _retirada seletiva de madeira, queimadas manchas isoladas no Maranhao, Piaui', Cearé.e manejo de pastagens, etc.) O Cerrado est localizado essencialmente no *“Oeades” & 0 nome mitolégico de uma divindade ou ninfa das montankas, companheira de Diana, deusa grepa dacaya. AS ‘de Martius ¢ respectivas divindades sio (Sampaio, 1930; Ferri, 1980): "Naiades" (ninfa dos lagos, ris ¢ fontes ~ Floresta. “Hamadeiades” (ninfa que ressuscita, protetora dos bosques e vores ~ Caatinga); “Driades” (também uma ninfa protelora di Floresta Atlintca); e “Napeia” (ninfa protetora dos vales e prados ~ Campos Sulinos). * Segundo Castro et al. (1998), 0 Cerrado do Piaui é um prolongamento setentional do Cerrado Central, emboraseja Conse Seria um tipo de “encrave" — ou reas disjuntas que se contatam — no sentido dé Veloso (1992) 3 » A definigo de “savana” apresentada no € universal, existindo diferentes acepgdes do termo. Essas podem engloba signifcada floristicos ou ecolégicos (ver Eiten, 1972; Sarmiento, 1983; Walter, 1986; Allem e Valls, 1987; Walter, 2006 e o Capitulo 1), Ale definigio de campo (grassland) aqui adotada pode ser interpretada por alguns sob o conceito de savana, com base na origem termo —“terras sem drvores, com muita grama eurtae alta”, conforme registrou G.F. Oviedo y Valdez, em 1335 (Bourlére eH A definigto sem distinggo de “savana ou campo" apresentada por Huber (1974, apud Goodland e Feri, 1979), por exempl essa interpetagdo diferente. Todavia, e separagio conceitual dé maior clareza aos dois termos. As principaisfitofisionomias do bioma Cerrado Origem das formacées florestais Fatores temporais (tempos geoldgico € ecoldgico) espaciais (variagdes locais) so responsaveis pela ocorréncia das formagdes florestais do Bioma Cerrado. Na escala temporal, grandes alteragdes climaticas e geomorfolégicas teriam causado expansdes 'e retragdes das florestas timidas ¢ secas da América do Sul, que no Brasil hoje estariam representadas, respectiva- mente, pelas Florestas Amaz6nica e Atlantica, ¢ pélas florestas semideciduas e deciduas da Caatinga e do Cerrado, além das Florestas de Araucaria. No Quaterndrio, em particular no Pleistoceno, houve grandes pulsagdes climaticas com longos intervalos de tempo com tempera- ~ turas baixas (as glaciagdes), intercalados por intervalos menores com temperaturas mais altas (0s interglaciais), como a fase atual (Salgado- Labouriau, 1994). Nos periodos interglaciais, as florestas timidas teriam se expandido, retraindo- se posteriormente nas glaciagdes, com indicios ‘de retrag’o dessas florestas especialmente no al do Pleistoceno (glaciagao Wiirm-Wiscon- jana) ¢ inicio do Holoceno, entre 18.000 e 12,000 anos atras (Haffer, 1969; Prance, 1973, 982; Bigarella et al., 1975; Ab’Saber, 1977; je-Lima, 1982; Salgado-Labouriau, 1994; ing e Hooghiemstra, 2001). Nesses periodos jais quaternarios, tipicamente secos, sitios ificos teriam possibilitado a manutengao de temanescentes das florestas:imidas, lidas nesses periodos, e a expansio das ecas e das formagdes vegetais abertas apos € Savanas) por grandes extensdes do nente, atingindo areas que hoje compre- mM outros biomas. Alternativas recentes & ria sugerem, cada vez mais, no a simples uigtio de vegetagdes, mas uma modifi- florestas iimidas por um tipo de floresta sta, onde elementos montanos como ., Humiria, Ilex ¢ Rapanea, de clima ocupado faixas altitudinais mais frtude do resfriamento do clima em em relagao a média atual (Colinvaux, §; Ledru, 1993, 2002; Oliveira, 2000; ‘Gibbs (1993) argumentaram que as deciduas e as deciduas na América 157 do Sul teriam aleangado sua maxima extensio ao final da altima glaciag2o, coincidindo com a contragao das florestas timidas. A partir de ento, essas florestas secas retrairam-se ¢ as florestas ‘imidas passaram a se expandir, em decorréncia do lento retomo a um clima mais imido/quente nos iltimos 12,000 anos (Holoceno). Para Prado (2000), as florestas secas sul-americanas hoje formariam uma das principais unidades fito- geogrificas do continente (designada “arco pleistocénico” ou “arco residual de formagdes estacionais pleistocénicas”), devendo ser acrescida Aquelas 24 consideradas por Cabrera e Willink (1980). Evidéncias para essas teorias so fomnecidas pela atual distribuigao geogrifica de muitas espécies tipicas dessas florestas em diferentes biomas, ou em areas disjuntas pela América do Sul, as quais englobam o Cerrado. Resumida- mente, essas tém sido consideradas as principais causas da existéncia das formagdes florestais no Cerrado. Em paralelo, na escala espacial, essas formagées Seriam influenciadas por variagdes locais em pardmetros como hidrografia, topogra- fia, profundidade do lengol fredtico e fertilidade e profiundidade dos solos, além de fatores biéticos inerentes a flora. « Pode-se considerara existéncia de dois grupos de formagdes florestais do Cerrado que parecem ter sua atual distribuigao vinculada & hidrografia € aos solos: as formagdes associadas aos cursos de Agua, geralmente em solos mais timidos, ¢ as que nao possuem associago com cursos de gua (interflavios), em solos mais ricos (Prado e Gibbs, 1993; Oliveira-Filho e Ratter, 1995). ‘As formag®es florestais associadas aos cursos de agua (perenes ou no) so tidas como tipos de vegetagio extra-Cerrado, por conta da forte ligagdo que tém com as linhas de drenagem naturais (Coutinho, 1978; Biten, 1994b). Autores como Troppmair e Machado (1974) e Fernandes e Bezerra (1990) as consideraram como intrusdes, tanto da Floresta Amaz6nica quanto da Atlantica. Jé Santos (1975), IBGE (1989) e Heringer e Paula (1989), entre outros, sugeriram uma ligagao mais forte com a Floresta Amaz6nica, a0 passo que Rizzini (1963, 1997) as ligou mais 4 Floresta Atlantica. Cabrera e Willink (1980) sugeriram que tais formagdes também conecta- riam a Floresta Amazénica com as Florestas 158 Ombrofilas Densas e Mistas da sua provincia paranaense, na bacia dos rios Parané-Paraguai, com 0 que concordaram Oliveira-Filho e Rater (1995, 2000). Oliveira-Filho e Fontes (2000) afirmaram que hd pouco fundamento floristic para sugerir lacos muito fortes entre a Floresta Atlantica e a Amaz6- nica, comparado aos lagos existentes entre’ a componente vegetacional “semidecidua” e a componente “ombrofila” da propria Mata Atlantica. Dessas duas, o laco mais forte com outros biomas se deu entre a componente “semidecidua” ¢ as florestas secas (semideciduas) do Cerrado. Recentemente, Fernandes (2003) também questionou 0 lago floristico Floresta Atlantica— Amazonia, argumentando que apenas em periodos paledgenos esssa conexao pode ter tido alguma representatividade fitogeografica, embora devam ter havido permutas floristicas no Quaternario. Portanto, mesmo que os lagos floristicos com outros biomas nao sejam tio fortes quanto antes se pensava, eles existem e estudos com grupos de fauna reforgam esses vinculos que passam pelo Cerrado (Costa, 2003), Uma vez que ha similaridade floristica entre as florestas associadas aos cursos de Agua do, Cerrado e as florestas de outros biomas, conto apontado em Rodrigues e Leitao Filho (2000) e Ribeiro et al. (2001), especialmente em nivel de géneros e familias comuns, também ha evidén- cias de particularidades nas florestas do Cerrado que as diferenciam daquelas de outras regides (Ratter et al., 1973, 1978; Heringer et al., 1977; Oliveira-Filho, 1989; Oliveira-Filho © Ratter, 1995, 2000; Walter, 1995; Rizzini, 1997; Silva- Junior et al., 1998; Ribeiro ¢ Walter, 2001). Considerando que a identidade floristica com outros biomas hoje esta mais bem definida, Oliveira-Filho e Ratter (1995, 2000) constataram que um nimero consideravel de espécies distri- bui-se desde a Floresta AmazOnica até a Atlantica, cruzando 0 Cerrado numa rota noroeste-sudeste, através da rede dendritica de florestas associadas aos cursos de Agua. Segundo esses autores as florestas do norte e oeste do Cerrado apresentam ligagao floristica mais forte com as florestas da Amazénia, havendo até um padrao floristico que vincula as matas ciliares, cerraddes distroficos e a floresta ombréfila aberta transicional em solos Cerrado: ecologia¢ flora inférteis, pelo sul da Amaz6nia, Por sua vez, as matas ciliares do centro e sul do bioma ligam-se mais as florestas semideciduas montanas do sudeste brasileiro, especialmente as paranaenses. Em relago as florestas que nao possuem associagao com cursos de Agua, a sua origem € menos debatida na literatura sobre o Cerrado, mas a discussao esté muito presente quando o bioma Caatinga é tratado, como nos estudos de Luetzelburg (1922/1923b, 1922/1923c), Andrade-Lima (1960, 1982), Rizzini (1997) e Fernandes (1999, 2003). Ha algumas décadas foi levantada a hipétese de uma possivel rota migrat6ria sudoeste-nordeste na América do Sul, conectando a Caatinga, 0 Cerrado e o Chaco, na conhecida “diagonal de formagdes abertas”, ou “corredor de vegetacdo xérica”, ou, ainda, “corredor de savanas” (Bigarella et al., 1975; Cabrera e Willink, 1980; Andrade-Lima, 1982; Rizzini, 1997). Dos poucos estudos sobre 0 assunto, Prado e Gibbs (1993) e Prado (2000) investigaram esta possivel ligagao floristica, sustentando que o vinculo Caatinga-Cerrado- Chaco mostrou-se desprezivel, especialmenten ligagao Caatinga-Chaco, o foco da atengao. Entretanto, aqueles autores detectaram tt padrdes de distribuigdo de espécies lenhos vinculando esses biomas, incluindo tamb reas na Floresta Atléntica e nas franjas dos ‘Andes. Destacaram a auséncia de espécies ¢ Caatinga e do Chaco nas formagdes savanicas pelos trés biomas. Esses ¢ outros argume floristicos foram usados por Prado (2000) indicar essas florestas secas como uma fitogeogrifica sul-americana distinta,tipicame disjunta. a Oliveira-Filho e Ratter (1995) também: ram que as espécies dessas florestas de essencialmente de solos mais férteis, ed se-iam ao longo de um arco nordeste-std conectando a Caatinga as fronteiras sem penetra-lo — com base na argume Prado e Gibbs (1993). Como suste autores, se hé a rota noroeste-sudeste; de florestas associadas a cursos de Central, também ha esse arco nor As prnipaisfitofisionomias do bioma Cerrado para espécies calcifilas deciduas. Portanto, intimeras espécies das florestas do Brasil Central parecem ajustar-se a esses dois grandes padroes de distribuigdio (Oliveira-Filho e Ratter, 1995) Origem das formacées savanicas e campestres Os mais antigos registros sobre as formagdes savnicas ¢ campestres do Cerrado datam de 32.000 anos atras ¢ esto localizados no Brasil Central (Ledru, 2002). A origem destas formagdes é muito discutida ¢ a literatura é rica em teorias que tentam explicé-la, como os estudos de Warming (1973 - original de 1892), Rawitscher et al. (1943), Rawitscher (1948), Waibel (1948a, 1948b), Beard (1953), Alvim e Araiijo (1952, _ 1953), Alvim (1954, 1996), Ferri (1955, 1963), " Ferri e Coutinho (1958), Arens (1958a, 1958b, 1963), Cole (1960, 1986), Beltrao (1969), Biten (1972, 1994), Coutinho (1978), Goodland ¢ Ferri 979), Coutinho (1980, 1992), Amaral Filho (1995) e Rizzini (1997). Utilizando expressdes Sugeridas por Beard (1953) para as savanas da rica Tropical, de maneira geral, pode-se etizar tais teorias em trés grupos principais, entando-se um quarto grupo, que envolve ombinacaio dos anteriores: ‘Teorias climAticas: segundo as quais a ‘Yeaeiaga0 seria o resultado do clima, prinei- Imente em funcao da limitagdo sazonal idtica no periodo seco (estacionalidade), 19 em Warming (1973). as bidticas: pelas quais a vegetagao eria 0 resultado de ago antrépica, princi- Imente pelo uso freqiiente do fogo, pelo tej excessivo e pelo corte como em tscher (1948), Waibel (1948a, 1948b) i (1997); ou, ainda, resultante da de de outros agentes da biota, como jgas (Coutinho 1980, 1992). pedolégicas: nas quais a vegetagao endente de aspectos edificos 10s, como deficiéncias minerais ofismo), saturagdo por elementos inio, diferengas de drenagem e de dos solos, como em Rawitscher 159 etal, (1943), Beard (1953), Alvim (1954), Arens (1958b) e Goodland e Ferri (1979). + Teorias combinadas: a combinagao de fatores bidticos e abidticos tratados nas teorias anteriores, considerando ainda a dinamica da vegetagao, aspectos climaticos e de génese evolutiva, ¢ que explicaria a vegetacio, como destacado nos estudos de Cole (1960, 1986) Amaral-Filho (1995) e Oliveira-Filho e Ratter (2000). Warming (1973) foi quem primeiro indicou 0 clima como fator determinante das formagdes savanicas e campestres do bioma, em que a defi- ciéncia hidrica no periodo seco seria o principal fator limitante. Posteriormente, Rawitscher (1948) e Waibel (1948a, 1948b) sugeriram que 0s fatores antrépicos poderiam ter tanta influencia quanto o clima ea deficiéncia hidrica. Nas décadas seguintes, a deficiéncia nutricional do solo foi investigada ¢ teve sua importéncia reconhecida (Beard, 1953; Alvim e Aratjo, 1952, 1953; Alvim, 1954; Arens, 1958b, 1963; Eiten 1972, 1994; Goodland e Ferri, 1979). Segundo Eiten (1972, 1994) as formas fisiondmicas do Cerrado depen- deriam de trés aspectos do substrato: a baixa * fertilidade e os altos teores de aluminio disponi- yel; a profundidade do solo; ¢ 0 grau de saturagdio hidrica das camadas superficial e subsuperficial do solo. Alvim (1996) voltou a defender a deficiéncia hidrica como principal fator limitante para a origem do Cerrado, embora tenha identificado os aspectos edaficos e as queimadas como fatores de modificagao da flora ¢ das caracteristicas fisionémicas da regiao. Conforme conclusaio desse autor, tanto 0 solo quanto 0 fogo “nada téma ver com os processos evolutivos que deram origem ao aparecimento das plantas tipicas do ecossistema”, 0 que demonstra a polémica que ainda cerca o assunto. Entretanto, ha que se fazer a distingdo entre origem evolutiva (tempo geold- gico) e origem sucessional (tempo ecolgico), 0 que ha muito vem sendo alertado por autores como Eiten (1972) e Goodland e Ferri (1979). Quanto 4 origem evolutiva, Ledru (2002) sugeriu. recentemente: que, provavelmente, a vegetacao do Cerrado estivesse adaptada ao fogo antes mesmo que o ser humano chegasse a América 160 - do Sul, 0 que confronta as teorias que apontam essa vegetag’o como sendo 0 resultado de agao antrépica. J4 ha algum tempo existe a tendéncia em admitir que a interago dos fatores clima, biota e solo contribuiriam de alguma forma para o aspecto geral da vegetagiio (Cole, 1960), tal como a observamos hoje, o que decorre tanto da escala evolutiva (tempo geoldgico) quanto da sucessio- nal (tempo ecolégico). O clima tem influéncia temporal na origem da vegetagiio. As chuvas a0 longo do tempo geoldgico intemperizaram os solos, deixando-os pobres em nutrientes essen- ciais, e com alta disponibilidade de aluminio, com eventos de fogo acontecendo em intervalos regulares. Por conta disso, a vegetaciio pode ser tratada como 0 resultado indireto do clima, induzindo-a para um climax edafico (Eiten, 1972, 1994), A influéncia floristica de outros biomas nas formagdes savanicas e campestres do Cerrado ainda & pouco investigada, mas, em trabalho recente, Méio et al. (2003) analisaram a contri- buigdo das floras das Florestas Amaz6nica e Atlantica no Cerrado sensu stricto. Nessa compa- ragdo, esses autores sugeriram maior afinidade floristica desta vegetagdo com a Floresta Atlantica, ¢ também imputaram esse possfvel lago As mu- dangas climéticas no Quatenario. Na conexio dos biomas Amazénia e Cerrado essas mudangas climaticas teriam sido mais dristicas que na conexao Floresta Atlintica com 0 Cerrado. Tais mudangas, aliadas aos padrdes climaticos menos dessemelhantes entre essas duas dltimas — em que ha baixas temperaturas de inverno e estagaio seca pronunciada ~ propiciaram que a flora do Cerrado sensu stricto pudesse trocar elementos em maior proporgio com a Floresta Atlantica do que com a Amaz6nia. Mas essa linha de investi- gagdo carece ser mais trabalhada e ampliada para outros biomas e outras fitofisionomias. wow desig 6 termo tabuleiro (4 “taboleiro ra cerrado € mencionada por Martius (1943 ~ original de 1824) em passazens como: la pelos brasileiros eom 0s nomes de campo limpo e eampo fechado, cerrado {quando os gallos das érvores se tocam, diz-se “tabulero coberto', © havendo capoeira densa entre 0s calles “abuleiro cerrado” usado até 0 inicio do séeulo 20 por autor Cerrado: evologiae flora Cerrado: definicao de termos e expressdes Antes de analisar os tipos fitofisiondmicos que compdem o mosaico vegetacional do bioma Cerrado, é importante definir alguns termos ¢ expressdes, discutindo especialmente conceitos. “Cerrado” ¢ uma palavra de origem espanhola que significa fechado. Este termo buscou traduzir a caracteristica geral da vegetagio arbustivo- arbérea que ocorre na formacaio savanica, tendo sido referido por Martius jé no inicio do século 19 (Martius, 1943 — original de 1824) para tratar de diferengas fisiondmicas importantes observa- das na vegetagao nao florestal do Brasil Central. Essas diferengas (¢ 0 uso do termo) eram reco nhecidas pelos brasileiros, segundo Martius (1943), que citou a palavra em separado, ou junto ao termo “tabuleiro”*’, No final do século 19, Warming (1973 — original de 1892) utilizou a expressiio “campos-cerrados” para tratar de uma das formas de vegetaco por ele estudada em: Lagoa Santa (MG), mencionando o uso da palavra “cerrado” como uma simplificagao habitual daquele’. A partir dai, a falta de u midade na utilizagao do termo ao longo do século 20 gerou uma série de controvérsias e usos di renciados, criando dificuldades na compar de trabalhos da literatura, “Cerrado” tem sido usado tanto para desi tipos de vegetaciio (tipos fitofisiondmicos) para definir formas de vegetacao (fo categoria fitofisionémica). Também pod associado a adjetivos que se referem a cara ticas estruturais ou floristicas particulares, tradas em regides especificas. Por “‘tipo de vegetagaio” entende-sea fi mia, a flora e 0 ambiente, e por “for ‘Vegetaciio”®, apenas a fisionomia (Biten, A fisionomia inclui a estrutura, as forma A diferenga mais importante & 2 (p. 256); *.. Sto chamados no Pais ‘orgo'Luetzelburg(1922/1923e), nda esse ‘consideradas", Para uma andlise ampla da terminologia fitofisionémica aplicada ao bioma Cerrado, ver Walter (2006) A trdugdo do original, escrito em dinamarqués, foi feta por Albert Loferen, para a primeira edigo em portugués, publicada disso, Lofren (1896) jé havia usado o termo em seu Ensaio para uma distribuicdo dos vegetais 180 & aqui considerado como sindnimo de formas * Forma de veg

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